Apesar de nunca ter praticado outra luta que não fosse capoeira, sempre gostei de ler sobre artes marciais e correlatos. Gosto de comparar estilos, não no sentido de “qual é melhor”, mas sim de “quão parecidos ou quão diferentes” – afinal de contas, todos os praticantes são humanos, e o corpo humano só consegue se mover dentro do limite de suas articulações.
Por esse motivo é que há chutes parecidos com o “martelo” no karate, no muay thai, no savate e no boxe chinês: um chute frontal, com o quadril rotacionado. O mesmo vale para joelhadas, socos, etcetera. Ainda que uma arte marcial use mais de um e menos de outro, ou mesmo que não use algum tipo de golpe, todo lutador está limitado a fazer o que seu corpo permite.
Um amigo é praticante de diversas artes marciais orientais (karate, judo, ninjutsu), e já conversamos bastante sobre o que diferencia e o que aproxima os nossos estilos. Certa vez, ele comentou comigo que uma coisa que achava muito bacana na capoeira, muito mais do que os golpes, era o tai sabaki. Quando viu que eu não tinha entendido do que se tratava, explicou: o tai sabaki é a movimentação do lutador, o “gerenciamento da posição”, a “gestão do corpo”.
Em artes marciais orientais, a técnica é usada para medir as distâncias, evasão, e mesmo conversão de defesa em ataque. Segundo a Wikipedia, “sua maior finalidade é justamente evitar o enfrentamento direto, evitando, pois, um ataque e, na sequência, deixar a pessoa numa posição vantajosa. (…) não se deve resumir tai sabaki apenas como esquivas”.
Veja que interessante! A finalidade primária do tai sabaki é uma das grandes posturas filosóficas da nossa amada capoeira: ela não foi criada como arma de enfrentamento direto. O negro, escravizado e em situação de desigualdade completa, valia-se da astúcia mais que das pernas. A capoeira era “dança” aos olhos do senhor, para só se manifestar como luta valente nas horas certeiras – e essas horas certeiras tinham que ser bem medidas pelo negro (sob pena de morte, em caso de erro): atacar na distração, atacar quando tinha certeza da vitória, atacar quando a superioridade númerica ou de armamentos do escravizador pudesse ser ludibriada.
Conforme o Mestre Bola Sete bem descreveu em seu livro “Histórias e Estórias da Capoeiragem”, o capoeirista tem “a obrigação de chorar no pé do seu inimigo”, para que esse, relaxado e até mesmo desprezando o oponente, possa ser pego de surpresa.
Mestre Pastinha se referiu ao mesmo fato quando falou sobre o “capoeirista correr, e ai de quem correr atrás dele”, pois “o capoeirista corre para não ter que matar”. A capoeira é uma luta bravia e perigosa, mas que tem seu maior trunfo na dissimulação, em fazer o outro pensar que o capoeirista vale menos do que ele.
Já o Mestre Duquinha, em sua bela entrevista, comenta uma das “regras não ditas” da capoeira:
Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…
Nunca tive dúvida de que a capoeira servisse para quebrar um osso, romper uma costela, tirar uma vida. A história mostra isso, e a física das alavancas está do lado da capoeira: um pé rodando tem a força de uma pedra atirada com força, uma rasteira encaixada quebra um braço ou um crânio. No entanto, o capoeirista moderno parece precisar mostrar que é capaz de exercer a violência da luta, e que ela é eficaz.
Tenho visto cada vez mais a capoeira chegar à mídia através de torneios de luta aberta, MMA e similares. Entendo que isso é um sinal dos tempos, pois hoje em dia quer-se ter a violência contida: é melhor lutar no ringue, com regras definidas, do que brigar na rua ou na roda.
Nada contra quem gosta ou participa desse tipo de evento (eu mesmo gosto de assistir, embora não pratique MMA), e acho que o raciocínio “lute no ringue, não brigue na roda” faz muito sentido – mas o que ele prova em relação ao que a capoeira-luta consegue fazer ?
Dentro de um ringue, não há dissimulação, não há espaço para isso. Os dois lutadores sabem que só vão sair dali quando houver um vencedor. A “surpresa” não pode ocorrer, pois como um capoeirista vai “chorar no pé do seu adversário”, quando já se sabe que a luta só termina com o nocaute ou a rendição, sem espaço para a apelação ? Em uma situação de luta real, o capoeirista poderia “render-se”, para então derrubar seu inimigo quando esse lhe desse as costas. Num ringue, isso é impossível.
O ringue exige a luta objetiva, enquanto a capoeira-luta é subjetiva – o que não deve ser entendido como “sem contato” ou “fraca”, e sim como “malandra”, “sem regras”. Vide Mestre Pastinha dizendo que a “as brigas de capoeira nas docas, ninguém podia conter”. Não cabiam em ringues… Podemos ter certeza que um rabo-de-arraia bem dado derruba qualquer forte, e inclusive temos visto isso acontecer – mas prova realmente que a capoeira é luta perigosa ?
Pode-se argumentar que o faz-que-vai-e-não-vai da capoeira pode ser provado no ringue. E talvez possa mesmo. Mas qual estilo de luta não tem um faz-que-vai-e-não-vai ? Toda luta tem elementos de tai sabaki; todo ser vivo que luta (por comida ou por sua vida), a menos que seja MUITO mais forte que o adversário, precisa em algum momento tentar enganá-lo para obter a vitória.
No meu entendimento, os golpes, gingas e negaças da capoeira no ringue, não provam o valor da capoeira enquanto luta. Provam sim, o valor dos golpes, gingas e negaças da capoeira – e estes tem muito valor, sim senhor.
O valor da capoeira-luta é provado quando o capoeirista consegue sair do aperto sem precisar lutar, só ludibriando. Ou quando mesmo em situação de enfrentamento direto e inevitável, ele leva o adversário na conversa, até o ponto em que possa dar o golpe certeiro – aquele que incapacita o inimigo, ou o “coloca para dormir”.
O meu amigo, sendo ninjutsuca, comentou uma vez que gostava de comparar os capoeiristas aos ninjas. E antes que você, leitor, comece a achar que o ninja era o cara que dava gritos loucos, jogava “estrelas”, fazia saltos mortais acrobáticos e soltava bombas de fumaça, lembre-se que isso aí é coisa de cinema. Os ninjas reais eram artistas marciais treinados para missões de espionagem ou assassinato – e faziam isso muito bem.
Segundo o meu amigo, a diferença entre o samurai, cheio de códigos de honra, e o ninja, era que se você marcasse um duelo com um samurai para o sábado às 6 da madrugada, ele estaria lá pontualmente. Já se você marcasse o duelo com um ninja para o sábado às 6 da madrugada, ele te mataria enquanto você dormisse, na quinta à noite.
Olha a malícia aí…