Liberdade como vírus

Eu imagino que a liberdade seja como um vírus. Um miasma que se pega pelos ares afora. Contrai-se a liberdade, ou ao menos o desejo dela, pelos olhos, ouvidos e nariz. O cheiro da liberdade é o cheiro do pandeiro batendo solto, sem rótulo nem bandeira. O som da liberdade é o som do suor caindo desbragado do couro para o chão, numa roda sem dono mas com direção. A visão da liberdade é a bateria na função, o canto sereno e o ritmo cadenciado – sempre permitindo que se pense, sempre pedindo que se respeite. O vírus da liberdade é incurável; uma vez contaminado você vira estatística: o questionamento vem consequentemente, pois a liberdade exige os comos e por quês das coisas. Nada é porque me dizem que é, ou pelo menos que respeitem meu direito de discordar. Mas há quem seja imune ao vírus da liberdade; os nascidos para a canga; ou os que escolhem, estando em seu próprio direito, a verdade que lhes dizem ser verdadeira…
Como o Mestre Elomar bem disse em sua cantiga, no seu dialeto sertanês:
O peão na amarração

Inconto a sulina amansa
ricostado aqui no chão
na sombra dos imbuzêro
vomo entrano in descursão
é o tempo que os pé discança
e isfria os calo das mia mão
vô poiano nessa trança
a vida in descursão
na sombra dos imbuzêro
no canto de amarração
tomo falano da vida
felá vida do pião
incontro a sulina amansa
e isfria os calo na mão
u’a vontade é a qui me dá
tali cuma u’a tentação
dum dia arresolvê
infiá os pé pelas mão
pocá arrôcho pocá cia
jogá a carga no chão
i rinchá nas ventania
quebrada dos chapadão
nunca mais vim num currá
nunca mais vê rancharia
é a ceguêra de dexá
um dia de sê pião
num dançá mais amarrado
pru pescoço cum cordão
de num sê mais impregado
e tomem num sê patrão
u’a vontade é a qui me dá
dum dia arresolvê
jogá a carga no chão
cumo a cigarra e a furmiga
vô levano meu vivê
trabaiano pra barriga
e cantano inté morrê
venceno a má fé e a intriga
do Tinhoso as tentação
cortano foias pra amiga
parano ponta c’as mão
cumo a cigarra e a furmiga
cantano e gaiano o pão
vô cantano inconto posso
apois sonhá num posso não
no tempo qui assenta o almoço
eu soin qui num sô mais pião
u’a vontade aqui me dá
dum dia arresolvê
quebrá a cerca da manga
e dexá carro dexá canga
de trabaiá sem discanço
me alevantá nos carrasco
lá nos derradêro sertão
vazá as ponta afiá os casco
boi turuna e barbatão
é a ceguêra de dexá
um dia de sê pião
de num comprá nem vendê
robá isso tomem não
de num sê mais impregado
e tomem num sê patrão
u’a vontade aqui me dá
dum dia arresolvê
boi turuna e barbatão
toda veiz qui vô cantá
o canto de amarração
me dá um pirtucho na guela
e um nó no coração
mais a canga no pescoço
Deus ponho pru modi Adão
dessa Lei nunca me isqueço
cum suo cume o pão
mermo Jesus cuano moço
na Terra tomem foi pião
e toda veiz que eu fô cantá
pra mim livrá da tentação
pr’essa cocêra cabá
num canto mais amarração

Miquilina morreu ontem

Miquilina morreu ontem
Ontem mesmo se enterrou
Miquilina morreu ontem
Teve gente que chorou
Prá cova de Miquilina
Mando um buquê de flor
Era hora grande
Quando eu cheguei na Bahia
Só prá ver a preta Rosa
Filha de Rosa Maria
Todo mundo viu a Rosa
Só eu mesmo é que não via
Vizinho é meu parente
Viveu bem sem trabalhar
Meu pai trabalhou tanto
Nunca pôde enricar
Não tinha um dia da semana
Que deixasse de rezar

(Mestre Russo)

Capoeira subversiva

A capoeira sempre foi entendida como subversão. De escravos contra seus senhores; dos cidadãos de segunda classe contra o poder instituído; do conhecimento oral contra o academicismo; do corpo contra a lei da gravidade. Gente se juntou à capoeira e subverteu a lei do mais forte, subverteu a ordem social pessoal (e “subiu” na vida como pau-mandado de figurão), subverteu a lei vigente e ajudou a trazer a capoeira para o lado “certo” da cerca.
Mas e hoje, o que a capoeira subverte ? Passemos um pente-fino em nossas próprias cabeças, e vejamos quantos piolhos não caem… Machismo, racismo, sexismo, homofobia, xenofobia, preconceito religioso, preconceito contra idosos, gordos, carecas, deficientes de todo tipo. Orgulho. Prepotência. Ego inflado. Aquela certeza de ser o último dobrão do mundo, para bater berimbau.
Então, capoeirista, o que a capoeira subverteu em você ? E o que você subverteu hoje ?

Disconfie

Disconfie (Teimosia)

Disconfie di quem qué
vir li apontá o dedo
a raiva escond’a’nveja
a’nveja escond’u medo
Disconfie di quem qué
li dizê c’o dele é certo
orgulh’escond’incerteza
seja longe, seja perto
Num queira vim’i dizê
qui o meu jeit’é furado
qui eu só sei andá torto
qui meu cert’é seu errado
Disconfie di quem qué
li impô u qui vesti
li dizê u qui pensá
l’insiná u qui senti
Di gent’assim, amigo meu
U mundo vai s’intupi
São os capitão-du-mato
disfarçado di Zumbi
Camaradinha…
Pisa no chão, pisa maneiro
Si num pode com furmiga, num assanha furmigueiro
Pisa no chão, pisa maneiro
Si num pode com mandinga, num assanha mandingueiro

A música precisa existir por si

a música precisa existir por si
não por ser fundo, não por ser trilha
precisa fugir pelas amídalas,
sair da goela como sai um grande arroto
que ponha para fora barulhos que há dentro
remexa entranhas e esquente buchos
que faça relar as vontades e acanhe saudades matadeiras
a música precisa correr solta como dedos que correm cordas
e línguas que correm furos, baquetas que correm couros e mãos que correm teclas
sair da úvula, badalos que percutem sinos
que seja poema em si
verdades de quem a escreve ou canta, ao menos mentiras de quem a escuta ou repete
a música precisa sair do peito
como se nele nunca houvesse cabido
água de morro abaixo, formiga de correição
rolha de sidra boa,
ligeira, lépida, célere e fagueira – em qualquer ordem que se deseje
‘que música é para ser solta
uma capoeira jogada para a roda
dança mais torta e balanceada do que propunha o bailarino
‘que dança é música vazando pela sola do pé
caçando terra que lhe caiba feito peito coube
e treitando jeito de arapucar um passante
que lhe plante a planta e dê chance de subir como xistosa
escalando a canela e deixando rupeio
para ser quentura no joelho e tremura nas coxas
sacolejo de quadris e umbigada quebrante.

A capoeira e os apelidos

Tenho acompanhado há a alguns meses algumas discussões sobre o uso de apelidos na capoeira. Acho a discussão válida, mas há alguns pontos que gostaria de comentar: 

1) apelidos não são obrigatoriedade. Não é todo mundo que tem – o que para mim, indica que a coisa não é tão universal assim.

2) eu acredito no apelido que surge espontaneamente, decorrendo de uma situação específica. O que me incomoda é o apelido forçado. No dia do batizado, chega o mestre e diz “agora você é o Blablabla”. Aí falta contexto mesmo – é a imposição que vai de encontro à liberdade pregada pela capoeira. O apelido é Blablabla “porquê o meu mestre falou que é” é uma baita escrotice, se me perguntarem…

3) a questão do que é que denigre – não é todo apelido que rebaixa, independente da raça. Creio que todo capoeirista conhece casos de apelidos “bacanas” e “ruins”, aplicados a negros, amarelos e brancos.

Nem todo apelido é Macaco, Gambá, Minhoca, Magrelo, Cheiroso ou Urubu. Tem Velocidade, tem Coração, tem nomes de bairros, cidades natais, etc. E ainda assim, nem todo Macaco é negro, nem todo Gambá é mal-cheiroso. A variação de motivações é tão grande quanto, ou maior que a variação de nomes…

O bullying preocupa sim, especialmente nos apelidos que surgem naturalmente do grupo (e não do mestre): será que o Tripa Seca está mesmo feliz com o apelido dado pelos colegas de treino ? Isso precisa ser avaliado com cuidado pelo responsável, mas não necessariamente inibido – afinal de contas, vivemos em grupo, e o grupo age sobre nós assim como nós sobre ele.

A pessoa em cheque pelo apelido pode ter sofrimento sim, mas também pode usar disso para sair mais forte – é uma questão de maturidade (e por isso o olho do responsável é tão importante). Chamar um menino gordinho, de 12 anos, de “Baleia Encalhada” é uma coisa se ele sabe lidar com isso, e outra coisa muito diferente, se ele não sabe. A palavra-chave para mim, nesse caso, é “atenção”. 

Ser mestre não é só ensinar a se posicionar na roda, mas também a se posicionar no mundo. Ele deve intervir quando perceber ser necessário, ou quando os envolvidos solicitarem. E principalmente, ele deve ter autocrítica – para não se tornar ele mesmo o causador do sofrimento.

Resumindo, não acho que a questão de ser contra os apelidos é “muito barulho por nada”, como muita gente grita por aí. Mas também não é o absurdo que tem sido pintado. 

Tem muitos casos no mundo, e cada um deles é um.

Axé,
Teimosia (feliz com o apelido)

Por cima do mar, eu vim. Por cima do mar, eu vou voltar.

Em 2006, escrevi um artigo chamado “Menino, quem foi teu mestre“, para o PortalCapoeira, celebrando o aniversário do Mestre Decanio.
Hoje, recebi a notícia do falecimento do mestre… E fiquei matutando sobre o quanto essa perda representou para mim, e para a capoeira como um todo. Decanio era um capoeirista. Decanio foi aluno de Bimba. Decanio ajudou a criar a Capoeira Regional. Decanio era um pensador. Decanio era médico. Decanio era poeta. Decanio foi mergulhador. Decanio era velejador. Decanio era acupunturista e massoterapeuta. Decanio foi militar. Decanio deu porrada em ACM, quando os dois eram crianças (palavras dele!). Decanio era judoca e pugilista. Decanio era escritor. Decanio era um partidário confesso do trabalho pelo próximo, sempre distribuindo bens materiais ou apenas conhecimento, em troca do prazer de distribuir.
Lembro-me perfeitamente de, durante uma conversa na qual eu insistia que “a capoeira estava se perdendo, que alguém tinha que fazer alguma coisa”, ele me cortar asperamente dizendo “Teimosia, você é um grandíssimo chato. Faça bem a sua parte, e deixe os outros fazerem a deles. O tempo separa o joio do trigo”. A força dessa fala foi um divisor de águas na minha vida – um conceito tão simples, mas ainda assim tão difícil de perceber sozinho. A intolerância mora na ponta do dedo que eu aponto para os outros, e quando o meu dedo aponta para alguém, três dos meus dedos apontam para mim mesmo – faça o teste, se tem dúvida…
Decanio era um baú inesgotável de informação. Do alto dos seus mais de 80 anos, viu a capoeira regional e a angola tomarem o formato que tem hoje. Viu a capoeira contemporânea chegar. Viu o advento dos uniformes se estabilizar, viu as cordas e cordéis serem criados. E mais do que ver, escreveu e falou sobre tudo isso. Tiveram origem nas conversas com ele, voluntária ou involuntariamente, os questionamentos que eu faço à tradição: coisas que para mim eram “antigas”, para ele eram modernidade…
Os anos dourados da capoeira, que na minha opinião foram as décadas de 40 e 50 (quando Waldemar, Bimba, Pastinha, Canjiquinha e Cobrinha Verde estavam firmes na ativa), para Decanio foram o dia-a-dia. Ele viu, viveu e falou sobre momentos com os quais eu só posso sonhar: o passado que vejo nas fotos em preto-e-branco de Verger (seu grande amigo), para ele era cheio das cores de Carybé (também seu grande amigo).
Mas agora, Decanio se foi. O nome fica na história, e o legado é enorme – tire bastante tempo para ler, se quiser consumir tudo o que o mestre produziu. E lembre-se que as “regras de conduta” da Regional, foram Cisnando e ele que modelaram junto com o Mestre Bimba. E que os primeiros uniformes da Regional, camisas brancas listradas de azul, foram também idéia de Cisnando e Decanio. E que as primeiras apresentações de samba-de-roda do Mestre Bimba e das Tijubinas abertas ao público aconteceram num Simpósio de Medicina, a convite de Decanio. E que os Manuscritos de Pastinha só foram digitalizados e posteriormente entregues ao Forte da Capoeira por iniciativa dele. E que o “transe capoeirano” é um tratado físico e metafísico sobre o comportamento de capoeristas na função. E que as Gravações de Bimba e Cabecinha só chegaram a tanta gente por intermédio dele. A lista é interminável.
Decanio se foi, e para nós que aqui estamos, fica a pergunta: o que estamos fazendo para preservar a vida e a memória dos nossos mestres ? Os últimos tempos tem sido difíceis para a capoeira: Leopoldina, Arthur Emídio, Peixinho, Nacional, Bigodinho, João Pequeno, Tigrê, Negão Zumba… e Decanio. Mais ou menos conhecidos, todos deixaram sua marca na história – mas sem sombra de dúvida, muito do conhecimento se foi com eles…
Mas não quero sentir tristeza ao falar do mestre. Quero a alegria; o mesmo riso solto que ele tinha; o mesmo olhar enviesado, tirando onda com a sua cara sem você nem perceber; quero lembrar os causos de valentia, os olhos brilhando com a lembrança da brabeza de outrora; quero lembrar do sorvete de maracujá tomado na Barra, e depois lembrar da volta de ônibus de Salvador para Paripe; quero lembrar do jogo feliz que ele fez com Boinha durante a Zumbimba e depois lembrar da cervejinha gelada e da conversa animada nas tardes quentes, na Vivenda Yemanjá…

Descanse em paz, Deco!
Axé,
Teimosia

Ao meu antigo senhor

O texto abaixo foi traduzido desse site aqui: http://www.lettersofnote.com/2012/01/to-my-old-master.html
Em agosto de 1865, um certo Coronel P. H. Anderson, de Big Spring, Tennessee, escreveu a seu ex-escravo, Jourdan Anderson, e requisitou que o mesmo voltasse a trabalhar em sua fazenda. Jourdan – que após ter sido alforriado, tinha se mudado para Ohio, encontrado trabalho pago e agora estava sustentando sua família – respondeu espetacularmente através da carta vista logo abaixo (uma carta que, segundo os jornais da época, ele ditou).
Ao invés de citar numerosos trechos de sua carta, eu vou simplesmente deixá-los apreciá-la. Leia até o fim.
(Origem: O livro dos alforriados).


Dayton, Ohio 

07 de agosto de 1865 

Ao meu antigo senhor, Coronel P. H. Anderson, Big Spring, Tennessee 

Senhor: eu recebi sua carta, e fiquei feliz por saber que o senhor não esqueceu Jourdon, e que você me quer de volta para viver com você novamente, promentendo me tratar melhor do que qualquer outra pessoa pode. Eu sempre me senti preocupado com você. Achei que os ianques teriam te enforcado há bastante tempo, por esconder os rebeldes que foram encontrados em sua casa. Suponho que eles nunca ouviram o caso de você ter ido à casa do Coronel Martin para matar o soldado da União que foi deixado por sua companhia no estábulo. Apesar de você ter atirado em mim duas vezes antes de eu te deixar, eu não queria ouvir sobre você ter sido machucado, e estou feliz por saber que você ainda está vivo. Me faria bem voltar para a velha casa novamente, e ver a Senhora Mary e as Senhoritas Martha e Allen, Esther, Green e Lee. Mande o meu amor a todos, e diga a eles que eu espero que nos encontremos num mundo melhor, se não nos encontrarmos nesse. Eu teria voltado para vê-los todos quando estava trabalhando no Hospital de Nashville, mas um dos vizinhos me disse que Henry pretendia atirar em mim se ele algum dia tivesse uma chance. 

Eu queria particularmente saber qual é a boa oportunidade que você propõe me dar. Eu estou indo razoavelmente bem aqui. Ganho 25 dólares por mês, mais provisões e roupas; tenho uma casa confortável para Mandy, – o pessoal aqui a chama de Senhora Anderson, – e as crianças – Milly, Jane e Grundy – vão à escola e estão aprendendo bem. O professor diz que Grundy tem vocação para pastor. Eles vão à escola dominical, e Mandy e eu estamos indo à igreja regularmente. Nós somos tratados gentilmente. Algumas vezes, nós ouvimos os outros dizendo, “Essas pessoas de cor eram escravos lá no Tennesse”. As crianças ficam sentidas quando escutam tal coisa; mas eu digo a eles que não foi nenhuma desgraça pertencer ao Coronel Anderson no Tennessee. Muitos crioulos aqui ficariam orgulhosos, como eu era, de chamá-lo mestre. Agora, se você escrever e disser qual salário vai me dar, eu poderei decidir melhor se será vantajoso para mim me mudar de volta. 

Sobre a minha liberdade, que você diz que eu posso ter, não há nada a ser ganho nisso, já que eu ganhei meus papéis de alforria em 1864 do General Marechal do Departamento de Nashville. Mandy diz que ela tem medo de voltar sem prova de que você está disposto a nos tratar justa e gentilmente; e nós achamos que devemos testar a sua sinceridade pedindo-lhe que nos envie os nossos salários do tempo em que lhe servimos. Isso nos fará esquecer e perdoar velhas mágoas, e confiar na sua justiça e amizade no futuro. Eu lhe servi fielmente por 32 anos, e Mandy por 20 anos. A 25 dólares por mês para mim, e 2 dólares por semana para Mandy, nossos ganhos somam 11.680 dólares. Some a isso os juros pelo tempo que nossos salários foram retidos, e deduza o que você pagou por nossas roupas, as três visitas que o médico fez a mim, e o dente extraído da Mandy, e o balanço mostrará que é justo para nós recebermos. Por favor, mande o dinheiro pelo Adam Express, aos cuidados de V. Winters, Esq., Dayton, Ohio. Se você falhar em nos pagar pelos nossos serviços leais do passado, nós só poderemos ter pouca fé em suas promessas para o futuro. Nós confiamos que o Criador tenha aberto seus olhos para todo o mal que você e seus pais fizeram a mim e aos meus pais, ao nos tratar como animais de carga por gerações, sem recompensa. Aqui eu recebo o meu salário a cada noite de sábado; mas no Tennessee nunca houve dia de pagamento para os negros, não mais que para os cavalos e as vacas. Certamente haverá um dia de acerto de contas para aqueles que negam ao trabalhador o seu pagamento. 

Ao responder essa carta, por favor diga se haverá alguma segurança para Milly e Jane, que estão crescidas agora, e são ambas belas meninas. Você sabe como foi com a pobre Matilda e Catherine. Eu prefiro ficar aqui e passar fome – e morrer, se preciso – do que ter minhas meninas abusadas pela violência e safadeza de seus jovens mestres. Por favor, indique também se foi aberta alguma escola para pessoas de cor em sua vizinhança. O grande desejo da minha vida agora é dar às minhas crianças uma educação, e vê-las criar hábitos virtuosos. 

Diga “olá” ao George Carter, e agradeça a ele por tomar a pistola da sua mão quando você estava atirando em mim.

Do seu antigo servo,

Jourdon Anderson.

João Pequeno foi pras terras de Aruanda

por Pedro Abib
discípulo do mestre João Pequeno
“Quando eu aqui cheguei, a todos eu vim louvar…”
Deve ter sido assim que mestre João Pequeno de Pastinha cantou quando chegou em terras de Aruanda, lugar mítico, para onde se acredita vão os mortos…que nunca morrem…como se crê em África !
Assim como João cantou tantas vezes essa mesma ladainha, onde quer que chegava para mostrar sua capoeira angola aos quatro cantos desse mundo … êita coisa bonita de se ver ! O velho capoeirista tocando mansamente seu berimbau e cantando…dando ordem pra roda começar. Os privilegiados que puderam compartilhar com João Pequeno esses momentos, sabem bem do que estou falando.
Foram 94 anos bem vividos. Aposto que daqui não levou mágoa, não era de seu feitio. Inimigos também não deixou, sua alma boa não permitiria. Partiu como um passarinho, leve e feliz, como vão todos os grandes homens: certeza de missão cumprida.
Deve estar agora junto de seu Pastinha, naquela conversa preguiçosa, que não precisa de muita palavra, que só os bons amigos sabem conversar. E seu Pastinha deve estar orgulhoso de seu menino. Fez direitinho tudo que ele pediu: tomou conta da sua capoeira angola com toda a dignidade, fazendo com que ela se espalhasse mundo afora. A semente que seu Pastinha plantou, João soube regar e cultivar muito bem. Êita menino arretado esse João Pequeno !
Nunca foi de falar muito. Só quando era preciso. E nessa hora saía cada coisa, meu amigo ! Coisa pra se guardar na mente e no coração. Mas muitas vezes falava só com o silêncio. Do seu olhar sempre atento, nada escapava. Observava tudo ao seu redor e sabia a hora certa de intervir, mostrar o caminho certo, quando achava que o jogo na roda tava indo pro lado errado. Até gostava de um jogo mais apertado, aquele em que o capoeira tem que saber se virar pra não tomar um pé pela cara. Mas só quando via que os dois tinham “farinha no saco” pra isso. João nunca permitiu que um jogador mais experiente ou maldoso abusasse de violência contra um outro inexperiente ou mal preparado.
Quando tinha mulher na roda então, aí é que o velho capoeirista não deixava mesmo que nenhum marmanjo tirasse proveito de maior força física ou malandragem pra cima de uma moça menos avisada no jogo, coisa comum na capoeira que é ainda muito machista. A não ser que ela tivesse como responder à provocação na mesma moeda. E era cada bronca quando via sujeito tratar mal uma mulher na roda, misericórdia ! Afinal, ele sempre dizia que “a capoeira é uma dança, então como é que você vai tirar uma mulher pra dançar e bater nela ?”. Não pode !
A simplicidade, a generosidade, a humildade, a paciência, a sabedoria, a fala mansa e contida, sem necessidade de intermináveis discursos de auto-promoção, eram as características mais notáveis de João Pequeno, próprias de um verdadeiro mestre. Muito diferente do que se vê na grande maioria dos mestres da atualidade, diga-se de passagem, que auto-proclamam sua importância para a capoeira, que fazem e acontecem… que batem no peito e falam, falam, falam.
Nesses quase 20 anos de convivência muito próxima a João Pequeno, tive o privilégio e a oportunidade de aprender algumas das mais caras (e raras) lições de vida e humanidade, que jamais teria aprendido em qualquer universidade, nem sequer poderia obter através de algum diploma qualquer que fosse. Esse homem analfabeto que nunca frequentou os bancos da escola, foi responsável por um legado de ensinamentos que orientam milhares e milhares de pessoas em nosso país e também no mundo todo, que reconhecem o valor de João Pequeno como um dos mais importantes mestres da cultura popular e da tradição afro-brasileira de todos os tempos.
João Pequeno representa a voz de todos os excluídos, marginalizados, oprimidos que através da capoeira encontraram uma forma de lutar e resistir, manter viva a tradição de seu povo e dar legitimidade a uma cultura que foi sempre perseguida e violentada nesse país. O velho capoeirista soube conduzir muito bem sua missão de liderança, responsável pela recuperação da capoeira angola a partir da década de oitenta do século passado, quando após a morte do Mestre Pastinha, se encontrava em franca decadência. Quando se instalou no Forte Santo Antonio em 1981, João iniciou a partir de sua academia um movimento importantíssimo de revalorização da capoeira angola, fazendo com que ela se difundisse e se consolidasse como expressão da tradição popular afro-brasileira, presente hoje em mais de 160 países.
Mas João Pequeno nunca precisou ficar afirmando isso por aí, nem tampouco dizer da sua importância para a capoeira. João é considerado um dos grandes baluartes da capoeira angola, mas ele nunca saiu proclamando isso para ninguém. Na sua humildade nos ensinou que o reconhecimento do valor do mestre tem que vir dos outros, da comunidade da qual faz parte e nunca do próprio discurso muitas vezes carregado de vaidade e arrogância. João simplesmente jogava e ensinava sua capoeira. E por isso era grande !
E de lá, das terras de Aruanda continuará a iluminar os caminhos de todos nós.
João Pequeno não morreu !
* Pedro Abib (Pedrão de João Pequeno) é capoeirista, sambista, cineasta e professor da Universidade Federal da Bahia