Humanidade me cansou

Humanidade me cansou, 
Pelos seus julgamentos
Aquele que está fora, quer saber, 
O que rola dentro
E lá vai e voa o nome, 
o “talvez” e “ouvi falar”
E a cacatua veio jurando,
que ouviu gato ladrar
Não me diga o que não vale,
ou aumenta minha vida,
tem fofoca e aviso,
interesse e intriga
O que eu dizia e aonde,
você vem se lembrando,
por favor faz o esforço,
de se perguntar: por que e quando
O poder de uma estória,
rica de interpretar…
O seu julgamento de mim,
Eu não tento mais julgar

Camará

(Instrutor Rouxinol – A.L.D.E.I.A.)

“A capoeira me fez doutor”

MESTRE JOÃO PEQUENO

Publicada originalmente na revista Praticando Capoeira, #1

Como se sente hoje, aos 82 anos, símbolo da Capoeira Angola no Brasil e no mundo?
Eu me sinto muito bem. Continuo praticando minha capoeira, levando adiante o trabalho de Mestre Pastinha… não tenho doença, estou muito bem.
Como tem sido nesses anos todos dar continuidade ao trabalho de Mestre Pastinha?
Tem sido muito bom e eu sempre vou continuar com esse trabalho.
Mestre Pastinha fez algum pedido ou deixou alguma recomendação ao senhor antes de falecer?
Sim, ele me disse: “João, tome conta disso que eu vou morrer, mas só no corpo; e enquanto a capoeira existir meu nome vai estar vivo”
E para os outros alunos ele deixou alguma recomendação? 
Não, para os outros não que eu saiba.
Quando Mestre Pastinha começou a confiar-lhe a Academia?
Logo que cheguei na Academia de Mestre Pastinha ele já me “entregou” a Academia. Eu começava a ensinar os alunos novos que iam chegando… Eu ensinei muita gente… João Grande eu ensinei…
Como era a organização na Academia de Mestre Pastinha?
A mesma que eu uso hoje na minha Academia. Eu sigo tudo igual ao Mestre Pastinha.
O senhor e o Mestre João Grande eram os alunos “prediletos” de Mestre Pastinha. Isso causava algum ciúme nos outros alunos?
Mestre Pastinha dizia: “Na minha academia tem dois Joãos, um joga pelo ar, outro pelo chão, um é cobra mansa, o outro gavião”; ele se referia a mim e a João Grande.
Por que grandes mestres da capoeira, como Mestre Pastinha, morrem na miséria?
Eu não sei… Capoeira tem dessas coisas… Muitos dizem que a capoeira é maldita. Eu luto e trabalho para mostrar que a capoeira não é maldita. Eu não tinha estudo e graças à capoeira hoje eu sou doutor. A capoeira me fez doutor.
Como os alunos reagiram à doença do Mestre Pastinha? 
Todo mundo ficou triste mas não tinha nada para fazer.
Quais as dificuldades que tem enfrentado ultimamente?
Eu não sinto dificuldade nenhuma. Não tenho dificuldade… Eu estou bem… viajo, tenho minha Academia, participo de vários eventos…
O senhor acha que a Capoeira Angola mudou da década de 40 para hoje?
Mudou, e mudou para melhor. O jogo, principalmente, mudou para melhor. Hoje o pessoal joga bem embaixo…
O que Mestre Pastinha falava sobre a defesa da Capoeira Angola?
Mestre Pastinha falava que se você visse que um golpe ia acertar o companheiro era para freiar, porque a Capoeira Angola não é para acertar. Agora, ele sempre falou que a Capoeira Angola é luta, e é luta mesmo na hora em que você precisa se defender.
João Grande saiu do Brasil e obteve reconhecimento mundial com a capoeira. 0 senhor acha que se estivesse no exterior estaria em melhor situação?
João Grande está lá fora, ganhando dinheiro… Ele disse para mim. “Se eu estivesse no Brasil não teria dinheiro nem reconhecimento que eu tenho hoje”. Eu quando viajo dou meus cursos mas não estipulo cachê; João Grande estipula cachê em dólar, viaja com aluno e ainda com dois seguranças. (risos)
O senhor gostaria de dizer alguma coisa aos capoeiristas?
Que os capoeiristas não desviem a capoeira para o lado mau, porque a capoeira não é má; mau é o capoeirista que desvia ela pai a o mal. Que os capoeiristas façam capoeira mas façam capoeira com amor.
O senhor tem algum sonho?
Eu espero vida eterna, saúde, paz, tranqüilidade, entendimento, sabedoria… paia mim e para minha família. E que Deus dê resistência para eu continuar toda a vida com a capoeira.

“Tem muita coisa que sei e nunca vi ninguém fazer”

MESTRE ARTHUR EMÍDIO

Entrevista de Geraldo Bezerra de Menezes, originalmente publicada no Jornal do Brasil, em 20 de janeiro de 1987.
Mestre Artur Emídio de Oliveira, nascido em Itabuna, em 31 de março de 1930, é o primeiro e único cordel branco da capoeira (graduação máxima). O seu mestre foi Paizinho, que teve como mestre Nene, um africano, ex-escravo no Recife.
Desde que mestre Emídio se entende, a capoeira é sua vida. O pai, Emídio, e os irmãos também jogavam capoeira nas ruas de Itabuna. Aos 15 anos já era professor.
– No meu tempo, gingou na rua era preso. Corri muito da polícia. Eles vinham a cavalo… Várias vezes fomos em grupo à delegada para soltar o mestre Paizinho.
Depois de andar pelo Brasil, desafiando e lutando com quem aparecesse, mestre Arthur Emídio chegou ao Rio em 1953. Foi trabalhar no Cais do Porto, onde conheceu Valdemar Santana. Em Bonsucesso, abriu uma academia e fez escola. Hoje. independente do estão que se pratique, todos consideram Arthur Emidio um nome intocável na capoeira. O seu estilo é próprio.
– Minha ginga e meu jogo são diferentes. De meus alunos, destaco Mestre Celso. Rei da angola, para mim, são os mestres Malhado e Moraes. Mas esse negócio de angola, angolinha, capoeira tiririca (em Minas Gerais), regional senzala, não me atrai. A regional, por exemplo, é num compasso muito marcado. Capoeira é agilidade. Meu jogo é elástico.
Arthur Emidio lamenta que nada se faça pela capoeira. Já participou de mais de 50 simpósios – “tudo conversa” – e nunca foi consultado a respeito de nada – “tem muita coisa que sei e nunca vi ninguém fazer”.
Sobre o mestre Arthur Emidio, André Lacé, também mestre, faz um comentário consagrador:
– Sempre que joguei com o Mestre Arthur senti a seguinte sensação: a distância que vai de mim para de é bastante maior do que a distância que vai dele para mim Ou seja, o domínio dele na luta é absoluto.
Até boje o único cordel branco na capoeira, Arthur Emidio de Oliveira tem orgulho em dizer que já iez exibição para os presdentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck. Após a apresentação para Getúlio, na Bahia, ainda garoto, na solenidade que se seguiu, não se esquece das primeiras palavraa do discurso de Getúlio:
– Realmente, a capoeira é o esporte do Brasil

Casimiro D’Almeida, sangue brasileiro na África

Não conheci Casimiro D’Almeida. Não sei ao certo em que cidade viveu, que agruras passou, que amores teve. Não sei no que trabalhava, se teve família, se ainda está vivo. Sei de Casimiro pelo registro fonográfico que deixou – bem ao estilo do “gringo filmava e me fotografava, eu pouco ligava, também não sabia…”
De acordo com o registro Casimiro era neto de escravos brasileiros – mas nascido e criado no Benin, África. Não sei o nome de seus pais ou avós, mas sei que era descendente da raiz negra de escravos brasileiros que voltaram para a terra-mãe. 
As gravações de Casimiro, que constam nos arquivos do CREM (Centre de Recherche en Ethnomusicologie), foram feitas em 1950 – quando ele já tinha sua voz de homem feito, e acompanhava o canto batucando no que parece ser um pandeiro de couro frouxo, ou até mesmo uma caixinha de fósforos.
O que espanta um pouco, mas não muito, é o fato de Casimiro cantar em português do Brasil, bastante claro – embora com um leve sotaque (provavelmente pela língua oficial do Benin ser o francês). É sabido que muitos negros brasileiros, finda a escravidão, retornaram para a África. Muitos inclusive retornaram antes mesmo da abolição: degredados após a Revolta dos Malês (1835). 
Atlântico Negro – Na rota dos orixás

O que espanta e emociona no canto de Casimiro é perceber como a tradição oral e as festas populares trocam DNA entre si, como todas elas parecem partir de um ancestral comum. Como muito bem disse o finado Mestre Bigodinho, “é uma só”.
Nesses tempos de discussão sobre se a capoeira é de origem indígena, africana, brasileira ou marciana, eu prefiro me abster da peleja. Eu creio na origem brasileira, a partir da raiz negra – mas prefiro não bater pé  nem eriçar penas por conta disso. A origem da capoeira me importa menos que o passado ou o futuro próximos: creio que precisamos cuidar dela agora, tendo os olhos nas gerações recentes que deram-lhe o conteúdo que tem hoje, para só assim conseguirmos um bom porvir. Se a semente for bem cuidada, dará bom fruto e bela flor.
Mas algumas estrofes do que Casimiro cantou em 1950, é que chocam de maneira boa os ouvintes. São cantigas que decerto aprendeu com os pais ou com a comunidade em seu entorno (outros ex-escravos ou descendentes de ex-escravos ?). Seus avós podem ter retornado do Brasil em algum ponto a partir de 1835, então essas canções já eram conhecidas aqui – que bela relíquia é isso, ter a certeza que algo do que cantamos na capoeira remonta a quase 200 anos!

Alguns exemplos:

Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal
Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal
Meu amor é [???]
Eu sou vadio, vou vadiar
Sou vadio, vou vadiar

É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando
É de manhã, meu boi está me chamando

É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando
É de manhã, meu boi está me chamando

Meu boi tem o costume
Chamado que vai andando

As estrelas do céu correm
Eu também quero correr
As estrelas atrás da lua
E eu atrás do bem-querer

Isso sem contar as várias referências ao Senhor do Bomfim, e à burrinha – que ainda sai nas festas populares Brasil afora.

Não conheci Casimiro, nem no particular nem no público, mas o considero muito, devo muito ao conhecimento que ele teve, tinha ou tem. Um bastião de resistência, retrato da vitória da tradição oral de um povo sobre a sanha escravizadora de outro.

Viva Casimiro, e viva a abolição – que se foi apenas no papel em 13 de maio de 1888, pelo menos que seja  real nas cabeças em cada dia de cada mês de cada ano!

Liberdade como vírus

Eu imagino que a liberdade seja como um vírus. Um miasma que se pega pelos ares afora. Contrai-se a liberdade, ou ao menos o desejo dela, pelos olhos, ouvidos e nariz. O cheiro da liberdade é o cheiro do pandeiro batendo solto, sem rótulo nem bandeira. O som da liberdade é o som do suor caindo desbragado do couro para o chão, numa roda sem dono mas com direção. A visão da liberdade é a bateria na função, o canto sereno e o ritmo cadenciado – sempre permitindo que se pense, sempre pedindo que se respeite. O vírus da liberdade é incurável; uma vez contaminado você vira estatística: o questionamento vem consequentemente, pois a liberdade exige os comos e por quês das coisas. Nada é porque me dizem que é, ou pelo menos que respeitem meu direito de discordar. Mas há quem seja imune ao vírus da liberdade; os nascidos para a canga; ou os que escolhem, estando em seu próprio direito, a verdade que lhes dizem ser verdadeira…
Como o Mestre Elomar bem disse em sua cantiga, no seu dialeto sertanês:
O peão na amarração

Inconto a sulina amansa
ricostado aqui no chão
na sombra dos imbuzêro
vomo entrano in descursão
é o tempo que os pé discança
e isfria os calo das mia mão
vô poiano nessa trança
a vida in descursão
na sombra dos imbuzêro
no canto de amarração
tomo falano da vida
felá vida do pião
incontro a sulina amansa
e isfria os calo na mão
u’a vontade é a qui me dá
tali cuma u’a tentação
dum dia arresolvê
infiá os pé pelas mão
pocá arrôcho pocá cia
jogá a carga no chão
i rinchá nas ventania
quebrada dos chapadão
nunca mais vim num currá
nunca mais vê rancharia
é a ceguêra de dexá
um dia de sê pião
num dançá mais amarrado
pru pescoço cum cordão
de num sê mais impregado
e tomem num sê patrão
u’a vontade é a qui me dá
dum dia arresolvê
jogá a carga no chão
cumo a cigarra e a furmiga
vô levano meu vivê
trabaiano pra barriga
e cantano inté morrê
venceno a má fé e a intriga
do Tinhoso as tentação
cortano foias pra amiga
parano ponta c’as mão
cumo a cigarra e a furmiga
cantano e gaiano o pão
vô cantano inconto posso
apois sonhá num posso não
no tempo qui assenta o almoço
eu soin qui num sô mais pião
u’a vontade aqui me dá
dum dia arresolvê
quebrá a cerca da manga
e dexá carro dexá canga
de trabaiá sem discanço
me alevantá nos carrasco
lá nos derradêro sertão
vazá as ponta afiá os casco
boi turuna e barbatão
é a ceguêra de dexá
um dia de sê pião
de num comprá nem vendê
robá isso tomem não
de num sê mais impregado
e tomem num sê patrão
u’a vontade aqui me dá
dum dia arresolvê
boi turuna e barbatão
toda veiz qui vô cantá
o canto de amarração
me dá um pirtucho na guela
e um nó no coração
mais a canga no pescoço
Deus ponho pru modi Adão
dessa Lei nunca me isqueço
cum suo cume o pão
mermo Jesus cuano moço
na Terra tomem foi pião
e toda veiz que eu fô cantá
pra mim livrá da tentação
pr’essa cocêra cabá
num canto mais amarração

Miquilina morreu ontem

Miquilina morreu ontem
Ontem mesmo se enterrou
Miquilina morreu ontem
Teve gente que chorou
Prá cova de Miquilina
Mando um buquê de flor
Era hora grande
Quando eu cheguei na Bahia
Só prá ver a preta Rosa
Filha de Rosa Maria
Todo mundo viu a Rosa
Só eu mesmo é que não via
Vizinho é meu parente
Viveu bem sem trabalhar
Meu pai trabalhou tanto
Nunca pôde enricar
Não tinha um dia da semana
Que deixasse de rezar

(Mestre Russo)

Capoeira subversiva

A capoeira sempre foi entendida como subversão. De escravos contra seus senhores; dos cidadãos de segunda classe contra o poder instituído; do conhecimento oral contra o academicismo; do corpo contra a lei da gravidade. Gente se juntou à capoeira e subverteu a lei do mais forte, subverteu a ordem social pessoal (e “subiu” na vida como pau-mandado de figurão), subverteu a lei vigente e ajudou a trazer a capoeira para o lado “certo” da cerca.
Mas e hoje, o que a capoeira subverte ? Passemos um pente-fino em nossas próprias cabeças, e vejamos quantos piolhos não caem… Machismo, racismo, sexismo, homofobia, xenofobia, preconceito religioso, preconceito contra idosos, gordos, carecas, deficientes de todo tipo. Orgulho. Prepotência. Ego inflado. Aquela certeza de ser o último dobrão do mundo, para bater berimbau.
Então, capoeirista, o que a capoeira subverteu em você ? E o que você subverteu hoje ?

Disconfie

Disconfie (Teimosia)

Disconfie di quem qué
vir li apontá o dedo
a raiva escond’a’nveja
a’nveja escond’u medo
Disconfie di quem qué
li dizê c’o dele é certo
orgulh’escond’incerteza
seja longe, seja perto
Num queira vim’i dizê
qui o meu jeit’é furado
qui eu só sei andá torto
qui meu cert’é seu errado
Disconfie di quem qué
li impô u qui vesti
li dizê u qui pensá
l’insiná u qui senti
Di gent’assim, amigo meu
U mundo vai s’intupi
São os capitão-du-mato
disfarçado di Zumbi
Camaradinha…
Pisa no chão, pisa maneiro
Si num pode com furmiga, num assanha furmigueiro
Pisa no chão, pisa maneiro
Si num pode com mandinga, num assanha mandingueiro

A música precisa existir por si

a música precisa existir por si
não por ser fundo, não por ser trilha
precisa fugir pelas amídalas,
sair da goela como sai um grande arroto
que ponha para fora barulhos que há dentro
remexa entranhas e esquente buchos
que faça relar as vontades e acanhe saudades matadeiras
a música precisa correr solta como dedos que correm cordas
e línguas que correm furos, baquetas que correm couros e mãos que correm teclas
sair da úvula, badalos que percutem sinos
que seja poema em si
verdades de quem a escreve ou canta, ao menos mentiras de quem a escuta ou repete
a música precisa sair do peito
como se nele nunca houvesse cabido
água de morro abaixo, formiga de correição
rolha de sidra boa,
ligeira, lépida, célere e fagueira – em qualquer ordem que se deseje
‘que música é para ser solta
uma capoeira jogada para a roda
dança mais torta e balanceada do que propunha o bailarino
‘que dança é música vazando pela sola do pé
caçando terra que lhe caiba feito peito coube
e treitando jeito de arapucar um passante
que lhe plante a planta e dê chance de subir como xistosa
escalando a canela e deixando rupeio
para ser quentura no joelho e tremura nas coxas
sacolejo de quadris e umbigada quebrante.