Entrevista com Eduardo de Andrade Veiga – Entrevista realizada em São Paulo, em 20-10-99, por Luiz Jean Lauand. Eduardo Veiga, batizado por Bimba com o nome de guerra Duquinha, é capoeirista da velha guarda e foi discípulo de Mestre Bimba. É ainda professor aposentado da Univ. Federal da Bahia. Atuou também – aplicando a “filosofia da educação da capoeira” – como professor no Centro de Treinamento de Professores Anísio Teixeira (do Governo da Bahia).
“Ou mato ou morro: ou me escondo no mato, ou fujo para o morro…”
Luiz Jean: Poucos capoeiras refletem sobre sua arte e poucos intelectuais conhecem “por dentro” a capoeira. Nessa sua situação privilegiada – você foi assistente de Mestre Bimba e, por outro lado, vice-reitor de universidade – poderia falar-nos de como começou nessa arte e da capoeira como visão-de-mundo?
Eduardo Veiga: Antes de mais nada, quero deixar registrado que este meu depoimento tem o caráter de uma homenagem a meu professor (de capoeira e, portanto, de vida), o grande Mestre Bimba, cujo centenário de nascimento se celebra no dia 23-11-99. Comecei a jogar capoeira (quero observar, desde já, que capoeira “se joga”: não é “arte marcial” de iniciativa agressiva; depois voltaremos a falar disso) ainda bastante jovem, em meados da década de 40, “vestindo farda” do Colégio dos Maristas de Salvador, e ingressei na capoeira como atividade complementar de minha formação pessoal. Escolher Mestre Bimba era seguir um caminho natural de excelência: Bimba já estava consagrado como grande capoeirista.
Por estranho que pareça, a Academia de Mestre Bimba ficava na “Laranjeiras”, na época, a conhecida rua do meretrício. Só andar nesta rua já significava aprender: para chegar à Academia, era necessária a disposição de enfrentar eventuais problemas: a calçada era estreita, só uma pessoa podia passar e não raramente algum “valentão” – dos da zona – podia provocar… De modo que nós íamos pelo meio da rua. Assim, a própria localização da Academia – já servia para ir ensinando duas lições, muito úteis para a mentalidade do capoeira: evitar o confronto desnecessário (no caso, evitar o passeio estreito) e evitar expor-se inutilmente ao perigo (passar perto das portas, de onde poderia surgir agressão de surpresa).
O ritual de ensino de Mestre Bimba começava por uma rigorosa seleção de quem entrava e de quem podia prosseguir na escola: tanto em termos de capacidade física como em termos de comportamento em relação aos colegas e ao mestre. Daí a escola ter um Regulamento – uma espécie de “código interno” – orientando a conduta dos discípulos. Nesse regulamento (talvez o primeiro código escrito de aprendizagem de comportamento da capoeira: um “código” seria impensável, por exemplo na capoeira de angola, extremamente fluída e espontânea…), encontravam-se normas como por exemplo: a de guardar silêncio durante a prática e observar atentamente o jogo dos companheiros.
Mestre Bimba era também um educador muito sensível às fases de progresso dos alunos, sabendo extrair o potencial e avaliar as possibilidades de cada um. A sentença que cunhei – um tanto jocosamente – “Ou mato ou morro” (no sentido de “Ou me escondo no mato, ou fujo para o morro…”) – indica em sua formulação literal a temerária atitude de coragem irresponsável; já a jocosa interpretação poderia ser mal-entendida como pura e simples covardia. Na verdade, a capoeira não é nem uma coisa nem outra. A capoeira surge como objetivação, como consubstanciação da mentalidade do escravo, submetido a uma situação de desesperada injustiça e sem ter a quem recorrer ante o arbítrio de seus dominadores.
Que defesa cabe em uma tal situação? Como sobreviver? Assim, desenvolveu-se entre os escravos – de modo mais ou menos inconsciente, mas profundamente racional – uma técnica, uma arte, um jogo, um jeito (ou talvez o único jeito) de ser e viver (ou sobreviver…). Isto corresponde a duas situações historicamente vivenciadas: a de enfrentamento direto dos desesperados escravos com o poderoso sistema dos senhores (“mato ou morro” no sentido literal) e o esquivar-se a qualquer confronto (esconder-se no mato), buscando o mato como espaço sobre o qual é possível uma forma de vida independente: os quilombos (é interessante observar que já os holandeses surpreendiam-se com a familiaridade, a facilidade, a desenvoltura com que os escravos transitavam pelos matos e morros…). Essa atitude é a base da capoeira. Subtrair-se ou, ao menos, procurar minimizar os horrores da escravidão, em busca de uma vida livre e digna (na medida do possível, evitando o desigual enfrentamento). Assim se compreendem certas “regras” (naturalmente, não escritas…) da capoeira em sua forma originária (a que deu origem a grandes mestres como Bimba), como por exemplo:
- Prontidão em observar o adversário e o ambiente. Como não se trata de iniciativa de agressão, mas de esquivar-se de um possível dano, é pela atenta observação que se vê a real dimensão do perigo e as rotas de fuga. Por exemplo, o capoeirista deve observar se o potencial agressor (e para o escravo – desde o “boçal”, recém-desembarcado dos navios negreiros, ou o “ladino” ou “crioulo”, já aclimatados – qualquer branco é um potencial agressor…) está de paletó aberto ou fechado (se aberto, há a possibilidade de ele sacar rapidamente uma arma…).
- Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…
- Enquanto não mata, a pancada é suportável. Em todo caso, sempre há uma expectativa e, na primeira oportunidade real, o capoeirista aplica o seu golpe (daí a necessidade da rapidez e do reflexo, inclusive a partir de situação de imobilidade). Em outra formulação jocosa: na primeira oportunidade não é que ele dá o troco, ele “fica com tudo”…
Naturalmente, há diversos níveis de “capoeirismo”, adaptados aos diversos graus de “encurralamento” social… Em qualquer caso, essa malícia para a luta, essa arte enquanto técnica, encontra uma representação simbólica no jogo entre amigos, que brincam capoeira (agora transformada em arte mesmo), entre ritmos, danças e cantos:
“Água de beber.
É Água de beber camarada…”
A estética substitui a violência e, também nesse sentido, pode-se falar de uma educação pela capoeira, independe de qualquer propósito de defesa ou ataque. Sobrevive a capoeira mesmo fora de um contexto de escravidão: ela, por assim dizer, ganha vida própria e emancipa-se das desumanas situações que lhe deram origem.
Por outro lado, muitos aspectos das relações de trabalho nacional (e, como se sabe, também do sincretismo religioso ou do futebol etc. etc.) são afins à mentalidade que estamos descrevendo. Não se trata só da escravidão formal; num caso extremo, “pratica capoeira”, hoje, um trabalhador mal pago que faz “corpo mole” e conscientemente busca esforçar-se o mínimo possível (guardando, naturalmente, na presença do chefe, as formas externas de prontidão, solicitude, integração na firma etc. etc.). Um boy é encarregado de entregar uma correspondência urgente num endereço que requer uma hora de percurso. Ele acata solicitamente a ordem, sai com presteza e, mal virada a primeira esquina, já começa a treinar malabarismo, girando – com arte e maestria – a pasta na ponta do indicador direito; penteia-se ante as vitrines das lojas; no primeiro fliperama, desenvolve outras habilidades etc. Quando, após três ou quatro horas, retorna, queixa-se de dor de cabeça (o trânsito infernal, manifestações de greve…) e pede à secretária o reembolso do (pretenso) táxi que teve que tomar (“como o chefe falou que era urgente…”).
Neste, e em tantos outros aspectos, a capoeira – totalmente incorporada à mentalidade nacional – é uma importante clave de interpretação do Brasil. Não se trata de “malandragem” ou preguiça, mas de um fenômeno complexo que inclui uma escravidão que persiste disfarçadamente: por que o escravo vai empenhar-se em algo que – de nenhum modo – lhe pertence ou beneficia? E não esqueçamos que “escravo” é um conceito relativo: só cessa de haver escravo, quando cessa de haver feitor… É nessa linha que se encontra o agudo pensamento de autores como Anande das Areias e Nestor Capoeira.
É evidente que a capoeira traduz realidades muito distintas das veiculadas por artes marciais, digamos, como o jiu-jit-su, caratê ou de ninjas & cia. O Brasil é diferente; o brasileiro procura não chocar de frente: ele pode te destruir, mas sempre com ares de vítima ou de quem não quer nada…
Evidentemente, toda essa mentalidade de que estamos falando pode degenerar em uma grave situação de caos – como aconteceu no final do século passado com as “maltas” capoeirísticas do Rio de Janeiro ou como acontece hoje com alguns políticos brasileiros… Daí o valor de Mestre Bimba que, como líder carismático, procurou racionalizar um código de honra e criar uma elite de capoeira: praticar a arte do escravo com a alma do príncipe! Quem não se dedicasse seriamente ao estudo ou ao trabalho, estava excluído da academia. Aliás, diga-se de passagem, muitos escravos negros provinham de famílias nobres africanas e, alguns, com nível cultural muito superior ao de seus senhores.
LJ: Que outros aspectos destacaria das práticas da capoeira? E da capoeira como meio de educação?
EV: Um aspecto importante na minha formação – eu, na época era muito moço – foi o de preparação para as dificuldades da vida. Para quem teve a feliz oportunidade de ser “puxado” (que significa, em linguagem de capoeira, “ensinado” – e vocês, professores de filosofia da educação, podem explorar as ricas sugestões desse termo -; um ensino em que o professor vai se adequando à capacidade do discípulo, como quem “puxa” para fazer aflorar o jogo próprio de cada um…) por mestre Decânio, certamente se lembra de como ele, logo que iniciava o treino, procurava alertar com um ligeiro e repentino tapa sem machucar, porém suficiente para deixar em desconforto ou furioso quem o recebesse. Ora, na aula seguinte e nas mais outras ou tantas quantas necessárias, o Decânio repetia esse gesto… Era um estímulo meio amargo, entretanto, em duas ou três vezes – ou um pouco mais – o remédio atingia o efeito desejado. E Decânio já procurava outro para dar o seu remédio pouco convencional e amargo. Nós, aprendizes, nos conscientizávamos de que quem não observa bem, literalmente “leva tapa na cara”. Ele nos ensinava a ficar atento às possibilidades de agressão do adversário.
Outra lembrança “pedagógica”. Menos drásticos, porém mais excitantes eram os treinos para a prontidão que mestre Bimba usava. Ele portava um apito. Na situação de treino, dois alunos deveriam enfrentar-se: um dos oponentes se armava antes da luta, porém só podia usar a arma ao ouvir o apito. O sinal era também válido para o outro: ao som do apito, poderia reagir. Como é óbvio, somente Mestre Bimba sabia o momento em que iria ocorrer o sinal. Fazia-o em função da aprendizagem. Isso porque, durante a luta há momentos oportunos (e outros que não o são) para se puxar uma arma. O mesmo se pode dizer em relação a tomá-la, podendo chegar ao ponto, de mesmo sendo capoeirista, o outro tomar-lhe a arma, antecipando-se ao gesto de sacar. Obviamente, só após a ordem de ação autorizada pelo apito. Nessa situação, a capoeira funciona também como metáfora da vida: há o momento certo de agir para acometer ou defender.
Uma terceira situação corresponde ao treinamento de dois iniciantes, que com o tempo vão aumentando gradualmente a precisão, velocidade e graça nas seqüências de golpes. Os alunos mais adiantados percebiam que os formados quando os “puxavam” com mais velocidade tinham o cuidado de não atingi-los, parando o golpe a poucos centímetros do ponto de impacto. Este gesto possibilitava ao aluno dar prosseguimento à seqüência de golpes e contragolpes. Por isso as solas ou pontas das “basqueteiras (kedis) pretas” de Aquiles Gadelha eram muito conhecidas dos alunos. Elas deram muitos sustos, pois a cada momento estavam em frente do peito ou do rosto perplexo dos aprendizes. Era o resultado das “bençãos” (pontapé frontal) e “martelos” (de lado) ou “armadas soltas estancadas” (golpe giratório). Não é este o papel de todo verdadeiro professor e educador que – auxilia o aluno, mostrando-lhe as dificuldades e o modo de superá-las, sem massacrá-lo, porém fazendo-o suar bastante? É nesse clima de solidariedade e confiança, ao som do berimbau, que se canta de verdade:
“Água de beber.
É Água de beber camarada…”
Nem sempre é apropriado estancar um golpe. Numa “armada solta”, caso se encolha a perna no meio do caminho para não machucar o adversário, pode não ser uma boa alternativa. A percepção deve estar concentrada também no esboço de defesa que o aluno faz… E para isso o tempo é muito curto para se decidir o que fazer. No caso de se aplicar rasteira nas mãos durante os “aus” (rotação descendente substituindo o apoio dos pés pelas mãos) sucessivos, o procedimento correto de quem aplica a rasteira é de fazê-la com muita velocidade, porque caso contrário não encontrará o que puxar. Porém se encontra a mão apoiada, é para fazer o arrasto com muito vigor. Isto facilita o “rolê” (giro) de defesa do oponente. Este treino só é feito no curso de especialização. Em função do exposto “capoeirar” é saber aplicar golpes:
- “em câmara lenta”, suave e graciosamente;
- desferir golpes com alta velocidade a partir de uma situação de repouso;
- modificar a trajetória de um golpe ou estancá-lo em vista da percepção de algo “novo” após ter desfechado o golpe de defesa ou ataque;
- durante o jogo da capoeira, o que se observa é uma “seqüência” de golpes desferidos em velocidades desde o lento quase imperceptível até aqueles em que a vista, talvez não acompanhe. O meio ambiente dos golpes é a ginga: e o ritmo e a velocidade seguem o compasso da orquestra, muitas vezes composta de um só berimbau dolente.
- a ginga é tão importante que ela aparece sozinha no item 5 do Regulamento de Bimba e o “gingado” é conteúdo programático da primeira lição. O gingado é como uma rampa de lançamento para se disparar uma violenta cabeçada ou se defender dando um “au” com rolê saindo-se do raio de ação do oponente, que procura, mas não sabe mais onde, encontrar o adversário. Gingando, o capoeira determina as distâncias mais convenientes, inclusive para “amarrar o jogo” do adversário. Por mais que se descreva o gingado, sempre existe o inesperado no adversário: ele esconde manhas ou pode até não significar nada. Tanto simula e dissimula como esconde ou gera golpes ou defesas. É no gingado que os floreios e as negaças se harmonizam. Quando bem feitos, o adversário procura e nada encontra ou encontra sem esperar o que não procura… É malícia pura.
- emprega-se a expressão “jogar capoeira” à semelhança de “manejar com destreza, jogar com armas”. Então o capoeira é aquele que é destro no manejo de armas, a semelhança do jogo de florete ou espada. Somente que as suas armas por excelência são os dedos, as mãos abertas ou fechadas de frente ou lateral ou em “cutila”, os pés, as articulações ligeiramente dobradas e a cabeça também são usadas. Sem dúvida, aprende-se também a usar armas simples e convencionais ou improvisadas;
- joga-se também no sentido de brincar. É aprender brincando – é demonstrar que se sabe de forma alegre. Por isso o capoeirista não machuca quando joga em situação de aprendizagem ou demonstração. Conserva um sorriso as vezes até matreiro de quem com facilidade saiu-se de uma situação difícil ardilada. Pode também representar um pouco de zombaria face ao outro que nem se apercebeu claramente do que aconteceu, ou melhor, do que poderia ter acontecido….
Todos esses ensinamentos estão centradas no modelo de ser e de aprender de Mestre Bimba (sem demérito de outros grandes mestres), que inquestionavelmente é um referencial firme para tema.
Eu, em minha vida pessoal e também como professor (e professor de professores) sempre me remeto à capoeira como metáfora da vida: viver é capoeirar. E há também uma mentalidade de capoeira, mesmo quando você não é o oprimido. Uma vez, há muitos anos, um ladrão invadiu minha casa: eu e minha mulher acordamos com o sujeito ameaçando-nos com uma barra de ferro. Nem sei como, de um pulo já estava ao lado dele que, assustado, fugiu. Eu fui atrás, com muito furor, mas só até a porta: daí em diante, “persegui-o” um pouco, mas não para alcançá-lo (isso é capoeira pura), era só para estimulá-lo a fugir: rápido e para longe. Como consegui dar aquele pulo? Não sei! Inconscientemente, eu tinha me programado (capoeira é observação e antecipação) para, numa situação dessas, “virar um bicho” (um ladrão, por definição, não teme tanto a um homem, mas não há homem que não tema um bicho…)
Resumindo, eu diria que a capoeira, sim representa uma visão de mundo, marcada por um conjunto de atitudes de defesa em situação de forte desigualdade: seja o oponente um feitor; um governo (há empresas que praticam contra o governo a capoeira fiscal…); um professor, pai ou sargento opressor; um seqüestrador (li recentemente no Estadão as indicações da polícia para o caso de você ser seqüestrado e era um “manual de capoeira”: indicavam por exemplo, não encarar, não discutir, dormir só quando o seqüestrador estiver acordado e vice-versa; etc.); ou mesmo o mundo como um todo, sempre ameaçador à fragilidade humana. Por isso, encontram-se traços de capoeira em qualquer cultura em que haja situações de opressão. A capoeira não se baseia na agressão positiva nem na mera resignação passiva; é a defesa racional levada ao limite do possível, na inaparência de jogo, ginga e lúdico.
Pingback: Tai sabaki e o jeito que o corpo dá – Campo de Mandinga