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“O golpe é como a semente, você não vai jogar em qualquer lugar” – Mestre Decanio
Entrevista realizada por Letícia Cardoso de Carvalho e publicada na revista Praticando Capoeira, ano I, n° 8
Quando começou a treinar capoeira?
Em 1963, com Mestre Bimba. Ele me tratava muito bem.
O senhor formou-se na segunda turma de Mestre Bimba?
Não, não havia turma. Bimba ensinava a seqüência, com seis meses ele formava o aluno, mas uma coisa era formar e a outra era a formatura. Quando eu me formei tinha uma pessoa que tinha entrado depois de mim, uma que tinha entrado antes, mas nós fizemos a formatura todos juntos. Bimba aguardava a oportunidade de juntar mais alunos para fazer uma festa só.
Mestre Bimba mudou o método de ensino e o estilo ao longo do tempo?
Muito. A ponto de ter alunos que não conheceram a capoeira de Bimba que eu conheci. Cada aluno fala de Bimba da época que viveu com ele. Bimba gostava de falar em parábola. Mas Bimba mudou muito no decorrer do tempo. A angola também mudou da época de Pastinha para cá; é mentira dizer que não mudou.
O capoeirista joga diferente, dependendo do ambiente, momento histórico que está vivendo, trajetória histórica dele. A palavra de uma pessoa só pode ser compreendida no determinado instante que é dita, olhada e julgada. Depois, ela perde todo o significado. Nada que é humano é definitivo. Nós estamos em processo de transformação permanente… depois que eu encontro determinada pessoa eu não sou mais o mesmo, eu cresci, mesmo que essa pessoa não preste, se eu souber interpretar eu aprendo com ela.
Não tem ninguém que não possa dar nada a ninguém. A verdade é que a humanidade toda é uma unidade. Não adianta querer julgar Bimba pelas minhas palavras ou pelas de Hélio. Eu posso dizer que eu não conheço ninguém que eu possa comparar a Bimba. Para nós todos ele era o pai, o paradigma do pai. O que a gente tem que aprender é a verdadeira lição que a capoeira dá: somos todos irmãos. A coisa mais gostosa é a gente encontrar um ex-companheiro de capoeira. A capoeira une todas as gerações, todos os homens. Ele permite que cada um seja ele próprio, cada um faz a capoeira que é capaz.
O senhor acha que está tendo muita agressividade nas rodas de capoeira hoje em dia?
Não, na grande maioria das rodas eu vejo a camaradagem. Mas eu vejo uma coisa que não é para ser feita na roda, que me preocupa: cada um está jogando capoeira como se não existisse o outro. Estão soltando golpe de torto a direito e sem querer acertam o outro. A primeira regra que a gente aprende é que não se solta um golpe sem ver onde vai pegar. Não se solta um golpe sem primeiro cavar a oportunidade do golpe ser eficiente. É como a semente: você não vai jogar em qualquer lugar do solo. O golpe é como a semente, tem que selecionar o lugar para aplicá-lo; isso é o que chamam de armar o golpe. Hoje ninguém está estudando o jogo, está dando pontapé, cabeçada, salto, como se estivesse sozinho na roda. Não desenvolve a parceira, a audácia, a noção de desequilíbrio e cria sltuações de acidente. Essa é a única coisa que é lamentável para mim.
Outra coisa que me preocupa é que estão acelerando o ritmo da capoeira cada vez mais e consequentemente não há oportunidade de se ver o que se está fazendo na roda. Eles ainda não perceberam que essa angústia, esse ritmo acelerado, nos leva a um estado de consciência diferente da vigília. Nesse ritmo, você faz movimentos com propósito de agressão e às vezes você entra num movimento que pode até matar o outro. O ritmo acelerado fez você perder a consciência, o que poderia ser freado não é mais. Bimba não admitia um golpe na capoeira que não pudesse ser utilizado numa luta. Outra coisa errada que eu vejo é o capoeirista inclinar o corpo para trás para se esquivar do golpe; isso é errado, o certo é você acompanhar o golpe esquivando-se e não jogando o corpo para trás.
Até quando o senhor teve contato com Mestre Bimba?
Até a véspera dele ir para Goiânia.
Como eram os treinos de emboscadas feitos por Mestre Bimba?
O treino de emboscada não pode ser reconhecido como emboscada, pois o intuito não era fazer a emboscada e sim fugir da emboscada. Era dado um trajeto para o capoeirista. e no meio eram colocados obstáculos para não deixá-lo passar e chegar ao final: se o capoeirista fosse detectado nessa área, ele tinha sido pego, aí a brincadeira acabava. O treino de emboscada não era feito para o capoeirista apanhar, e sim para ele aprender a fugir das emboscadas; não era guerrilha e sim fuga. Você tinha que passar pelas armadilhas sem ser pego; se fosse pego não era aprovado; não tinha essa de bater no capoeirista porque ele foi pego. Se o outro pegasse o camarada, acabou, ia comemorar e não bater. Era igual brincadeira de criança, o pega pega, pegou já era, já mostrou a falha. Com o passar do tempo houve uma modificação no conceito do treino de emboscada, onde esse passou a ter caráter de luta: o emboscado passou a bater no emboscador. Nada em capoeira é para bater.
Quais são seus planos na capoeira?
Continuar vivo e dizendo a verdade.
“Minha imagem é minha cabeça” – Mestre Curió
Publicado originalmente no fanzine Mandinga, em 7 de junho de 1998
Quem é o mestre Curió?
Meu nome é Jaime Martins dos Santos, uma pessoa muito sofrida e vivida no cenário da capoeira nacional.
E o apelido de Curió?
Meu avô também era capoeirista e se chamava Curió, e esse nome surgiu por causa disso, quando eu comecei na capoeira todo mundo falava, “É o mesmo jogo do avô!”. Tentaram uma época me chamar de Dois de Prata, porque eu usava muita prata, mas não pegou.
Como foi que o senhor entrou para o mundo da capoeira?
Eu comecei capoeira com seis anos, e nem gostava muito, mas eu estudava numa escola, e tinha uns amiguinhos maiores do que eu, e eles aproveitavam do meu tamanho e me batiam mesmo. E eu tenho toda minha família de capoeiras, eu senti que estava na hora de aprender, aí cheguei pro meu bisavô e disse: “Eu preciso jogar capoeira”, e ele respondeu: “Muleque, você já quer jogar capoeira, mas você não gostava!” Aí eu expliquei tudo a ele. Na primeira aula ele me espancou o que pôde, mas eu aguentei, e quando voltei para a aula, já mais esperto, os garotos quando vieram me bater esbarraram no meu pé e na minha cabeça.
Qual foi o seu contato com Pastinha ?
Minha relação foi através do finado mestre Besouro de Santo Amaro, meu bisavô, ele me disse que se eu quisesse continuar com a capoeira, tinha que procurar Mestre Pastinha, porque só ele era angoleiro de verdade e de confiança.
Como era o Mestre Pastinha ?
Era uma figura incalculável, sutil, muito educado e que fazia seu trabalho com muita sinceridade e honestidade, mas era rígido, muito rígido, e foi graças a essa rigidez que ele deixou tantos alunos bons.
Como era a relação entre aluno e mestre ?
Hoje os alunos querem que o mestre corra atrás deles, mas, naquela época, os alunos é que corriam atrás do mestre, porque tinham interesse. Hoje não levam capoeira com sinceridade, senão seria outra coisa!
Qual a importância da capoeira Angola hoje em dia ?
A importância da capoeira Angola naquela época e hoje em dia, para mim, é a mesma coisa, porque eu continuo com essa fidelidade que Deus me inspirou, e me nomeou mestre por Pastinha, meu avô, meu bisavô, e que me fez encarar a capoeira de corpo e alma. E eu a faço com muita sinceridade e responsabilidade como aprendi na Escola Mestre Pastinha, e tudo aquilo que eu achei lá, é o que eu estou transmitindo para os meus verdadeiros alunos, aqueles que querem me acompanhar e que querem a verdadeira capoeira Angola.
Como você vê a evolução da capoeira ?
Eu não vejo evolução, para lhe ser sincero, eu vejo é a perdição. A capoeira é muito rica, ela não precisa de infiltrações de outras artes marciais, porque ela foi a primeira luta no Brasil, e ela já traz sua filosofia. E hoje, o que eu vejo é a descaracterização, estão tirando o brilho, a essência, o patrimônio da capoeira, botam luta-livre, judô, karatê, eu gostaria que as pessoas olhassem com mais sensibilidade. E hoje, como Presidente da Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA), eu estou brigando em busca da originalidade na capoeira, porque, meu amigo!, angoleiro, na Bahia, atualmente tem muito pouco, porque jogar no chão é uma coisa, descer é outra coisa e jogar Angola é outra coisa. Porque capoeira Angola é somada, multiplicada, dividida e subtraída.
E o futuro…
Eu não vou ficar para semente a vida toda, e a minha preocupação é com meus alunos, eu quero que eles tenham alguma coisa de mim quando eu fechar os olhos, quero fazer o mesmo que Pastinha fez, deixar alguém para levar essa capoeira mais a frente e não deixá-la morrer. Eu quero ensinar muita capoeira e ver se ganho algum também… Não posso mais fazer as coisas de graça, estou chegando numa certa idade, já passei da metade e não quero morrer à míngua, pedindo esmola aos leitos de hospitais públicos, como aconteceu recentemente com mestre Bobó, Waldemar, meu mestre, mestre Bimba também e eu estou preocupado. As pessoas só olham os mestres depois de mortos, eu digo aos meus alunos – se quiserem fazer algo por mim, façam enquanto eu estiver vivo, porque depois de morto não estarei vendo nada. Eu não quero morrer e deixar minha família passando necessidade, com meus à toa como os filhos de Bobó, que era uma pessoa que tinha alunos em tudo que é lugar do mundo, e estes, quando ele estava no hospital, nem ligaram! E aí fica difícil. Eu tenho fé em Deus, nos orixás, Cosme Damião, que eu vou obter sucesso. Minha imagem é minha cabeça, e eu não estou aqui me preocupando com o poder, com cargo, nem com força, estou preocupado com a capoeira.
Religião…
Eu vou em todas religiões, acredito em tudo e desacredito em tudo ao mesmo tempo, mas a que eu tenho mais ligação é a umbanda, porque a capoeira Angola, de certa forma, é umbanda. Eu tenho descendência de africano, de nagô, de índio, então eu estou mais para a magia negra.
Sucesso…
Quando seu sucesso atrapalha alguém eles fazem tudo para lhe derrubar. Às vezes eu digo – não me atrapalhem que eu não sou rico, apenas trabalho para sobreviver, eu não tenho inveja de ninguém, o mesu Deus seu, é o mesmo meu, quando o seu mundo termina o meu começa. Se você não puder me ajudar, não me atrapalhe!
Como o senhor vê esse grande número de academias pelo Brasil, ensinando a capoeira regional ?
Eles às vezes se ferem quando mestre Curió fala, mas eu falo porque tenho êxito, e a capoeira que fazem por aí é puramente de exibição, sem essência. Dizem que é a capoeira Regional de mestre Bimba, mas até a capoeira de Bimba deixou de ser a mesma, a capoeira dele era gostosa, cheia de artimanhas. Nessas academias o que se vê é o cara tomando bomba, fazendo halterofilismo para ficar que nem o Hulk para jogar capoeira, enquanto a capoeira não precisa nada disso, porque não se mede o homem pelo tamanho e pela estatura, e sim pela sua capacidade.
“O verdadeiro capoeirista não bate no camarada”
MESTRE JOÃO GRANDE
Publicada originalmente na jornal “A Tarde”, em 3 de julho de 1988
A Tarde: Por que o nome João Grande?
Mestre João Grande: Na academia do mestre Pastinha tinha dois Joãos: um pequeno eum grande. Um menor e um maior. O outro é pequeno mesmo.
AT: Onde o senhor nasceu?
MJG: Nasci no interior da Bahia, em Itagi, próximo de Jequié. Tenho 55 anos.
AT: Como o senhor velo parar na academia do mestre Pastinha?
MJG: No ano de 1953, quando eu já estava em Salvador e tinha 20 anos, passei numa roda de capoeira na Curva Grande, onde fica o Nina Rodrigues. Ali tinha capoeira todos os domingos. Eu que morava no Tororó, comecei a ir lá todos os domingos. Gostei da brincadeira. Então, perguntei a João Pequeno, que eu conhecia, onde ele aprendia capoeira. Ele me falou do Mestre Pastinha, que tinha uma academia no Candeal Pequeno, em Brotas. Paguei 20 mil réis e entrei para a academia. De lá só saí com a morte do Mestre Pastinha, há cinco anos.
AT: E como foi sua convivência com o Mestre Pastinha?
MJG: Assim que entrei na academia, comecei a treinar diretamente com o Mestre Pastinha. Mas a academia ficou parada durante um ano, porque o dono da sala, onde ela funcionava, pediu o local por briga política. O Mestre Pastinha ficou sem academia nenhuma. Então, a gente jogava capoeira no Corta Braço, no Retiro, nas academias de Waldemar, Cobrinha Verde, Mola. Até que os Filhos de Gandhi arranjaram uma salinha para Mestre Pastinha, no Pelourinho.
AT: Capoeirista era muito perseguido naquela época?
MJG: Ninguém gostava de capoeirista. Era como o candomblé, que todo mundo queria acabar. Capoeira era para gente da pesada, estivador, carregador de caminhão. Era coisa de malandro. Mas como o tempo foi mudando, capoeira agora é ensinada nos colégios, entre policiais civis e militares, nas Forças Armadas. Isso é coisa recente, de 1970 para cá.
AT: E como a capoeira foi ganhando espaço?
MJG: Foi através do Mestre Pastinha, que divulgou a capoeira junto aos jornalistas, escreveu sobre a capoeira… Foi tirando a impressão de que a capoeira era coisa de malandro. Mostrou que era um esporte, bom para a saúde.
AT: E qual era a filosofia da capoeira ensinada pelo Pastinha?
MJG: Ele dizia sempre que capoeira tem muita malícia, mas não é violenta. Capoeira tem jogo bonito, seguro, mas não violento. Para aplicar o golpe, não precisa derrubar o camarada, bater para matar. Bastava mostrar o golpe. Na capoeira angola não existem golpes premeditados. Tudo depende do capoeirista; ali na hora podem surgir golpes nunca vistos. Um angoleiro nunca pode dizer que aprendeu tudo sobre capoeira.
AT: E por que a capoeira hoje está tão violenta?
MJG: Há muitos mestres e pouca capoeira. Antigamente não era violenta. Mas agora, os mestres não estão tão dedicados. E só pensam em dinheiro.
AT: O que é a capoeira regional?
MJG: A capoeira regional, criada pelo Mestre Bimba, está mais próxima da luta livre. É uma capoeira para turista ver. É violenta e tem aquela coisa de mudança de faixa, que nem judô e caratê. Olha, nunca vi isso de dar faixa entre os angoleiros.
AT: O que é ser um bom capoeirista?
MJG: O bom capoeirista tem de tocar bem um berimbau, pandeiro, cantar…
AT: Qual a proposta do Grupo de Capoeira Angola-Pelourinho, do qual o senhor faz parte?
MJG: Manter a linha da capoeira da Angola, seguir os ensinamentos do Mestre Pastinha e não capoeira por dinheiro. No grupo só entra quem quer mesmo aprender capoeira. Aprender a capoeira mais por devoção e não como forma de luta e agressão. Capoeira é de um ensinamento muito profundo, é uma filosofia de vida.
AT: Como é que o senhor viu a morte de China, recentemente?
MJG: Eu estou na capoeira desde 1953 e nunca vi ninguém morrer na roda. A morte foi uma perversidade. Olha, eu fui inimigo de Caiçara durante um ano e jogamos capoeira, mas nem eu peguei ele, nem ele me pegou.
AT: Se o senhor não ganha dinheiro com a capoeira, como é que sobreviveu todo esse tempo?
MJG: Eu trabalho há 22 anos em posto de gasolina, lavando carro, etc., na Barros Reis, no bairro do Retiro. Capoeira só jogava à noite e domingo à tarde. Agora que estou me aposentando, vou passar a ensinar capoeira direto…
AT: E como foi sua participação no grupo folclórico “Viva Bahia”?
MJG: Entrei para o grupo em 1970. Trabalhava jogando capoeira, maculelê, puxada de rede. Viajei a Europa toda, durante dois anos. Depois disso fui para a Moenda, na Boca do Rio, onde passei quatro anos, dando show também, mas eles exploravam demais… voltava para casa às cinco da manhã.
AT: Hoje em dia, a maioria dos mestres são professores de Educação Física. Como é que o senhor analisa isso?
MJG: Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Os mestres antigos nunca foram professores de Educação Física. Aprendi capoeira com ajudante de caminhão, carregador de caminhão, estivador, o pessoal da pesada. E por que agora mestre tem de ir para a universidade? Eles querem tirar a gente da jogada, porque eles estão interessados em ganhar dinheiro, não na capoeira. Então acham que eu, o João Pequeno, o Waldemar, morremos para a capoeira. Eu nunca fui à escola. Minha vida foi praticamente só na capoeira.
AT: Quando foi que mulher passou a freqüentar as academias de capoeira?
MJG: Foi de 1970 para cá, quando a capoeira passou a ser ensinada nos colégios. Nos anos 50, na Bahia, só uma mulher jogava capoeira, era Chicão. Aprendeu na rua mesmo. Era uma mulher que brigava com a Polícia e andava de saia. Vendia acarajé, essas coisas. Amarrava a saia entre as pernas e entrava na roda. Homem não brincava com ela, porque senão ela batia e o camarada caía mesmo. Mas capoeira hoje é para homem, menino, mulher, só não aprende quem não quer!
AT: Em qualquer idade se aprende capoeira?
MJG: A capoeira nasce com a gente, basta descobrir isso.
“A capoeira me fez doutor”
MESTRE JOÃO PEQUENO
Publicada originalmente na revista Praticando Capoeira, #1
Como se sente hoje, aos 82 anos, símbolo da Capoeira Angola no Brasil e no mundo?
Eu me sinto muito bem. Continuo praticando minha capoeira, levando adiante o trabalho de Mestre Pastinha… não tenho doença, estou muito bem.
Como tem sido nesses anos todos dar continuidade ao trabalho de Mestre Pastinha?
Tem sido muito bom e eu sempre vou continuar com esse trabalho.
Mestre Pastinha fez algum pedido ou deixou alguma recomendação ao senhor antes de falecer?
Sim, ele me disse: “João, tome conta disso que eu vou morrer, mas só no corpo; e enquanto a capoeira existir meu nome vai estar vivo”
E para os outros alunos ele deixou alguma recomendação?
Não, para os outros não que eu saiba.
Quando Mestre Pastinha começou a confiar-lhe a Academia?
Logo que cheguei na Academia de Mestre Pastinha ele já me “entregou” a Academia. Eu começava a ensinar os alunos novos que iam chegando… Eu ensinei muita gente… João Grande eu ensinei…
Como era a organização na Academia de Mestre Pastinha?
A mesma que eu uso hoje na minha Academia. Eu sigo tudo igual ao Mestre Pastinha.
O senhor e o Mestre João Grande eram os alunos “prediletos” de Mestre Pastinha. Isso causava algum ciúme nos outros alunos?
Mestre Pastinha dizia: “Na minha academia tem dois Joãos, um joga pelo ar, outro pelo chão, um é cobra mansa, o outro gavião”; ele se referia a mim e a João Grande.
Por que grandes mestres da capoeira, como Mestre Pastinha, morrem na miséria?
Eu não sei… Capoeira tem dessas coisas… Muitos dizem que a capoeira é maldita. Eu luto e trabalho para mostrar que a capoeira não é maldita. Eu não tinha estudo e graças à capoeira hoje eu sou doutor. A capoeira me fez doutor.
Como os alunos reagiram à doença do Mestre Pastinha?
Todo mundo ficou triste mas não tinha nada para fazer.
Quais as dificuldades que tem enfrentado ultimamente?
Eu não sinto dificuldade nenhuma. Não tenho dificuldade… Eu estou bem… viajo, tenho minha Academia, participo de vários eventos…
O senhor acha que a Capoeira Angola mudou da década de 40 para hoje?
Mudou, e mudou para melhor. O jogo, principalmente, mudou para melhor. Hoje o pessoal joga bem embaixo…
O que Mestre Pastinha falava sobre a defesa da Capoeira Angola?
Mestre Pastinha falava que se você visse que um golpe ia acertar o companheiro era para freiar, porque a Capoeira Angola não é para acertar. Agora, ele sempre falou que a Capoeira Angola é luta, e é luta mesmo na hora em que você precisa se defender.
João Grande saiu do Brasil e obteve reconhecimento mundial com a capoeira. 0 senhor acha que se estivesse no exterior estaria em melhor situação?
João Grande está lá fora, ganhando dinheiro… Ele disse para mim. “Se eu estivesse no Brasil não teria dinheiro nem reconhecimento que eu tenho hoje”. Eu quando viajo dou meus cursos mas não estipulo cachê; João Grande estipula cachê em dólar, viaja com aluno e ainda com dois seguranças. (risos)
O senhor gostaria de dizer alguma coisa aos capoeiristas?
Que os capoeiristas não desviem a capoeira para o lado mau, porque a capoeira não é má; mau é o capoeirista que desvia ela pai a o mal. Que os capoeiristas façam capoeira mas façam capoeira com amor.
O senhor tem algum sonho?
Eu espero vida eterna, saúde, paz, tranqüilidade, entendimento, sabedoria… paia mim e para minha família. E que Deus dê resistência para eu continuar toda a vida com a capoeira.
“Tem muita coisa que sei e nunca vi ninguém fazer”
MESTRE ARTHUR EMÍDIO
Entrevista de Geraldo Bezerra de Menezes, originalmente publicada no Jornal do Brasil, em 20 de janeiro de 1987.
Mestre Artur Emídio de Oliveira, nascido em Itabuna, em 31 de março de 1930, é o primeiro e único cordel branco da capoeira (graduação máxima). O seu mestre foi Paizinho, que teve como mestre Nene, um africano, ex-escravo no Recife.
Desde que mestre Emídio se entende, a capoeira é sua vida. O pai, Emídio, e os irmãos também jogavam capoeira nas ruas de Itabuna. Aos 15 anos já era professor.
– No meu tempo, gingou na rua era preso. Corri muito da polícia. Eles vinham a cavalo… Várias vezes fomos em grupo à delegada para soltar o mestre Paizinho.
Depois de andar pelo Brasil, desafiando e lutando com quem aparecesse, mestre Arthur Emídio chegou ao Rio em 1953. Foi trabalhar no Cais do Porto, onde conheceu Valdemar Santana. Em Bonsucesso, abriu uma academia e fez escola. Hoje. independente do estão que se pratique, todos consideram Arthur Emidio um nome intocável na capoeira. O seu estilo é próprio.
– Minha ginga e meu jogo são diferentes. De meus alunos, destaco Mestre Celso. Rei da angola, para mim, são os mestres Malhado e Moraes. Mas esse negócio de angola, angolinha, capoeira tiririca (em Minas Gerais), regional senzala, não me atrai. A regional, por exemplo, é num compasso muito marcado. Capoeira é agilidade. Meu jogo é elástico.
Arthur Emidio lamenta que nada se faça pela capoeira. Já participou de mais de 50 simpósios – “tudo conversa” – e nunca foi consultado a respeito de nada – “tem muita coisa que sei e nunca vi ninguém fazer”.
Sobre o mestre Arthur Emidio, André Lacé, também mestre, faz um comentário consagrador:
– Sempre que joguei com o Mestre Arthur senti a seguinte sensação: a distância que vai de mim para de é bastante maior do que a distância que vai dele para mim Ou seja, o domínio dele na luta é absoluto.
Até boje o único cordel branco na capoeira, Arthur Emidio de Oliveira tem orgulho em dizer que já iez exibição para os presdentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck. Após a apresentação para Getúlio, na Bahia, ainda garoto, na solenidade que se seguiu, não se esquece das primeiras palavraa do discurso de Getúlio:
– Realmente, a capoeira é o esporte do Brasil
João Pequeno foi pras terras de Aruanda
por Pedro Abib
discípulo do mestre João Pequeno
“Quando eu aqui cheguei, a todos eu vim louvar…”
Deve ter sido assim que mestre João Pequeno de Pastinha cantou quando chegou em terras de Aruanda, lugar mítico, para onde se acredita vão os mortos…que nunca morrem…como se crê em África !
Assim como João cantou tantas vezes essa mesma ladainha, onde quer que chegava para mostrar sua capoeira angola aos quatro cantos desse mundo … êita coisa bonita de se ver ! O velho capoeirista tocando mansamente seu berimbau e cantando…dando ordem pra roda começar. Os privilegiados que puderam compartilhar com João Pequeno esses momentos, sabem bem do que estou falando.
Foram 94 anos bem vividos. Aposto que daqui não levou mágoa, não era de seu feitio. Inimigos também não deixou, sua alma boa não permitiria. Partiu como um passarinho, leve e feliz, como vão todos os grandes homens: certeza de missão cumprida.
Deve estar agora junto de seu Pastinha, naquela conversa preguiçosa, que não precisa de muita palavra, que só os bons amigos sabem conversar. E seu Pastinha deve estar orgulhoso de seu menino. Fez direitinho tudo que ele pediu: tomou conta da sua capoeira angola com toda a dignidade, fazendo com que ela se espalhasse mundo afora. A semente que seu Pastinha plantou, João soube regar e cultivar muito bem. Êita menino arretado esse João Pequeno !
Nunca foi de falar muito. Só quando era preciso. E nessa hora saía cada coisa, meu amigo ! Coisa pra se guardar na mente e no coração. Mas muitas vezes falava só com o silêncio. Do seu olhar sempre atento, nada escapava. Observava tudo ao seu redor e sabia a hora certa de intervir, mostrar o caminho certo, quando achava que o jogo na roda tava indo pro lado errado. Até gostava de um jogo mais apertado, aquele em que o capoeira tem que saber se virar pra não tomar um pé pela cara. Mas só quando via que os dois tinham “farinha no saco” pra isso. João nunca permitiu que um jogador mais experiente ou maldoso abusasse de violência contra um outro inexperiente ou mal preparado.
Quando tinha mulher na roda então, aí é que o velho capoeirista não deixava mesmo que nenhum marmanjo tirasse proveito de maior força física ou malandragem pra cima de uma moça menos avisada no jogo, coisa comum na capoeira que é ainda muito machista. A não ser que ela tivesse como responder à provocação na mesma moeda. E era cada bronca quando via sujeito tratar mal uma mulher na roda, misericórdia ! Afinal, ele sempre dizia que “a capoeira é uma dança, então como é que você vai tirar uma mulher pra dançar e bater nela ?”. Não pode !
A simplicidade, a generosidade, a humildade, a paciência, a sabedoria, a fala mansa e contida, sem necessidade de intermináveis discursos de auto-promoção, eram as características mais notáveis de João Pequeno, próprias de um verdadeiro mestre. Muito diferente do que se vê na grande maioria dos mestres da atualidade, diga-se de passagem, que auto-proclamam sua importância para a capoeira, que fazem e acontecem… que batem no peito e falam, falam, falam.
Nesses quase 20 anos de convivência muito próxima a João Pequeno, tive o privilégio e a oportunidade de aprender algumas das mais caras (e raras) lições de vida e humanidade, que jamais teria aprendido em qualquer universidade, nem sequer poderia obter através de algum diploma qualquer que fosse. Esse homem analfabeto que nunca frequentou os bancos da escola, foi responsável por um legado de ensinamentos que orientam milhares e milhares de pessoas em nosso país e também no mundo todo, que reconhecem o valor de João Pequeno como um dos mais importantes mestres da cultura popular e da tradição afro-brasileira de todos os tempos.
João Pequeno representa a voz de todos os excluídos, marginalizados, oprimidos que através da capoeira encontraram uma forma de lutar e resistir, manter viva a tradição de seu povo e dar legitimidade a uma cultura que foi sempre perseguida e violentada nesse país. O velho capoeirista soube conduzir muito bem sua missão de liderança, responsável pela recuperação da capoeira angola a partir da década de oitenta do século passado, quando após a morte do Mestre Pastinha, se encontrava em franca decadência. Quando se instalou no Forte Santo Antonio em 1981, João iniciou a partir de sua academia um movimento importantíssimo de revalorização da capoeira angola, fazendo com que ela se difundisse e se consolidasse como expressão da tradição popular afro-brasileira, presente hoje em mais de 160 países.
Mas João Pequeno nunca precisou ficar afirmando isso por aí, nem tampouco dizer da sua importância para a capoeira. João é considerado um dos grandes baluartes da capoeira angola, mas ele nunca saiu proclamando isso para ninguém. Na sua humildade nos ensinou que o reconhecimento do valor do mestre tem que vir dos outros, da comunidade da qual faz parte e nunca do próprio discurso muitas vezes carregado de vaidade e arrogância. João simplesmente jogava e ensinava sua capoeira. E por isso era grande !
E de lá, das terras de Aruanda continuará a iluminar os caminhos de todos nós.
João Pequeno não morreu !
* Pedro Abib (Pedrão de João Pequeno) é capoeirista, sambista, cineasta e professor da Universidade Federal da Bahia
“Continuaremos lutando para que a capoeira seja adotada como nossa representante cultural”
Mestre Sena
Publicado originalmente no jornal APM, em outubro de 1984
P: Como é que nasceu esta sua paixão pela Capoeira?
R: A minha paixão pela Capoeira foi à primeira vista, quando em 1949. com apenas dezessete anos de idade, fui levado pelo grande capoeirista Adib Andraus a presenciar uma demonstração do Mestríssimo Mestre Bimba, na Sociedade Israelita, no Desterro.
P: O fato de seu filho ter implantado uma Escola de Capoeira na Argentina significa que a sua família acompanha o seu devotado trabalho à causa da Capoeira?
R: Que a nossa família acompanha a capoeira, não há dúvida, em razão de que eu, diuturamente, há três décadas, me ocupo quase que exclusivamente da Capoeira, para que ela exista em estado significante. Mas o fato de o meu filho Yoji ter instalado uma escola na Argentina não contou com o nosso beneplácito em razão de o mesmo não ter seguido convictamente o nosso trabalho quando entre nós morava. A iniciativa dele, guardando as devidas proporções, foi mais ou menos parecida com a de todos aqueles que vêm ensinando a nossa Arte Marcial fora do Brasil, por razões de sobrevivência.
P: Há muita gente se intitulando “Mestre de Capoeira” por aí. Inclusive, em Rio, São Paulo, Brasília e até nos Estados Unidos há aqueles que se propalam “mestres”, embora realizem um trabalho passível de questionamentos, até mesmo um desserviço à Capoeira. Como você se sente, com o título de “Mestre” que ostenta?
R: Em primeiro lugar, queremos declarar que a palavra “mestre”, na área da Capoeira, perdeu o seu verdadeiro significado. Eram considerados “Mestres”, nas rodas empíricas de Capoeira, aqueles que assim eram aclamados por decisão do meio onde militavam. E essa aclamação vinha geralmente da postura Moral e Brava que os mesmos assumiam e demonstravam perante os demais. O exemplo maior desta postura foi Manuel dos Reis Machado, o Bimba.
Hoje qualquer tocador de berimbau ou pseudo-instrutor, sem tradição na roda, e sem nenhuma contribuição ao equilíbrio ou progresso da Capoeira, se intitula “Mestre”. Destacam-se no cenário do Brasil, e na Bahia, aqueles que preservam a Arte Marcial Brasileira, enriquecendo-a com uma mentalização cívica e filosófica genuína.
Não podemos deixar de citar os Mestres Canjiquinha, Gato, Caiçara, ]oão Pequeno, Bigodinho, João Grande, Atenilo, Clarindo e o Grande Mestre Waldemar da Liberdade, que criou uma real orquestra de berimbau. Fora desses mestres, há muitos impostores, que se servem da Capoeira, ao invés de servi-la. A quem interessar possa, para evitar o desgaste e a apropriação indébita do título de “Mestre”, fizemos editar um manual no ano de 1980 no qual sugerimos um conjunto de parâmetros que, mediante um balizamento pré-estabelecido, possibilite aos que o mereçam, o honroso dignificante título.
P: Que papel desempenhou Mestre Bimba em sua vida?
R: O Mestríssimo Mestre Bimba desempenhou um grande papel na formação de minha personalidade, principalmente pelos ensinamentos que adquiri com o mestre na aplicação da Capoeira como filosofia de vida. Infelizmente, até hoje, Mestre Bimba só foi analisado sob o aspecto belicoso que foi, sem dúvida, uma parte primorosa de sua vida capoeirístíca. É necessário, contudo, que se faça uma ligação maior entre Mestre Bimba e a Capoeira como um todo, pelo muito que se enriqueceram mutuamente e ofereceram ou vêm oferecendo à cultura popular. E esta é uma dívida que cabe a nós resgatar.
P: Nota-se que você é muito mais Mestre Bimba que Mestre Pastinha. Inclusive acha você que mestre Pastinha foi usado por determinados intelectuais baianos de renome. Como situar na história da capoeira baiana essas duas figuras de proa?
R: Mestre Bimba é para a capoeira o que foi Pelé para o futebol, Jesse Owens para o atletismo, Cassius Clay para o boxe. Todos eles se negaram a fazer concessões que descaracterizassem os seus ofícios, embora fossem profundos estilistas e inovadores. Mestre Bimba foi um revolucionário da capoeira, que pode ser considerada como tendo vivido três momentos históricos fundamentais: o da Escravatura, o da República e o de Mestre Bimba. Pode-se comparar afigura de Mestre Bimba à altivez do João Cândido, ao denodo de Martin Luther King, à persistência de Gandhi, à renúncia e idealismo de Rondon. Dois fatos confirmam esta personalidade extraordinária do Mestre Bimba; o primeiro fato foi a negativa dada ao convite feito para que integrasse a Guarda Pessoal do Presidente Vargas, quando a isto o convidaram em pleno Palácio da Aclamação. Ao invés de buscar a glória, preferiu a sua independência, altivez, de que tanto se orgulhava. O segundo foi a sua ida-protesto para Goiânia, recusando-se a regressar à Bahia mesmo estando à beira da indigência. Mestre Bimba não se acomodou, foi um Martinho Lutero da Capoeira. Já o Mestre Pastinha praticou uma Capoeira de alta qualidade técnica, até a idade provecta, mas foi um conservador astuto, e que agradava àqueles que tencionavam folclorizar a Capoeira. A estes Mestre Bimba não deu vez, com receio, inclusive, de ser manipulado.
P: Afinal, por que os dois nomes de “Capoeira Regional” e “Capoeira de Angola”? Tratam-se da mesma capoeira, ou há diferenças básicas?
R: Embora até mesmo muitos envolvidos com a Capoeira não o saibam, o nome de Capoeira Regional nasceu antes do nome “Capoeira de Angola”. O nome Regional foi dado por Mestre Bimba que, no seu raciocínio, entendeu que, tendo ele dado uma dinâmica nova, como a criação de um método de ensino, a formatura de alunos, o uso de um traje para eventos comemorativos, a criação de novos movimentos, tirando a Capoeira das ruas e das esquinas para as salas, deveria caracterizar o seu trabalho como “Capoeira Regional Baiana”. Já o Mestre Pastinha, contrapondo-se a Mestre Bimba na adjetivação, batizou a Capoeira com o nome de “Capoeira de Angola”. E aí foi que muita gente se enganou, pensando que em Angola existe Capoeira. O que não é verdade.
P: Vamos então esclarecer esta dúvida. Há muito professor ensinando por aí que a Capoeira nasceu na Africa. E há autores famosos que espalham esta versão. Afinal, a Capoeira é originária da Africa ou da Bahia?
R: Muitos se equivocam ao dar à Capoeira, como terra de origem, a África. O certo é dizermos que a Capoeira foi criada por africanos mas já em solo brasileiro, no período colonial. Tudo criado em termos de defesa pessoal, já que sofriam variadas perseguições. Sem dúvida que os escravos trouxeram de sua terra um sistema de movimentação corpórea – batuque – que ofereceria as bases de adestramento e possibilidades físicas. A partir desse dado cultural, aperfeiçoado na imitação dos animais encontrados em nossas matas (macaco, onça. raposa e aranha), e aguçado pelo instinto de defesa, sobrevivência e resistência ante as capturas, o negro fez brotar a Capoeira.
P: Nota-se a ascensão de artes marciais alienígenas como judô, karatê e outras, em detrimento da Capoeira, um esporte e luta genuinamente baiano e brasileiro. Qual a sua posição diante deste fato?
R: Não se trata de ascensão das Artes Marciais alienígenas. O que ocorre é uma submissão de nossa parte à qualidade que acompanha esses esportes, diante de nossos filhos, em termos de apresentação, de infra-estrutura. Elas já vem organizadas em todos os sentidos, enquanto a nossa Capoeira não se agiganta. Há muitos achando que se já existem métodos de defesa pessoal (mesmo não nos favorecendo plenamente, por atender a um homem de outra cultura) devemos alienar-nos e a ela nos adaptarmos. A nossa humilde posição é a que venho assumindo há três décadas em todo o Brasil, lutando para apresentar a nossa Capoeira metodizada, ordenada, treinada espartanamente, como acontece com as Artes Marciais alienígenas. Em um confronto com essas Artes a Capoeira se revela, em termos de Defesa Física, profundamente rica, com recursos inigualáveis.
P: Já que estamos tratando desse assunto, qual a diferença básica entre a Capoeira t as artes marciais mais difundidas no Brasil?
R: Filosoficamente, na sua ação física, a Capoeira coincide com o Judô, pois ambos têm como fator básico de uso, ação e sustentação, o deslocamento do centro de gravidade do elemento humano. No aspecto de aplicaçâo o Judô leva vantagem pois a ação de desequilíbrio deste é realizada através do sistema de alavanca. Os capoeiristas devem, por sua vez, recorrer à inteligência, pois em nossa ação desequilibrante falta um ponto de apoio. E se tenta o desequilíbrio por meio do gingado e da manha, para em frações de segundo aplicar-se o golpe decisivo. Os judokas trazem como frase símbolo “ceder para poder vencer”, enquanto os capoeirístas aceitam como máxima “recuar para poder derrotar”. O Karatê tem em comum com a Capoeira o deslocamento corpóreo, máxime se o karateka é baiano ou carioca. Mas enquanto a Capoeira e o Judô são artes de derrubar, o Karatê é a arte de quebrar. Enquanto, tal qual o taikendô, de origem coreana, a Capoeira atua em círculo, o karatê ataca e defende em linha. Mas o taikendô é também uma arte de quebrar, diferençando-se da Capoeira e do Judô.
P: A multiplicação de escolas de Capoeira não só na Bahia como em outros estados (São Paulo, Rio, Goiás), e até mesmo nos Estados Unidos, não o deixa satisfeito?
R: Isto só nos deixa tristes, pois essas escolas estão proliferando sem compromissos maiores com a verdadeira Capoeira. Cada professor levanta uma bandeira pessoal na forma de praticar e interpretar a Capoeira. Quase todos eles fazem concessões que prejudicam a imagem da Capoeira como força representativa da cultura e história brasileira. Anticivicamente a maioria desses professores reduz a Capoeira, mercantilizantemente, ao nível de folclore. E com o transplante da Capoeira para os “mui amigos” norte-americanos, estamos na iminência de a Capoeira vir a perder a sua nacionalidade. Pois caso a Capoeira agrade, como dizem que está agradando por lá, logo aparecerão grandes empresas ou fundações que se encarregarão de formalizar a Capoeira, sem considerações maiores com o seu dinâmico e criativo processo histórico-cultural. A título de exemplo, vejamos o que eles conseguiram fazer com o futebol, de repente o Cosmos estava cobrando uma fortuna para jogar no país tricampeão do mundo…
P: O que você acha do ensino da Capoeira, atualmente, no Brasil? Uma revista de grande circulação nacional mostrou professores de capoeira vestidos com roupas balofas e coloridas, como se estivéssemos no Caribe. Nota-se uma grande desinformação da genuína Capoeira em fotos de golpes inexistentes e na emissão de conceitos errôneos a respeito da Capoeira. Isto não preocupa o Mestre Sena?
R: A nossa grande luta, sem fronteiras, é justamente no sentido de tentar evitar a agressão cultural que a Capoeira vem sofrendo. Quanto à revista a que você se refere (inclusive um semanário de grande circulação nacional), endereçamos à mesma uma correspondência protestando contra o absurdo apresentado. Como discípulo do Mestríssimo Mestre Bimba, aprendi a não fazer concessão alguma em prejuízo da Capoeira. E é ridículo o uso de uma outra roupa, hoje, na Capoeira, que não o Abadá. No entanto, as roupas balofas, as camisas de meia e os Jeans têm sido usados largamente por muitos que se dizem corifeus da Capoeira.
P: Como explicar a prevalência do Sudeste brasileiro no que toca à Capoeira? Rio e São Paulo continuam dando as cartas até mesmo em termos de um assunto que eles assimilaram às vezes de forma grotesca e acomodatícia?
R: É isto aí. Assimilaram a Capoeira e usam-na de forma grotesca, acomodatícia e de forma desonesta, tanto histórica como culturalmente. E tomam parte nesse processo Federações e Confederações que através de pelegos esportivos, sem qualquer interesse pelo bem pátrio, por vaidade e mercantilização, terminam por usar a Capoeira de forma espúria.
P: Qual o seu papel na oficialização da Capoeira corno esporte pela Confederação Nacional de Desportos (cnd)?
R: De tanto insistirmos, através dos mais diversos expedientes, junto a diversos segmentos do governo, vimos os nossos esforços coroados de êxito: através do mEc, o cnd resolveu considerar a realidade da capoeira, sancionando-a como esporte. Mas como não poderia deixar de ocorrer, aconteceu a infelicidade de o seu processo ser endereçado à Federação Baiana de Pugilismo, à qual a Capoeira foi agregada. E aí faltou competência para a interpretação devida do parecer do relator, o general Jair Jordão Ramos. Parecer este formulado em 1973. O parecer frisava a necessidade de se constituir um grupo de trabalho que viesse dar a forma e o conteúdo ao novo e oficializado esporte. E por isso até hoje a Federação Baiana de Pugilismo se põe a promover competições oficiais com regulamentos de Escolas de Samba, Maracatu e Bumba-Meu-Boi.
P: Como está o Senavox e quais os seus plano para que as suas idéias consigam ser melhor escutadas em defesa da capoeira?
R: O Senavox, instituição por nós fundada em 25 de outubro de 1955, tem como finalidade precípua e exclusiva a defesa da Capoeira como esporte-luta do povo brasileiro. Uma idéia nossa já foi escutada, a sua oficialização teórica como esporre, em parecer do ministro Jair Jordão Ramos. Editamos também um anteprojeto normativo, que enviamos a várias entidades esportivas, culturais e sociais na esperança de que possa, o mais breve possível, ser discutido.
Este ano ainda, ou no início do próximo, esperamos poder editar dois trabalhos com os quais queremos esclarecer à opinião pública e alertar às autoridades de que a Capoeira encerra em si uma profunda relevância quanto à sua prática e desenvolvimento, um aliado inestimável no amálgama das características de um povo culturalmente rico, inteligente, criativo, forte e destemido. Os nomes desses trabalhos são “Achismo” e “Defesa”. O primeiro explica a posição ambígua em que se colocam os militantes de nossa Arte Marcial perante a verdade. O segundo é uma série de protestos e esclarecimentos endereçados especialmente a órgãos de comunicação do sudeste, pelo (ato de virem colocando erroneamente a Capoeira perante os olhares ávidos de nossos jovens, o que é um desperdício cívico Temos também prontos mais 11 trabalhos, dos quais dois são técnicos, e que esperamos editar em dezembro do próximo ano, ao completarmos 30 anos fechados de uma guerra que não é só minha mas de todo brasileiro que teima em não fazer concessões no que se refere à sua realidade cultural.
P: Não acha você que a criação dessas entidades que visam preservar a Capoeira como elemento forte na cultura nacional é uma utopia? Poderão dar frutos sem uma mudança radical na política do esporte baiano e até nacional?
R: A única entidade que conhecemos com essa finalidade chama-se Centro de Pesquisa, Estudos e Instrução da Capoeira Senavox. E não a consideramos uma utopia. Além de confiarmos em uma mudança na política esportiva brasileira, confiamos que o nosso trabalho de semeadura produzirá os frutos esperados. Além do mais é minha filosofia de vida lutar com unhas e dentes por aquilo que considero justo e verdadeiro.
P: Quais os seus trunfos para que a sua voz se torne mais audível?
R: A transformação dos nossos trabalhos em livros e a sua viabilidade em os editarmos para que sirvam de subsídios aos órgãos de governo, principalmente nos setores de Educação e Cultura, é uma nossa meta. Continuaremos lutando para que a Capoeira seja adotada como nossa representante cultural, da mesma forma que as Artes Marciais do Oriente representam os seus países de origem.
“Mais do que eu nunca vi ninguém jogar”
Mestre Waldemar
Entrevista realizada pelo Programa Nacional da Capoeira, do MEC, em 1990
Aprendi capoeira em 1936 em Piripiri. e me chamo Waldemar Rodrigues da Paixão. Tive quatro mestres. A todos eles eu pedi para ensinar e aprendi. Sempre amei muito esse esporte de Capoeira Angola. Em 1940 eu peguei a ensinar aqui na Pero Vaz. Tive muitos alunos e ainda tenho muitos vivos. Outros estão mortos. O primeiro mestre que foi para o Rio de Janeiro fui eu, no show de Dorival Caymmi. Depois tive um convite para ir cantar capoeira na Rádio Tupy. Fui muito elogiado no Rio de Janeiro, e eles queriam até que eu ficasse morando para ensinar aos mestres de lá. Mas eu amo muito a Bahia e não quis ficar. Aí eu vim continuando ensinando e jogando. Até 1963 eu joguei muita capoeira, tive muito orgulho no meu saber. Hoje eu tô doente e tô velho, tenho 71 anos de idade. Mas nunca perdi pra ninguém em roda de capoeira.
Tenho muitos camaradas, como Itapoan. Aristides, João Pequeno, amigos meus, João Grande e outros mestres. Eles me dão muito valor mas eu não tenho esse valor mais porque estou doente. Mas sou conhecido como o “rei do berimbau”. Ainda fabrico e sei ensinara tocar.
Barulho eu nunca tive com ninguém, porque eu sempre fui respeitado, nunca ninguém me desafiou. Se me desafiava para jogar, mestre que aparecia aqui a minha cabeça é que resolvia. Era problema certo. Tenho orgulho ainda na minha garganta, de gritar minhas ladainhas. Canto amarrado da capoeira angola. Isso eu não achei quem cantasse mais do que eu. Ainda não achei. Se mulher pariu homem, pra cantar não se cria. Eu tirei um disco pra Suassuna mas não saiu como eu tinha vontade que saísse. E eu estimava cantar uma capoeira pra vocês apreciar. Pra vocês verem minha voz. Porque na capoeira em primeiro lugar o toque do berimbau, segundo o canto. É muita coisa e eu me esqueço, porque eu tenho andado por fora de capoeira, não tenho mais prazer pra isso.
Tive quatro mestres: Siri de Mangue, um; Canário Pardo, dois; Talavi, três e Ricardo de Ilha de Maré, quatro. Mas eu pedi a esses homens pra me ensinar para eu poder ficar profissional. Pra eu dizer que sabia, e sei mesmo. Aprendi capoeira. Capoeira eu sei demais. Eu só não aprendi foi fazer menino de duas cabeças.
Primeiramente um bom berimbau tocando. Três berimbaus: um berra-boi, um viola e um gunga. Depois, agora nessa moda nova, apareceu o atabaque, mas eram três pandeiros, três berimbaus e um reco-reco. E o instrumento que acompanha o berimbau, para ajudar o berimbau, o caxixi e tinha o agogô. Depois que colocaram o atabaque em roda de capoeira, mas não tinha isso.
Outra coisa, essa pintura de berimbau quem inventou foi eu. O berimbau era com casca. Os capoeiristas daqui, os mestres, faziam berimbau com casca. O arame era arame de cerca, não era arame de aço. Depois eles queimavam o pneu e tiravam aquele arame enferrujado, quebrava. Eu inventei abrir na raça pra sair cru. Peguei fazer berimbau envernizado. Peguei fazer berimbau em branco, como Tabosa vai levando aí. Depois eu inventei pintar e passei a fazer berimbau pintado. Sou conhecido nisso.
A roda na Liberdade era no ar livre, perto do arvoredo. Eu fazia o ringue na sombra e botava a rapazeada pra jogar. Depois eu fiz um barracão de palha grande, e tudo quanto era capoeirista da Bahia vinha pro meu barracão ali. E fui muito elogiado por Carybé, Mário Cravo, Odorico Tavares, essa gente toda me procurava aqui. Um dia, o primeiro livro sobre mim que saiu foi “Recôncavo brasileiro”, que Carybé escreveu mais Mário Cravo. E aí fui ganhando nome. No Rio de Janeiro eu estava no hotel quando Dorival Caymmi me chamou pra eu cantar na rádio Tupy, pra eu tirar uma cantiga elogiando o Rio. Eu sentado na cama, os meus alunos estavam dormindo, eu estudei e no dia seguinte eu cantei uma ladainha bonita. Fui elogiado bastante. Tem outras coisas, mas eu esqueço…
Zacarias foi meu aluno de 1942. Outros foram José Cabelo Bom, um preto por nome Nagé, que juntaram cinco homens pra matar ele. Tive um aluno que só batia berimbau, mas era bom, apelidado Pernambuco. Tenho dois alunos aí. Estão bons ainda. E o Cabelo Bom é tio daquele menino que eu tô ensinando. Mas ele não quer aprender a jogar não. Só quer bater berimbau.
Nas minhas rodas não tinha barulho porque quando eu chegava, tomando uma cerveja assim, quando eu cantava, a rapazeada vinha tudo render obediência assim. Me respeitavam muito, os meus alunos. E não tinha barulho, porque eu olhava pra eles assim, eles vinham pro pé de mim e ninguém brigava. (…)
O segredo dos valentões era uma camisa curta com a barriga pro lado de fora e a calça com a boca chamada boca de sino, que cobria o bico do sapato. Ali era homem valente. Eles usavam arma, mas chegavam no bar e pediam para guardar. Navalha e facão de dois cortes.
Tinha uns que usavam a navalha na cabeça e jogavam com o chapéu. Comprava um chapéu na loja, e não fazia ziguezague na copa, nada. Da forma que vinha eles usavam. Chapéu era canoado, copa redonda, que era a navalha presa com uma tira de borracha. Eu jogava de chapéu, mas não usava nada. Eu não quis usar essas coisas não. Sempre eu quis ficar fora de zoada, de barulho (…) Então esse valor eu tenho at[e hoje. Todo mundo me aprecia, todo mundo gosta. Chega aqui de ponta a ponta, não tem quem fale de mim, em assunto nenhum. Sei tratar todo mundo bem, não maltrato pessoa nenhuma
Quem terminou de aprontar Traíra fui eu. Ele tirou onze anos e seis meses, ele era assassino. Matou um homem por causa de uma mulher. Quando ele saiu da cadeia veio me procurar. Eu tava com uma roda de capoeira, na ocasião em que Otávio Mangabeira estava se candidatando ao governo da Bahia. Ele aí me tomou por compadre e disse que eu ia acabar de aprontar ele, e aprontei. Jogava demais. Era uma serpente no chão.
Mais do que eu não vi ninguém jogar. Mas vou dizer a você, uns que já morreram: Barbosa, Onça Preta – esse tá no Rio, velho mas tá vivo – Eutíquio, pai de Gato Preto, Daniel jogava capoeira mas não era essa coisa toda. Maré era solteiro, jogava capoeira mas só sabia jogar capoeira, não tocava berimbau, não cantava, não fazia nada. Samuel Querido de Deus era bom mas era solteiro[1] também. Só de jogo. Ficava esperando você pular pra ele dar uma cabeçada. Quando você queria forrar ele não queria mais jogar. Era crocodilo.
Eu morava em Piripiri e um irmão meu, que lá doente também de derrame, apelidado por Homem Mau, mas era Lourival Rodrigues da Paixão, mora em Plataforma, tá vivo, não morreu ainda. Então ele disse: “Meu compadre – eu andava triste porque tinha vindo pra aqui, não conhecia ninguém, aí ele disse – “tem uma capoeira no Estica no Largo do Tanque”. Aí eu vim, fui pra lá com um berimbau bom, e meu irmão falou pra eles deixarem eu tocar e cantar um bocadinho. E o Pastinha estava forte ainda, mas não era mestre de capoeira. Ele era o presidente da capoeira. O mestre da capoeira do finado Pastinha chamava-se Aberrê, era um preto. Quando Aberrê faleceu de repente, de colapso, tava cheio de mestre na capoeira, eu perguntei pra ele um dia: “Pastinha, quem é que você vai tirar pra ser mestre aí?” Ele disse: “Waldemar, aqui não tem mestre. O mestre vai ser todo mundo”. E eu disse que ele tinha que tirar um mestre bom pra botar na capoeira. E eu já tava mestrando capoeira na Liberdade. Sempre ele me convidava pra eu passear lá. Ele disse: “Tem muito mestre, mas eu vou te falar a verdade: o mestre vou ser eu mesmo”. Ele era presidente da capoeira. Prova é que ele não tocava berimbau, não tocava. Ele era pintor de parede. Ele faleceu e deixou alunos melhores do que ele.
Ele era considerado presidente da capoeira. Aí é que ficou João Pequeno, João Grande, eles é que são bom. Pastinha era defeituoso. Você chegava na roda dele, ficava frequentando, e ele dizia que você era aluno dele. Eu nunca tive esse defeito e nem tenho. Quando eu disser “é aluno meu” é por que eu ensinei e posso ensinar e sei..
O presidente da capoeira é que, quando tem uma viagem, ele é que arma aquele grupo. Tem que comprar camisa, ele é que toma a frente pra comprar. É diferente. Ele fazia esses negócios todo. Ele ia pro Rio e São Paulo e ganhava o dinheiro dele. Quando os alunos pediam, ele dizia “você ganhou nada”. “Você não foi calçado, não foi de avião, não dormiu no hotel, não comeu bem, não tá aprendendo?” Não dava nada. E eu, tudo o que eu ganhava eu dividia com meus alunos.
E quando eu estava bebendo cerveja, e saía aquele dinheiro na roda, eu dizia ao juiz que ficava com o apito mudando os pares dos rapazes: “Divida lá com vocês, bebam, façam o que vocês quiserem. Não quero é barulho”. Depois apanhava minha nêga e ia pro cinema.
O finado Traíra é que tomava conta da roda. Eu chegava lá, dava minha ordem e ia tomar minha cerveja. Eu estava feito.
Eu gostava de jogar lento, pra saber o que eu faço. Pelo meu canto você tira. Eu canto pra qualquer menino desse jogar, e ele joga sem defeito. Para os meus alunos eu digo que vou cantar e eles já sabem o que eu quero: São Bento Pequeno. É o primeiro toque meu. Para o outro tocador eu digo: “de cima para baixo”, e ele sabe que é São Bento Grande. Para a viola eu digo: “repique”, e ele bota a viola pra chorar.
Se me agarravam, eu dizia: não me pegue que eu não saou toalha. Não me suje não. Eu jogava com roupa branca, sapato da cor de leite. Calça de linho tremendo. Eu só sujava meus dedos, dava salto, fazia e acontecia. Mas tudo no mundo se acaba, só não o amar a Deus.
E ensinava na roda, mas tinha os dias de treino. Eles estavam jogando e eu fazia sinal pra fazer tesoura, fazia sinal pra chibatear. Fazia sinal pro outro abaixar…
O golpe que eu mais gostava era o rabo de arraia. No jogo, quando a gente vê que vai pegar, a gente recolhe. Olhe, eu dei um rabo de arraia em Caiçara, num aniversário… Tem muitos anos, ele tava com a roda dele e eu levei aminha. Dei um rabo de arraia em Caiçara, se ele não bate com aquela barriga no chão eu arrancava o pescoço dele com o sapato. Meu sapato era um sapato branco, dois dedos de borracha. Dei-lhe um rabo de arria… Todo de couro, sapato forte,bom. E outra, Caiçara onde eu estou ele me respeita. Ele diz que quando eu canto ele se arrepia todo.
O finado Aberrê cantava muito. Eu achei um cantador de capoeira aqui, que agente emendou os bigodes. Ele tinha uma voz como a minha. Até o pessoal dizia que ele parecia comigo, o finado Barboso, do Cabeça. Cantava muito, tocava muito e jogava muito. Um cachoeirano. Era bom mestre.
Quando o sujeito tá jogando pra aleijar o outro, o juiz não deixa, imitante a jogo de bola. O juiz toma conta da roda, muda os pares, quando o sujeito está jogando violento, ele separa, se não obedece ele tira fora da roda. O mestre não se mete naquilo. O mestre é quem está ensinando a turma toda.
[1] Provavelmente, a transcrição da palavra “solteiro” foi erro do entrevistador. O termo usual para descrever capoeiristas que ficam apenas aguardando um vacilo do outro é “sopeiro”
“Meu Deus, querem afeminar a capoeira”
Mestre Canjiquinha
Publicada originalmente em Diários de Notícias de Salvador, em 6 de novembro de 1970.
Entrevista de Cristina Cardoso.
Seu nome – Washington Bruno da Silva – lembra Presidência de República, mas de política ele não manja nada. Seu fraco é a capoeira, do qual é bamba como ninguém. Washington é Canjiquinha, capoeira internacional, bom como Aberrê, ágil como Maria Doze Homens – um verdadeiro patrimônio do folclore nacional.
Para ele a capoeira está morrendo. Virou apenas dança para turista ver. E ainda existe quem a considere agressiva:
– Meu Deus, querem afeminar a luta dos homens.
Dos 45 anos de vida de Canjiquinha, 33 foram dedicados à capoeira. Ele não apenas luta capoeira, mas luta por ela. Acredita que os mestres hoje em dia são poucos. Queixa-se também da falta de divulgação da capoeira que, em seu modo de entender, deveria ser transformado no esporte nacional.
– Ele aqui nasceu, é nosso, mistura do negro com o índio, resultado das lutas dos negros contra os senhores brancos.
Mestre Canjiquinha é o capoeira mais divulgado no exterior, participante que foi de muitos filmes da Bahia para o mundo, ou feito em regime de co-produção. Barravento, de Gláuber Rocha, onde contracenou com Luísa Maranhão; Os bandeirantes, co-produção franco-brasileira. Estrada do Amor, feito com os alemães e o mais recente Capitães de Areia no papel de Samuel Querido de Deus, outro capoeira de renome no passado. Até no Pagador de Promessas trabalhou mas gosta mesmo é de lutar, dançar a capoeira ou dar os toques no berimbau para a grande luta.
– Minha comadre – diz Canjiquinha com sua fala agitada, nervosa de filho de Iansã – já viajei por quase todo o Brasil, ensinei capoeira até para a Força Aérea. Estive em Brasílía – Teresina – São Luís do Maranhão – Recie – Porto Alegre e Maceió, díversas vezes no Rio de Janeiro e São Paulo. Agora ia pela primeiravez pessoalmente ao exterior, para a Semana da Bahia na Pensylvania, com “Viva a Bahia”, mas deu bronca, os gringos só deram 1000 dólares para a viagem, quatro milhões contados, para 20 pessoas viajarem. Tudo veio por água abaixo.
E emocionado: “lindos mesmos são os golpes: rabo de arraia – meia lua de frente – meia lua de costas -armada – chapéu de couro -escorão – benção – vingativa – chibata ae tantos outros. E os toques que dou no meu berimbau, todos eles: São Bento Grande -São Bento Pequeno – Ave Maria – Cavalaria – Amazonas e Santa Maria., e os que eu mesmo criei: Samango, Muzenza, e Samba de Angola. É minha própria vida que eu vejo na minha Academia que fundei em 1954. Mas a capoeira está doente, gente, pode até morrrer. É apenas folclore, bonitinha e arrumadinha para agradar aos turistas. A capoeira, gente, não é mais aquela.
Mestre Canjiquinha tem o maior elenco de conjunto folclórico da Bahia – 36 pessoas no Conjunto Aberrê, que tem seus atabaques pintados de branco e azul, as cores do saudoso Mestre Aberrê, de quem Canjiquinha afirma: “não é por ter sido meu professor, mas foi um dos maiores, juntamente com Pedro Paulo Barroquinha, Curió, Cassiano Balão, Totonho Maré, ainda vivo, morando no Corta Braço, na Liberdade, Sete Mola, Espinho Remoso e tantos outros. Mas mulher as únicas mesmo foram Maria Doze Homens que numa briga da Saúde até o antigo Cinema Olímpia, bateu em doze marmanjos, e Maria Palmeirão, 1,90 de altura, mulher de dar e receber navalhada, seca como o diabo que lutava como homem”.
Mestre Canjiquinha é o capoeira querido, que se apresentou para o Presidente Médici em sua visita a Salvador, e lhe ofereceu o berimbau, símbolo da capoeira baiana que luta pelo folclore baiano quando ameaçado como na época de “Lapinha”. Foi ele que, pelo nosso folclore, comprou briga com Baden Powell, discutiu com Flávio Cavalcanti e ainda está disposto a brigar mais.
– Minha comadre, acrescenta, não é por falar mal, mas o Baden fez uma boa. Lapinha é folclore baiano que ele aprendeu comigo. Pensou que tinha me esquecido e disse que a música era dele. Que falta de caráter. Gosto de brigar pelos meus direitos de nosso folclore e pelo que acredito. Já fui goleiro do Ipiranga em 1951, mas o folclore e a capoeira são meu amor.
– Sou angoleiro e faço capoeira, estive no Simpósio de Capoeira em 1969 em São Pauto, no Campo dos Afonsos, e lá a gente discutiu e dividiu a luta em angoleiro, regional e estilizada, mas tudo vem de Angola, dos negros que de roupa branca sempre impecável eram chamados de arruaceiros, malandros e nunca desistiam, dos negros das lutas de matar ou morrer. Hoje a gente é funcionário, faz capoeira nas horas vagas, tem de se adaptar aos tempo. A capoeira está doente, gente, pode até morrer.