Danças e Ritmos Negros no Brasil

publicado originalmente na Revista Cultura, 1976

O coreógrafo Clyde Morgan e o Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federa/ da Bahia encontraram, através de seus estudos, laboratórios, oficinas e trabalhos coletivos uma linguagem corpora/ para colocar em cena mais um mito afro-brasileiro, desenvolvendo a proposta de que o mito, sendo o código das ânsias e obsessões do homem, pode ser transmitido e revitalizado na linguagem teatral da dança contemporânea.

Sendo que as lendas, danças e rituais do orixá Oxosse já existem e têm as suas festas de comemoração, sacerdotes, terreiros e comunidades, Clyde Morgan enfrenta a primeira operação de transmudar e codificar em símbolos teatrais as essências e imagens para entrar numa dimensão mais ampla, compreensível e pessoal para uma sociedade atual. Assumindo a premissa de que todas as comunidades afro-brasileiras têm os seus mitos na tradição oral em Oxosse n’Aruanda, tentam alcançar o mito através da dança e música afro-brasileiras e contemporâneas, numa forma expressiva e dramática. Em Oxosse n’Aruanda se reconhecem as constantes básicas de todos os mitos.

A força de um mito está em sua serenidade, seus renascimentos, suas contradições e transfigurações, Oxosse, Rei do Queto, nasceu homem Odé —, morreu e foi transformado em orixá.

Oxosse n’Aruanda

Qual o obietivo de sua colaboração com os artistas brasileiros?

O objetivo de qualquer trabalho artístico é de incorporar os sentimentos mais profundos inexplicáveis, os mistérios e os sonhos da sociedado e apresentá-los numa forma plástica e objetiva E esta é a finalidade de nossa colaboração, corno fazenn na velha terra, mãe África, para a nossa comunidade – um programa de dança e música a nossa herança e fonte de inspiração.

Suíte Ida de Arnete

O que caracteriza a união de percussionista e dançarino?

É a elaboração sobre certos temas polirritmicos, tradicionais, com os quais criamos e transmitimos um estado de consciência corporal e tonal entre nós, que desenvolve e desdobra um conjunto de modelos rítmicos e tensões visuais. É essencialmente um diálogo que nós estabelecemos, cujo assunto é determinado pelos estímulos percussivos dos músicos e os gestos e motivos de movimento do dançarino.

Qual é a importância do polirritmo na música africana, e como é que você aplica esses polirritmos nos seus trabalhos?

Nossa premissa é a de que certos ritmos provocam uma qualidade específica de movimento e nível de energia, a maior parte dos quais no esquema africano são temas rítmicos autogeradores ou autopropaladores, devido à sua natureza polirrítmica. Em outras palavras, eles atacam o sistema nervoso, criando respostas em diversas áreas. Isso provoca o surgimento, em diversos momentos, da distribuição de padrões rítmicos nas áreas distintas: os pés, a região pélvica e o pescoço, que envolve os Ombros e a cabeça, Os braços e as mãos geralmente acompanham as pernas e os pés, desde que funcionem como contrabalanço e meios decorativos,

Exceto no caso da capoeira, em que os braços, as mãos e os ombros são utilizados como órgãos secundários de suporte.

African Sanctus

E sobre o poder comunicativo de som e movimento?

Ultimamente nossa crença é no poder comunicativo de som e movimento às transformações do corpo humano numa obra de arte, fazendo o corpo uma metáfora de ética e vivacidade. O jogo do polirritmo corpo faz o corpo brilhar com respostas múltiplas aos ritmos múltiplos, tocando as várias partes do corpo como modelos, vestindo desenho sobre ou profundamente dentro da carne todos os elementos rítmicos com potência e rapidez. O corpo, assim, torna-se orquestrado de acordo com a capacidade da percussão de estimular, simultaneamente, essas áreas, que, quando provocadas em movimento, dão surgimento que nós vemos e consideramos autopropaladoras, coordenadas e dinâmicas.

Qual é a finalidade dessa autopropalação?

Nenhuma outra finalidade do que a de satisfazer ou explorar o ambiente criado pela música e força vital do dançarino. Por outro lado, o impulso interior e a coordenação do dançarino também provocam o surgimento da música quando ele orquestra através do seu corpo a expressão dessa força vital.

Encenação da lenda de Oxosse pelo Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federal da Bahia, dirigido por Clyde Morgan.

Como é que você vê o dançarino nas suas coreografias e no seu estilo de dança: como executante teórico ou como artista criativo?

Trabalho desse tipo depende crucialmente das capacidades dos elementos, dançarino e músico, de criar sobre certos temas preestabelecidos, como os lutadores de capoeira e maculelê, que, dentro dum modelo rítmico e dum vocabulário de movimento, têm a liberdade de criar um esquema de seqüências em relação às capacidades técnicas e criativas dos participantes.

Em relação aos estímulos e criatividade (que foi citada), como é que você vê a improvisação dentro de seu estilo de dança?

Nós colocamos muito valor na improvisação como uma invenção técnica, válida na estruturação das coreografias, a magia da apresentação: o dançarino passa duma estrutura para uma não-estrutura mantendo a essência da dança; o espectador fica ciente apenas da sensação de que a dança chegou à vida pela primeira vez e de que ele esteve presente. Desta forma é sempre mantida uma expectativa do que poderá surgir em cada apresentação resultante da criação coletiva do grupo. Concluímos dizendo que a tranqüilidade e a atividade são qualidades convergentes em nosso trabalho; que o dançarino veste os músculos, utilizados como comunicação de força transcendente, e o vigor com que o dançarino veste seu peito e seus braços define seu poder numa incorporação profunda dos valores culturais, instintos e treino, que torna suas frases brilhantes e linhas visuais, sem destruir o ritmo natural.

Dança Guerreira

Oxosse (resumo de lenda) — Uma das lendas acerca de Oxosse conta que ele não nasceu orixá, mas assim foi transformado graças à misericórdia da respeitada divindade Ifá, por quem havia sido antes castigado devido a um gesto de desobediência.

Nesse tempo, Oxosse se chamava Odé e era marido de Oxum, de quem não atendeu aos apelos e saiu para caçar num dia proibido por Ifá. No mato encontrou uma cobra colorida, de nome Oxumaré, que cantava para ele: “Eu não sou bicho de pena para Odé matar”. Odé não atendeu: matou a cobra, cortou-a em pedaços e carregou-a consigo para sua casa, embora o canto da serpente continuasse a atormentar os seus ouvidos.

Em casa, enquanto comia destemidamente o animal, Oxum, sua mulher, fugia. No dia seguinte, quando retornou, encontrou o marido morto e o rastro de uma cobra que voltava para o mato. Desesperada, Oxum clamou pela misericórdia de I fá, que reconsiderou seu gesto fazendo desaparecer o corpo de Odé.

Sete anos mais tarde, ele reaparecia como orixá, passando a chamar-se Oxosse.

Porque Oxalá usa ecodidé

Oxosse n’Aruanda — Roteiro I

1) Prólogo: palco escuro; dança solística; totem do boi iluminado no fundo do palco. Música: flauta e sons da floresta. O dançarino desenvolve com seus gestos uma seqüência que aborda toda a movimentação da peça. Ele conta numa forma abreviada, empregando movimentos que simbolizam pássaros, cobras e feras o mito todo. O arquétipo, ele personifica homem, bicho, floresta, divindade, o passado e o presente.

2) A floresta: o palco iluminado com colunas de luz. Em cada coluna há uma figura dançando “em câmara lenta” encarnações das forças invisíveis da floresta e dos animais. Ambiente: lírico, misterioso — flauta e pássaros.

3) Boi: representado por um dançarino vestido de peles, com capacete de chifre. Figura protetora, solitária, reticente, forte, roceira. Acompanhamento musical: o ajerê de Oxosse.

4) Odé: entrada da figura principal. Guerreiro, caçador valente, dono do mato, ele dança com arco e flecha e às vezes com lança e escudo. Entram os companheiros de Odé, caçadores, e juntos realizam uma dança de guerreiros. Acompanhamento: flauta e percussão.

5) Odé caçando aves: matança de algumas aves numa dança simbolizando a caça — subseqüentemente, uma dança ritualista de celebração realizada pelos caçadores. Saída de cena. O palco escurece.

6) A dança da cobra: executada por urna dançarina personificando Oxumaré1. Os caçadores entram respeitando com distância a divindade Oxumaré. Também esse é o dia sagrado dela. A cobra sai de dentro duma forma plástica e desenvolve uma dança expressiva, hipnótica e sensual. Acompanhamento musical: Ukrínmakrinkín, de Marlos Nobre.

7) Dança de conselho e o aviso de Oxum2 para Odé: a) saída de Odé para caçar no dia proibido; b) encontro no mato com Oxumaré; c) o diálogo dos dois (duo de Odé e Oxumaré). Aviso de Oxumaré: “Eu não sou bicho de pena para Odé matar”

8) Matança de Oxumaré: Odé mata a cobra, corta-a em pedaços e carrega-a consigo para sua casa. O canto da serpente continua a atormentar os seus ouvidos. Odé come a serpente e Oxum foge da casa.

9) Castigo de Ifá3: dança da morte de Odé e a saída de seu ventre da cobra. O regresso de Oxum para casa. A dança do axexê (cerimônia para os mortos). Oxum e a comunidade representada pelas mulheres.

10) Transformação graças à misericórdia da divindade Ifá, por quem havia sido antes castigado devido ao gesto de desobediência. A dança de Ossanhe4, dono das folias, e a transfiguração de Odé.

11) Ressurreição de Odé como orixá, sete anos mais tarde, passando a chamar-se Oxosse5. Dança solística, com flautista como verdadeiro rei das florestas, do mato e do Queto6. Toda a dança mostra a sua posição elevada e transformada através dos gestos mais refinados e alongados. Um com portamento mais divino e menos humano: mudança de ritmos e acentuação; movimentos deslizantes, flutuantes, mais na linguagem contemporânea do que antes, para provocar no espectador o sentido etéreo de levar à transfiguração.

12) Epílogo: “festa no terreiro”: a presença do orixá da casa — Oxosse — dançando e carregando ofá (arco e flecha) nas cores azul claro e verde, chapéu de couro, penas e uma capanga, e a festa geral que celebra a sua manifestação como divindade entre os homens.

NOTAS

1. Oxumaré. É o arco-íris, o orixá dos jejes, a cobra, cujo símbolo é uma serprente de ferro. No sincretismo afro-católico, é S. Bartolomeu. Segundo a lenda, foi o encarregado de transportar água do mar para o palácio de fogo de xangô. Há quem o diga macho e fêmea ao mesmo tempo.

2. Oxum. É a deusa do dengue, da elegância, do fausto, da riqueza, da formosura, do charme — charmosa como ela só. Deusa do rio, Oxum foi a segunda mulher de Xangô, faceira, vaidosa, sabida. Enganou Obá, sua rival no leito do marido, levando-a a cortar a própria orelha. Antes de sei mulher de Xangô, foi de Oxosse.

3. Ifá. Ou Orumilá, é o deus da adivinhação. Suas vestes são brancas e ele usa o opelê (colar) para responder às perguntas no jogo das adivinhas. Leva sempre consigo um saco contendo cocos de dendê.

4. Ossanhe. É o deus das ervas. Comanda as folhas, as medicinais, as litúrgicas — é o mestre do mato. Sem ele nenhuma cerimônia é possível.

5. Oxosse. Rei do Queto, é São Jorge matando o dragão. Deus da caça, das úmidas florestas, com o ofá (arco e flexa), abate os javalis, as feras é o invencível caçador. Rei Oxosse, Senhor do Queto, rodeado de animais, usa capanga e chapéu de couro.

6 Queto. Cidade do Benim (ex-Daomé), de onde veio grande contingente de negros para a Bahia. (Segundo Caribé).

Fotos de Laís Góes, Rivaldo G. Leite, Darlan Rosa e Sílvio Robato

OS VELHOS CAPOEIRAS ENSINAM PEGANDO NA MÃO


por PEDRO RODOLPHO JUNGERS ABIB

Doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e capoeirista-discípulo do Mestre João Pequeno de Pastinha.

RESUMO: Esse artigo trata de analisar as formas tradicionais de
transmissão dos saberes presentes no âmbito da cultura popular. A partir dessa abordagem, trazemos as experiências educacionais existentes no universo da capoeira angola – uma importante manifestação da cultura afro-brasileira – para uma reflexão sobre o papel dos mestres nesse processo. A memória, a ancestralidade, a ritualidade e a temporalidade são categorias fundamentais para compreendermos as relações de educação presentes nesse universo.

Introdução

É objetivo desse texto analisar os processos educativos não-formais presentes na capoeira angola, no sentido de levantarmos alguns aspectos importantes desses processos. Estamos buscando, assim, inspiração nas formas tradicionais de ensinar-aprender utilizadas nesse universo, sobretudo a partir das influências marcantes da cultura afro-brasileira, que caracterizam decisivamente as manifestações da cultura popular, para refletirmos sobre os modelos de aprendizagem, baseados na transmissão oral da memória coletiva de um grupo social, função exercida pelos mais velhos que são os responsáveis por disponibilizar os saberes e as tradições daquele grupo social aos mais jovens. Através do reconhecimento sobre sua sabedoria e sua função social de guardiões das tradições, a comunidade atribui a eles o título de mestres.

Pretendemos, com isso, contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre as formas de educação presentes no universo da cultura popular, nas quais o mestre exerce papel fundamental, e de como essas experiências baseadas na tradição, na ancestralidade, no ritual, na memória coletiva, na solidariedade e num profundo respeito à sabedoria do mais velho, como principal responsável pela transmissão desses saberes às novas gerações, podem auxiliar num processo de construção de formas alternativas de se pensar a educação, sobretudo aquela voltada às camadas menos favorecidas da nossa sociedade. Estas são, em última instância, elas próprias as responsáveis por essas experiências ricas em conhecimentos e saberes que, normalmente, não são reconhecidos nem valorizados nos processos envolvendo a educação formal no Brasil.

Esse artigo é parte da pesquisa que originou a tese de doutorado em Ciências Sociais Aplicadas à Educação, defendida na Universidade Estadual de Campinas (unicamp), no ano de 2004, e valeu-se, além de pesquisa bibliográfica, também da metodologia da história oral, por meio de depoimentos colhidos junto a alguns dos mais importantes mestres de capoeira angola da Bahia.

Da roda de capoeira ao aprendizado da vida

Então eu ficava só olhando. Aí ele disse assim: “Ô meu filho venha cá! Você quer aprender?” Eu disse: Quero. Ele mandou abaixar. Quando eu abaixei, aí eu vi o pé… Eu pulei. Aí ele disse: “Ô meu filho, a partir de hoje eu vou lhe ensinar!”

Esse depoimento de Washington Bruno da Silva Filho, o Mestre Canjiquinha, retrata a forma como tradicionalmente se ensinava e se aprendia capoeira. O mais velho sempre estimulando, a partir de uma situação real, o interesse do mais novo. O mais velho, nesse caso, era o famoso capoeira conhecido por Aberrê, o primeiro mestre de Canjiquinha. Esse fato se deu em 1935, em Matatu Pequeno, no bairro de Brotas, cidade de São Salvador, no banheiro de Otaviano, onde havia uma quitanda em frente. Ali aconteciam as vadiagens de capoeira (Abreu, 2002).

Assim também foi despertado o interesse do mestre João Pequeno de Pastinha, segundo ele próprio relata em depoimento que nos concedeu, logo quando chegou a Salvador, vindo de Mata de São João, no interior da Bahia, onde já tinha tido algumas experiências com capoeira mas de forma ainda incipiente:

Naquele tempo, não tinha capoeira em espaço… a capoeira era na rua… aí eu não tinha arte, não tinha nada, eu fui trabalhar de servente de pedreiro… lá na rua Carlos Gomes. Eu trabalhava mais um camarada, na masseira, e ele chamava… o camarada chamava Cândido… e ele gostava de tomar umas pingas (risos)… quando o serviço tava lento, ele ia na rua, tomava umas pinga e vinha, batia palma, cantava, sapateava e dava pulo de capoeira… aí numa daquela que ele deu pulo de capoeira… eu entrei pra dar uma cabeçada e recebi uma joelhada por aqui (mostra o queixo). Aí ele me abraçou e disse: “olha, não se incomode não… vou lhe botar numa roda de capoeira (risos)”.

Naquele tempo, a capoeira se aprendia “de oitiva”, ou seja, sem método ou pedagogia. A oitiva constitui-se como um claro exemplo de como se dá a transmissão através da oralidade na capoeira, baseada na
experiência e na observação. A oitiva era um processo diversificado e culturalmente muito rico, segundo Abreu (1999). O processo, na maior parte das vezes, dava-se na própria roda, sem a interrupção do seu curso.

O mestre geralmente pegava nas mãos do aluno para “dar uma volta” com ele, dar os primeiros passos. Diferentemente de hoje em dia, quando é mais freqüente se iniciar o aprendizado através de séries repetitivas de golpes e movimentos. Antigamente o lance inicial poderia surgir de uma situação inesperada, própria do jogo: um balão boca-de-calça, por exemplo. A partir dele se desdobravam outras situações inerentes ao jogo, que o aprendiz vivenciava orientado pelos ‘toques’ e conselhos do mestre. (Abreu, 1999, p. 20)

A roda pode ser considerada, então, conforme Abreu, como um rito de passagem que se incorporava ao processo de aprendizagem, como seu momento mais rico, aberto às influências e inventividades, quando o aluno, através dos toques e dicas do mestre que acompanhava atento o seu desenvolvimento, dos conselhos de outros camaradas da roda ou por si próprio, ia descobrindo as articulações, truques e manhas do jogo. A partir de então, ele começava a moldar o seu jeito de jogar. E começava a aprender algo mais sobre a vida.

Às vezes, esse aprendizado se dava também individualmente, nos quintais e terreiros das casas, onde a proximidade entre o mestre e o aprendiz era um fator essencial. Muitas vezes, como lembra o mestre Moraes – coordenador do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, em Salvador – em seu depoimento, o aprendiz de capoeira era também aprendiz de ofício do seu mestre de capoeira, que podia ser um marceneiro, um sapateiro ou um artesão, profissões comuns entre os mestres de capoeira de antigamente. Moravam no mesmo bairro e tinham, geralmente, a mesma situação econômica, pois eram oriundos da mesma classe social. A convivência entre mestre e aprendiz era então um fator que auxiliava muito o processo de aprendizagem da capoeira.

Essa forma de ensinar e aprender guarda muito daquilo que poderíamos chamar de “pedagogia do africano”, segundo expressão muito utilizada no âmbito da capoeira angola, que até hoje notamos nos mestres mais tradicionais, como João Pequeno, João Grande ou Curió, por exemplo, todos eles herdeiros do legendário mestre Pastinha, a maior referência da capoeira angola da Bahia.

Guardamos vivas, ainda na memória, lembranças das primeiras aulas no Forte Santo Antonio, há cerca de uma década, em que aprendíamos os primeiros movimentos da capoeira angola pelas mãos de João Pequeno. A sensação de acolhimento ao sentirmos o toque das mãos daquele ancião, então beirando os oitenta anos, que, com todo carinho e delicadeza, conduzia nossos movimentos de braços e pernas pelo caminho sinuoso da capoeira angola, era uma sensação que talvez jamais esqueçamos. Nesses dez anos de convivência com a capoeira angola do mestre João Pequeno, em sua academia localizada no Forte Santo Antonio em Salvador, somos nós próprios testemunhas desse processo de aprendizagem em que o mestre, o ancião, é figura principal e digna de respeito e admiração por parte dos aprendizes.

Segundo o mestre Moraes, em seu depoimento, o toque, na “pedagogia do africano”, é fundamental.

“Ele toca o aluno para passar o sentimento… ele não toca unicamente para consertar o movimento… ele passa muito mais a vontade de ver o aluno aprendendo, do que ensinar o movimento correto”.

Essa forma tradicional de ensinar passa pela proximidade que deve existir entre o mestre e o aprendiz. Uma proximidade corporal em que o afeto, a atenção e a disponibilidade do mestre mostram-se integralmente.

O mestre Cobra Mansa, outro estudioso das tradições africanasafirma, em seu depoimento, que o mestre tradicional verbaliza muito menos do que toca o seu aluno, e demonstra com seus próprios movimentos o que ele pretende ensinar. Segundo Cobra Mansa:

O mais importante nessa tradição é o hálito, é o que você tá passando… a sua alma que você tá transmitindo [faz o gesto como se estivesse passando a alma através da boca]. Então você não está transmitindo simplesmente a sua palavra, mas o hálito… a alma… então, quando você recebe aquilovocê tá recebendo uma tradição de muitos e muitos antepassados, porque alguém já me passou isso… agora eu tô passando pra você, você vai internalizar, e depois vai poder passar a mesma coisa para o outro, então é muito mais do que você pegar o livro e ler… tem uma alma ali, tem um gesto, um olhar, tem uma forma (…) tudo isso fica marcado, porque é legal você ler um livro, mas a emoção de alguém estar te contando uma coisa, te passando alguma coisa, tem todo um gesto, um brilho nos olhos, que você sente uma alma sendo passada para você.

Podemos afirmar que é essa a essência da oralidade, como uma forma de transmissão dos saberes e da cultura de um povo. O universo mítico que envolve a capoeira através da ancestralidade possibilita, segundo Luís Vítor Castro Jr. (2003, p. 9)

(…) um caminho de comunicação vibrante que envolve seus personagens num campo fértil de produção de saberes, e que explica os fenômenos existentes. Os saberes revelam uma força de criação e recriação ordinária do passado em constante comunhão com o presente. Através de uma dimensão estética de educação baseada na descoberta, acontece um sistema de comunicação motora, simbólica e oral.

Mestres e poetas: o sentido de se transmitir algo importante

Na cultura popular, em geral, há sempre uma figura fundamental, responsável pelos processos envolvendo a memória coletiva: a figura do mestre. Os mestres exercem um papel central na preservação e transmissão dos saberes que organizam a vida social no âmbito da cultura popular, caracterizando, assim, a oralidade como forma privilegiada dessa transmissão. Recorremos à tradição grega para melhor argumentarmos sobre a função do mestre na cultura popular.

Na tradição grega, buscamos em Platão a idéia de que memória e conhecimento estão intimamente ligados, pois para esse filósofo conhecer é reconhecer, é rememorar. O conhecimento, no entanto, exige a purificação da paciência. Alfredo Bosi (1987) descreve uma passagem de uma alegoria construída por Platão, na qual as lembranças remontam a épocas distantes, a um momento em que a alma pudera contemplar as verdades ideais e eternas:

Os deuses, cruéis em sua sabedoria, exigiam um sacrifício: as almas deveriam esperar um tanto para que esse desejo se interiorizasse e se espiritualizasse dentro delas, pois entre um e outro ocorreria o tempo necessário à memória. A água oferecida pelos deuses era tirada do rio Lethe, rio do esquecimento. Se as almas, arrastadas pela sede do desejo sem freio, bebessem a água do Lethe, sem a pausa do sacrifício, ao invés de aprender, cairiam na letargia, que é um estado de sonolência, de embrutecimento, de inconsciência. Voltariam aos seus instintos brutos e, saciadas e entorpecidas muito rapidamente, seriam incapazes de dar o salto que leva ao conhecimento através da memória. Mas aquelas almas que esperassem e não tragassem sôfregas a água do Lethe alcançariam o não-esquecimento, o des-ocultamento, a a-letheia, a alethéia. Quem sofreia o desejo que, saciado, leva ao entorpecimento, consegue chegar à verdade, que é lembrança pura, memória libertadora. (Bosi, 1987, p. 53)

O poder de presentificação e invocação da musa da memória (Mnemosyne) cabem, segundo Marcel Detienne (1989), à palavra cantada do poeta. Para o grego, a poesia tem o sentido de produção (poiesis): é a ação de trazer à presença algo que se mostrava oculto. A palavra do poeta é assim a palavra que, ao ser pronunciada, desvela aquilo que se mantinha encoberto, oculto (lethé), trazendo à tona a verdade (alethéia)instaurando e mantendo uma compreensão de mundo, em que todo um universo de significados se articula. Por isso, o momento de pronunciamento da palavra mítica se converte num acontecimento mágico-religioso que deve ser presidido por uma divindade. A divindade da memória (Mnemosyne) é que deverá ganhar voz no canto do poeta. O poeta é intermediário, meio por onde se pronunciará – e neste pronunciamento será evocado uma re-memoração conjunta, numa comemoração – o feito dos deuses e dos homens. O canto do poeta deverá rememorar o passado no presente, de modo que o grego possa decidir-se sobre sua ação futura. Memória e poesia se encontram no jogo de criação do mundo.

Jogo do tempo: do que é, do que foi e do que será, que ao se mostrar no canto do poeta, instaura uma época histórica. A figura do poeta exercia na polis a função política de manter viva a memória, de ser o guardião da ancestralidade de um povo – já que a Grécia arcaica se caracterizava por ser uma cultura ágrafa – e de ser aquele que traz a verdade (alethéia), pois era o intermediário entre os homens e os deuses. Ao evocar a figura do poeta, no pensamento grego, estamos aqui buscando traçar um paralelo na cultura popular, trazendo a figura do mestre como uma figura muito importante que exerce a função de ser portador e guardião da memória e da tradição do seu povo, função análoga à exercida pelo poeta na Grécia antiga.

Essa figura é fundamental no seio de uma cultura na qual a transmissão do saber passa pela via da oralidade e, por isso, depende desses guardiões da memória coletiva para que esta seja preservada e oferecida às novas gerações. O mestre é aquele que é reconhecido por sua comunidade, como o detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e heroísmo das gerações passadas, e tem a missão quase religiosa de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem. O mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo e assume, por essa razão, a função do poeta queatravés do seu canto, é capaz de restituir esse passado como força instauradora, que irrompe para dignificar o presente e conduzir a ação construtiva do futuro.

Poetas e mestres, mestres e poetas, capazes de desvendar, rememorar, anunciar, revestidos pela dignidade daqueles que conhecem e dão a conhecer. Ou, nas palavras de Michel Foucault (1995, p. 64)(…) o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersadas. Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas.

Para Raul Iturra (1990), o saber oral, ao ficar consignado a gestospalavras e interpretação de instrumentos e natureza, é um saber não só personalizado, como emotivo: a autoridade da palavra provém do convencimento de quem faz. Sabe, porque consegue fazer. O mestre dispõe dessa autoridade perante sua comunidade porque, antes de qualquer coisa, sabe fazer.

O mestre tem profunda ligação com a própria palavra tradição que vem do latim: traditio. O verbo é tradere e significa precipuamente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou de passar de uma geração a outra geração. O verbo tradere tem relação também com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, através da tradiçãoalgo é dito e o dito é entregue de geração a geração. A tradição, para Nietzsche (1983), é a afirmação de que a lei tem vigência desde tempos imemoriais, e pô-la em dúvida constitui impiedade contra os antepassados. O mestre é aquele que permite que os saberes transmitidos pelos antepassados vivam e sejam dignificados na memória coletiva.

A capoeira angola nos traz exemplos belíssimos de como os saberes são transmitidos pacientemente pelo mestre, a exemplo do mestre João Pequeno de Pastinha, que na sua forma de ensinar revela um profundo sentimento de amor para com seus alunos – ou discípulos –, traduzido pelo respeito ao “tempo de aprender” de cada um, pela forma como toca corporalmente seus alunos para ensinar os movimentos, herança de uma pedagogia africana, baseada na proximidade entre o mestre e o aprendiz, onde até o hálito de quem ensina deve ser transmitido para aquele que aprendecomo um meio por onde a tradição é repassada.

As músicas e ladainhas presentes no universo da capoeira são também elementos importantíssimos no processo de transmissão dos saberes, pois é através delas que se cultuam os antepassados, seus feitos heróicos, seus exemplos de conduta, fatos históricos e lugares importantes para o imaginário dos capoeiras, o passado de dor e sofrimento dos tempos da escravidão, as estratégias e astúcias presentes nesse universo, assim como também as mensagens.

O mestre de capoeira é também o mestre de muitas das manifestações de nossa cultura popular, também é aquele que sabe ocultar determinados conhecimentos considerados “essenciais” dentro da tradição por ele representada. São saberes ou conhecimentos que não podem ser disponibilizados a qualquer pessoa ou em qualquer momento, mas necessitam, para serem transmitidos, de uma certa preparação por parte da pessoa interessada, que inclui muitas vezes uma “iniciação” que faz parte da ritualidade característica daquele grupo.

“O mestre reserva segredos, mais (sic) não nega explicação”, diz mestre Pastinha em seus manuscritos, conforme Ângelo Decânio (1996).

Conhecido no meio da capoeira como “pulo do gato”, esse conhecimento só é disponibilizado àqueles que demonstram amadurecimento e compromisso suficientes para poderem utilizá-lo em benefício da própria preservação da tradição. Essas estratégias são importantes no sentido de manter certa coesão em torno desses saberes e tradições, fundamentais em relação ao sentimento de pertencimento identitário e de transmissão da memória coletiva do grupo, que se constitui a partir dessas práticas.

Pastinha utilizava freqüentemente em seus escritos o termo “mestrar”, referindo-se ao ato de ensinar e transmitir os conhecimentos referentes à tradição da capoeira angola. Tradicionalmente, como diz Muniz Sodré (2002), o mestre não ensinava o seu discípulo, pelo menos no sentido que a pedagogia ocidental nos habituou a entender o verbo ensinar. Ou seja, o mestre não verbalizava, nem conceituava o seu conhecimento para transmiti-lo metodicamente ao aluno. “Ele criava as condições de aprendizagem formando a roda de capoeira e assistindo a ela. Era um processo sem qualquer intelectualização, como no zen, em que se buscava um reflexo corporal comandado não pelo cérebro, mas por alguma coisa resultante da sua integração com o corpo” (Sodré, 2002, p. 38).

Mestre Pastinha dizia, aos 92 anos de idade, pouco antes de morrer: “eu ainda tô aprendendo capoeira…”. Essa paciência em deixar o tempo agir como escultor das qualidades de um bom capoeira ainda pode ser encontrada em alguns poucos grupos de capoeira angola, diferentemente da maioria dos grupos de capoeira regional, onde, em boa parte a própria função de mestre tem se banalizado, pois é cada vez mais freqüente encontrarmos jovens capoeiras, na faixa de seus vinte ou trinta anos, se auto-intitulando mestres, com pouca experiência de vida e de capoeira, sem a mínima noção do que essa titulação – o “ser mestre” – significa.

Isso se dá em função de interesses em relação ao mercado consumidor de cultura que cresce a cada dia, no qual se inclui a capoeira e no qual o título de mestre é uma garantia de obtenção de espaços nesse concorrido “shopping cultural da modernidade”. A capoeira angola também não está livre dessa influência, porém nota-se certa preocupação, talvez um pouco maior do que na capoeira regional, com esse tempo de chegar a ser mestre, embora já tenhamos muitos exemplos também no universo da capoeira angola que contradizem essa nossa análise.

Diz uma cantiga de capoeira que “só o tempo te faz mestre, não o diploma que comprou”, e isso implica que o mestre de capoeira seja alguém que possua, além da capacidade e habilidade na prática do jogo muita experiência de vida. O reconhecimento como mestre (tanto na capoeira, quanto na cultura popular em geral) se dá então naturalmente por parte da comunidade da qual ele faz parte, por entender que foram preenchidos os atributos exigidos para tal função. O título de mestre só tem legitimidade quando atribuído pelo grupo social ao qual representa que, em última instância, é quem delega autoridade às suas lideranças.

O soba na cultura bantu, segundo Antonio Miguel André (2003) é a denominação da função exercida pelo velho, aquele que detém a memória e o conhecimento sobre os costumes, a língua e a história de sua comunidade, exercendo a liderança desse grupo social e decidindo sobre questões referentes à justiça entre seus pares. Ele só se reveste desse poder e dessa autoridade justamente por ser velho e, portanto, ter adquirido a experiência necessária para exercer tal função. A função de mestre na capoeira angola deve, ou deveria ser pautada por esses mesmos princípios, já que ser mestre resulta do aprendizado, experiência e observação de toda uma vida.

Assim, o mestre, na cultura popular em geral, adquire esse reconhecimento por ter se notabilizado perante sua comunidade, em razão de sua capacidade de ser um elo transmissor dos saberes de seus antepassados. Esse processo, na cultura bantu, reveste-se de importância capital, pois essa cultura põe em estreita relação os antepassados e seus descendentes, convencidos estes de que não continuariam a existir no presente e não poderiam perpetuar sua linhagem sem a proteção dos antepassados. Devem, pois, segundo Kagame (1975), voltar-se para seus antepassados para se certificarem da intervenção tutelar que esperam deles, mas isso não significa de modo algum que eles não se orientam para os tempos que virão, pois o fim último do homem, em seu sistema filosófico, é a perpetuação da linhagem. Eles se voltam, pois, para o passado, a fim de garantirem seu futuro individual e o futuro de sua descendência.

O culto aos antepassados que se manifesta na capoeira angola, influência direta da concepção bantu de tempo – que não é linear, mas sim circular –, nota-se com muita ênfase através dos cantos e ladainhas em que os ancestrais da capoeira são sempre lembrados e mesmo através da forma como esses antepassados são reverenciados, seja nos discursos dos mestres e alunos, seja na presença de fotografias, imagens e pinturas desses antepassados presentes de forma solene nas paredes dos locais onde acontecem as aulas e rodas de capoeira angola; seja ainda na forma pela qual a maioria dos angoleiros faz questão de se referir à sua “linhagem” – a árvore genealógica da capoeira –, como prova de pertencimento à tradição herdada de determinado mestre considerado importante nesse universo.

A capoeira angola, ao buscar constantemente os vínculos com essa ancestralidade africana, e também com a ancestralidade que tem como referência os tempos de escravidão no Brasil e, posteriormente, os tempos remotos da capoeira de rua, das desordens e vadiagens, procura estabelecer o elo entre o seu passado ancestral, o seu presente constituído e o seu futuro enquanto possibilidade concreta de afirmação social, cultural e política. Manifesta-se, assim, principalmente a partir do ritual da roda, a noção de circularidade do tempo na capoeira angola, e os processos de aprendizagem presentes em seu universo acabam por serem também, em certa medida, influenciados por essa concepção de tempo.

Considerações finais

Buscamos, neste texto, uma aproximação com as formas tradicionais de transmissão dos saberes pertinentes a grupos sociais geralmente excluídos, considerados atrasados e rudimentares, assim como é vista a maior parte das manifestações tradicionais populares por certos setores da intelectualidade acadêmica. Nossa percepção é outra. Pela beleza em que se constroem as relações de pertencimento, o sentido de identidade, o respeito pela tradição e pelos antepassados, e pela simplicidade e alegria com que se celebra a vida, entendemos que a cultura popular nos tem muito a ensinar.

O campo das ciências sociais muito tem discutido atualmente sobre a necessidade de se validar os saberes oriundos da tradição popular, da experiência e do cotidiano. Os saberes, qualquer que seja sua origem – popular ou acadêmico-científica –, devem ser valorizados sem hierarquizações preconceitos ou discriminações. É preciso uma racionalidade mais ampliada, que possibilite validar esses saberes que, segundo Boaventura Souza Santos (2002), foram “produzidos para não existirem, violentados e ocultados por uma racionalidade estreita, perversa, e profundamente preconceituosa”.

Nesse sentido, entendemos ser fundamental o debate acerca da memória, da ancestralidade, da oralidade e da ritualidade, sobretudo quando se trata de grupos sociais que lutam para preservar sua cultura e suas tradições, e do papel que exercem os processos educacionais nesses contextos, onde as formas de transmissão dos saberes podem nos permitir uma profunda reflexão sobre as possibilidades de pensar novos caminhos para a educação formal em nosso país.

O século XXI aponta para avanços importantes no sentido de aceitação de diferenças, de luta contra o preconceito e a discriminação, do direito à igualdade de oportunidades e de políticas públicas de inclusão social. O campo da educação formal, principalmente, precisa refletir de forma profunda sobre suas práticas, no sentido de poder acolher as ricas experiências educacionais provenientes da cultura popular, representadas pelas formas tradicionais de transmissão dos saberes de uma comunidade. Nesse sentido, a capoeira e os mestres têm muito a ensinar.

Recebido em setembro de 2005 e aprovado em março de 2006.

Referências bibliográficas

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SODRÉ, M. Mestre Bimba: corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002.

A IMPORTÂNCIA DO TRANSE CAPOEIRANO NO JOGO DE CAPOEIRA DA BAHIA

por A. A. Decanio Filho

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Há muitos anos, cerca de 40, venho comparando o comportamento dos capoeiristas durante o jogo de capoeira da Bahia e suas atividades habituais.

O convívio com os praticantes das artes marciais orientais, do espiritismo, do candomblé; o estudo do hipnotismo, do ioga, da parapsicologia, da fisiopatologia do sono, dos estados modificados de consciência e a prática da meditação nos permitiram analisar o comportamento e o potencial do ser humano em diversas estágios de consciência.

Os registros históricos, científicos e religiosos de condições de bilocação, teletransporte, telecinesia, materializações e desmaterializações, bem como os estudos de física subatômica, nos vem atraindo a atenção para o efeito dos sons e dos ritmos sonoros sobre os níveis e estados de consciência, bem como a correspondência entre os mesmos e as manifestações motora e comportamentais daqueles sob a sua influência.

É notória a influência da música sobre o estado de humor das pessoas, basta lembrar a tristeza do toque de silêncio, a ternura da Ave-Maria, a agitação do Olodum e dos trios elétricos, os movimentos suaves do balé no “Lago do Cisne”.

É evidente que os movimentos induzido pelo “reagge” são diferentes daqueles do samba, da valsa, do cancã ou do foxblue.

Sem falar da marcha forçada sob o rufar dos tambores; da tranqüilidade do silêncio; da irritação pelos ruídos; do pânico ao bramir dos elefantes, do rugir do tigre, do estrondo das trovoadas; da sensação de bem estar e conforto trazida pelo ruflar da brisa suave na folhas…

A cultura africana encontramos o uso de música, ritmo e cânticos como gerenciadores, coordenadores, estimuladores de atividades comunitárias como pesca, caça, plantio, etc.

O candomblé oferece-nos uma variedade de toques de atabaques, com diversos ritmos e andamentos, capazes de desencadearem manifestações motoras padronizadas sob categorias de orixás.

É conveniente estudar as associações de toques, ritmos e andamentos com os padrões de comportamentos dos orixás e personalidades dos “filhos de santo” para melhor entendermos a influência dos toques, ritmos e andamentos nos desenvolvimento do jogo de capoeira, consoante a variedade de temperamentos e personalidades dos capoeiristas.

O exame das fotografias de Pierre Fatumbi Verger, de cenas de candomblé colhidas na África, documenta a identidade daqueles movimentos durante o transe dos orixás, que manifestam a atividade gerada pelos toques e ritmos musicais do candomblé e destes da capoeira.

É conveniente lembrar a associação dos estados de humor com as expressões faciais e posturas do corpo para compreendermos melhor as repercussões das modificações de estado de consciência e as manifestações motoras conseqüentes.

Todos reconhecemos os ombros caídos do desânimo, o olhar de tristeza, a vivacidade dos movimentos de alegria, a expressão corporal do animal prestes a atacar, etc.

Quantos outros quadros poderíamos citar? 2 Portanto, se a música pode alterar o estado de ânimo e as suas manifestações motoras estáticas e dinâmicas, forçosamente teremos que concluir que o andamento, ritmo, palmas e cantos também modificam o comportamento dos capoeiristas durante o jogo.

INFLUÊNCIA DO ARQUÉTIPO COMPORTAMENTAL

Ante um mesmo toque, ritmo e andamento, os diversos arquétipos manifestam sua identidade de modo particular, especifico para cada entidade comportamental (com nuanças especiais, intrínsecas a cada ser e cada momento histórico) de modo que o comportamento é praticamente imprevisível a cada instante, porém com um fluxo natural, espontâneo, ingênito, inato… instintivo como dizia Bimba.

Assim é o próprio Bimba conhecia o fato e afirmava “é o jeitcho dêle”, permitindo que cada um jogasse capoeira com suas características pessoais.

Fato muito notório em certos capoeiristas de movimentos muito lentos, porém dotados de grande mobilidade articular e elasticidade, como Prof.

Hélio Ramos, “Cascavel,” Eziquiel “Jiquié”, “Caveirinha”, entre tantos.

Assim é que “Atenilo” (jocosamente conhecido como “Relâmpago”) um dos mais antigos dos alunos do Mestre, jamais modificou seu estilo tardo, lerdo, ingênuo, de praticar a capoeira.

Entretanto, ainda hoje não consigo reconhecer ou identificar os vários arquétipos de capoeiristas, mas posso perceber de modo vago, as semelhanças que se repetem independentemente de mestres, momento histórico e localização geográfica.

Assim é que venho detectando similitude do que chamamos de “jogo” (estilo pessoal, jeito particular de jogar) em alunos de diferentes mestres e em regiões diferentes, i.e., encontrando “jogos” parecidos com alguns dos companheiros de meus tempos antigos em locais diversos, como em Natal/RN, Goiânia/GO, etc.

Fato mais surpreendente foi ver, recentemente, na Academia de Mestre João Pequeno de Pastinha, aparecer um rapaz, cujo nome e mestre não consegui identificar, cerca de 17 anos, negro, alto, longilíneo; pescoço fino, elástico e forte; com um jogo incrivelmente semelhante ao do meu Mestre (Bimba), a ponto de me sugerir a sua reincarnação.

TOQUES PACÍFICOS E TOQUES DE GUERRA

Os vários toques, ritmos, andamentos e cânticos de candomblé associam-se a modificações de estados de consciência (transe de orixás) específicos de cada arquétipo.

Sendo o estado de transe provocado pela adequação, sinergia, sintonia, harmonia, da música com o arquétipo (sensibilidade do ente sob seu campo energético ou vibratório).

Assim é que uma pessoa, sujeita aos diversos tipos de vibrações orfeônicas em campo sonoro desta natureza, poderá permanecer indiferente a vários padrões orfeônicos ou exteriorizar sua sensibilidade por manifestações motoras ou psicológicas em algum momento ou padrão, com o qual seu arquétipo se harmonize.

Consoante o tipo sonoro, pacífico, belicoso, calmo, agitado, lento, vivo, moderado, rápido, a entidade em sinergia manifestará sua sintonia por movimentos calmos, majestosos, vivos, violentos, guerreiros, etc.

Dentre os toques calmos destaca-se o ijexá, pela paz, alegria, felicidade e requebro a que se associa, razão pela qual permite os movimentos do samba de roda, do afoxé, batuque e capoeira.

A importância atribuída pelo nosso Mestre ao toque era tal que o compelia a usar apenas a musica do berimbau (tocado pelo próprio), sem pandeiro, para que os 3 aprendizes fixassem o ritmo-melodia em toda sua plenitude.

A exclusão de todo e qualquer outro instrumento que não berimbau e pandeiro da orquestra também decorria desta premissa.

Freqüentemente, quando os alunos jogavam com muito açodamento e velocidade durante um toque de “banguela” o Mestre resmungava: “Tô disperdiçandu minha banguela! “Só merecem mesmu a cavalaria!” E… “virava” para o toque mais duro e bruto da “regional”… impiedosamente mais adequado para os embrutecidos… insensíveis e afobados.

O CAMPO ENERGÉTICO DA ORQUESTRA, CANTO, PALMAS E JOGO

O capoeirista, como todos os demais participantes duma roda de capoeira, está encerrado num campo energético, com o qual interage e portanto sujeito a todos os seus fatores em atividade Reflete, portanto, não só seu estado pessoal, porém aquele do complexo energético da roda, sofrendo a influência de todo o conjunto.

Toda a excitação ambiental envolve os jogadores e transtorna a condução do espetáculo, o qual poderá evoluir para um circo romano em toda sua barbárie.

Razão pela qual, a assistência do jogo da capoeira, antigamente, nas festas de largo, assistia silenciosa e respeitadora, como numa cerimonia religiosa, o desenrolar do jogo de capoeira, procurando guardar os detalhes de cada um dos lances à procura da descoberta do mais habilidoso, elegante, malicioso, inteligente, destro dentre os participantes.

O silêncio e a paz ambiental propiciam a melhor percepção da mensagem orfeônica, o desenvolvimento do transe capoeirano e portanto, o desenrolar do jogo.

As palmas, introduzidas pelo Mestre Bimba para enfatizar a participação da assistência e esquentar o ritmo, alcançam atualmente intensidade tal, que não mais permitem ouvir o toque do berimbau e muitas vezes, sequer os cânticos, desnaturando a capoeira no seu ponto mais nobre, a musicalidade, fonte do transe, ponto capital do jogo.

O atabaque, formalmente condenado pelo Mestre Bimba, durante todo o tempo em que acompanhei a sua rota, foi introduzido pelo Mestre Pastinha e ulteriormente usado pelos grupos folclóricos, a partir de Camisa Roxa, Acordeom, Itapoan, etc. para enfatizar a “africanidade” original.

Tocado por quem de direito, suave e discretamente, como pelas orquestras de Mestre Pastinha e seus descendentes; conhecedores dos arcanos, fundamentos, segredos musicais africanos, marca o andamento e acompanha o toque do berimbau, instrumento-rei da capoeira, ao qual deve acompanhar e jamais suplantar, obscurecer.

Em mão desabilitadas, como ocorre na rodas da chamada regional atual, torna-se arauto de ritmo guerreiro e acarretam um transe violento, que vem matando, ferindo, lesando impiedosamente os seus praticantes, desde que provoca um transe agressivo, belicosos, guerreiro, desenfreado e deve portanto ser proscrito em nome da legitimidade da capoeira e da segurança dos seus praticantes.

O agogô e o gã, são excelentes marcadores de compasso, indispensáveis nas orquestras de candomblé, embora não aceitos pelo Bimba, talvez por terem sido 4 introduzidos por Pastinha, enriquecem as charangas dos seguidores do estilo de Mestre Pastinha e ajudam (e muito!) a manter a constância do andamento do toque.

O reco-reco, também introduzido pelo Mestre Pastinha, nos parece inócuo, sem maior expressão musical, dispensável, salvo para manter a tradição do estilo.

A viola, hoje em desuso, de ausência lamentada pelo Mestre Pastinha em seus manuscritos, também encontrada no samba de roda, nos indica a origem comum da capoeira e do samba, como indicamos em nossos escritos sobre a família musical áfrico-brasileira.

Opandeiro, com redução dos guizos com recomendado pelo Mestre Bimba, marca o compasso e mantém a constância do andamento quando em mãos habilitadas.

É comum no entanto que os mais afoitos (ou despreparados?) acelerem o ritmo ou se afastem do toque do berimbau, desde que não havendo treinamento adequado (ensaio) como fazem os descendentes de Mestre Pastinha ou responsável pela direção da orquestra ou charanga (fiscal no dizer de Mestre Pastinha) é comum alguém se apropriar indevidamente do manuseio deste instrumento.

Mestre Bimba dizia que “O pandeiro é o atabaque do capoeirista”.

Oberimbau é o instrumento-rei da capoeira, vez que somente o seu aparecimento na rodas de capoeira (antigamente citadas apenas como ” capoeira” pelo próprio Mestre Pastinha, algumas vezes referidas como “capoeira de Fulano de Tal”) é que marca o surgimento da capoeira como a reconhecemos atualmente, a capoeira da Bahia, seja o estilo “angola” seja o “regional”.

Torna-se portanto, indispensável ao bom desenvolvimento do jogo que seu toque predomine no ambiente, mantendo a uniformidade do ritmo e o entrosamento entre os parceiros duma “volta” ou “jogo”, sem o qual fatalmente existirão os desencontros e a violência.

TEXTOS CORRELATOS ESTADO DE CONSCIÊNCIA MODIFICADO (TRANSE CAPOEIRANO)

Sob a influência do campo energético desenvolvido pelo ritmo-melodia ijexá e pelo ritual da capoeira, o seu praticante alcança um estado modificado de consciência em que o SER se comporta como parte integrante do conjunto harmonioso em se encontra inserido naquele momento.

O capoeirista deixando de perceber a si mesmo como individualidade consciente, fusionando-se ao ambiente em que se desenvolve o jogo de capoeira.

Passando a agir como parte integrante do quadro ambiental em desenvolvimento.

Procedendo como se conhecesse ou apercebesse simultaneamente passado, presente e futuro (tudo que ocorreu, ocorre e ocorrerá a seguir) e se ajustando natural, insensível e instantaneamente ao processo atual.

BERIMBAU – A LIGAÇÃO ENTRE O MANIFESTO E O INVISÍVEL

O capoeirista para jogar capoeira não precisa de conhecer a história e a técnica da capoeira, por que o ritmo/melodia põe o ouvinte diretamente em sintonia com a “capoeira” abstrata, que abrange a fonte etérea dos movimentos, os paradigmas de jogos, os arquétipos de capoeiristas e talvez com a própria “tradição”.

Por este motivo, 5 poderemos aprender por ver, ouvir e dançar… como “Totônio de Maré” o fez no cais do porto de Salvador/BA.

“Itapoan” perguntou a “Maré” como aprendera capoeira e este respondeu: “Vendo os outros jogarem. Gostei, entrei na roda e joguei!” Conforme assisti em gravação VHS do acervo do Mestre Itapoan, em casa do mesmo.

E “Vovô Capoeira” fez o mesmo, aos 84 anos de idade, na roda de Mestre Canelão em Natal/RN.

Assim é que, aos poucos a conjugação da música com os movimentos relaxados vai orientando o capoeirista no caminho do transe que o conduzirá diretamente à fonte da capoeira, na face invisível da realidade, que não depende dos sentidos corpóreos.

COMPORTAMENTO HUMANO, VIBRAÇÃO SONORA E RITMO.

Em Ioga percebemos a importância dos mantras… os gregos antigos atribuíram ao Logos o poder de organizar o Caos… no Gênesis aprendemos a força do Verbo capaz de criar o Universo e a Vida… na África Antiga não foi diferente! Os africanos ao divinizarem os seus ancestrais e cultua-los com ritmos e toques diferentes vinculados ou representativos de seus comportamentos, descobriram categorias fundamentais subjacentes ao nível de consciência, independentes de culturas e religiões, os arquétipos humanos, que denominaram de orixás.

O “SER” exposto às vibrações sonoras ritmadas oriundas dos atabaques entra em harmonia com as mesmas e passa a manifestar em movimentos rituais a sua consonância.

Tudo se passa como se o conteúdo musical dos toques de candomblé fosse aprofundando o nível vibracional do sistema nervoso central, especialmente do cérebro (tido como sede da consciência) e alcançando os níveis correspondentes ao arquétipo individual.

Chegando a toldar a consciência e levando a um estado transicional em que o “SER” passa a manifestar, em movimentos rituais involuntários, atributos do arquétipo, através circuitos de reverberação medulo-espinhais como que gravados geneticamente na estrutura do seu sistema nervoso central.

Não é indispensável o conhecimento da doutrina e ritual do candomblé, bem como de componente genético africano para a sintonia com o ritmo do orixá correspondente, vez que já assistimos à chamada “incorporação” de entidades africanas em europeus em primeiro contacto com “exibição” de música de candomblé, portanto, fora do contexto religioso.

Durante o tempo em que funcionei como “apresentador” do “show folclórico” de Mestre Bimba observei que alguns assistentes entravam em consonância ou harmonia com um determinado toque, não se deixando influenciar por outros, o que atribuí à correspondência orgânica ao arquétipo daquela pessoa, ao modo de categoria de comportamento em nível subconsciente.

Na capoeira, o ritmo ijexá, especialmente tocado pelo berimbau, conduz o ser humano a um nível vibratório, dos sistemas neuro-endócrino e motor, capaz de manifestar, de modo espontâneo e natural, padrões de comportamento representativos da personalidade de cada Ser em toda sua plenitude neuro-psico-cultural, integrando componentes genéticos, anatômicos, fisiológicos, culturais e experiências vivenciadas anteriormente, quiçá inclusive no momento.

Todos os capoeiristas conhecem o transe capoeirano, embora nem todos disto se apercebam, um estado de extrema euforia, e de integração ou acoplamento a outra ou outras personalidades participantes do mesmo evento, conduzindo a execução de atos acima da capacidade considerada como “normal”.

Trata-se dum estado transitório, em que não há perda total de consciência, porém existe uma liberação de movimentos reflexos, exaltação do potencial e ampliação do campo de influência vital de cada “SER”.

É interessante registrar que em outros membros da “família cultural da capoeira” (samba de roda, maculelê, afoxé, frevo, entre outros) encontramos estados transicionais assemelhados, em que os personagens ultrapassam suas limitações “normais”.

De outro modo não assistiríamos a idosos desfilando em “escola de samba” ou saracoteando em frevo…

Assim cada capoeirista desenvolve um estilo pessoal, representativo do seu “EU”, manifestado de maneira imprevisível a cada jogo e a cada instante de cada jogo.

Consoante o arquétipo de cada praticante ou mestre, o momento histórico vivenciado, o contexto em que está se desenvolvendo, a capoeira pode assumir aspectos multifários, lúdicos, coreográficos, esportivos, competitivos, belicosos, educativos, corretivos, terapêuticos, etc.

Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, cada tocador de berimbau manifesta a sua personalidade na afinação do instrumento, ritmo, andamento musical, impostação vocal e conteúdo do cântico.

Razões semelhantes criam a identidade de cada roda, a multiplicidade de estilos e impõe a alegria e a liberdade de criação como fundamentos da capoeira.

Por ser a própria Liberdade e a Felicidade de cada “SER” a capoeira não cabe, não pode ser enclausurada, em regulamentos e conceitos estanques, nem prisioneira de interesses mesquinhos, comerciais ou de outra natureza.

A capoeira oferece um gama infinito de representações motoras , comportamentais e musicais; de aplicações terapêuticas, pedagógicas, marciais e esportivas; além do aperfeiçoamento físico, mental e comportamental de cada praticante.

Cada um de nós cria uma capoeira pessoal, transitória e mutável, evolutiva, processual, como todos os valores humanos e poderá ser imitada, jamais reproduzida em clones, como produto industrial de fôrma, idêntico em todos detalhes.

É interessante o estudo do simbolismo dos constituintes da personalidade humana na arte iorubana que indica no mínimo a noção de níveis de consciência, pois entre os povos iorubanos a consciência (personalidade exterior) é representada pela coroa (ile ori), enquanto a personalidade íntima (ori inu) correspondente ao (subconsciente+inconsciente) é simbolizado pelo ibori, uma pequena saliência no ponto mais alto da coroa.

Angelo A. Decanio Filho – Falando em capoeira, Coleção S. Salomão, CEPAC, Salvador/BA, pg: 51

Voltando para o gueto ?

O GoogleTrends é uma ferramenta bacana: resumidamente, ele mostra gráficos que indicam o quanto uma palavra é pesquisada no Google. Isso se traduz no quanto essa palavra é interessante para as pessoas mundo afora, ao longo do tempo.
Por exemplo, o GoogleTrends foi utilizado para se detectar possíveis epidemias de gripe ou de dengue. Ao cruzar as pesquisas feitas no Google por “dengue” com a informação geográfica de onde as pesquisas são feitas, conseguimos desenhar mapas que mostram lugares do mundo onde as pessoas se preocupam mais com a dengue – provavelmente porque estão em risco.
Abaixo, a pesquisa no GoogleTrends sobre dengue, filtrada para o Brasil.

Mas… E onde entra a capoeira ?

Se pesquisarmos “capoeira” no GoogleTrends, o resultado é esse abaixo:

Os dados não mentem: de 2004 para cá, o interesse do mundo pela capoeira está diminuindo – ou pelo menos, as pessoas não estão pesquisando mais no Google.
Eu me lembro do início da internet no Brasil, que coincidiu mais ou menos com o meu início na capoeira (1996). O Google ainda não existia, e os mecanismos de busca eram bem ruinzinhos. Os primeiros sites sobre capoeira que me lembro de ter visto foram o do Abadá e a página web de um capoeirista chamado Escovinha – aluno do Mestre Marcelo Caveirinha.
Quando vi isso, tratei de criar uma página web para o meu grupo – treinava então com o Mestre KK Miraglia, no grupo Arte & Luta. Pouco tempo depois, por volta de 1999, o panorama da capoeira na internet explodiu – especialmente fora do Brasil. De repente, apareceram muitos websites ligados ao assunto, e o maior deles era o www.capoeira.com – no qual fiz grandes amigos dentro e fora do país.
O tempo passou, a água correu, e a capoeira se difundiu cada vez mais – ou será que não ? O que a pesquisa do GoogleTrends mostra é que a tendência a procurar por “capoeira” na internet está diminuindo.
Isso é reflexo de mais e mais pessoas querendo experiências reais ao invés de virtuais ? É reflexo das crises financeiras pelo mundo afora, que trouxeram muitos capoeiristas de volta para o Brasil nos últimos anos ?

Será que a capoeira está caminhando para se tornar “misteriosa” novamente ?
Quando aumentamos o escopo da pesquisa, vemos que o interesse pela capoeira angola também diminuiu:

Já a capoeira regional tem um interesse razoavelmente constante:

Comparando as duas simultaneamente, vemos a popularidade da angola decair com o tempo, embora ainda seja mais popular que a regional:

Já o nosso berimbau, está cada vez mais popular…

E você, o que acha ? Na sua percepção, a capoeira tem ficado menos popular com o tempo ?

“E nem me despenteio!” – Madame Satã

Matéria de Paula Lacerda e Sérgio Carrara, publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional #33 – Agosto de 2007

Entre o feminino e o masculino, a elegância e a indecência, Madame Satã ganha a Lapa e faz fama como malandro bom de briga

Nos anos de 1970, o periódico de esquerda “O Pasquim” recuperou a história de um estranho personagem da boemia carioca em duas entrevistas. O interesse do público por sua trajetória foi tamanho que em pouco tempo ele também aparecia em programas de auditório recontando suas aventuras e relembrando o passado com saudade. Quem era esse malandro ?

“Mulata do Balacoché”, “Caranguejo da Praia das Virtudes” e “Jamaci, a rainha da floresta” foram alguns de seus tantos apelidos. Em suas apresentações artísticas, vestia pomposos trajes femininos, ameaçando a moral e os rígidos padrões da época. Homossexual assumido, negro, pobre e capoeirista, respondeu a mais de vinte processos, entre eles, treze por agressões, quatro por resistência à prisão, três por desacato, um por ultraje ao pudor e um por homicídio. Estamos falando de “Madame Satã”, o codinome mais famoso de João Francisco dos Santos, verdadeiro mito da malandragem carioca.

“Eu vim ao mundo junto com o século XX”. Era assim que ele anunciava o ano de seu nascimento, 1900. De infância difícil, foi negociado pela mãe em troca de uma égua quando tinha sete anos. Antes de partir com o menino, o comerciante de nome Laureano prometeu que lhe daria estudo, acordo que obviamente não foi cumprido. Em pouco tempo transformou-se em escravo, fazendo trabalhos pesados sem qualquer remuneração. 

Depois de algum tempo percorrendo cidades do sertão nordestino, João Francisco conheceu uma senhora que lhe ofereceu o mundo: trabalho e hospedagem no Rio de Janeiro! Ele aceita a proposta e parte imediatamente para a capital federal. Chegando à cidade, no ano de 1907, encontra uma rotina de trabalho não muito diferente da anterior. Na pensão, limpava, lavava, cozinhava e não recebia nada em troca, exceto modestos pratos de comida e um colchonete para deitar o corpo no fim do dia. Por isso, João fugiu e foi viver na Lapa, bairro que logo ficaria conhecido como o berço da malandragem.

Ao chegar, o menino encontrou um bairro fixado em torno de uma bela igreja – a Nossa Senhora da Lapa – e margeado por um imponente aqueduto, que em outros tempos levava água aos bairros centrais da cidade. Apesar da reforma urbana e social promovida pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906) − que expulsou as populações mais carentes da parte central da cidade −, a Lapa permaneceu residencial, abrigando famílias de operários, malandros e prostitutas. João Francisco fez sua residência em um dos típicos sobradinhos do bairro.

Durante seus primeiros anos na cidade, ficou conhecido como brigão profissional, sujeito de muitos amigos e também de muitos desafetos. Vivia de pequenos trabalhos avulsos e não levava desaforo para casa nem de policiais. Conhecido por sambistas, prostitutas, políticos, e principalmente pela polícia, foi levado à delegacia algumas dezenas de vezes por sua “conduta anti-social”, que incluía agressões, confusões em bares e ameaças.

Por intermédio de alguns amigos influentes, João realizou um dos seus maiores sonhos: se apresentar como transformista. Dublava músicas e dançava vestindo roupas femininas. O ano era 1928, o local dos shows, a Praça Tiradentes – região conhecida por suas inúmeras casas de espetáculo. Uma vez alcançado esse sonho, o malandro muda sensivelmente sua rotina. Passa a sair dos espetáculos e ir direto para casa, evita brigas e todo tipo de confusões que pudessem atrapalhar seu trabalho artístico. Mas um incidente traz de volta a velha rotina das brigas na figura do guarda Alberto.

O transformista fora jantar em um botequim da Lapa, perto do sobradinho onde morava. Ao pedir seu tradicional bife malpassado, percebeu que o vigilante noturno Alberto, conhecido por sua truculência, estava sentado algumas mesas adiante. Ao avistar João – que nessa época usava os cabelos na altura dos ombros – o guarda, um tanto alcoolizado, imediatamente xingou o malandro.

Mesmo com suas ofensas sendo ignoradas, o guarda insistiu: “Já estamos no carnaval, veado?!”. Passados alguns segundos, percebendo que não haveria briga, Alberto decide partir para a agressão física e atinge João com um soco no rosto. Ainda assim, nosso personagem brigão vai para casa e tenta se controlar. Não consegue. Volta ao bar e atira em Alberto, que morre na hora.

João é preso pela polícia e mandado para o presídio da Ilha Grande em 1928. Mesmo tendo sido absolvido dois anos depois por ter agido em legítima defesa, a prisão marca profundamente a trajetória do malandro. Solto, ele retorna à Lapa, onde passa a fazer a segurança dos bares e cabarés das redondezas em troca de doses de bebida e alguns trocados.  O trabalho como segurança – além de completar a renda que obtinha com pequenos furtos – era também uma forma de fazer-se presente na boemia do bairro.

Seu codinome mais famoso, Madame Satã, surge somente anos depois dessa prisão. Segundo a versão mais conhecida deste episódio, foi no carnaval de 1938, quando João vence um famoso concurso de fantasias promovido pelo bloco carioca “Os caçadores de viados”. A fantasia premiada representava um morcego típico da região natal, no interior de Pernambuco. Utilizando adereços dourados e pretos, fez tanto sucesso que algum tempo depois um policial o identificou como sendo o ganhador do concurso. Sua opinião sobre a indumentária, no entanto, surpreendeu o próprio malandro. Para o policial, ele teria se inspirado no filme “Madam Satan”, do diretor norte-americano Cecil B. De Mille – filme a que João jamais assistiu. Mas o apelido agradou, e todos os codinomes anteriores foram definitivamente abandonados. O nome  “Madame Satã” parecia traduzir com precisão sua personalidade, que fundia elementos contraditórios como o feminino e o masculino, a doçura e a maldade, a elegância e a indecência. E todo malandro precisava de um apelido. Seus contemporâneos eram Meia-noite, Sete-Coroas e Beto Batuqueiro, para citar alguns que ficaram na memória da boemia.

Embora sua fama tenha começado nos anos 1920, foi só por volta de 1940 que Madame Satã passa a ser conhecido e reconhecido como o malandro mais temido da Lapa, o mais brigão, o que jamais teria se esquivado de uma briga com a polícia.  E sua trajetória tortuosa reflete as transformações dos significados da malandragem.

Bem no início do século XX, a idéia de malandro estava vinculada a um tipo de homem mulherengo, vadio, jogador e brigão. O chapéu panamá, o lenço no pescoço, o sapato cara-de-gato e principalmente a navalha compunham seu visual. Nesse momento, o malandro era alguém que perambulava por bares e cabarés, conhecia e respeitava seus pares e não fugia de brigas, onde quer que elas ocorressem – foi esse o lado que marcou Madame Satã.

Já no governo Vargas (1930-1945), percebe-se uma sensível alteração. Com a intensa valorização do trabalho e do trabalhador, a “malandragem” passa a constituir um “mau exemplo” para a população. Surge então a conotação de burla ao trabalho, que, por sua força, ainda pode ser facilmente percebida hoje em dia. Por isso, dizia Moreira da Silva (1902-2000), o criador do samba de breque: “malandro é o gato, que come peixe sem ir à praia”.

Ao longo da década de 1950, quando o samba cede lugar à bossa nova, Copacabana então substitui a Lapa como espaço de boemia e divertimento. São os anos do desenvolvimentismo: os cassinos são fechados, a era dos cabarés entra em decadência, os sobrados da Lapa representam uma estética e um modo de vida ultrapassados. Com todas estas inovações, a figura de Satã também entra em declínio, e o incidente que culminou na morte do sambista Geraldo Pereira marca o começo de seu fim.

A briga com Geraldo seguiu os mesmos moldes daquela que levou o guarda Alberto à morte: ambas ocorreram na Lapa, durante a noite, com a presença marcante do álcool, e começaram com uma ofensa a Satã –, novamente dirigida à sua sexualidade. Fazendo jus à sua fama de brigão, o chamado “Geraldo das Mulheres” declarou, no restaurante A Capela, que adorava “dar porrada em bicha”. Com isso, Madame Satã partiu para cima de Geraldo e o atingiu com um soco de direita – foi o suficiente para que o sambista não recuperasse os sentidos e falecesse minutos depois.

É claro que este episódio contribuiu para aumentar ainda mais a fama de malandro valente. Madame Satã não foi oficialmente acusado de homicídio por causa de um laudo médico que atribuiu a morte de Geraldo a um derrame cerebral. No entanto, a partir deste incidente Madame Satã ficou cada vez mais exposto aos olhos da lei. Não por acaso, nesse mesmo ano sua trajetória na malandragem foi bruscamente interrompida.

Acusado de aplicar o “suadouro” – golpe da época que consistia em roubar os pertences de rapazes enquanto eles se distraíam com alguma prostituta –, Madame Satã retorna ao presídio da Ilha Grande. Desta vez sua estada é mais prolongada, e ele fica preso por mais de dez anos. Em 1965, Satã recupera a liberdade e segue para a Lapa. No entanto, seus comparsas haviam morrido e a malandragem, tal como ele a havia conhecido, não existia mais. O jeito foi voltar para a Ilha Grande, onde passou a criar galinhas, pescar e cozinhar para alguns amigos. 


Procurado pelo Pasquim e depois pela TV, Satã ora recusava a autoria de muitos dos crimes que lhe foram atribuídos, ora criava histórias ainda mais fantásticas sobre “sua pessoa”, como ele mesmo gostava de dizer. A trajetória do boêmio mais famoso do país acabou interrompida definitivamente por um câncer pulmonar em abril de 1976. Morreu em um hospital público, ao lado de uma de suas filhas adotivas.

A recente produção cinematográfica “Madame Satã” (de Karim Aïnouz, 2002) retomou a importância desta personalidade curiosa e conta parte de sua história. Hoje, a presença de Madame Satã é atestada em muitos artigos de jornais, na Internet, e até mesmo por acadêmicos que se debruçam sobre a malandragem ou sobre o bairro da Lapa. Das mais diferentes formas, as histórias do bairro e as do personagem se misturam, e um ajuda a manter o outro vivo na memória carioca.

PAULA LACERDA ATUA NO CENTRO LATINO-AMERICANO EM SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS E É AUTORA DA DISSERTAÇÃO “O DRAMA ENCENADO: ASSASSINATOS DE GAYS E TRAVESTIS NA IMPRENSA CARIOCA” (UERJ,2006).

SÉRGIO CARRARA É PROFESSOR DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ.

Cotas…

Tenho acompanhado algumas discussões sobre racismo no Facebook… O que percebo é que sempre que surge uma história de racismo, especialmente sofrido por negros e negras, todo mundo parece se comover.

Chovem mensagens de apoio, transbordam rios de “Curti”.

A sensação é que é como quando se assiste filmes tipo “Mississipi em chamas” ou “Histórias cruzadas” – não conheço ninguém que não tenha ficado com um nó na goela após o fim de um dos dois.

Só que aí, depois do fim da sessão, vem o bate-papo. E aí eu toco no assunto “cotas raciais”. Pronto, acabou a conversa. Não pode, não pode, é injusto ! E os pobres ? A cota devia ser para eles ! Todo mundo tem a mesma capacidade, não se pode privilegiar os negros.
Bem, todas essas pessoas se esquecem que a cota tem por fim reparar o um erro cometido no passado. É uma REPARAÇÃO. 
Quantos descendentes de imigrantes europeus e quantos netos de fazendeiros não estariam em situação bem pior hoje, se seus antepassados não tivessem tido as cotas ? 
Sim, cara-pálida ! Muitos (não todos) imigrantes europeus receberam terras, sementes e ferramentas quando vieram para o Brasil. Saíram de lá sem nada, e chegaram aqui pequenos fazendeiros. As terrinhas estavam aqui, esperando por eles. Justo ? Justo ! Tínhamos terra sobrando, e eles tinham barriga vazia.
Nos tempos da ditadura militar, filhos de fazendeiros tinham cotas em universidades públicas (agronomia, zootecnia, etc). As vaguinhas estavam lá, esperando por eles. Justo ? Justo ! Vivendo na zona rural ou no interior, os filhos de fazendeiros nunca teriam condições de competir com os alunos da cidade.
Hoje em dia, alunos brasileiros saem para estudar na Europa, usando COTAS que reservam para nós lá. As vaguinhas estão lá, esperando os nossos meninos e meninas. Justo ? Justo ! Os europeus chuparam nosso sangue e ouro durante 400 anos (não vou nem tocar no assunto da chupação atual), nada de errado em devolverem alguma coisa sob forma de conhecimento.
Agora, um exercício de lógica: quantos negros e pardos não estariam melhor hoje, se seus ancestrais tivessem sido tratados com dignidade ? Para começo de conversa, vieram para cá escravos. Depois de libertos, não receberam nada além da roupa do corpo e de “leis contra vagabundagem” que prendiam quem não tivesse emprego. 
Pergunto: quantos negros e pardos não estarão melhor no futuro, se a mudança começar AGORA ?
Todo mundo fala em combate ao racismo, mas a medida MAIS eficaz, que são as ações afirmativas (nesse contexto, leia-se “cotas”), ninguém quer… As ações afirmativas são, de longe, a maior arma de combate ao racismo e à segregação.
Quem lê inglês, leia aqui (mais completo). Quem lê português, leia aqui
Não é questão de opinião, são fatos:
  • Nos Estados Unidos, país cujo racismo é muito mais explícito que o nosso, os negros são 13% da população. No congresso americano, 9.5% dos senadores são negros. 
  • No Brasil, mais de 50% da população é negra. No entanto 1.2% dos senadores é negro (sim, apenas 1 senador entre os 81 do Brasil, é negro).
Poxa, mas a capacidade intelectual não é igual entre negros e brancos ? Por que uns conseguem e outros não ? E por que mais negros conseguem nos EUA do que aqui ? Os negros de lá são mais inteligentes que os do Brasil ? Mais esforçados ?
A situação nos EUA não era muito diferente até os anos 60, quando começou a luta pelos direitos civis. Foi graças às cotas que os americanos se tornaram MUITO mais iguais entre si aos olhos da lei, do que os brasileiros. Ainda estão LONGE de serem iguais, mas são MUITO MAIS IGUAIS que no Brasil.
Comandante das forças armadas (Collin Powell) negro, secretária de estado (Condoleeza Rice) negra, presidente negro (Obama), e mais uma montanha de outros nomes (só aqui tem mais 10).
Aqui no Brasil, quando querem “destacar” um negro importante, falam do Joaquim Barbosa. Tem seu mérito ? É claro ! Mas vamos nos ater aos números… O Dr. Joaquim é a exceção, e não a regra. Quero ver me apontarem mais 10 negros importantes na vida política brasileira em tempos recentes.
Então, meus amigos, lembrem-se: “Mississipi em chamas” e “Histórias cruzadas” são lindos, e são tristes, mas são FILMES. Não há nada que você possa fazer que mude o enredo ou o final.
Já na vida real, a educação deficitária é real, o pouquíssimo acesso ao ensino superior é real, a pobreza é real, a discriminação é real, a bala na cabeça do jovem negro é real.
Eu já sei que você se sensibiliza. Mas o que vai fazer a respeito ?
Como bem disse o presidente americano Lyndon Johnson (branco!), em 1965 (atenção à data!):
“Você não pode pegar uma pessoa que por anos esteve acorrentada, libertar, colocar na linha de largada de uma corrida, dizer ‘Você é livre para competir com os outros’, e continuar acreditando que isso foi completamente justo”.

O poder negro da capoeira

Por D. David Dreis (tradução: Teimosia)
Publicado na revista Black Belt no início dos anos 70
A nação brasileira está dando uma longa e dura olhada no seu passado xadrez. Algumas das coisas que ela vê, precisam ser lavadas e esfregadas, de maneira que façam boas leituras em livros de história. Rebeliões escravas à base de derramamento de sangue, são parte de seu folclore. E o Brasil está finalmente aceitando a capoeira como o verdadeiro poder negro da nação.
Por muitos anos, o Brasil tem posto à margem a sua herança com a capoeira. Ela tem sido negligenciada, desconsiderada e negada. Historiadores lutam contra a censura burocrática para encontrar clareiras, buracos na história que tiveram que ser preenchidos. Alguns anos atrás, um português de 81 anos, testemunha ocular dos buracos na história, contou uma estória: a estória era sobre capoeira.
Vicente Ferreira Pastinha foi o homem que fez o preenchimento. O que ele falou em extensão foi sobre as rebeliões escravas contra a crueldade da perseguição e a ferramenta de auto-defesa empregada pelos escravos, criada pelos negros.
Agora que o Brasil está dando essa olhada relutante, ele está aprendendo sobre a capoeira, e estremecendo com o que aprendeu. Descrições apropriadamente feitas pelo velho homem atestam sobre os braços e pernas se movendo rapidamente, batalhando contra a investida de senhores de escravos impiedosos, lutando contra a grande organização da opressão apenas para serem esmagados em derrota sangrenta. A capoeira teve seus resultados mais aterrorizantes nos levantes escravos contra os saqueadores da dignidade human, os donos de terra que estiveram em operação desde a colonização do Brasil pelos portugueses. Com cada supressão vieram mais e mais restrições, até que em fim, cansados e espancados, os africanos insurgentes, os escravos, foram derrotados. Como a população branca escreveu os livros de história, eles apagaram as marcas negras da capoeira, fingindo que elas nunca existiram. Pastinha permaneceu vivo e trouxe a realidade do passado para o foco.
Mantida viva no segredo de almas endurecidas, a arte marcial continuou a ser ensinada e aprendida, e se movimentos eram exibidos, dizia-se que eram uma inocente dança nativa. Esse foi o modo da capoeira sobreviver à tortura do tempo.
Pastinha revelou como os aspectos culturais da arte pareceram desaparecer e como praticantes desesperados usaram a arte para quebrar os estatutos que foram colocados em seus caminhos. Que eles usaram a capoeira para a destruição e o dano, sem rima ou razão, é também parte da história desfigurada. Sem a cultura e a herança, assim como é muito ensinado no mundo das artes marciais, nada sobra a não ser a destruição e a demolição. De novo e de novo, negros insurgentes foram mortos em confrontos sangrentos. A herança da capoeira pareceu desaparecer para sempre.
Hoje, aos 81 anos de idade e cego, sem posses exceto pela renda que lhe foi assegurada por discípulos devotados da arte, Pastinha é cuidado por alunos que o olham com o mesmo respeito e dedicação que praticantes do karate e judo japoneses olham seus senseis. Ele vive em Salvador, Brasil, e ainda pratica a arte marcial, apesar de que os anos e o despeito cobraram taxas na sua destreza.
Mas assim como Pastinha revelou o passado, um instrutor de 68 anos conhecido apenas como “Mestre Bimba” está avançando para o futuro com sua instrução da arte marcial. Desde que ele começou a ensinar capoeira, muitos praticantes passaram por suas mãos e estão avançando a arte ainda mais.
Cinco anos atrás, um grupo liderado por Benjamin Muniz começou a fazer um estudo verdadeiro e esquemático do “kata” da capoeira, transferindo o que pastinha relatou em termos viáveis e ensináveis. Relutantemente, a nação começou a reconhecer a capoeira e aceitá-la pelo que era, apesar de acirradamente se negarem a reconhecê-la como esporte nacional – sabendo muito bem que a capoeira não é de maneira alguma um esporte. Hoje, ela foi “lavada” como uma dança cultural, nativa. Desta maneira, a capoeira é, para a hierarquia brasileira, “aceitável”.
Prestígio internacional
Muniz e seu grupo, o Olodum, estão fazendo demonstrações onde quer que consigam encontrar audiência. Seus esforços em festivais folclóricos lhes conseguiram prestígio internacional, apesar da desajeitada ajuda dada pelos canais oficiais do país.
Em 1968, o Olodum representou o Brasil no 3o Festival Folclórico Latino Americano, realizado na Argentina,  e levou o segundo lugar geral após ter vencido três medalhas de ouro e uma de prata. Este ano, eles ficaram em primeiro lugar no Festival Latino Americano realizado no Peru. Sua performance foi tão tocante, suportada por instrumentos musicais que são parte de sua aparência “lavada”, que o ministério brasileiro está fazendo homenagem à arte com a inclusão de demonstrações de capoeira na sua agenda oficial de demonstrações.
Mas esta homenagem é ao desenvolvimento do negro nas artes marciais. Apesar de os estudantes de hoje serem membros de todas as raças, assim como acontece de muitos dos estudantes de artes marciais orientais serem brancos, os negros recebem a maior homenagem através de seu desenvolvimento da capoeira.
Nada faz o negro andar mais orgulhoso de si do que seu laço na cultura da arte marcial. Essa herança tornou-se arraigada no folclore da história das aretes marciais. E há uma pitada de oriental em sua constituição.

Quão estranho foi para essa herança surgir no Brasil e aparentemente terminar lá, porque os escravos foram negociados e espalhados por todo o mundo. Muito possivelmente, se tivesse havido instrutores da arte marcial nos Estados Unidos, a capoeira poderia ter mudado a face da história na América do Norte.

Esse não é um tratado de direitos civis; é um testemunho de uma arte marcial legítima e austera, que se identifica com todas as tradições de outras formas de arte marcial. Assim como os senhores feudais japoeneses oprimiram a população de Okinawa, fazendo com que estes buscassem maneiras efetivas de auto-defesa, assim é com a capoeira, desenvolvida a partir do africano escravo que foi treinado para lutar contra elementos em sua terra natal, mas que voltou o uso do seu treinamento para lutar contra os atormentadores da dignidade humana no Brasil.

Representantes do Brasil, aqueles que desejam olhar com prazer a história de sua nação, gostariam que as demonstrações de dança continuassem a ser tratadas como dança. De fato, a capoeira, por seus aspectos potencialmente perigosos, precisa ser praticada como uma dança, um kata, mas não pode haver um kumite. Os praticantes conhecem a regra e são forçados a aceitá-la, mas eles acreditam sinceramente que a arte poderia ser um esporte dinâmico se as rédeas do governo míope fossem removidas.

Sabidamente, há muitos praticantes da arte que estão trabalhando sem chutes ou socos. Isso tem resultado em alguns efeitos danosos, e mesmo eles reconhecem que o poder da arte precisa ser moldado de alguma maneira em um esporte do qual a nação possa ter orgulho. Assim como Gichin Funakoshi moldou o karate e Jigoro Kano moldou o judo, os líderes da capoeira, talvez Mestre Bimba, estão buscando por uma combinação de esporte e arte.
A ênfase da capoeira é na força muscular, flexibilidade das articulações e movimentos rápidos. Todos esses são calculados para subjugar, e subjugar rapidamente, qualquer ameaça, qualquer batalha.

Movimentos corporais rápidos
A capoeira usa muitos movimentos corporais rápidos, como a maioria das artes marciais. Mas ela põe mais ênfase no poder das pernas, armamento pesado quando usado por lutadores treinados. Um capoeirista pode enfrentar um oponente face a face, mas em uma fração de segundo ele pode descer ao nível do solo, disparando um pé fortemente em uma área de ataque vital. Tem sido dito que o lutador de capoeira, treinado para colocar poder de ataque em seus pés, pode efetivamente destruir um homem com um chute mortalmente bem posicionado.

Que isso aguça o interesse daqueles que a veem, tem sido bastante bem-documentado. Em Los Angeles para comparecer a um festival folclórico, os membros do Olodum foram cercados por estudantes, pedindo para demonstrarem em escolas e universidades locais. Em cada demonstração, havia mais interesse em trazer a arte marcial para os Estados Unidos. Muitas das pessoas fazendo os pedidos eram, para a surpresa de ninguém, da comunidade negra.

Em São Paulo, Brasil, Waldemar dos Santos é o homem responsável por tornar a capoeira popular. Sua é uma missão que já viu a face da determinação turvada pelas barreiras à sua perseverança.
Dos Santos, um homem baixo e forte com mãos e testa marcados por cicatrizes, aprendeu sua capoeira nas ruas. Mas ele é o mais proeminente professor nesta cidade onde os estudos de judo e karate atingiram um novo pico de interesse e prática. Aos 37, o homem está determinado a ver a capoeira se tornar ainda mais importante que essas outras artes marciais. “Essa é brasileira”, ele diz com certeza. “Esta arte de combate está no sangue”.
Tão eminente é Dos Santos sobre a capoeira e seus laços nacionalistas, que mais de 100 estudantes aprendem sob sua tutela. Ele aprendeu a arte marcial nas clareiras de terra batida, que vieram a se toranr “academias” para a capoeira do Rio de Janeiro, Brasil – mas agora que retornou a São Paulo, o jovem está determinado a tornar a capoeira “oficial”.
Ele também, sofreu a opressão das autoridades, tendo nomeado seu “curso” um movimento folclórico brasileiro. Seus estudantes praticam no que era o salão de uma casa, suas paredes agora sujas com palmas e pés sujos. Após seis meses de movimentos de “dança”, que na realidade são o “kata”, Dos Santos instrui seus alunos na fase violenta da arte. “Eu admito”, diz ele, não muito orgulhos da afirmação, “que a capoeira brasileira é um dos estilos formalizados mais sujos que eu conheço”.

Quão “suja” a capoeira tem sido, ou se tornou ? Os livros de história não são claros sobre esse ponto, também. Há muitas lendas cercando a arte marcial e explicando como ela foi usada por marinheiros brasileiros que a aprenderam e “adaptaram” dos escravos. De acordo com algumas fontes que relutantemente admitem isso, os marinheiros usavam a capoeira para matar, afixando facas e navalhas a seus pés e mãos antes de entrar numa luta. Dos Santos dá de ombros ao falar sobre essa faceta. Talvez assim tenha sido como a arte tenha sido feita “bastarda” pelos marinheiros brasileiros, me ele tem confiança nas mãos e pés vazios para ultrapassar esse vício.

Registros policiais recentes
Registros policiais recentes no Rio mostram o que acontece quando a capoeira sai de controle. A polícia militar tentou prender um capoeirista bêbado apelidado Mestre Satã. Satã encarou um pelotão de 24 policiais e os combateu ao empate. Sete policiais foram hospitalizados, dois com braços quebrados e dois com fígados rompidos. Quando Satã ainda estava de pé, desafiante, após uma bateria de 24 cassetetes, a polícia teve que decidir por atirar nele ou deixá-lo desacordado. Decidiram pela última opção.
“Os pés são as armas mais mortais de um homem”, diz Paulo Romero, um praticante de capoeira do Rio. “A cabeça é a parte mais fraca. A capoeira visa trazer a arma mais forte contra o ponto de fraqueza”.
Mestre Bimba definiu o esporte-arte moderno e traçou 72 movimentos distintos que tem nomes vivazes, similares aos dados no tai chi chuan, tais como “tesoura do papai”, “bananeira” e “rabo-de-arraia”.
“Antes da Segunda Guerra Mundial”, Mestre Bimba diz, “a capoeira era ilegal”.

A polícia era chamada onde quer que houvesse a prática. Agora, finalmente, ela está sendo apreciada pela beleza física que realmente é. Velocidade, agilidade e multiplicação da força são a chave.

Mestre Bimba sabe que essa definição está em conflito com a visão dos capoeiristas sobre a arte. “Capoeira é tão graciosa quanto um balé, mas foi criada para matar”, ele admite. “Em uma luta de rua no velho Brasil colonial, capoeira era uma luta até o fim. Uma faca, uma navalha, uma garrafa quebrada, faziam um capoeira valer 20 homens”.
Pastinha, entretanto, foge do desprezo contra a arte. Historicamente, ela pertence ao Brasil e deveria ser reconhecida, em sua opinião. “Como brasileiro”, ele diz, “eu estou orgulhoso desse país amistoso. O capoeira encontrando seu adversário tem a possibilidade por meio da leveza e da rapidez da arte, de desarmar qualquer oponente, ou tomando sua arma ou vencendo-o ao atirar o adversário armado no chão”.

Pastinha ainda é a autoridade primária na arte, e ele tem cuidado de desenvolvê-la até um ponto de respeitabilidade. Mestre Bimba é o mais reconhecido praticante e professor no Brasil, e seus estudadnete são tão entusiastas das técnicas, quanto são estudantes de qualquer lugar. Há alguns infelizes por ela estar presa ao aspecto de demonstração, por mais chamativo que ele seja com seu acompanhamento musical e roupas coloridas, geralmente calças listradas que dão uma aparência berrante e carnavalesca que a maioria. Ao menos a arte está sendo nutrida e algum dia talvez, se ela continuar a viver e ganhar em popularidade, a capoeira pode tornar-se uma arte marcial completa e uma paixão nacional.

Nesse momento, uma universidade a aceita como parte de seu currículo, dentro de seu programa folclórico. Movê-la para a educação física pode ser uma realização delicada, mas enquanto esse dia não chega, os seguidores da arte vão continuar a demonstrá-la, permitindo às pessoas se esquecerem que ela é realmente um exemplo do poder negro.

Pareidolia: cara de um, focinho do outro

Tenho visto circular pelo Facebook a imagem abaixo, que compara o belíssimo rabo-de-arraia do Cezar Mutante a um suposto “desenho antigo” mostrando um capoeirista acertando o mesmo golpe em um oponente.

Eu nunca tinha visto o tal “desenho antigo”, e fiquei curioso para saber de onde o mesmo vinha – certamente não pertencia aos artistas “clássicos” que ilustraram a capoeira em tempos pré-fotografia: Debret, Rugendas e Harro-Harring.

“Dança de guerra” – Rugendas
“Negros dançando” – Harro-Harring

“Escravo tocando berimbau” – Debret

Muito menos pertencia a outros artistas mais “modernos” como Kalixto ou Carybé…

Carybé

Kalixto

Com a curiosidade cada vez mais atiçada, prestei reparo no texto do rodapé do “desenho antigo” – que me levou até o site da BNF (Bibliothèque Nationale de France). Lá, encontrei um texto falando sobre a “diamanga malgache” (o mesmo nome citado no rodapé do “desenho antigo”). Como não sei ler francês, usei o tradutor do Google para me ajudar (traduzi apenas parte do texto original). O resultado foi o texto abaixo, inferido e completado por mim a partir do resultado da tradução automática:
Antes da ocupação francesa, os malgaxes praticavam o esporte, mas à sua maneira.


Havia vários tipos de esportes, como “balahazo”, o “tolona”, o “totohondry”, o “vikina” e o “diamanga”. E este último foi o mais popular. Consiste na troca de chutes entre adversários. O “diamanga” é lutado por dois jogadores apenas, ou entre dois grupos que fazem vários jogos – cada bairro, cidade e aldeia  tem seus campeões.


E reuniões entre os campeões são sempre eventos sensacionais para os espectadores, que vinham às vezes de longe para participar das lutas – exatamente como acontece hoje em Tananarivo durante os jogos de rugby entre equipes do campeonato na capital.

Bem, então agora sabemos que há uma luta de chutes originária de Madagascar (pátria dos malgaxes), chamada diamanga, que tem pelo menos um golpe parecido com a capoeira. Desse ponto em diante, eu não consigo mais entender a relação entre o desenho escolhido e o título da imagem, “Capoeira luta eficiente”.

O que a pessoa quis dizer com “no passado” ? Que a capoeira é descendente da diamanga ? Ou quis simplesmente ilustrar uma crença (a de que a capoeira sempre foi uma luta perigosa) a qualquer custo, e para isso usou a imagem que tinha à mão ?
Camaradas, a capoeira não é diamanga. Capoeira não é l’ag’ya. Capoeira não é danmye. Capoeira não é moring. Capoeira não é mani. Capoeira não é n’golo. Que são todas frutos da mesma raiz, negra e forte, disso não há dúvida – mas querer reduzir uma à outra apenas para provar um ponto de vista, no meu modo de ver, é uma grande injustiça para com todas essas lutas.
Mas talvez o ponto é que o autor da imagem não tenha tido a intenção consciente: ele pode simplesmente ter sido vítima da pareidolia. Esse fenômeno comum é um truque que nosso cérebro aplica em nós: os humanos são programados naturalmente para reconhecer padrões de imagem. É por isso que olhamos para uma nuvem e vemos “um castelo” ou “um tigre”; é por isso que vemos o rosto de uma santa na condensação de vapor na janela… O que você vê nas imagens abaixo ?
Uma cara na rocha ?

Um leão, ou uma árvore cortada ?

Uma tartaruga com um sapo nas costas, ou um cogumelo ?

Uma caixa “espantada” ?
Um peixe-ovo
E nas imagens abaixo, o que você vê ?
Capoeira ? Não, n’golo.

Capoeira ? Não, moring.
Capoeira ? Não, savate – que sequer tem raiz negra…

As últimas imagens não são exemplos clássicos de pareidolia, porquê não fazem com que o observador veja objetos que não existem. Mas não deixam de ser pareidolia no sentido de que levam a entender algo que não é real.
 De tudo o que foi dito, eu quero frisar algumas coisas:
1) a necessidade de se provar um ponto de vista usando quaisquer argumentos. Vi isso acontecer recentemente com a publicação de uma foto do Cacique Raoni “chorando por causa da construção de Belo Monte”. A foto era real, mas a situação em que ela ocorreu, não era. O choro do cacique aconteceu alguns anos antes do assunto Belo Monte surgir. Pergunto então: se pretendemos lutar contra uma mídia inconsequente e que forja fatos, é válido usar as mesmas armas que ela ? Informação é poder, e informação falsa é poder falso. Eu acredito que dois erros não fazem um acerto.
2) a necessidade de provar que a capoeira serve para a luta física. Primeiramente, me espanta que alguém que conheça a capoeira ainda tenha dúvida. Depois, me espanta o fato de alguém acreditar que uma vitória no ringue usando golpes de capoeira prova a eficiência da capoeira – como se a derrota no ringue provasse que a capoeira não é eficiente. Não existem estilos perfeitos, existem lutadores perfeitos. Praticantes de capoeira podem lutar, perder ou ganhar – mas como Mestre Pastinha bem disse, “caso a capoeira falhe, será culpa dos capoeiristas”.
Para terminar, uma bela imagem…
Capoeira? Sim! O Mestre Camisa Roxa aplica uma pantana em Fernando Pallos (1969)

No passo do urubu malandro

Texto: Carlos Eugênio Líbano soares

João Batista já tinha arriado quando viu cambando o pardo Marcelino, escravo de um tal Mendes Viana. O pardo era carrapeta, mas o João teve medo de ser agaturrado. Não iria cair na ébia, nem desgarrar como um capadócio que via um chanfalho qualquer, muito menos espirrar ou botocar. Nas rodas de capoeiragem da rua da Vala, mesmo pronto, João era leal, conhecido como um que firma.
Mas o pardo começou a florear, lustrar, figurar na sua frente, e ele ficou de guarda alta para não cair na lodaça. Começou a pegada como uma caveira do espelho, e João soube aprumar-se, dando uma carrapeta. A cambachilra atordoou o cativo. João tentou uma calçadeira, mas o cativo era bom de pulo. Ele então ficou caranguejando, ladeando. O pardo deu uma passarinhada, que fez João Batista cair num passo do constrangimento. Ele levantou-se, mas não estava lanhado. João começou a espalhar-se, a esperar. Nisto um estranjaparou para assistir a cena.
O pardo escravo era bom do jocotó, sabia fazer letras, era hábil no laço. João Batista não viu o pardo com um manhoso. Preparou seu passo. Deu uma pantana que o pardo foi cair nolajedo. Este se recuperou com uma rabanada, mas o livre escapou rabejando. O cativo aí tentou matreiramente passar um rabo de Galo. João Batista achou que aquilo era coisa dePiaba. Antes do bote ele deu um magnífico rabo de arraia, que derrubou o escravo com sardinha e tudo. João Gritou: “Se aprume, quero ver melado”.
Irado, o pardo partiu para encher como um tira-teima que resolve a turimbamba. Mas levou uma tunga e ficou ali mesmo. O boche, com cara de bife, olhava com gozo a Dança de Velho. Após rabear frente aos tentos do João este acertou uma pantana no Marcelino, que tungado, tentou trastejar junto ao bamba, mas tava pangaio. O mofento estava pronto, e ainda levou uma lamparina. Lanhado, ele saltou fora.
João Batista seguiu seu caminho, como um urubu malandro, enquanto o godeme assistiu tudo, com ar de mahana.
Roda…
O texto acima é uma narrativa imaginária de um combate de capoeiras nos tempos idos do Rio imperial, usando a gíria das antigas maltas. Estas gírias foram recolhidas por Jair Moura em seu livro Mestre Bimba: A crônica da capoeiragem, Salvador, ed. do autor, 1993. Pp. 65-66