O poder negro da capoeira

Por D. David Dreis (tradução: Teimosia)
Publicado na revista Black Belt no início dos anos 70
A nação brasileira está dando uma longa e dura olhada no seu passado xadrez. Algumas das coisas que ela vê, precisam ser lavadas e esfregadas, de maneira que façam boas leituras em livros de história. Rebeliões escravas à base de derramamento de sangue, são parte de seu folclore. E o Brasil está finalmente aceitando a capoeira como o verdadeiro poder negro da nação.
Por muitos anos, o Brasil tem posto à margem a sua herança com a capoeira. Ela tem sido negligenciada, desconsiderada e negada. Historiadores lutam contra a censura burocrática para encontrar clareiras, buracos na história que tiveram que ser preenchidos. Alguns anos atrás, um português de 81 anos, testemunha ocular dos buracos na história, contou uma estória: a estória era sobre capoeira.
Vicente Ferreira Pastinha foi o homem que fez o preenchimento. O que ele falou em extensão foi sobre as rebeliões escravas contra a crueldade da perseguição e a ferramenta de auto-defesa empregada pelos escravos, criada pelos negros.
Agora que o Brasil está dando essa olhada relutante, ele está aprendendo sobre a capoeira, e estremecendo com o que aprendeu. Descrições apropriadamente feitas pelo velho homem atestam sobre os braços e pernas se movendo rapidamente, batalhando contra a investida de senhores de escravos impiedosos, lutando contra a grande organização da opressão apenas para serem esmagados em derrota sangrenta. A capoeira teve seus resultados mais aterrorizantes nos levantes escravos contra os saqueadores da dignidade human, os donos de terra que estiveram em operação desde a colonização do Brasil pelos portugueses. Com cada supressão vieram mais e mais restrições, até que em fim, cansados e espancados, os africanos insurgentes, os escravos, foram derrotados. Como a população branca escreveu os livros de história, eles apagaram as marcas negras da capoeira, fingindo que elas nunca existiram. Pastinha permaneceu vivo e trouxe a realidade do passado para o foco.
Mantida viva no segredo de almas endurecidas, a arte marcial continuou a ser ensinada e aprendida, e se movimentos eram exibidos, dizia-se que eram uma inocente dança nativa. Esse foi o modo da capoeira sobreviver à tortura do tempo.
Pastinha revelou como os aspectos culturais da arte pareceram desaparecer e como praticantes desesperados usaram a arte para quebrar os estatutos que foram colocados em seus caminhos. Que eles usaram a capoeira para a destruição e o dano, sem rima ou razão, é também parte da história desfigurada. Sem a cultura e a herança, assim como é muito ensinado no mundo das artes marciais, nada sobra a não ser a destruição e a demolição. De novo e de novo, negros insurgentes foram mortos em confrontos sangrentos. A herança da capoeira pareceu desaparecer para sempre.
Hoje, aos 81 anos de idade e cego, sem posses exceto pela renda que lhe foi assegurada por discípulos devotados da arte, Pastinha é cuidado por alunos que o olham com o mesmo respeito e dedicação que praticantes do karate e judo japoneses olham seus senseis. Ele vive em Salvador, Brasil, e ainda pratica a arte marcial, apesar de que os anos e o despeito cobraram taxas na sua destreza.
Mas assim como Pastinha revelou o passado, um instrutor de 68 anos conhecido apenas como “Mestre Bimba” está avançando para o futuro com sua instrução da arte marcial. Desde que ele começou a ensinar capoeira, muitos praticantes passaram por suas mãos e estão avançando a arte ainda mais.
Cinco anos atrás, um grupo liderado por Benjamin Muniz começou a fazer um estudo verdadeiro e esquemático do “kata” da capoeira, transferindo o que pastinha relatou em termos viáveis e ensináveis. Relutantemente, a nação começou a reconhecer a capoeira e aceitá-la pelo que era, apesar de acirradamente se negarem a reconhecê-la como esporte nacional – sabendo muito bem que a capoeira não é de maneira alguma um esporte. Hoje, ela foi “lavada” como uma dança cultural, nativa. Desta maneira, a capoeira é, para a hierarquia brasileira, “aceitável”.
Prestígio internacional
Muniz e seu grupo, o Olodum, estão fazendo demonstrações onde quer que consigam encontrar audiência. Seus esforços em festivais folclóricos lhes conseguiram prestígio internacional, apesar da desajeitada ajuda dada pelos canais oficiais do país.
Em 1968, o Olodum representou o Brasil no 3o Festival Folclórico Latino Americano, realizado na Argentina,  e levou o segundo lugar geral após ter vencido três medalhas de ouro e uma de prata. Este ano, eles ficaram em primeiro lugar no Festival Latino Americano realizado no Peru. Sua performance foi tão tocante, suportada por instrumentos musicais que são parte de sua aparência “lavada”, que o ministério brasileiro está fazendo homenagem à arte com a inclusão de demonstrações de capoeira na sua agenda oficial de demonstrações.
Mas esta homenagem é ao desenvolvimento do negro nas artes marciais. Apesar de os estudantes de hoje serem membros de todas as raças, assim como acontece de muitos dos estudantes de artes marciais orientais serem brancos, os negros recebem a maior homenagem através de seu desenvolvimento da capoeira.
Nada faz o negro andar mais orgulhoso de si do que seu laço na cultura da arte marcial. Essa herança tornou-se arraigada no folclore da história das aretes marciais. E há uma pitada de oriental em sua constituição.

Quão estranho foi para essa herança surgir no Brasil e aparentemente terminar lá, porque os escravos foram negociados e espalhados por todo o mundo. Muito possivelmente, se tivesse havido instrutores da arte marcial nos Estados Unidos, a capoeira poderia ter mudado a face da história na América do Norte.

Esse não é um tratado de direitos civis; é um testemunho de uma arte marcial legítima e austera, que se identifica com todas as tradições de outras formas de arte marcial. Assim como os senhores feudais japoeneses oprimiram a população de Okinawa, fazendo com que estes buscassem maneiras efetivas de auto-defesa, assim é com a capoeira, desenvolvida a partir do africano escravo que foi treinado para lutar contra elementos em sua terra natal, mas que voltou o uso do seu treinamento para lutar contra os atormentadores da dignidade humana no Brasil.

Representantes do Brasil, aqueles que desejam olhar com prazer a história de sua nação, gostariam que as demonstrações de dança continuassem a ser tratadas como dança. De fato, a capoeira, por seus aspectos potencialmente perigosos, precisa ser praticada como uma dança, um kata, mas não pode haver um kumite. Os praticantes conhecem a regra e são forçados a aceitá-la, mas eles acreditam sinceramente que a arte poderia ser um esporte dinâmico se as rédeas do governo míope fossem removidas.

Sabidamente, há muitos praticantes da arte que estão trabalhando sem chutes ou socos. Isso tem resultado em alguns efeitos danosos, e mesmo eles reconhecem que o poder da arte precisa ser moldado de alguma maneira em um esporte do qual a nação possa ter orgulho. Assim como Gichin Funakoshi moldou o karate e Jigoro Kano moldou o judo, os líderes da capoeira, talvez Mestre Bimba, estão buscando por uma combinação de esporte e arte.
A ênfase da capoeira é na força muscular, flexibilidade das articulações e movimentos rápidos. Todos esses são calculados para subjugar, e subjugar rapidamente, qualquer ameaça, qualquer batalha.

Movimentos corporais rápidos
A capoeira usa muitos movimentos corporais rápidos, como a maioria das artes marciais. Mas ela põe mais ênfase no poder das pernas, armamento pesado quando usado por lutadores treinados. Um capoeirista pode enfrentar um oponente face a face, mas em uma fração de segundo ele pode descer ao nível do solo, disparando um pé fortemente em uma área de ataque vital. Tem sido dito que o lutador de capoeira, treinado para colocar poder de ataque em seus pés, pode efetivamente destruir um homem com um chute mortalmente bem posicionado.

Que isso aguça o interesse daqueles que a veem, tem sido bastante bem-documentado. Em Los Angeles para comparecer a um festival folclórico, os membros do Olodum foram cercados por estudantes, pedindo para demonstrarem em escolas e universidades locais. Em cada demonstração, havia mais interesse em trazer a arte marcial para os Estados Unidos. Muitas das pessoas fazendo os pedidos eram, para a surpresa de ninguém, da comunidade negra.

Em São Paulo, Brasil, Waldemar dos Santos é o homem responsável por tornar a capoeira popular. Sua é uma missão que já viu a face da determinação turvada pelas barreiras à sua perseverança.
Dos Santos, um homem baixo e forte com mãos e testa marcados por cicatrizes, aprendeu sua capoeira nas ruas. Mas ele é o mais proeminente professor nesta cidade onde os estudos de judo e karate atingiram um novo pico de interesse e prática. Aos 37, o homem está determinado a ver a capoeira se tornar ainda mais importante que essas outras artes marciais. “Essa é brasileira”, ele diz com certeza. “Esta arte de combate está no sangue”.
Tão eminente é Dos Santos sobre a capoeira e seus laços nacionalistas, que mais de 100 estudantes aprendem sob sua tutela. Ele aprendeu a arte marcial nas clareiras de terra batida, que vieram a se toranr “academias” para a capoeira do Rio de Janeiro, Brasil – mas agora que retornou a São Paulo, o jovem está determinado a tornar a capoeira “oficial”.
Ele também, sofreu a opressão das autoridades, tendo nomeado seu “curso” um movimento folclórico brasileiro. Seus estudantes praticam no que era o salão de uma casa, suas paredes agora sujas com palmas e pés sujos. Após seis meses de movimentos de “dança”, que na realidade são o “kata”, Dos Santos instrui seus alunos na fase violenta da arte. “Eu admito”, diz ele, não muito orgulhos da afirmação, “que a capoeira brasileira é um dos estilos formalizados mais sujos que eu conheço”.

Quão “suja” a capoeira tem sido, ou se tornou ? Os livros de história não são claros sobre esse ponto, também. Há muitas lendas cercando a arte marcial e explicando como ela foi usada por marinheiros brasileiros que a aprenderam e “adaptaram” dos escravos. De acordo com algumas fontes que relutantemente admitem isso, os marinheiros usavam a capoeira para matar, afixando facas e navalhas a seus pés e mãos antes de entrar numa luta. Dos Santos dá de ombros ao falar sobre essa faceta. Talvez assim tenha sido como a arte tenha sido feita “bastarda” pelos marinheiros brasileiros, me ele tem confiança nas mãos e pés vazios para ultrapassar esse vício.

Registros policiais recentes
Registros policiais recentes no Rio mostram o que acontece quando a capoeira sai de controle. A polícia militar tentou prender um capoeirista bêbado apelidado Mestre Satã. Satã encarou um pelotão de 24 policiais e os combateu ao empate. Sete policiais foram hospitalizados, dois com braços quebrados e dois com fígados rompidos. Quando Satã ainda estava de pé, desafiante, após uma bateria de 24 cassetetes, a polícia teve que decidir por atirar nele ou deixá-lo desacordado. Decidiram pela última opção.
“Os pés são as armas mais mortais de um homem”, diz Paulo Romero, um praticante de capoeira do Rio. “A cabeça é a parte mais fraca. A capoeira visa trazer a arma mais forte contra o ponto de fraqueza”.
Mestre Bimba definiu o esporte-arte moderno e traçou 72 movimentos distintos que tem nomes vivazes, similares aos dados no tai chi chuan, tais como “tesoura do papai”, “bananeira” e “rabo-de-arraia”.
“Antes da Segunda Guerra Mundial”, Mestre Bimba diz, “a capoeira era ilegal”.

A polícia era chamada onde quer que houvesse a prática. Agora, finalmente, ela está sendo apreciada pela beleza física que realmente é. Velocidade, agilidade e multiplicação da força são a chave.

Mestre Bimba sabe que essa definição está em conflito com a visão dos capoeiristas sobre a arte. “Capoeira é tão graciosa quanto um balé, mas foi criada para matar”, ele admite. “Em uma luta de rua no velho Brasil colonial, capoeira era uma luta até o fim. Uma faca, uma navalha, uma garrafa quebrada, faziam um capoeira valer 20 homens”.
Pastinha, entretanto, foge do desprezo contra a arte. Historicamente, ela pertence ao Brasil e deveria ser reconhecida, em sua opinião. “Como brasileiro”, ele diz, “eu estou orgulhoso desse país amistoso. O capoeira encontrando seu adversário tem a possibilidade por meio da leveza e da rapidez da arte, de desarmar qualquer oponente, ou tomando sua arma ou vencendo-o ao atirar o adversário armado no chão”.

Pastinha ainda é a autoridade primária na arte, e ele tem cuidado de desenvolvê-la até um ponto de respeitabilidade. Mestre Bimba é o mais reconhecido praticante e professor no Brasil, e seus estudadnete são tão entusiastas das técnicas, quanto são estudantes de qualquer lugar. Há alguns infelizes por ela estar presa ao aspecto de demonstração, por mais chamativo que ele seja com seu acompanhamento musical e roupas coloridas, geralmente calças listradas que dão uma aparência berrante e carnavalesca que a maioria. Ao menos a arte está sendo nutrida e algum dia talvez, se ela continuar a viver e ganhar em popularidade, a capoeira pode tornar-se uma arte marcial completa e uma paixão nacional.

Nesse momento, uma universidade a aceita como parte de seu currículo, dentro de seu programa folclórico. Movê-la para a educação física pode ser uma realização delicada, mas enquanto esse dia não chega, os seguidores da arte vão continuar a demonstrá-la, permitindo às pessoas se esquecerem que ela é realmente um exemplo do poder negro.

Muitas águas de beber

Dê uma reparada nesse vídeo:

Grandes imagens, grande áudio! Mas o vídeo em si já começa com uma bela pisada no tomate, na minha opinião: a de que a capoeira foi criada pelos índios no Brasil. 
Não há dúvida alguma, para mim, das raízes africanas da capoeira – mas o assunto “origem da capoeira”, como um todo, já me cansou um bocadinho (no meu caso, já estou há 10-15 anos na mesma tecla :-)… 
Não consigo entender qual é o rationale, qual o motivo real de se acreditar que a capoeira tenha origem em  UMA luta, vinda de UM povo. Ela não é uma criatura de carne e osso, que tenha um pai e uma mãe. A capoeira nasceu de um caldeirão de culturas – esmagadoramente, culturas negras, e minoritariamente, culturas brancas e indígenas – mas não acredito que seja possível apontar A ORIGEM VERDADEIRA.

A capoeira não é um construto pronto, mesmo em dias atuais… Ela está em construção constante. O ritual não é igual ao que era 50, 100, 150 anos atrás – e engana-se quem achar que era. O modo de pensar não era igual, o modo de se movimentar não era igual. E perceba que eu mencionei um período de tempo “curto”… Imagine-se então o que eram algumas das lutas que originaram a capoeira, em tempos pré-escravidão – 500, 1000, 1500 anos atrás.

Pensando num argumento mínimo: pela quantidade de etnias negras trazidas e misturadas à força aqui no Brasil, seria humanamente impossível manter qualquer tradição imutável. Toda tradição oral é viva, e muda quando mudam os que a mantém viva. Não há tradição oral estática – todas refletem sinais de seus tempos.

O seu mestre não faz tudo igual ao que o mestre dele fazia, é fisicamente impossível. A termodinâmica garante que a transmissão de energia entre dois pontos sempre acarreta perda: a energia elétrica, ao ir para a lâmpada, não gera apenas luz – também gera calor. A sua energia, ao pedalar uma bicicleta, não gera apenas o movimento – também aquece as correntes, faz barulho, range. Não existem sistemas de energia “fechados”, que uma vez abastecidos, nunca mais precisem de combustível.

É claro que trazer conceitos físicos para dentro do campo da mente humana é sempre perigoso, mas me  arrisco a defender a posição nesse caso. Nenhum ser humano é uma ilha, todos estamos expostos a opiniões diariamente, e algumas dessas opiniões mudam a nossa cabeça. Não é que fulano despreza o que o mestre dele ensinou: ele é uma pessoa com gostos e direitos, e no gosto e direito dele, vai ajeitar um pouquinho aquilo que aprendeu – para que goste ainda mais.

Por esse motivo é que os uniformes mudam de uma geração para outra; as baterias mudam de formato; os grupos ficam mais ou menos agressivos; as letras se alteram; os golpes mudam de nome; alguns golpes deixam de ser praticados (Você sabe o que é um bochecho ? E um baú ? E uma pantana ? E se sabe, tem certeza que faz igualzinho ao que se fazia em 1920 ?).

Entendo que a beleza da capoeira está justamente nessa falta de definições – é diferente de artes marciais orientais cuja forma e filosofia estão descritas em pergaminhos com centenas ou milhares de anos de idade. A capoeira é mais nebulosa, mais difusa, dá mais lugar ao praticante pensar e definir ele mesmo a arte. Temos sim luminares, capoeiristas cujo pensamento e ações formaram e formam gerações – Pastinha, Noronha, Cobrinha Verde, Waldemar, Bimba, Canjiquinha, e tantos outros. Mas no meu modo de ver, eles não deixaram regras rígidas: cada um deixou o “seu jeito certo”, e se em algum momento discriminou o jeito do outro, não deveria ser julgado por isso – cada um era produto de seu tempo, e suas palavras faziam sentido naquele contexto.

Nós que chegamos agora, os mais novos, temos o privilégio de poder beber a água de muitas fontes, e desenhar nosso caminho baseando-nos naquilo que nos agradar, do que cada um dos “monstros” deixou.

Embora não esteja ligada diretamente à capoeira, eu gosto muito de uma frase de Lee Jun Fan, também conhecido como Bruce Lee. Tendo fundado um estilo, o jeet kune do, Bruce Lee parece paradoxal ao afirmar que sua arte não tem forma. O jeet kune do, por definição, não tem um jeito certo de se fazer.

“Se as pessoas disserem que o jeet kune do é diferente disso ou daquilo, então deixe o nome jeet kune do ser apagado, pois é isso que ele é, apenas um nome. Não se preocupe com ele.”

Pode soar zen demais, mas é algo que eu percebo, mesmo implicitamente, na capoeira. A expressão física da capoeira importa muito menos, para mim, do que o estado mental. O desejo do capoeirista, ao jogar, me encanta mais que o jogo em si… Perceba que não quero dizer que cabe tudo ou que vale tudo na capoeira, e sim que cabe tudo e vale tudo o que for feito com respeito ao próximo, à sua integridade física e moral.

A capoeira com amor, faz amigos. A capoeira, sem amor, nem capoeira é…

Ainda a capoeira olímpica

Algum tempo atrás, escrevi um pouco sobre o que eu achava da capoeira olímpica. Ontem à noite, chegou até mim, pelo Facebook, o texto abaixo (escrito pelo Mestre Cobra Mansa):
ENCERRAMENTO DAS OLIMPÍADAS: QUE CAPOEIRA É ESSA? 


Assisti ao final das Olimpíadas em Londres. O Brasil, como sempre, apesar de não ter conquistado grandes medalhas, fez bonito. O encerramento em Londres, como de costume, foi cheio de pompas e fogos de artifício. O Brasil, país que vai sediar as próximas Olimpíadas em 2016, fez sua apresentação cultural. O samba foi destaque, com o gari Sorriso apresentando o Brasil de uma forma simples e bonita. Mas fiquei chocado quando, logo no início, depois da batucada, vi uma apresentação das mulatas brasileiras, com perucas e máscaras negras. Uma caricatura grotesca dos anos anos 50 em que era comum brancos com o rosto pintado de negro (os black faces) e até mesmo negros representarem um papel estereotipado, em que pulavam e imitavam macacos e animais para uma plateia branca, que esperava deles exatamente esse tipo de comportamento e estereótipo. Naquela época, em que o negro precisava de um espaço na TV e no teatro, era comum esse tipo de comportamento e até compreensível. Agora que estamos em 2012, depois de tantas lutas do movimento negro no Brasil e no mundo em prol de uma melhor imagem de nós negros, fiquei pasmado em ter que assistir tudo isso de novo!

Apesar do desconforto, continuei assistindo o encerramento quando tive uma decepção ainda maior: a apresentação da capoeira para o mundo! Começou com um grupo de acrobatas mal treinados, com o corpo todo cheio de óleo e um abadá branco, fazendo piruetas. Sem berimbau, sem canto, sem ginga, sem nada! Fiquei refletindo: que capoeira é essa que estamos apresentando para o mundo?! Aquilo mais parecia um circo com acrobacia para envergonhar qualquer atleta de ginástica olímpica. Acredito que os mesmos deveriam estar rindo ou chorando de vergonha. O que vimos foi um grupo de acrobatas mal treinados. Senti falta do nosso berimbau, o grande símbolo da capoeira. Na verdade, senti falta da capoeira! Não tiveram jogos de capoeira, somente acrobacias individuais. Será que a capoeira se tornou isso, uma apresentação acrobática sem ginga e sem berimbau? Foi triste, diante do preço tão alto que pagamos para conseguir chegar até lá. Valeu a pena ou aquilo foi só uma coisa “para inglês ver”? Acredito que para algumas pessoas talvez tenha sido a realização de um sonho se apresentar em uma final de Olimpíadas. Mas aonde está a nossa capoeira, essência, existência e alma? Como seria a capoeira nas Olimpíadas no Brasil? Estamos perdendo a nossa identidade, nossas raízes, tratando a capoeira como um produto rotulado, embalado e coreografado, “para inglês ver”. Nesse caminho, não importa mais sua historia ou trajetória, a capoeira está perdendo a sua alma dentro da trajetória esportiva. Fico apreensivo pelo futuro da capoeira nas Olimpíadas de 2016!
Belas palavras, e também muito propositadas. Mas sinceramente, não vejo o porquê da surpresa… Algum capoeirista ainda tem dúvida sobre qual é a imagem do negro, do Brasil e da capoeira, que a nossa elite tem (e quer vender) ? 
Nada contra quem gosta da capoeira acrobática, mas os que estão por cima (e por conseguinte, a mídia brasileira; e por conseguinte, a maioria da população) simplesmente ignora que a capoeira vá além de saltos. Qual capoeirista nunca foi perguntado “se sabia dar mortal”, ao dizer que joga capoeira ? Isso, amigos, é apenas mais um sinal dos tempos. O que vende mais, aparece mais… Angoleiros, regionais e contemporâneos, rituais e ritmos, tudo vai para a mesma panela do esquecimento: a capoeira que se quer mostrar é a do “fortinho que sabe saltar”. 
Que venham as olimpíadas de 2016. Elas virão, e irão, e alguns vão ganhar seu dinheirinho; outros vão continuar no “gueto”, escondidos, subversivos como a capoeira sempre foi.
Resistência é para quem é de resistência!
Para fechar, um trechinho de “Andrea Doria”, do Renato Russo.

Às vezes parecia que era só improvisar
E o mundo então seria um livro aberto,
Até chegar o dia em que tentamos ter demais,
Vendendo fácil o que não tinha preço.

“O golpe é como a semente, você não vai jogar em qualquer lugar” – Mestre Decanio

Entrevista realizada por Letícia Cardoso de Carvalho e publicada na revista Praticando Capoeira, ano I, n° 8
Quando começou a treinar capoeira?
Em 1963, com Mestre Bimba. Ele me tratava muito bem.
O senhor formou-se na segunda turma de Mestre Bimba?
Não, não havia turma. Bimba ensinava a seqüência, com seis meses ele formava o aluno, mas uma coisa era formar e a outra era a formatura. Quando eu me formei tinha uma pessoa que tinha entrado depois de mim, uma que tinha entrado antes, mas nós fizemos a formatura todos juntos. Bimba aguardava a oportunidade de juntar mais alunos para fazer uma festa só.
Mestre Bimba mudou o método de ensino e o estilo ao longo do tempo?
Muito. A ponto de ter alunos que não conheceram a capoeira de Bimba que eu conheci. Cada aluno fala de Bimba da época que viveu com ele. Bimba gostava de falar em parábola. Mas Bimba mudou muito no decorrer do tempo. A angola também mudou da época de Pastinha para cá; é mentira dizer que não mudou.
O capoeirista joga diferente, dependendo do ambiente, momento histórico que está vivendo, trajetória histórica dele. A palavra de uma pessoa só pode ser compreendida no determinado instante que é dita, olhada e julgada. Depois, ela perde todo o significado. Nada que é humano é definitivo. Nós estamos em processo de transformação permanente… depois que eu encontro determinada pessoa eu não sou mais o mesmo, eu cresci, mesmo que essa pessoa não preste, se eu souber interpretar eu aprendo com ela.
Não tem ninguém que não possa dar nada a ninguém. A verdade é que a humanidade toda é uma unidade. Não adianta querer julgar Bimba pelas minhas palavras ou pelas de Hélio. Eu posso dizer que eu não conheço ninguém que eu possa comparar a Bimba. Para nós todos ele era o pai, o paradigma do pai. O que a gente tem que aprender é a verdadeira lição que a capoeira dá: somos todos irmãos. A coisa mais gostosa é a gente encontrar um ex-companheiro de capoeira. A capoeira une todas as gerações, todos os homens. Ele permite que cada um seja ele próprio, cada um faz a capoeira que é capaz.
O senhor acha que está tendo muita agressividade nas rodas de capoeira hoje em dia?
Não, na grande maioria das rodas eu vejo a camaradagem. Mas eu vejo uma coisa que não é para ser feita na roda, que me preocupa: cada um está jogando capoeira como se não existisse o outro. Estão soltando golpe de torto a direito e sem querer acertam o outro. A primeira regra que a gente aprende é que não se solta um golpe sem ver onde vai pegar. Não se solta um golpe sem primeiro cavar a oportunidade do golpe ser eficiente. É como a semente: você não vai jogar em qualquer lugar do solo. O golpe é como a semente, tem que selecionar o lugar para aplicá-lo; isso é o que chamam de armar o golpe. Hoje ninguém está estudando o jogo, está dando pontapé, cabeçada, salto, como se estivesse sozinho na roda. Não desenvolve a parceira, a audácia, a noção de desequilíbrio e cria sltuações de acidente. Essa é a única coisa que é lamentável para mim.
Outra coisa que me preocupa é que estão acelerando o ritmo da capoeira cada vez mais e consequentemente não há oportunidade de se ver o que se está fazendo na roda. Eles ainda não perceberam que essa angústia, esse ritmo acelerado, nos leva a um estado de consciência diferente da vigília. Nesse ritmo, você faz movimentos com propósito de agressão e às vezes você entra num movimento que pode até matar o outro. O ritmo acelerado fez você perder a consciência, o que poderia ser freado não é mais. Bimba não admitia um golpe na capoeira que não pudesse ser utilizado numa luta. Outra coisa errada que eu vejo é o capoeirista inclinar o corpo para trás para se esquivar do golpe; isso é errado, o certo é você acompanhar o golpe esquivando-se e não jogando o corpo para trás.
Até quando o senhor teve contato com Mestre Bimba?
Até a véspera dele ir para Goiânia.
Como eram os treinos de emboscadas feitos por Mestre Bimba?
O treino de emboscada não pode ser reconhecido como emboscada, pois o intuito não era fazer a emboscada e sim fugir da emboscada. Era dado um trajeto para o capoeirista. e no meio eram colocados obstáculos para não deixá-lo passar e chegar ao final: se o capoeirista fosse detectado nessa área, ele tinha sido pego, aí a brincadeira acabava. O treino de emboscada não era feito para o capoeirista apanhar, e sim para ele aprender a fugir das emboscadas; não era guerrilha e sim fuga. Você tinha que passar pelas armadilhas sem ser pego; se fosse pego não era aprovado; não tinha essa de bater no capoeirista porque ele foi pego. Se o outro pegasse o camarada, acabou, ia comemorar e não bater. Era igual brincadeira de criança, o pega pega, pegou já era, já mostrou a falha. Com o passar do tempo houve uma modificação no conceito do treino de emboscada, onde esse passou a ter caráter de luta: o emboscado passou a bater no emboscador. Nada em capoeira é para bater.
Quais são seus planos na capoeira? 
Continuar vivo e dizendo a verdade.

“Minha imagem é minha cabeça” – Mestre Curió

Publicado originalmente no fanzine Mandinga, em 7 de junho de 1998
Quem é o mestre Curió?
Meu nome é Jaime Martins dos Santos, uma pessoa muito sofrida e vivida no cenário da capoeira nacional.
E o apelido de Curió?
Meu avô também era capoeirista e se chamava Curió, e esse nome surgiu por causa disso, quando eu comecei na capoeira todo mundo falava, “É o mesmo jogo do avô!”. Tentaram uma época me chamar de Dois de Prata, porque eu usava muita prata, mas não pegou.
Como foi que o senhor entrou para o mundo da capoeira?
Eu comecei capoeira com seis anos, e nem gostava muito, mas eu estudava numa escola, e tinha uns amiguinhos maiores do que eu, e eles aproveitavam do meu tamanho e me batiam mesmo. E eu tenho toda minha família de capoeiras, eu senti que estava na hora de aprender, aí cheguei pro meu bisavô e disse: “Eu preciso jogar capoeira”, e ele respondeu: “Muleque, você já quer jogar capoeira, mas você não gostava!” Aí eu expliquei tudo a ele. Na primeira aula ele me espancou o que pôde, mas eu aguentei, e quando voltei para a aula, já mais esperto, os garotos quando vieram me bater esbarraram no meu pé e na minha cabeça.
Qual foi o seu contato com Pastinha ?
Minha relação foi através do finado mestre Besouro de Santo Amaro, meu bisavô, ele me disse que se eu quisesse continuar com a capoeira, tinha que procurar Mestre Pastinha, porque só ele era angoleiro de verdade e de confiança.
Como era o Mestre Pastinha ?
Era uma figura incalculável, sutil, muito educado e que fazia seu trabalho com muita sinceridade e honestidade, mas era rígido, muito rígido, e foi  graças a essa rigidez que ele deixou tantos alunos bons.
Como era a relação entre aluno e mestre ?
Hoje os alunos querem que o mestre corra atrás deles, mas, naquela época, os alunos é que corriam atrás do mestre, porque tinham interesse. Hoje não levam capoeira com sinceridade, senão seria outra coisa!
Qual a importância da capoeira Angola hoje em dia ?
A importância da capoeira Angola naquela época e hoje em dia, para mim, é a mesma coisa, porque eu continuo com essa fidelidade que Deus me inspirou, e me nomeou mestre por Pastinha, meu avô, meu bisavô, e que me fez encarar a capoeira de corpo e alma. E eu a faço com muita sinceridade e responsabilidade como aprendi na Escola Mestre Pastinha, e tudo aquilo que eu achei lá, é o que eu estou transmitindo para os meus verdadeiros alunos, aqueles que querem me acompanhar e que querem a verdadeira capoeira Angola.
Como você vê a evolução da capoeira ?
Eu não vejo evolução, para lhe ser sincero, eu vejo é a perdição. A capoeira é muito rica, ela não precisa de infiltrações de outras artes marciais, porque ela foi a primeira luta no Brasil, e ela já traz sua filosofia. E hoje, o que eu vejo é a descaracterização, estão tirando o brilho, a essência, o patrimônio da capoeira, botam luta-livre, judô, karatê, eu gostaria que as pessoas olhassem com mais sensibilidade. E hoje, como Presidente da Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA), eu estou brigando em busca da originalidade na capoeira, porque, meu amigo!, angoleiro, na Bahia, atualmente tem muito pouco, porque jogar no chão é uma coisa, descer é outra coisa e jogar Angola é outra coisa. Porque capoeira Angola é somada, multiplicada, dividida e subtraída.
E o futuro…
Eu não vou ficar para semente a vida toda, e a minha preocupação é com meus alunos, eu quero que eles tenham alguma coisa de mim quando eu fechar os olhos, quero fazer o mesmo que Pastinha fez, deixar alguém para levar essa capoeira mais a frente e não deixá-la morrer. Eu quero ensinar muita capoeira e ver se ganho algum também… Não posso mais fazer as coisas de graça, estou chegando numa certa idade, já passei da metade e não quero morrer à míngua, pedindo esmola aos leitos de hospitais públicos, como aconteceu recentemente com mestre Bobó, Waldemar, meu mestre, mestre Bimba também e eu estou preocupado. As pessoas só olham os mestres depois de mortos, eu digo aos meus alunos – se quiserem fazer algo por mim, façam enquanto eu estiver vivo, porque depois de morto não estarei vendo nada. Eu não quero morrer e deixar minha família passando necessidade, com meus à toa como os filhos de Bobó, que era uma pessoa que tinha alunos em tudo que é lugar do mundo, e estes, quando ele estava no hospital, nem ligaram! E aí fica difícil. Eu tenho fé em Deus, nos orixás, Cosme Damião, que eu vou obter sucesso. Minha imagem é minha cabeça, e eu não estou aqui me preocupando com o poder, com cargo, nem com força, estou preocupado com a capoeira.
Religião…
Eu vou em todas religiões, acredito em tudo e desacredito em tudo ao mesmo tempo, mas a que eu tenho mais ligação é a umbanda, porque a capoeira Angola, de certa forma, é umbanda. Eu tenho descendência de africano, de nagô, de índio, então eu estou mais para a magia negra.
Sucesso…
Quando seu sucesso atrapalha alguém eles fazem tudo para lhe derrubar. Às vezes eu digo – não me atrapalhem que eu não sou rico, apenas trabalho para sobreviver, eu não tenho inveja de ninguém, o mesu Deus seu, é o mesmo meu, quando o seu mundo termina o meu começa. Se você não puder me ajudar, não me atrapalhe!
Como o senhor vê esse grande número de academias pelo Brasil, ensinando a capoeira regional ?
Eles às vezes se ferem quando mestre Curió fala, mas eu falo porque tenho êxito, e a capoeira que fazem por aí é puramente de exibição, sem essência. Dizem que é a capoeira Regional de mestre Bimba, mas até a capoeira de Bimba deixou de ser a mesma, a capoeira dele era gostosa, cheia de artimanhas. Nessas academias o que se vê é o cara tomando bomba, fazendo halterofilismo para ficar que nem o Hulk para jogar capoeira, enquanto a capoeira não precisa nada disso, porque não se mede o homem pelo tamanho e pela estatura, e sim pela sua capacidade.

Pareidolia: cara de um, focinho do outro

Tenho visto circular pelo Facebook a imagem abaixo, que compara o belíssimo rabo-de-arraia do Cezar Mutante a um suposto “desenho antigo” mostrando um capoeirista acertando o mesmo golpe em um oponente.

Eu nunca tinha visto o tal “desenho antigo”, e fiquei curioso para saber de onde o mesmo vinha – certamente não pertencia aos artistas “clássicos” que ilustraram a capoeira em tempos pré-fotografia: Debret, Rugendas e Harro-Harring.

“Dança de guerra” – Rugendas
“Negros dançando” – Harro-Harring

“Escravo tocando berimbau” – Debret

Muito menos pertencia a outros artistas mais “modernos” como Kalixto ou Carybé…

Carybé

Kalixto

Com a curiosidade cada vez mais atiçada, prestei reparo no texto do rodapé do “desenho antigo” – que me levou até o site da BNF (Bibliothèque Nationale de France). Lá, encontrei um texto falando sobre a “diamanga malgache” (o mesmo nome citado no rodapé do “desenho antigo”). Como não sei ler francês, usei o tradutor do Google para me ajudar (traduzi apenas parte do texto original). O resultado foi o texto abaixo, inferido e completado por mim a partir do resultado da tradução automática:
Antes da ocupação francesa, os malgaxes praticavam o esporte, mas à sua maneira.


Havia vários tipos de esportes, como “balahazo”, o “tolona”, o “totohondry”, o “vikina” e o “diamanga”. E este último foi o mais popular. Consiste na troca de chutes entre adversários. O “diamanga” é lutado por dois jogadores apenas, ou entre dois grupos que fazem vários jogos – cada bairro, cidade e aldeia  tem seus campeões.


E reuniões entre os campeões são sempre eventos sensacionais para os espectadores, que vinham às vezes de longe para participar das lutas – exatamente como acontece hoje em Tananarivo durante os jogos de rugby entre equipes do campeonato na capital.

Bem, então agora sabemos que há uma luta de chutes originária de Madagascar (pátria dos malgaxes), chamada diamanga, que tem pelo menos um golpe parecido com a capoeira. Desse ponto em diante, eu não consigo mais entender a relação entre o desenho escolhido e o título da imagem, “Capoeira luta eficiente”.

O que a pessoa quis dizer com “no passado” ? Que a capoeira é descendente da diamanga ? Ou quis simplesmente ilustrar uma crença (a de que a capoeira sempre foi uma luta perigosa) a qualquer custo, e para isso usou a imagem que tinha à mão ?
Camaradas, a capoeira não é diamanga. Capoeira não é l’ag’ya. Capoeira não é danmye. Capoeira não é moring. Capoeira não é mani. Capoeira não é n’golo. Que são todas frutos da mesma raiz, negra e forte, disso não há dúvida – mas querer reduzir uma à outra apenas para provar um ponto de vista, no meu modo de ver, é uma grande injustiça para com todas essas lutas.
Mas talvez o ponto é que o autor da imagem não tenha tido a intenção consciente: ele pode simplesmente ter sido vítima da pareidolia. Esse fenômeno comum é um truque que nosso cérebro aplica em nós: os humanos são programados naturalmente para reconhecer padrões de imagem. É por isso que olhamos para uma nuvem e vemos “um castelo” ou “um tigre”; é por isso que vemos o rosto de uma santa na condensação de vapor na janela… O que você vê nas imagens abaixo ?
Uma cara na rocha ?

Um leão, ou uma árvore cortada ?

Uma tartaruga com um sapo nas costas, ou um cogumelo ?

Uma caixa “espantada” ?
Um peixe-ovo
E nas imagens abaixo, o que você vê ?
Capoeira ? Não, n’golo.

Capoeira ? Não, moring.
Capoeira ? Não, savate – que sequer tem raiz negra…

As últimas imagens não são exemplos clássicos de pareidolia, porquê não fazem com que o observador veja objetos que não existem. Mas não deixam de ser pareidolia no sentido de que levam a entender algo que não é real.
 De tudo o que foi dito, eu quero frisar algumas coisas:
1) a necessidade de se provar um ponto de vista usando quaisquer argumentos. Vi isso acontecer recentemente com a publicação de uma foto do Cacique Raoni “chorando por causa da construção de Belo Monte”. A foto era real, mas a situação em que ela ocorreu, não era. O choro do cacique aconteceu alguns anos antes do assunto Belo Monte surgir. Pergunto então: se pretendemos lutar contra uma mídia inconsequente e que forja fatos, é válido usar as mesmas armas que ela ? Informação é poder, e informação falsa é poder falso. Eu acredito que dois erros não fazem um acerto.
2) a necessidade de provar que a capoeira serve para a luta física. Primeiramente, me espanta que alguém que conheça a capoeira ainda tenha dúvida. Depois, me espanta o fato de alguém acreditar que uma vitória no ringue usando golpes de capoeira prova a eficiência da capoeira – como se a derrota no ringue provasse que a capoeira não é eficiente. Não existem estilos perfeitos, existem lutadores perfeitos. Praticantes de capoeira podem lutar, perder ou ganhar – mas como Mestre Pastinha bem disse, “caso a capoeira falhe, será culpa dos capoeiristas”.
Para terminar, uma bela imagem…
Capoeira? Sim! O Mestre Camisa Roxa aplica uma pantana em Fernando Pallos (1969)

No passo do urubu malandro

Texto: Carlos Eugênio Líbano soares

João Batista já tinha arriado quando viu cambando o pardo Marcelino, escravo de um tal Mendes Viana. O pardo era carrapeta, mas o João teve medo de ser agaturrado. Não iria cair na ébia, nem desgarrar como um capadócio que via um chanfalho qualquer, muito menos espirrar ou botocar. Nas rodas de capoeiragem da rua da Vala, mesmo pronto, João era leal, conhecido como um que firma.
Mas o pardo começou a florear, lustrar, figurar na sua frente, e ele ficou de guarda alta para não cair na lodaça. Começou a pegada como uma caveira do espelho, e João soube aprumar-se, dando uma carrapeta. A cambachilra atordoou o cativo. João tentou uma calçadeira, mas o cativo era bom de pulo. Ele então ficou caranguejando, ladeando. O pardo deu uma passarinhada, que fez João Batista cair num passo do constrangimento. Ele levantou-se, mas não estava lanhado. João começou a espalhar-se, a esperar. Nisto um estranjaparou para assistir a cena.
O pardo escravo era bom do jocotó, sabia fazer letras, era hábil no laço. João Batista não viu o pardo com um manhoso. Preparou seu passo. Deu uma pantana que o pardo foi cair nolajedo. Este se recuperou com uma rabanada, mas o livre escapou rabejando. O cativo aí tentou matreiramente passar um rabo de Galo. João Batista achou que aquilo era coisa dePiaba. Antes do bote ele deu um magnífico rabo de arraia, que derrubou o escravo com sardinha e tudo. João Gritou: “Se aprume, quero ver melado”.
Irado, o pardo partiu para encher como um tira-teima que resolve a turimbamba. Mas levou uma tunga e ficou ali mesmo. O boche, com cara de bife, olhava com gozo a Dança de Velho. Após rabear frente aos tentos do João este acertou uma pantana no Marcelino, que tungado, tentou trastejar junto ao bamba, mas tava pangaio. O mofento estava pronto, e ainda levou uma lamparina. Lanhado, ele saltou fora.
João Batista seguiu seu caminho, como um urubu malandro, enquanto o godeme assistiu tudo, com ar de mahana.
Roda…
O texto acima é uma narrativa imaginária de um combate de capoeiras nos tempos idos do Rio imperial, usando a gíria das antigas maltas. Estas gírias foram recolhidas por Jair Moura em seu livro Mestre Bimba: A crônica da capoeiragem, Salvador, ed. do autor, 1993. Pp. 65-66

Tai sabaki e o jeito que o corpo dá

Apesar de nunca ter praticado outra luta que não fosse capoeira, sempre gostei de ler sobre artes marciais e correlatos. Gosto de comparar estilos, não no sentido de “qual é melhor”, mas sim de “quão parecidos ou quão diferentes” – afinal de contas, todos os praticantes são humanos, e o corpo humano só consegue se mover dentro do limite de suas articulações.

Por esse motivo é que há chutes parecidos com o “martelo” no karate, no muay thai, no savate e no boxe chinês: um chute frontal, com o quadril rotacionado. O mesmo vale para joelhadas, socos, etcetera. Ainda que uma arte marcial use mais de um e menos de outro, ou mesmo que não use algum tipo de golpe, todo lutador está limitado a fazer o que seu corpo permite.

Um amigo é praticante de diversas artes marciais orientais (karate, judo, ninjutsu), e já conversamos bastante sobre o que diferencia e o que aproxima os nossos estilos. Certa vez, ele comentou comigo que uma coisa que achava muito bacana na capoeira, muito mais do que os golpes, era o tai sabaki. Quando viu que eu não tinha entendido do que se tratava, explicou: o tai sabaki é a movimentação do lutador, o “gerenciamento da posição”, a “gestão do corpo”.

Em artes marciais orientais, a técnica é usada para medir as distâncias, evasão, e mesmo conversão de defesa em ataque. Segundo a Wikipedia“sua maior finalidade é justamente evitar o enfrentamento direto, evitando, pois, um ataque e, na sequência, deixar a pessoa numa posição vantajosa. (…) não se deve resumir tai sabaki apenas como esquivas”.

Veja que interessante! A finalidade primária do tai sabaki é uma das grandes posturas filosóficas da  nossa amada capoeira: ela não foi criada como arma de enfrentamento direto. O negro, escravizado e em situação de desigualdade completa, valia-se da astúcia mais que das pernas. A capoeira era “dança” aos olhos do senhor, para só se manifestar como luta valente nas horas certeiras – e essas horas certeiras tinham que ser bem medidas pelo negro (sob pena de morte, em caso de erro): atacar na distração, atacar quando tinha certeza da vitória, atacar quando a superioridade númerica ou de armamentos do escravizador pudesse ser ludibriada.

Conforme o Mestre Bola Sete bem descreveu em seu livro “Histórias e Estórias da Capoeiragem”, o capoeirista tem “a obrigação de chorar no pé do seu inimigo”, para que esse, relaxado e até mesmo desprezando o oponente, possa ser pego de surpresa. 

Mestre Pastinha se referiu ao mesmo fato quando falou sobre o “capoeirista correr, e ai de quem correr atrás dele”, pois “o capoeirista corre para não ter que matar”. A capoeira é uma luta bravia e perigosa, mas que tem seu maior trunfo na dissimulação, em fazer o outro pensar que o capoeirista vale menos do que ele. 

Já o Mestre Duquinha, em sua bela entrevista, comenta uma das “regras não ditas” da capoeira:

Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…

Nunca tive dúvida de que a capoeira servisse para quebrar um osso, romper uma costela, tirar uma vida. A história mostra isso, e a física das alavancas está do lado da capoeira: um pé rodando tem a força de uma pedra atirada com força, uma rasteira encaixada quebra um braço ou um crânio. No entanto, o capoeirista moderno parece precisar mostrar que é capaz de exercer a violência da luta, e que ela é eficaz. 

Tenho visto cada vez mais a capoeira chegar à mídia através de torneios de luta aberta, MMA e similares. Entendo que isso é um sinal dos tempos, pois hoje em dia quer-se ter a violência contida: é melhor lutar no ringue, com regras definidas, do que brigar na rua ou na roda. 

Nada contra quem gosta ou participa desse tipo de evento (eu mesmo gosto de assistir, embora não pratique MMA), e acho que o raciocínio “lute no ringue, não brigue na roda” faz muito sentido – mas o que ele prova em relação ao que a capoeira-luta consegue fazer ?

Dentro de um ringue, não há dissimulação, não há espaço para isso. Os dois lutadores sabem que só vão sair dali quando houver um vencedor. A “surpresa” não pode ocorrer, pois como um capoeirista vai “chorar no pé do seu adversário”, quando já se sabe que a luta só termina com o nocaute ou a rendição, sem espaço para a apelação ? Em uma situação de luta real, o capoeirista poderia “render-se”, para então derrubar seu inimigo quando esse lhe desse as costas. Num ringue, isso é impossível.

O ringue exige a luta objetiva, enquanto a capoeira-luta é subjetiva – o que não deve ser entendido como “sem contato” ou “fraca”, e sim como “malandra”, “sem regras”. Vide Mestre Pastinha dizendo que a “as brigas de capoeira nas docas, ninguém podia conter”. Não cabiam em ringues… Podemos ter certeza que um rabo-de-arraia bem dado derruba qualquer forte, e inclusive temos visto isso acontecer – mas prova realmente que a capoeira é luta perigosa ? 

Pode-se argumentar que o faz-que-vai-e-não-vai da capoeira pode ser provado no ringue. E talvez possa mesmo. Mas qual estilo de luta não tem um faz-que-vai-e-não-vai ? Toda luta tem elementos de tai sabaki; todo ser vivo que luta (por comida ou por sua vida), a menos que seja MUITO mais forte que o adversário, precisa em algum momento tentar enganá-lo para obter a vitória.

No meu entendimento, os golpes, gingas e negaças da capoeira no ringue, não provam o valor da capoeira enquanto luta. Provam sim, o valor dos golpes, gingas e negaças da capoeira – e estes tem muito valor, sim senhor.

O valor da capoeira-luta é provado quando o capoeirista consegue sair do aperto sem precisar lutar, só ludibriando. Ou quando mesmo em situação de enfrentamento direto e inevitável, ele leva o adversário na conversa, até o ponto em que possa dar o golpe certeiro – aquele que incapacita o inimigo, ou o “coloca para dormir”. 

O meu amigo, sendo ninjutsuca, comentou uma vez que gostava de comparar os capoeiristas aos ninjas. E antes que você, leitor, comece a achar que o ninja era o cara que dava gritos loucos, jogava “estrelas”, fazia saltos mortais acrobáticos e soltava bombas de fumaça, lembre-se que isso aí é coisa de cinema. Os ninjas reais eram artistas marciais treinados para missões de espionagem ou assassinato – e faziam isso muito bem.

Segundo o meu amigo, a diferença entre o samurai, cheio de códigos de honra, e o ninja, era que se você marcasse um duelo com um samurai para o sábado às 6 da madrugada, ele estaria lá pontualmente. Já se você marcasse o duelo com um ninja para o sábado às 6 da madrugada, ele te mataria enquanto você dormisse, na quinta à noite.

Olha a malícia aí…

“O verdadeiro capoeirista não bate no camarada”

MESTRE JOÃO GRANDE
Publicada originalmente na jornal “A Tarde”, em 3 de julho de 1988
A Tarde: Por que o nome João Grande?
Mestre João Grande: Na academia do mestre Pastinha tinha dois Joãos: um pequeno eum grande. Um menor e um maior. O outro é pequeno mesmo.
AT: Onde o senhor nasceu?
MJG: Nasci no interior da Bahia, em Itagi, próximo de Jequié. Tenho 55 anos.
AT: Como o senhor velo parar na academia do mestre Pastinha?
MJG: No ano de 1953, quando eu já estava em Salvador e tinha 20 anos, passei numa roda de capoeira na Curva Grande, onde fica o Nina Rodrigues. Ali tinha capoeira todos os domingos. Eu que morava no Tororó, comecei a ir lá todos os domingos. Gostei da brincadeira. Então, perguntei a João Pequeno, que eu conhecia, onde ele aprendia capoeira. Ele me falou do Mestre Pastinha, que tinha uma academia no Candeal Pequeno, em Brotas. Paguei 20 mil réis e entrei para a academia. De lá só saí com a morte do Mestre Pastinha, há cinco anos.
AT: E como foi sua convivência com o Mestre Pastinha?
MJG: Assim que entrei na academia, comecei a treinar diretamente com o Mestre Pastinha. Mas a academia ficou parada durante um ano, porque o dono da sala, onde ela funcionava, pediu o local por briga política. O Mestre Pastinha ficou sem academia nenhuma. Então, a gente jogava capoeira no Corta Braço, no Retiro, nas academias de Waldemar, Cobrinha Verde, Mola. Até que os Filhos de Gandhi arranjaram uma salinha para Mestre Pastinha, no Pelourinho.
AT: Capoeirista era muito perseguido naquela época?
MJG: Ninguém gostava de capoeirista. Era como o candomblé, que todo mundo queria acabar. Capoeira era para gente da pesada, estivador, carregador de caminhão. Era coisa de malandro. Mas como o tempo foi mudando, capoeira agora é ensinada nos colégios, entre policiais civis e militares, nas Forças Armadas. Isso é coisa recente, de 1970 para cá.
AT: E como a capoeira foi ganhando espaço?
MJG: Foi através do Mestre Pastinha, que divulgou a capoeira junto aos jornalistas, escreveu sobre a capoeira… Foi tirando a impressão de que a capoeira era coisa de malandro. Mostrou que era um esporte, bom para a saúde.
AT: E qual era a filosofia da capoeira ensinada pelo Pastinha?
MJG: Ele dizia sempre que capoeira tem muita malícia, mas não é violenta. Capoeira tem jogo bonito, seguro, mas não violento. Para aplicar o golpe, não precisa derrubar o camarada, bater para matar. Bastava mostrar o golpe. Na capoeira angola não existem golpes premeditados. Tudo depende do capoeirista; ali na hora podem surgir golpes nunca vistos. Um angoleiro nunca pode dizer que aprendeu tudo sobre capoeira.
AT: E por que a capoeira hoje está tão violenta?
MJG: Há muitos mestres e pouca capoeira. Antigamente não era violenta. Mas agora, os mestres não estão tão dedicados. E só pensam em dinheiro.
AT: O que é a capoeira regional?
MJG: A capoeira regional, criada pelo Mestre Bimba, está mais próxima da luta livre. É uma capoeira para turista ver. É violenta e tem aquela coisa de mudança de faixa, que nem judô e caratê. Olha, nunca vi isso de dar faixa entre os angoleiros.
AT: O que é ser um bom capoeirista?
MJG: O bom capoeirista tem de tocar bem um berimbau, pandeiro, cantar…
AT: Qual a proposta do Grupo de Capoeira Angola-Pelourinho, do qual o senhor faz parte?
MJG: Manter a linha da capoeira da Angola, seguir os ensinamentos do Mestre Pastinha e não capoeira por dinheiro. No grupo só entra quem quer mesmo aprender capoeira. Aprender a capoeira mais por devoção e não como forma de luta e agressão. Capoeira é de um ensinamento muito profundo, é uma filosofia de vida.
AT: Como é que o senhor viu a morte de China, recentemente?
MJG: Eu estou na capoeira desde 1953 e nunca vi ninguém morrer na roda. A morte foi uma perversidade. Olha, eu fui inimigo de Caiçara durante um ano e jogamos capoeira, mas nem eu peguei ele, nem ele me pegou.
AT: Se o senhor não ganha dinheiro com a capoeira, como é que sobreviveu todo esse tempo?
MJG: Eu trabalho há 22 anos em posto de gasolina, lavando carro, etc., na Barros Reis, no bairro do Retiro. Capoeira só jogava à noite e domingo à tarde. Agora que estou me aposentando, vou passar a ensinar capoeira direto…
AT: E como foi sua participação no grupo folclórico “Viva Bahia”?
MJG: Entrei para o grupo em 1970. Trabalhava jogando capoeira, maculelê, puxada de rede. Viajei a Europa toda, durante dois anos. Depois disso fui para a Moenda, na Boca do Rio, onde passei quatro anos, dando show também, mas eles exploravam demais… voltava para casa às cinco da manhã.
AT: Hoje em dia, a maioria dos mestres são professores de Educação Física. Como é que o senhor analisa isso?
MJG: Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Os mestres antigos nunca foram professores de Educação Física. Aprendi capoeira com ajudante de caminhão, carregador de caminhão, estivador, o pessoal da pesada. E por que agora mestre tem de ir para a universidade? Eles querem tirar a gente da jogada, porque eles estão interessados em ganhar dinheiro, não na capoeira. Então acham que eu, o João Pequeno, o Waldemar, morremos para a capoeira. Eu nunca fui à escola. Minha vida foi praticamente só na capoeira.
AT: Quando foi que mulher passou a freqüentar as academias de capoeira?
MJG: Foi de 1970 para cá, quando a capoeira passou a ser ensinada nos colégios. Nos anos 50, na Bahia, só uma mulher jogava capoeira, era Chicão. Aprendeu na rua mesmo. Era uma mulher que brigava com a Polícia e andava de saia. Vendia acarajé, essas coisas. Amarrava a saia entre as pernas e entrava na roda. Homem não brincava com ela, porque senão ela batia e o camarada caía mesmo. Mas capoeira hoje é para homem, menino, mulher, só não aprende quem não quer!
AT: Em qualquer idade se aprende capoeira?
MJG: A capoeira nasce com a gente, basta descobrir isso.

Já paguei minha promessa

(Rafael Xikarangoma Tendulá)

Já paguei minha promessa
Já cumpri com minha missão
Agora peço licença
Prá vadiar no salão
E no pé-do-berimbau
Vim fazer minha devoção
Canto prá Nossa Senhora
Mãe de Deus, da Conceição
Por isso que digo assim
Que digo dessa maneira
Que os pecados de domingo
Pago na segunda-feira