Risadinha. Ela que me ajuda aqui e lutou por mim. É inglesa, mas mora aqui há vinte anos. Ela é aluna daqui, trabalhou aqui, pagou um advogado, tirou meus documentos, tirou tudo. Tirou meu cartão verde. Durmo na casa de Risadinha e venho para aqui. Ela me ajudou a correr com o papel, Green Card. Correu. Me deu um diploma lá onde ela trabalha, enviou uma carta para o diretor para me dar o doutorado. Me deu o doutorado, me deu uma coisa, me deu outra coisa. Tudo isto ela que me ajuda. Ela fez uma aplicação também. O negócio que o governo me deu. O presidente me deu uma homenagem, uma placa. Demorou um ano e pouco. Foi iniciar em 2002. Eu tava lá no médico. Ela telefonou. Queria falar comigo. Nana que atendeu. Disse que daqui a uma hora o homem do governo queria falar comigo. Veio Jurandir, veio João Pequeno, veio Moraes, duas filhas minhas… Eu paguei as passagens e tudo, mas deram o passe para poder entrar. Risadinha chamou. Convidei Moraes, João Pequeno, Jurandir, minhas duas filhas, Gildo Alfinete e Frede Abreu, que são gente boa. Quem cobra os alunos da academia é quem está na porta. Eu dou o dinheiro para Risadinha. Ela paga taxa, paga o governo, paga tudo, eu gosto de tudo certo. Não gosto nada de ficar esse negócio de escondidinho, não. Negócio é tudo aberto. Não gosto de enrolação. Gosto de tudo certo. Risadinha não é minha sócia, não. Ela me ajuda. Ela tem o trabalho dela, é professora de vídeo. O marido dela é mecânico de computador. Ela paga tudo, taxa do governo, paga tudo, tudo, tudo, tudo. Sobra um dinheirinho para pagar a casa aqui. Aqui é pago. Tem que pagar tudo aqui. Sobra pouquinho. Dinheiro pouco. Antigamente quando tava tudo barato…mas agora tá tudo caro.
Tudo que eu ganho aqui é pra pagar a casa e pagar as contas, eu não saio pra passear, pra gastar dinheiro. Comida eu como aqui mesmo, não como em rua porque não gosto de comida de rua. Não como sal. Levo uma vida simples, passo o tempo todo na academia, só às vezes que saio. Vem gente aqui todo dia visitar. Às vezes têm três, quatro pessoas de fora aqui. O telefone toca, tenho que atender. Tem o pessoal da dança, da outra sala. É pouquinho, mas pouco com Deus é muito. Tudo aqui é muito caro. E aqui em Manhattan tudo é mais caro que em qualquer outro lugar. Aqui é caro, caríssimo. Pago cinco mil dólares de aluguel, fora o dinheiro de imposto, de acidente, fora o governo, fora luz e água. Muito caro.
A academia quando tem muito aluno vale mais. Viagem a pessoa se cansa. Às vezes ganha, às vezes não ganha. Um lugar que você vai viajar que é muita coisa, vende tudo, é o Japão. Quando viajo pro Japão levo a mala cheia de vídeo, camisa, vende tudo lá. Na Europa vende pouquinho. Eu tenho grupo em Belgrado, em Los Angeles, na Itália, tem também em Hamburgo, na Suécia, no Japão… Dou aula pro pessoal lá, passo uma semana lá. Pessoal da Europa gosta muito de capoeira Angola. Gente de trinta anos de capoeira regional está indo pra capoeira Angola. Diz que se cansou de fazer capoeira regional, foi pra capoeira Angola. Viajo acompanhado. Me dá tanto. Só vou por três mil dólares. Muito caro aqui.
Não posso ir por mil dólares porque senão perde muito dinheiro. Se eu saio daqui por mil dólares não tem aluno aqui, aluno só vem quando eu estou aqui. Três mil dólares. É! Hospedagem e tudo. Levei Sara uma vez. Levei Papagaio, levei Raquel, levei Cabeça Pelada, levei Paciência, levei Nana, baiana, para Europa. Pro Brasil ano passado levei Raquel. Vai quem tá desocupado. Quem pode viajar comigo? “Eu posso”. Todo mundo aqui trabalha. Você quer viajar comigo, passar uma semana? “Tudo bem”. Outros não podem, estudam, trabalham. Uns trabalham, outros estudam. A maioria trabalha e estuda. Tem dois doutor aqui. Todo mundo aqui me ajuda, graças a deus. Aqui não tem negócio de racista não. Aqui na academia não tem. Tudo aqui é zebra. Branco e preto. Tudo aqui é igual. Aqui é uma família. O pessoal gosta porque é uma cultura da África. O pessoal quer saber. Veio da África quer saber. Mais do que no Brasil. No Brasil não dá muito valor, não dá apoio por lá. Aqui dá muito valor.
Eu Nasci em Itagi, interior da Bahia. Eu trabalhava na roça em Itagi. Eu trabalhava com meu pai na lavoura. E lá, as vezes, eu ia para o mato e ficava observando os bichos. Não sabia o que era capoeira, capoeira para mim era mato. Ia para ver os bichos andarem no mato. Os pássaros voando não batiam nos outros, desviavam. Ia para o rio jogar farinha e ver como os peixes nadavam, os peixes não batiam nos outros. Aquilo na minha mente despertava esse assunto, como eles não batem um no outro ? Eu tinha dez anos de idade. Depois eu vim para Itagi, para a cidade. Eu trabalhava na roça, depois vim para a cidade. Um dia de semana eu tava sentado na porta de uma venda com dois senhores, um de nome Pedro outro Chico. Passaram dois meninos de dezoito anos, um fez um corta- capim. Enfiou as pernas assim. Os dois senhores comentaram. Pedro disse pra Chico: “Chico, isso aqui é dança de nego nagô. Passando na pessoa a pessoa cai”.
Não podia conversar com ele que ele falava para meu pai e meu pai batia na gente. Dois adultos conversando assim, o menino pequeno não ficava junto não. Ficava de longe. Se passasse e chegava batendo na gente. Foi quando um saiu, o que falou ficou, o outro saiu. Ai eu cheguei e perguntei: Como e que é, Seu Chico, o que é dança de nego nagô ? O que é corta capim? Ele disse assim: “Aquilo ali é dança de nego nagô”. O que é dança nagô? “Dança nagô é esse pessoal que vem da África, esse pessoal é africano e se chama Nagô. Eles fazem esses movimentos, essa dança”. Eu disse: onde é que se aprende isso? Ele disse: “Não sei. O pessoal trabalha no engenho de cana, trabalha no canavial, cortando cana, no alambique”.
E o que é corta-capim? Nego pegou o facão e disse: “É isso aqui”. Eu tinha dez anos de idade. Capoeira é o seguinte: capoeira é uma dança, uma arte, uma profissão, uma cultura. Agora, naquela dança ali, se ele tiver coagido ele tem que reagir com luta. É uma dança, mas na hora que está precisando é uma luta. Veio como dança de N’golo para o Brasil. Capoeira é africana desenvolvida no Brasil. Os africanos trouxeram ela para cá, mas não trouxeram como capoeira, trouxeram como dança que desenvolveu no Brasil, no mato ralo, o mato ralo chama capoeira. Capoeira é irmão do candomblé.
Muitos mestres não querem acreditar. Tudo que vem da África é irmão do outro. O africano que trouxe para o Brasil. O candomblé, o samba, a capoeira são irmãos. É irmão, tudo veio da África. Candomblé, samba, maculelê, capoeira, tudo é irmão. Tudo veio da África. A capoeira chegou no Brasil como dança de N’golo. Capoeira é uma dança, vamos dançar. Capoeira é mandinga, antigamente chamavam de mandinga, falavam assim: “Cadê a mandinga, onde é a brincadeira, vamos praticar aonde, vamos vadiar aonde?”. Aqui no Brasil cresceu mais. Os mestres cresceram e foram passando para os alunos. A capoeira que eu faço é natureza. Não copio nada dos outros pra fazer capoeira.
Deus e meus orixás que me dão sabedoria pra fazer aquilo que eu faço. Crio na hora. Peão de cabeça, criado por mim, relógio, criado por mim, balão com uma mão só, tudo criado por mim. Uso tudo que meu mestre me ensinou e multiplico mais. O que meu mestre passou eu peguei tudo e fui crescendo. O Rio Amazonas fica num lugar somente? Recebe uma coisa de um e outro e num cresce aquele mundão todo? É como assim a vida da capoeira. Você agora tá aprendendo devagarinho, quando você tiver bem você vai olhar a cultura, olha o que estou dizendo, você vai pro mato olhar no mato assim, ver fazer um movimento no mato, você faz o movimento também.
Vê um bicho fazendo um movimento você faz um movimento também. Vê um peixe fazendo um movimento você faz o movimento daquele peixe. O peixe vai lá e volta, não volta? A cobra vai lá e não volta em cima pra pegar a pessoa? Tudo daqueles movimentos vai crescendo dentro daquele só. A cobra nasce pequenininha, daquilo ali a mãe não ensina nada, ela vai e faz pela peneira dela. A natureza que dá pra pessoa. A natureza. O rio vai aqui e volta, segue nesta direção. Não vai direto porque não tem lugar pra passar. Tem uma montanha aqui o rio não vai subir reto porque não tem onde passar, procura lugar pra entrar, pra passar. Tem uma formiga no rio num lugar onde não pode passar, ela procura, procura até achar um lugar pra poder sair.
Que nem você também. Jogando capoeira você tem a sua capoeira que seu mestre te ensinou e você vai crescendo outra coisa aqui no seu corpo. O que seu corpo pedir você dá a ele. Corpo pede aqui. É isso, vou fazer isso. Você faz um movimento aqui, seu corpo quer aquele movimento seguido. Você faz um corta-capim. Eu estou dizendo a você, você faz um corta-capim, faz essa experiência. Faz um corta-capim e demonstra uma cabeçada, corta-capim você mostra um rabo-de-arraia, corta-capim você mostra uma chapa de frente, corta-capim você mostra uma chapa de costas, corta-capim você mostra uma meia-lua, corta-capim você mostra um aú e volta com uma chapa de costas, corta-capim você mostra um aú e volta pra tesoura, corta-capim você volta com um aú, corta-capim e volta com uma cabeçada, corta-capim. Tudo isso você vai fazer.
Eu saí andando, andando, andando… Sem destino. Cheguei na Bahia com vinte anos. Num dia de tarde estava sentado na porta da igreja de Nossa Senhora, chegou uma família de Bicuí, seis hora da tarde. Um casal e veio um homem também com eles, tinham três burros. Ele parou na minha frente na igreja e falou: “Você quer ir embora para Bahia?”. Ele nunca tinha me visto. Bahia, onde é? “É longe, você vai gostar. Quer ir?”. Eu vou. Estava com 19 anos. Falei com minha irmã. Vou embora pra Bahia. “Não, não vai não, você não conhece esse pessoal, não conhece ninguém”. Eu vou. Arrumei um saco de pimenta, botei minha roupinha ali. Minha mãe tinha morrido e meu pai trabalhava no interior.
Eu ficava na cidade, trabalhava na cidade. Trabalhava com tropa de burro, viajava de Itagi a Jequié, Rio Novo, carregando mercadoria. Saímos de manhã e fomos até Rio Branco, lá pegamos uma Marinete. A gente chamava de Marinete o ônibus que ia para Rio Novo. A bagagem ia em cima. Uma Marinete toda acabada. Passamos um mês em Ilhéus, em Rio Novo. Do Rio Novo falaram: “Vamos para Bahia agora”. A família tinha parentes em Rio Novo. Pegamos o trem para São Roque, em Jequié mesmo. Nunca tinha viajado de trem. Nunca tinha visto o mar. Chegamos em São Roque era seis horas da noite. Pegamos o navio em São Roque para chegar a Salvador. Saltei na Bahia, no Mercado Modelo, e fui morar no bairro do Tororó, número 19. Tem a casa lá até hoje. Trabalhava de graxeiro em casa de família. Sabe o que é graxeiro? Lavava prato, varria a casa, fazia mandado.
Não me davam nada, só a comida e a roupa. A mesma família que me levou para Bahia. O homem era mascate, comprava coisas nas lojas e vendia nas festas do interior. Vendia relógio, jóias, brincos, vendia no interior, nas festas. Ele se chamava Edgar e a mulher era Júlia. Ele passava dois meses viajando pelo interior todo. Ia para as festas, ficava lá. Depois vinha de novo. Tinha um senhor numa casa. Um espanhol chamado Moreira. Ele tinha uma venda. Conversando comigo ele disse assim: “Vem cá, você é da onde?”. Sou de Itagi. Interior da Bahia. “Você mora aí? Ganha quanto?”. Ganho nada não, só me dão roupa e comida. “Quer trabalhar comigo?”.
De quê? “É pra trabalhar no depósito de cachaça lá embaixo, Depósito Vasco da Gama. Eu dou um quartinho para você morar aqui no fundo e dou cinqüenta mil réis por semana”. Tá bom. Aí saí da casa deles, foi uma peia danada. Aí comecei. Tirei carteira de trabalho. Quando acabou o depósito de cachaça fui trabalhar com construção civil, na Delta. Depois trabalhei direto com construção civil, trabalhei aqui, trabalhei acolá… já tinha descoberto a capoeira. Eu cheguei em Salvador em 1953, foi quando eu descobri a capoeira. Já tinha completado 20 anos. Aí cheguei lá embaixo e encontrei a capoeira. Um dia de domingo tava lá no Tororó e depois eu desci. Lá embaixo era a Roça do Lobo, um bairro onde só tinha pobre morando lá, pobre mesmo. Eu cheguei e de cá de cima eu vi uma rodinha.
Quando eu desci encontrei lá uma roda e três pauzinho balançando, mas eu não sabia o que era capoeira. Eu perguntei assim pro finado Mestre Barbosa: Meu sinhô, o que é isso? “É capoeira”. Antes disso eu vi um corta-capim em Itagi. Quando eu tinha dez anos de idade um cara fez um corta-capim. Sempre que eu queria saber do corta-capim ninguém sabia informar. Depois que eu cheguei na Bahia com vinte anos, passei um ano e depois eu cheguei lá embaixo e vi a rodinha na Roça do Lobo. Desci, fui lá e perguntei: “É capoeira”. Na hora um cara fez o corta-capim. Pensei: Ah, é o que o senhor me disse que era dança de nego nagô. Onde é que aprende?
Ele disse assim: “Lá em Brotas, com Mestre Pastinha”. E como é que eu chego? “Fala com o João que ele leva você lá”. Outra hora eu falei com ele. “Você me espera aqui uma hora que eu passo e pego você pra gente ir lá em Brotas”. Em 1950 tinha bonde. Ele me levou lá pro finzinho de Brotas, no Candeal Pequeno. Me levou na casa de Mestre Pastinha. Tinha uma salinha pequenininha. Pastinha tava lá já sentado. Tinha um outro senhor lá sentado. João falou: “Pastinha, esse rapaz quer aprender capoeira aqui”. “O que você faz”? Eu pratico luta livre, gosto de futebol. “Larga tudo isto que isto não presta. Segue a capoeira que você vai crescer na capoeira, porque a capoeira é a mãe de todas as lutas e todas as danças”. Eu fiquei sentado num banco. E foi chegando gente, chegando gente…
Eu pensei assim: Esse senhor sabe nada. Não levei a fé. Quando a roda começou ele foi jogar com Daniel Noronha, eu vi os ticun, eu digo: Ah, ele sabe. “Você vem treinar aqui terça-feira”. Terça-feira me deu um treino. Na quinta-feira fui de novo lá, ele me deu outro treino. Terça e quinta, terça e quinta… Depois João Pequeno treinou também comigo… Depois mudamos pro Pelourinho, 19. Começou aula direto lá. Em Brotas era um lugar para treinar…uma academia não, era um espaçozinho. Não era a casa dele não. Ele morava na Cidade de Palha. Toda semana eu ia para lá treinar. Treinando, treinando, treinando… trabalhava o dia todo e de tarde treinava, quando não fazia hora extra de noite na construção civil ia para lá treinar. Treinei um ano na academia dele sem sair para lugar nenhum.
Depois de um ano, em 1954, fui ver a festa de Bom Jesus dos Navegantes, na Boa Viagem. Lá no Monte Serrat tem um forte, a roda rolava lá em cima. Eu fui lá. Enquanto o pessoal chegava a roda estava rolando lá em cima. Eu fui lá e encontrei Boca Rica, Mestre Canjiquinha também. A roda tava rolando e ele me chamou para dar uma volta. Eu todo acanhado sem saber nada. Com medo. Nunca joguei na rua. Joguei com ele. Depois perdi o medo. Todos os mestres me ensinaram. Cobrinha Verde me ensinou. Mas meu mestre mesmo foi Pastinha. Meu mestre verdadeiro foi mestre Pastinha. Ele me deu em palavra meu respeito como mestre. Valdemar me deu em palavra. Livino me deu em palavra.
Daniel Noronha me deu em palavra. Cobrinha Verde me deu em jogo. Cobrinha Verde foi contra-mestre de Pastinha. Mestre Pastinha é meu pai, meu mestre e meu avô de capoeira. Com as forças de Deus, por tudo que tem de bom. Com ele e Cobrinha Verde e os outros antigos. Eu considero eles como mestres. Aí pronto, venho direto, jogando capoeira direto. Mestre Pastinha me dava muito coisa. Ficava na academia com ele batendo papo, conversando. Ele dizia faça isso, isso, isso… Me dava muita coisa. Treinei muito com Mestre Pastinha e Cobrinha Verde. Valdemar joguei com ele uma vez quando tava já bem doente numa festa em Itapuã. Eu joguei com ele. Ele entrou, jogou e saiu logo. Destes antigos que eu joguei muito foi com Mestre Pastinha, Cobrinha Verde e Espinho Remoso.
O pai de Vírgilio e Diogo. Tinha roda lá na Jaqueira do Retiro. Tinha esse nome porque tinha um pé de jaca, o pessoal jogava debaixo do pé de jaca. Livino, Onça Preta, Noronha, tomava muito conselho deles, eu tenho esses moços como mestre. Meu mestre mesmo é Mestre Pastinha. Ele e Cobrinha Verde que considero meus mestres mesmo, me deram muita coisa. Os outros me deram em palavra, e eu considero eles mestres também. Treinei muito com Cobrinha Verde. Morava na casa de Cobrinha Verde, lá no Chame-chame. No fundo de quintal, com candeeiro aceso, treinava eu, Bom Cabrito, em vida, treinava Gato, em vida. Uns quatro ou cinco treinavam de noite na casa de Cobrinha Verde, no fundo de quintal.
E domingo de manhã Cobrinha Verde fazia a roda dele e de tarde íamos para academia de Mestre Pastinha. Jogava no fundo de quintal de Cobrinha Verde ou na rua. Cobrinha Verde treinou com Besouro e com um africano chamado Tio Olímpio. Ele era discípulo de Besouro, irmão de leite de Besouro e primo carnal. Era irmão porque mamou leite no peito da mãe de Besouro. Não conheci ele, mas diziam que era Besouro Cordão de Ouro porque usava um cordão de ouro grande no pescoço. Besouro Mangangá é porque prenderam ele, que se transformou num besouro e saiu a voar, fugiu da cadeia. O carcereiro não viu ele sair, só ouviu o zum, zum, zum… Aí que ficou o nome de Besouro.
Ele tinha muita oração forte. Mangangá é um besouro muito perigoso. Fica num toco de madeira e se descarrega em qualquer pessoa. Quando eu cheguei a Salvador e entrei na capoeira já tinham matado ele. Mataram em Maracangalha, morreu no hospital. Assim Cobrinha Verde falou. Besouro bateu no filho do prefeito de Santo Amaro. Depois o prefeito mandou abrir sete covas para ele, ia cavando e benzendo as covas, depois pagou uma mulher para ficar com ele. A mulher pegou o patuá dele. Quando ele passou debaixo de uma cerca o arame cortou ele. Estava derrotado. Tinha uma venda que ele bebia cachaça todo dia. Quatro homens foram mandados por este prefeito para pegar ele. Quatro homens bons de facão.
Dois de um lado e dois do outro lado do balcão. Besouro botou uma cachaça e bebeu. O outro disse: “Você bebe e não oferece a ninguém que tá aqui”? “Eu não, se quiser você bebe. Compra e bebe”. Eles discutiram e jogaram cachaça no pé dele. Antigamente se jogasse cachaça no pé da pessoa era briga. Derrubou a cachaça nos pés dele aí, pronto. Foram pra fora, os quatro pra cima dele, facão pra cá, pra lá, mas por detrás veio um e cortou a barriga dele com uma faca de ticum. Faca de Ticum quebra qualquer mandinga. Foi o que Cobrinha Verde falou. Depois levaram ele para Maracangalha. Botaram numa canoa para levar ele. Internou. Já estava bom.
Mas ele perguntou: “Doutor, eu vou ser o mesmo Besouro”? “Não. Vai ser metade do Besouro”. “Então pode me matar”. Ele mesmo mandou matarem ele, não queria viver mais. Devem ter dado um remédio para ele. Apareceu morto. Cobrinha Verde que falou isso. Ele tinha corpo fechado. Bala batia nele e caía no chão. Depois quebrou a força. A mulher abriu o corpo dele. A faca de ticum cortou porque a mulher abriu o corpo dele. Pegou o patuá dele… quebrou a força. Quem tem proteção assim mulher não pode pegar. Quem tem essas mandingas não pode passar debaixo de cerca de arame, não come mingau de tapioca, não pode passar debaixo de vestido de mulher estendido em varal. Tem os dias certo de dormir com mulher. Diziam que era muita mulher que ele tinha.
Aí pronto, morreu. Ele era trapicheiro e trabalhava nas usinas. Trabalhou em Maracangalha, na Usina Aliança, Usina Itapetingui. Trabalhava cortando cana. Como trapicheiro ele trabalhava embarcado. Diziam que o barco navegando ele jogava capoeira. Jogava também no cais, na beira do Rio Subaé, em Santo Amaro. Era desordeiro, mas fazia por vingança, assim me falaram, não procurava briga com ninguém. Defendia as pessoas. Tomava a arma da mão da polícia para soltar uma pessoa e brigava com a polícia. Era muito sabido também esse Cobrinha Verde, muito mandingueiro, diz que sabia de tudo, mas quebrou a força, fez coisa errada e quebrou a força. Tinha umas orações muito fortes, mas fez umas coisas errada, não sei o que ele fez que o santinho que ele tinha sumiu dele. Assim ele falou comigo. Teve problema. Ele tinha 66 orações na cabeça.
De tudo. Você vê ele lá embaixo, quando vê de novo ele está cá nas suas costas, voltava. Cobrinha Verde. Brigou muito ele, mas nunca foi preso. Eu nunca briguei. Capoeira é pra vida não pra briga. Você brigou, perdeu todo o valor seu. Mestre Pastinha brigava quando era novo, mas depois não brigava. Valdemar nunca foi de brigar, João Pequeno nunca vi brigar. Besouro e Cobrinha Verde que brigavam em Santo Amaro, eram protegidos das nega da costa. Sabe o que é nega da costa? Uma africana, chamava nega da costa antigamente, em Cachoeira. Traíra era brigador também. Cobrinha Verde andava com uma costela de vaca na cintura, um facão de dois cortes, chamava costela de vaca. Todo mundo usava navalha. Eu usava também, mas uma vez a polícia me pegou.
A polícia bateu num bar lá da Lapinha, me pegou e tomou minha navalha. Pode levar. Não quero mais não. Todo mundo usava navalha, Pastinha usava, Cobrinha Verde usava, Daniel Noronha usava, Livino usava, todo mundo usava. Tem ainda esse costume. Quem me ensinou a usar faca foi Pastinha e Cobrinha Verde, pra eu jogar faca com João Pequeno. A faca eu usava pro vídeo. Não uso faca não. Nem ensino pro meus alunos. Uma vez Valdemar tava ensinado jogo de faca pros alunos dele, a polícia passou, parou, disse pra ele. “Ensina tudo pro seus alunos menos jogo de faca”. Aprendi pouca coisa de faca. Mestre Pastinha sabia jogo de faca, esgrima, sabia usar a navalha.
Cobrinha Verde jogava navalha no cordão, com elástico, ia e voltava. Treinava com ele na casa dele. Mestre Pastinha montou três berimbau. Tinha um, botou mais dois, botou recoreco, atabaque, dois pandeiros, agogô. Botou castanhola, mas castanhola é negócio de espanhol, ele tirou. Tinha também viola, quem tocava era um rapaz de Santo Amaro chamado Damaro, que tocava viola toda segunda-feira na academia de Mestre Pastinha. Tirou a viola também. Na academia usava calça preta e camisa amarela porque Mestre Pastinha era Ipiranga, time dele. Pessoal todo que trabalhava na oitiva era tudo Ipiranga. Jogava na Graça. Mestre Pastinha gostava do time. Ele só usava branco, o chapéu preto, guardachuva. Mesmo com sol ele andava com o guarda-chuva. Ele usava pra defesa, era uma arma perigosa. A gente que era aluno usava preto e amarelo. Moraes usa preto.
Cobrinha usa preto. Lá no Rio todo mundo usa preto. Belo Horizonte usa preto. Europa toda usa preto. Aqui quis botar roupa branca. Paz. O branco tem mais força. João Pequeno usa branco também. Mestre Pastinha era muito reconhecido. Na capoeira Angola todo mundo procurava ele. Tinham muitos angoleiros na Bahia, mas o pessoal procurava Mestre Pastinha. A academia do Pelourinho enchia de turistas. Quando ele estava mesmo na ativa, jogava com oito, dez pessoas, os alunos todos. Dava trinta sapinho, vinte rabo-de-arraia em cima de você, jogava com Anselmo, jogava com Vermelho da Moenda dando rabo-de-arraia. Cobrava na porta, pagava na porta, mas era muito pouco.
O dinheiro era pouco naquele tempo no Pelourinho. Eu só andava viajando. Trabalhava com bate estaca na construção, civil, viajava para o sul, passava um ano fora da academia, em Itabuna, Ilhéus, trabalhando. Passei três meses na chapada Diamantina, batendo estaca, depois voltei. Passei mais um ano em Ilhéus, outro ano em Itabuna, trabalhando em construção civil. Treinava, este tempo todo eu treinava sozinho em casa. Levantava cedo, fazia café, ia treinar, treinar, treinar, depois ia trabalhar. Batia meio-dia eu treinava de novo. Treinava, treinava, treinava…Depois comia e voltava para trabalhar. Cinco horas; treinava na academia de Mestre Pastinha.
Quando não fazia serão. Depois ia pra casa dormir e no dia seguinte fazia tudo de novo. Sem parar. Eu gostava de capoeira. Em 1955, eu trabalhava num prédio no bairro do Canela. Eu estava trabalhando e aproveitava as horas vagas para treinar. Peguei uma escada. Subia e descia de cabeça pra baixo na escada todo dia. Pra fazer exercício. Treinava no porão direto ao invés de ir jogar dominó. Eu passei três meses, em 1958, na Chapada Diamantina, quando estavam construindo Brasília, eu passei três meses na Chapada Diamantina batendo ponte de Belém à Brasília. Trabalhando em construção civil. Bate estaca. E lá eu não tinha como treinar, treinava sozinho no meio do mato. Treinava sozinho com as moitas e com os bichos. Fazia todos os movimentos sozinho.
Não tinha ninguém para treinar. Viajei com três pessoas, mas ninguém sabia capoeira. Todo dia eu acordava cedo e treinava sozinho no mato. Treinava com os pé de mato. Rabo de arraia, sapinho, rolê. Passei um ano em Itabuna e um ano e meio em Ilhéus. Eu demorava pouco na Bahia, passava a viajar fora. Eu gostava de lá por causa da academia do Mestre Pastinha. Mas nunca fiquei parado não. Eu trabalhava em construção civil. Trabalhei de trapicheiro, de doqueiro, ajudante de caminhão, pedreiro, trabalhava nisso, pesado. Depois de sete anos me casei. Mas não parei a capoeira, fui direto. Casei na Bahia.
Depois de sete anos a mulher morreu, eu fiquei viúvo, até hoje sou viúvo. Tenho filhos criados já. Um estuda com João Pequeno, o Jurandir. Semana passada ele estava aqui, mas já foi embora. A capoeira regional foi mestre Bimba que criou. Ele fez dez anos de capoeira Angola. Depois mudou, disse que a capoeira Angola estava muito fraca, mudou para criar a luta baiana dele. Os mais considerados eram Mestre Pastinha e os angoleiros. Roda onde tivesse os angoleiro Regional não entrava. Na Festa da Conceição da Praia a roda rolava a noite toda, desde o dia oito até o dia nove, a Regional ficava olhando e não entrava. Uma que Mestre Bimba não queria e outra que antigamente os angoleiros entravam duro com eles. Se Mestre Bimba visse um aluno dele jogando na rua botava para fora da academia.
Depois foram acostumando. Iam na academia Itapuã, o finado Ezequiel, Camisa Roxa ia lá, todos alunos de Mestre Bimba. A capoeira de Mestre Bimba antigamente só tinha Mestre Bimba. Depois que a capoeira se estendeu no mundo todo cada um vai fazendo o que quer. Tinha uns balões muito bonitos, cintura desprezada, todo movimento tinha balão: balão de cintura, balão de pescoço… tudo de balão. Disse que foi do jiu-jitsu. Capoeira muito bonita a capoeira de Mestre Bimba. Capoeira de hoje tem soco, tem pontapé, com Mestre Bimba não tinha nada disso. Não, se um aluno jogasse na rua e tocasse a mão na roupa de um mestre…. Vixe!
Tinham o costume de jogar todo de branco, roupa branca, gravata, camisa muito bonita, sapato engraxado. Aquele que tocasse na roupa de um mestre desse…Perguntava: “Quem é seu mestre?”. “Meu mestre é fulano”. “Diga a ele que treinam pouco, tanto você quanto ele. Diga para lhe dar educação de jogo. Sujou minha roupa”. Porque antigamente tinha a domingueira. Era aquela roupa que você tinha para jogar capoeira no domingo. Não tem esse corrido “goma de engomá / ferro de batê”? A goma tirava da mandioca e passava na roupa dele, pra não ficar tremendo. Antigamente tinha ferro de carvão, botava o carvão numa caixa de ferro para acender e poder passar a roupa chamada domingueira. Era uma roupa pra tudo. Passear e jogar capoeira. Chegava em casa botava no guarda-roupa de novo, vestia a roupa de guerra para trabalhar no outro dia. Era uma roupa só pra domingo.
Capoeira Angola vem do trabalhador, vem de baixo. Trapicheiro, ajudante de caminhão, carregador, doqueiro, pedreiro, carroceiro, pescador, vem de baixo. Quando parava o trabalho já tinha um berimbau lá. O couro comia nas docas. “Não tem trabalho hoje não?”. Hoje é capoeira. Debaixo do pé de tamarineira lá o berimbau fazia sucesso. O pessoal jogava ali. Camisa de saco, descalço. Depois cresceu, a capoeira foi crescendo, crescendo, crescendo…aí pronto. Ninguém gostava de capoeirista. Se você era capoeirista e a filha de um cidadão daquele olhasse para você e se você quisesse namorar com ela o pai dizia: “Não. Aquele é capoeira, coisa de vagabundo, aquele é capadócio, malandro.
Quem joga capoeira é malandro”. Depois foi crescendo, crescendo, crescendo… hoje em dia quem está jogando capoeira é gente fina, acabou essa mania. Comecei a viajar pelo mundo em 1966. Fui para Dakar com Mestre Pastinha no Festival da Artes Negras. Eu, Gato, Mestre Pastinha, Júlio Roberto, Camafeu de Oxóssi. Festival Mundial das Artes Negras, pelo Itamaraty. Nós fomos para África. No dia que Mestre Pastinha foi tirar passaporte na Piedade para poder viajar ele não subia as escadas mais, veio carregado num carro, subimos as escadas com ele, eu, Gildo Alfinete e Roberto Satanás. Professor Valdir falou: “Se Pastinha não for ninguém vai”. Depois a gente viajou. Lá ele não jogou. Quase não enxergava mais, ficava sentado na sombra. Jogamos eu, finado Gato, Roberto, Gildo.
Camafeu foi tocando berimbau. Festival de Artes Negras de Dakkar. Foi muito bom lá. Fui com o grupo de Mestre Pastinha, foi o grupo de samba de Ataulfo Alves, foi Clementina de Jesus para cantar e outra cantora do Rio. Ataulfo Alves com samba. Eu sei que foi também o Paulinho da Viola. E Olga de Alaketu para fazer a comida baiana. Da Bahia foi o grupo de Mestre Pastinha e Olga de Alaketu na comida. Pastinha enxergava pouquinho. Ficávamos no hotel. De tarde, num larguinho, chegaram três rapazes. Sentou um com o balafon. Os outros dois estavam sem camisa com uma lata amarrada no pé. Cheio de pedras, uma lata pequenininha. Sapateando, fazendo tudo de capoeira.
Fazendo corta-capim, aú, mortal, rolê, fazendo tuto, tudo, tudo… Mestre Pastinha perguntou assim: “Como é que chama essa dança. Isso é capoeira”? “Não, não é conhecido como capoeira não, é nossa dança daqui. A gente não sabe o que é capoeira não”. Eles falavam em francês, mas traduziram pra gente. “A capoeira tá no Brasil, a capoeira Angola de vocês está no Brasil. O pessoal levou pra lá e agora vocês estão apresentando aqui”. Quando Mestre Pastinha perdeu a academia eu estava trabalhando na Moenda fazendo shows. Depois deram um lugar para Mestre Pastinha no Pelourinho.
Mas nunca foi como era a academia não. Caiu, os alunos saíram, foram embora. Mestre Pastinha ficava lá na porta, Cobrinha Verde ia lá dar aula, João Pequeno às vezes ia, às vezes não ia. Papo Amarelo ia lá também. O negócio caiu. Eu só andava trabalhando. Ia lá uma vez ou outra quando tinha uma folga. Quando eu estava em Salvador, quando eu viajava pronto. Passava três meses fora viajando a serviço. Aí voltava e ia pra lá, mas caiu mesmo, caiu. Pastinha morou no 14 do Pelourinho. Morava num quartinho ali. Ficou acabado lá, esquecido. Ninguém lembrava dele. Só Jorge Amado que deu três salários mínimos a ele. Mas ninguém ajudou ele. Eu ia lá ficar conversando com ele sentado no banco.
Tinha um corredor e a gente ficava sentado no banco. A mulher dele vendia acarajé na Fonte Nova. Dia de domingo gente ficava sentado com ele conversando na porta. Sobre capoeira. Capoeira é isso, isso, isso… Não reclamava. Mestre Pastinha, como vai? “Eu estou bem graças a deus”. Depois colocaram ele no asilo de velhos lá em Brotas, faleceu lá. Quando ele morreu eu não sabia, quando soube já tinham sepultado ele. Estava trabalhando na arena, na Ondina. Aí Vermelho falou: “Mestre Pastinha morreu”. E quando foi isso? “O enterro foi hoje”. Puxa vida… Eu nunca fui visitar ele no abrigo dos velhos porque não tinha tempo. Eu trabalhava em Salvador num posto de gasolina o dia todo lavando carros, o dia todo, não tinha tempo pra nada, de noite saía correndo fazer show na Moenda.
Um lugar de turistas – restaurante e casa de show – que fica na Boca do Rio. Comecei a fazer show na década de 1970. Fazia show no Hotel da Bahia. Depois a professora Emília, com o Viva Bahia, vendeu um show nos Estados Unidos, depois vendeu outro show na Europa. Tudo num mesmo mês. Tivemos que fazer dois grupos, um para o show dos Estados Unidos e outro na Europa. Eu fui pra Europa com umas vinte pessoas. O show era dirigido pela professora Emília. Viajamos a Europa toda, passamos oito meses na Europa fazendo show, em 1974. Irã, Tunísia, Oriente Médio.
Fazia tudo. Fazia maculelê, candomblé, puxada de rede, samba. Capoeira também. Capoeira de show. Depois voltei para Salvador. Fomos pra Europa de novo, passamos três meses na Europa indo de Barcelona a Madri. Fazendo shows em discotecas. Saía de Barcelona para Madri, no sul, no norte, fomos pra França, sul da França, norte da frança. Fomos para Itália, sul da Itália, norte da Itália. Em 1976. Foi muito bom. Gostava de viajar. Sempre gostei muito de viajar e fazer show. Na época que eu trabalhava no posto de gasolina a capoeira Angola estava por baixo, caída. Fiquei cinco anos sem fazer capoeira Angola. Não tinha como fazer? Não tinha. Trabalhando muito.
Capoeira Angola caiu. Só estava por cima a Regional. Capoeira Angola só tinha João Pequeno no Forte Santo Antônio. Cobrinha Verde tinha falecido. Mestre Pastinha estava doente. Valdemar só fazia berimbau. Ninguém jogava capoeira mais. Eu trabalhava na Moenda fazendo show. Trabalhava no posto de gasolina no Retiro. Cobrinha Mansa ia lá me chamar pra fazer capoeira. Eu vou, eu vou. Nunca fui. Passou quase um ano me chamando para ir pra lá. Um dia fizeram um encontro lá, em 1987. Eu fui ver o encontro, gostei, aí voltei pra capoeira Angola. Eu estava me sentindo mal.
Só fazia show, batia maculelê, puxava rede na Moenda, mas capoeira que é boa não jogava. Quando o Moraes fez o encontro e me chamou eu voltei pra capoeira Angola e voltou todo mundo. Voltou Valdemar, finado Zacarias, finado Bobó. Todo mundo voltou pra capoeira Angola. Moraes e Cobrinha foram no posto de gasolina me chamar, eu estava na Moenda. Me deram um salário pra eu vir pro GCAP. Deixei a Moenda e passei três anos trabalhando com o GCAP. Ensinando todo mundo lá. Depois de três anos não quis mais ficar lá. Fui trabalhar na Moenda de novo.
O Liceu de Ofícios abriu uma academia para mim lá embaixo no comércio. No quarto armazém, nas docas, onde tinha um depósito de cacau antigamente. Acabou esse negócio de cacau abriram um espaço para mim e para Nenel, filho de Mestre Bimba. Ele de um lado e eu de outro. Regional lá e Angola cá. Em 1990, fui chamado para Atlanta para fazer o Festival de Atlanta e eu vim.
Foram me chamar, mas nunca fiz fé. Surgiu esta viagem para o encontro de Artes Negras. Foram me chamar Daniel Dawson e Cobrinha também. Assim que cheguei e fiz o show lá Negro Gato disse: “Você vem para aqui”. Terminou lá eu vim para academia dele aqui. Tinha academia lá no Harlem, um espaço. Negro Gato era mais Regional. Capoeira regional de show. Vim para aqui. Tinha um bocado de gente fazendo capoeira. Tava aqui Galo, tinha o Maluquinho, o Motorista, o Amaral, tinha Omolu, Sônia e outras pessoas. Fiquei com ele um ano ensinando capoeira no Harlem.
Fazia capoeira e show em Woodstok, uma cidade que tem aqui perto, duas horas de Nova York. Fazia show lá e ensinava capoeira aqui. Risadinha já estava comigo no Harlem. Ela foi lá treinar capoeira assim que eu cheguei. Risadinha tomou a frente e abrimos o salão. Passei sete anos lá. Sim. No 69. Depois venceu o contrato e o salão de baixo ia entrar em obra. O dono de lá é o mesmo daqui. Estava pra alugar aqui. Eu vim pra aqui. Tenho seis anos aqui já. Quando criei esta academia perguntei à professora Emília: Professora, qual o símbolo que ponho na minha academia?
Foi lá em Woodstock. Ela me deu uma pulseira de oxum, Cabello copiou o desenho da pulseira, duas cobras. Emília Biancardi, professora de dança folclórica, ela está no Pelourinho, num casarão de cinco andares que deram para ela fazer o trabalho dela. Brasil e África. Ela me disse assim: “Isto aqui é Brasil e África porque os capoeiristas são duas cobras, os angoleiros são duas cobras no chão”. Cabello desenhou para poder devolver a pulseira a ela. “Faz o desenho, mas devolve minha pulseira”. Moraes treinou comigo na Academia de Mestre Pastinha. Treinou comigo lá, mas eu não era mestre, era aluno também. Treinava eu, Getúlio treinava ele, João Pequeno treinava ele, mas eu puxava mais duro pra cima dele, puxava mais jogo pesado. É assim, assim, assim, assim.
Mestre Pastinha não enxergava mais pra dar aula. Quem dava aula lá era Getúlio, João Pequeno. E eu pegava pesado em cima dele. Eu não ligava pra isto não, queria mais é saber de teatro, não cresci pra ser mestre de capoeira. Eu quero fazer é maculelê, dançar candomblé, dança e teatro, eu gosto de fazer é isso. Viajar fazendo show de dança, sempre gostei de fazer isto… Tá vendo aquele papel ali? Mestre Pastinha deu pra mim, João Pequeno, Gildo, Roberto, o pessoal velho de lá. Mas não é papel que você veste, seu trabalho é que você vai caprichar.
Se amanhã ou depois seu mestre te der um papel como mestre, o papel não vale nada. O que vale é seu trabalho daqui pra frente, com seus alunos, com sua capacidade com o pessoal. Todo mundo tem que ter você como gente boa e dar muito respeito pra você. Gosto muito de dar aula. Gosto mais de dar aula pra gente que não sabe nada. Eu quero passar pra eles. Os avançados já sabem. Depende… fazer mestre é muita responsabilidade, fazer mestre de capoeira…
Eu quero botar meu filho, Jurandir, para continuar meu trabalho. Mas também tem que trabalhar muito. Tem muito que aprender. Tem aluno de quinze anos aqui, mas que não está preparado ainda. Depende da conduta dele. As vezes é bom de capoeira mas não tem força para tomar conta de uma academia, assumir um cargo. As vezes a pessoa é muito boa de capoeira mas não sabe ensinar. Sim, sinhô, uma religião. Mas a pessoa tem que trabalhar, olhar quem pode, devagarinho, treinar, se dedicar… A capoeira é pra todo mundo, nem todo mundo é pra capoeira.
Compreendeu o que eu falei? Você gosta de capoeira, chegou aqui pra fazer capoeira, mas depois de um ano você vai embora. Não fica direto na capoeira, não tá mexendo com a capoeira. Tem gente que treina aqui um mês, dois meses, vai embora e some. “Ah, estou cansado, não vou treinar mais não”. Por isto eu estou dizendo, a capoeira é pra todo mundo, nem todo mundo é pra capoeira. Capoeira é pra todo mundo. Tá no nosso corpo.
“Eu sou a fruta madura
que cai do pé lentamente
Na queda larga a semente
Procura uma terra fresca
pra ser fruta novamente”.
Na Bahia eu tava fazendo capoeira sem ajuda do dia de amanhã. Bahia é terra muito boa, abençoada, graças a deus. Adoro minha Bahia, dou valor muito a minha Bahia, mas pra capoeira não dá. Eu vim para aqui, cresci. Gosto muito de Nova York. Adoro aqui. Tudo. De tudo eu gosto daqui. Volto pro Brasil. Mas se Deus me permitir ficar aqui…Se eu estivesse com esse dinheiro lá, que desse pra viver, ia morar lá. Brasil é terra abençoada. Tá todo mundo saindo de lá para vir pra cá e pra Europa.
Não dá não. Não dá pra viver de capoeira, não dá valor. Passa necessidade. Na Bahia nego não dá valor. Tudo de bom me deram aqui. No Brasil também tive tudo de bom para mim, graças a Deus. Mas tem uma coisa no Brasil que o pessoal não tem, não tem dinheiro, não cresce, não tem dinheiro. Eu sou aventureiro, sou andarilho, gosto de andar pelo mundo. Eu gosto de andar muito, desde dez anos de idade eu ando pelo mundo, eu sou aventureiro. Eu parei aqui, gostei daqui.