Quando eu era pequenino
Lá no fundo do quintal
Minha mãe me dava angu
Meus irmãos comiam mingau
Minha mãe tinha sete filhos
Eu era o derradeiro
Quando a farinha era pouca
Eu gritava “meu pirão primeiro”
Farinha pouca, meu pirão primeiro…
A capoeira é o que a boca come, o pé pisa, a mão toca, o coração sente
Quando eu era pequenino
Lá no fundo do quintal
Minha mãe me dava angu
Meus irmãos comiam mingau
Minha mãe tinha sete filhos
Eu era o derradeiro
Quando a farinha era pouca
Eu gritava “meu pirão primeiro”
Farinha pouca, meu pirão primeiro…
Esse mundo não tem dono
e quem me ensinou sabia
se tivesse dono o mundo
nele o dono moraria
como é mundo sem dono
não aceito hierarquia
eu não mando nesse mundo
nem no meu vai ter chefia
Quão estranho foi para essa herança surgir no Brasil e aparentemente terminar lá, porque os escravos foram negociados e espalhados por todo o mundo. Muito possivelmente, se tivesse havido instrutores da arte marcial nos Estados Unidos, a capoeira poderia ter mudado a face da história na América do Norte.
Representantes do Brasil, aqueles que desejam olhar com prazer a história de sua nação, gostariam que as demonstrações de dança continuassem a ser tratadas como dança. De fato, a capoeira, por seus aspectos potencialmente perigosos, precisa ser praticada como uma dança, um kata, mas não pode haver um kumite. Os praticantes conhecem a regra e são forçados a aceitá-la, mas eles acreditam sinceramente que a arte poderia ser um esporte dinâmico se as rédeas do governo míope fossem removidas.
Que isso aguça o interesse daqueles que a veem, tem sido bastante bem-documentado. Em Los Angeles para comparecer a um festival folclórico, os membros do Olodum foram cercados por estudantes, pedindo para demonstrarem em escolas e universidades locais. Em cada demonstração, havia mais interesse em trazer a arte marcial para os Estados Unidos. Muitas das pessoas fazendo os pedidos eram, para a surpresa de ninguém, da comunidade negra.
Quão “suja” a capoeira tem sido, ou se tornou ? Os livros de história não são claros sobre esse ponto, também. Há muitas lendas cercando a arte marcial e explicando como ela foi usada por marinheiros brasileiros que a aprenderam e “adaptaram” dos escravos. De acordo com algumas fontes que relutantemente admitem isso, os marinheiros usavam a capoeira para matar, afixando facas e navalhas a seus pés e mãos antes de entrar numa luta. Dos Santos dá de ombros ao falar sobre essa faceta. Talvez assim tenha sido como a arte tenha sido feita “bastarda” pelos marinheiros brasileiros, me ele tem confiança nas mãos e pés vazios para ultrapassar esse vício.
A polícia era chamada onde quer que houvesse a prática. Agora, finalmente, ela está sendo apreciada pela beleza física que realmente é. Velocidade, agilidade e multiplicação da força são a chave.
Pastinha ainda é a autoridade primária na arte, e ele tem cuidado de desenvolvê-la até um ponto de respeitabilidade. Mestre Bimba é o mais reconhecido praticante e professor no Brasil, e seus estudadnete são tão entusiastas das técnicas, quanto são estudantes de qualquer lugar. Há alguns infelizes por ela estar presa ao aspecto de demonstração, por mais chamativo que ele seja com seu acompanhamento musical e roupas coloridas, geralmente calças listradas que dão uma aparência berrante e carnavalesca que a maioria. Ao menos a arte está sendo nutrida e algum dia talvez, se ela continuar a viver e ganhar em popularidade, a capoeira pode tornar-se uma arte marcial completa e uma paixão nacional.
Dê uma reparada nesse vídeo:
Pensando num argumento mínimo: pela quantidade de etnias negras trazidas e misturadas à força aqui no Brasil, seria humanamente impossível manter qualquer tradição imutável. Toda tradição oral é viva, e muda quando mudam os que a mantém viva. Não há tradição oral estática – todas refletem sinais de seus tempos.
O seu mestre não faz tudo igual ao que o mestre dele fazia, é fisicamente impossível. A termodinâmica garante que a transmissão de energia entre dois pontos sempre acarreta perda: a energia elétrica, ao ir para a lâmpada, não gera apenas luz – também gera calor. A sua energia, ao pedalar uma bicicleta, não gera apenas o movimento – também aquece as correntes, faz barulho, range. Não existem sistemas de energia “fechados”, que uma vez abastecidos, nunca mais precisem de combustível.
É claro que trazer conceitos físicos para dentro do campo da mente humana é sempre perigoso, mas me arrisco a defender a posição nesse caso. Nenhum ser humano é uma ilha, todos estamos expostos a opiniões diariamente, e algumas dessas opiniões mudam a nossa cabeça. Não é que fulano despreza o que o mestre dele ensinou: ele é uma pessoa com gostos e direitos, e no gosto e direito dele, vai ajeitar um pouquinho aquilo que aprendeu – para que goste ainda mais.
Por esse motivo é que os uniformes mudam de uma geração para outra; as baterias mudam de formato; os grupos ficam mais ou menos agressivos; as letras se alteram; os golpes mudam de nome; alguns golpes deixam de ser praticados (Você sabe o que é um bochecho ? E um baú ? E uma pantana ? E se sabe, tem certeza que faz igualzinho ao que se fazia em 1920 ?).
Entendo que a beleza da capoeira está justamente nessa falta de definições – é diferente de artes marciais orientais cuja forma e filosofia estão descritas em pergaminhos com centenas ou milhares de anos de idade. A capoeira é mais nebulosa, mais difusa, dá mais lugar ao praticante pensar e definir ele mesmo a arte. Temos sim luminares, capoeiristas cujo pensamento e ações formaram e formam gerações – Pastinha, Noronha, Cobrinha Verde, Waldemar, Bimba, Canjiquinha, e tantos outros. Mas no meu modo de ver, eles não deixaram regras rígidas: cada um deixou o “seu jeito certo”, e se em algum momento discriminou o jeito do outro, não deveria ser julgado por isso – cada um era produto de seu tempo, e suas palavras faziam sentido naquele contexto.
Nós que chegamos agora, os mais novos, temos o privilégio de poder beber a água de muitas fontes, e desenhar nosso caminho baseando-nos naquilo que nos agradar, do que cada um dos “monstros” deixou.
Embora não esteja ligada diretamente à capoeira, eu gosto muito de uma frase de Lee Jun Fan, também conhecido como Bruce Lee. Tendo fundado um estilo, o jeet kune do, Bruce Lee parece paradoxal ao afirmar que sua arte não tem forma. O jeet kune do, por definição, não tem um jeito certo de se fazer.
“Se as pessoas disserem que o jeet kune do é diferente disso ou daquilo, então deixe o nome jeet kune do ser apagado, pois é isso que ele é, apenas um nome. Não se preocupe com ele.”
Pode soar zen demais, mas é algo que eu percebo, mesmo implicitamente, na capoeira. A expressão física da capoeira importa muito menos, para mim, do que o estado mental. O desejo do capoeirista, ao jogar, me encanta mais que o jogo em si… Perceba que não quero dizer que cabe tudo ou que vale tudo na capoeira, e sim que cabe tudo e vale tudo o que for feito com respeito ao próximo, à sua integridade física e moral.
A capoeira com amor, faz amigos. A capoeira, sem amor, nem capoeira é…
Às vezes parecia que era só improvisar
E o mundo então seria um livro aberto,
Até chegar o dia em que tentamos ter demais,
Vendendo fácil o que não tinha preço.
Muito menos pertencia a outros artistas mais “modernos” como Kalixto ou Carybé…
Texto: Carlos Eugênio Líbano soares
Apesar de nunca ter praticado outra luta que não fosse capoeira, sempre gostei de ler sobre artes marciais e correlatos. Gosto de comparar estilos, não no sentido de “qual é melhor”, mas sim de “quão parecidos ou quão diferentes” – afinal de contas, todos os praticantes são humanos, e o corpo humano só consegue se mover dentro do limite de suas articulações.
Por esse motivo é que há chutes parecidos com o “martelo” no karate, no muay thai, no savate e no boxe chinês: um chute frontal, com o quadril rotacionado. O mesmo vale para joelhadas, socos, etcetera. Ainda que uma arte marcial use mais de um e menos de outro, ou mesmo que não use algum tipo de golpe, todo lutador está limitado a fazer o que seu corpo permite.
Um amigo é praticante de diversas artes marciais orientais (karate, judo, ninjutsu), e já conversamos bastante sobre o que diferencia e o que aproxima os nossos estilos. Certa vez, ele comentou comigo que uma coisa que achava muito bacana na capoeira, muito mais do que os golpes, era o tai sabaki. Quando viu que eu não tinha entendido do que se tratava, explicou: o tai sabaki é a movimentação do lutador, o “gerenciamento da posição”, a “gestão do corpo”.
Em artes marciais orientais, a técnica é usada para medir as distâncias, evasão, e mesmo conversão de defesa em ataque. Segundo a Wikipedia, “sua maior finalidade é justamente evitar o enfrentamento direto, evitando, pois, um ataque e, na sequência, deixar a pessoa numa posição vantajosa. (…) não se deve resumir tai sabaki apenas como esquivas”.
Veja que interessante! A finalidade primária do tai sabaki é uma das grandes posturas filosóficas da nossa amada capoeira: ela não foi criada como arma de enfrentamento direto. O negro, escravizado e em situação de desigualdade completa, valia-se da astúcia mais que das pernas. A capoeira era “dança” aos olhos do senhor, para só se manifestar como luta valente nas horas certeiras – e essas horas certeiras tinham que ser bem medidas pelo negro (sob pena de morte, em caso de erro): atacar na distração, atacar quando tinha certeza da vitória, atacar quando a superioridade númerica ou de armamentos do escravizador pudesse ser ludibriada.
Conforme o Mestre Bola Sete bem descreveu em seu livro “Histórias e Estórias da Capoeiragem”, o capoeirista tem “a obrigação de chorar no pé do seu inimigo”, para que esse, relaxado e até mesmo desprezando o oponente, possa ser pego de surpresa.
Mestre Pastinha se referiu ao mesmo fato quando falou sobre o “capoeirista correr, e ai de quem correr atrás dele”, pois “o capoeirista corre para não ter que matar”. A capoeira é uma luta bravia e perigosa, mas que tem seu maior trunfo na dissimulação, em fazer o outro pensar que o capoeirista vale menos do que ele.
Já o Mestre Duquinha, em sua bela entrevista, comenta uma das “regras não ditas” da capoeira:
Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…
Nunca tive dúvida de que a capoeira servisse para quebrar um osso, romper uma costela, tirar uma vida. A história mostra isso, e a física das alavancas está do lado da capoeira: um pé rodando tem a força de uma pedra atirada com força, uma rasteira encaixada quebra um braço ou um crânio. No entanto, o capoeirista moderno parece precisar mostrar que é capaz de exercer a violência da luta, e que ela é eficaz.
Tenho visto cada vez mais a capoeira chegar à mídia através de torneios de luta aberta, MMA e similares. Entendo que isso é um sinal dos tempos, pois hoje em dia quer-se ter a violência contida: é melhor lutar no ringue, com regras definidas, do que brigar na rua ou na roda.
Nada contra quem gosta ou participa desse tipo de evento (eu mesmo gosto de assistir, embora não pratique MMA), e acho que o raciocínio “lute no ringue, não brigue na roda” faz muito sentido – mas o que ele prova em relação ao que a capoeira-luta consegue fazer ?
Dentro de um ringue, não há dissimulação, não há espaço para isso. Os dois lutadores sabem que só vão sair dali quando houver um vencedor. A “surpresa” não pode ocorrer, pois como um capoeirista vai “chorar no pé do seu adversário”, quando já se sabe que a luta só termina com o nocaute ou a rendição, sem espaço para a apelação ? Em uma situação de luta real, o capoeirista poderia “render-se”, para então derrubar seu inimigo quando esse lhe desse as costas. Num ringue, isso é impossível.
O ringue exige a luta objetiva, enquanto a capoeira-luta é subjetiva – o que não deve ser entendido como “sem contato” ou “fraca”, e sim como “malandra”, “sem regras”. Vide Mestre Pastinha dizendo que a “as brigas de capoeira nas docas, ninguém podia conter”. Não cabiam em ringues… Podemos ter certeza que um rabo-de-arraia bem dado derruba qualquer forte, e inclusive temos visto isso acontecer – mas prova realmente que a capoeira é luta perigosa ?
Pode-se argumentar que o faz-que-vai-e-não-vai da capoeira pode ser provado no ringue. E talvez possa mesmo. Mas qual estilo de luta não tem um faz-que-vai-e-não-vai ? Toda luta tem elementos de tai sabaki; todo ser vivo que luta (por comida ou por sua vida), a menos que seja MUITO mais forte que o adversário, precisa em algum momento tentar enganá-lo para obter a vitória.
No meu entendimento, os golpes, gingas e negaças da capoeira no ringue, não provam o valor da capoeira enquanto luta. Provam sim, o valor dos golpes, gingas e negaças da capoeira – e estes tem muito valor, sim senhor.
O valor da capoeira-luta é provado quando o capoeirista consegue sair do aperto sem precisar lutar, só ludibriando. Ou quando mesmo em situação de enfrentamento direto e inevitável, ele leva o adversário na conversa, até o ponto em que possa dar o golpe certeiro – aquele que incapacita o inimigo, ou o “coloca para dormir”.
O meu amigo, sendo ninjutsuca, comentou uma vez que gostava de comparar os capoeiristas aos ninjas. E antes que você, leitor, comece a achar que o ninja era o cara que dava gritos loucos, jogava “estrelas”, fazia saltos mortais acrobáticos e soltava bombas de fumaça, lembre-se que isso aí é coisa de cinema. Os ninjas reais eram artistas marciais treinados para missões de espionagem ou assassinato – e faziam isso muito bem.
Segundo o meu amigo, a diferença entre o samurai, cheio de códigos de honra, e o ninja, era que se você marcasse um duelo com um samurai para o sábado às 6 da madrugada, ele estaria lá pontualmente. Já se você marcasse o duelo com um ninja para o sábado às 6 da madrugada, ele te mataria enquanto você dormisse, na quinta à noite.
Olha a malícia aí…