Pareidolia: cara de um, focinho do outro

Tenho visto circular pelo Facebook a imagem abaixo, que compara o belíssimo rabo-de-arraia do Cezar Mutante a um suposto “desenho antigo” mostrando um capoeirista acertando o mesmo golpe em um oponente.

Eu nunca tinha visto o tal “desenho antigo”, e fiquei curioso para saber de onde o mesmo vinha – certamente não pertencia aos artistas “clássicos” que ilustraram a capoeira em tempos pré-fotografia: Debret, Rugendas e Harro-Harring.

“Dança de guerra” – Rugendas
“Negros dançando” – Harro-Harring

“Escravo tocando berimbau” – Debret

Muito menos pertencia a outros artistas mais “modernos” como Kalixto ou Carybé…

Carybé

Kalixto

Com a curiosidade cada vez mais atiçada, prestei reparo no texto do rodapé do “desenho antigo” – que me levou até o site da BNF (Bibliothèque Nationale de France). Lá, encontrei um texto falando sobre a “diamanga malgache” (o mesmo nome citado no rodapé do “desenho antigo”). Como não sei ler francês, usei o tradutor do Google para me ajudar (traduzi apenas parte do texto original). O resultado foi o texto abaixo, inferido e completado por mim a partir do resultado da tradução automática:
Antes da ocupação francesa, os malgaxes praticavam o esporte, mas à sua maneira.


Havia vários tipos de esportes, como “balahazo”, o “tolona”, o “totohondry”, o “vikina” e o “diamanga”. E este último foi o mais popular. Consiste na troca de chutes entre adversários. O “diamanga” é lutado por dois jogadores apenas, ou entre dois grupos que fazem vários jogos – cada bairro, cidade e aldeia  tem seus campeões.


E reuniões entre os campeões são sempre eventos sensacionais para os espectadores, que vinham às vezes de longe para participar das lutas – exatamente como acontece hoje em Tananarivo durante os jogos de rugby entre equipes do campeonato na capital.

Bem, então agora sabemos que há uma luta de chutes originária de Madagascar (pátria dos malgaxes), chamada diamanga, que tem pelo menos um golpe parecido com a capoeira. Desse ponto em diante, eu não consigo mais entender a relação entre o desenho escolhido e o título da imagem, “Capoeira luta eficiente”.

O que a pessoa quis dizer com “no passado” ? Que a capoeira é descendente da diamanga ? Ou quis simplesmente ilustrar uma crença (a de que a capoeira sempre foi uma luta perigosa) a qualquer custo, e para isso usou a imagem que tinha à mão ?
Camaradas, a capoeira não é diamanga. Capoeira não é l’ag’ya. Capoeira não é danmye. Capoeira não é moring. Capoeira não é mani. Capoeira não é n’golo. Que são todas frutos da mesma raiz, negra e forte, disso não há dúvida – mas querer reduzir uma à outra apenas para provar um ponto de vista, no meu modo de ver, é uma grande injustiça para com todas essas lutas.
Mas talvez o ponto é que o autor da imagem não tenha tido a intenção consciente: ele pode simplesmente ter sido vítima da pareidolia. Esse fenômeno comum é um truque que nosso cérebro aplica em nós: os humanos são programados naturalmente para reconhecer padrões de imagem. É por isso que olhamos para uma nuvem e vemos “um castelo” ou “um tigre”; é por isso que vemos o rosto de uma santa na condensação de vapor na janela… O que você vê nas imagens abaixo ?
Uma cara na rocha ?

Um leão, ou uma árvore cortada ?

Uma tartaruga com um sapo nas costas, ou um cogumelo ?

Uma caixa “espantada” ?
Um peixe-ovo
E nas imagens abaixo, o que você vê ?
Capoeira ? Não, n’golo.

Capoeira ? Não, moring.
Capoeira ? Não, savate – que sequer tem raiz negra…

As últimas imagens não são exemplos clássicos de pareidolia, porquê não fazem com que o observador veja objetos que não existem. Mas não deixam de ser pareidolia no sentido de que levam a entender algo que não é real.
 De tudo o que foi dito, eu quero frisar algumas coisas:
1) a necessidade de se provar um ponto de vista usando quaisquer argumentos. Vi isso acontecer recentemente com a publicação de uma foto do Cacique Raoni “chorando por causa da construção de Belo Monte”. A foto era real, mas a situação em que ela ocorreu, não era. O choro do cacique aconteceu alguns anos antes do assunto Belo Monte surgir. Pergunto então: se pretendemos lutar contra uma mídia inconsequente e que forja fatos, é válido usar as mesmas armas que ela ? Informação é poder, e informação falsa é poder falso. Eu acredito que dois erros não fazem um acerto.
2) a necessidade de provar que a capoeira serve para a luta física. Primeiramente, me espanta que alguém que conheça a capoeira ainda tenha dúvida. Depois, me espanta o fato de alguém acreditar que uma vitória no ringue usando golpes de capoeira prova a eficiência da capoeira – como se a derrota no ringue provasse que a capoeira não é eficiente. Não existem estilos perfeitos, existem lutadores perfeitos. Praticantes de capoeira podem lutar, perder ou ganhar – mas como Mestre Pastinha bem disse, “caso a capoeira falhe, será culpa dos capoeiristas”.
Para terminar, uma bela imagem…
Capoeira? Sim! O Mestre Camisa Roxa aplica uma pantana em Fernando Pallos (1969)

One thought on “Pareidolia: cara de um, focinho do outro

  1. http://moraingy-malgache.blogspot.com.br/
    Nesse link explica-se basicamente que foram trazidos ao Brasil pessoas da Ilha São Lourenço como escravas (costa de Moçambique), essas pessoas trouxeram uma luta ancestral que se disseminou entre tradições do continente africano também trazidas ao Brasil, essa mistura culminou no que chamamos de capoeira.
    Ilha São Lourenço é um nome antigo de Madagascar e a luta era a diamanga, a população de Madagascar é composta de uma grande parcela de bantus moçambicanos, mas as primeiras pessoas que povoaram a ilha vieram da Malásia, a diamanga está ligada ao silat melayu que também possui similaridades com a capoeira. Portanto, além de ter uma herança africana adquirida não só no Brasil como no próprio Madadagascar, a capoeira compartilha um berço longínquo nas tradições indianas, nas quais pode-se rastrear as raízes do kung-fu, carate, silat, etc.
    O savate se desenvolveu nas ruas francesas, mas nasceu nos convés dos navios, fruto da observação de marinheiros europeus sobre culturas asiáticas, em portos países como Malasia.

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