Entrevista realizada por Letícia Cardoso de Carvalho e publicada na revista Praticando Capoeira, ano I, n° 8
Quando começou a treinar capoeira?
Em 1963, com Mestre Bimba. Ele me tratava muito bem.
O senhor formou-se na segunda turma de Mestre Bimba?
Não, não havia turma. Bimba ensinava a seqüência, com seis meses ele formava o aluno, mas uma coisa era formar e a outra era a formatura. Quando eu me formei tinha uma pessoa que tinha entrado depois de mim, uma que tinha entrado antes, mas nós fizemos a formatura todos juntos. Bimba aguardava a oportunidade de juntar mais alunos para fazer uma festa só.
Mestre Bimba mudou o método de ensino e o estilo ao longo do tempo?
Muito. A ponto de ter alunos que não conheceram a capoeira de Bimba que eu conheci. Cada aluno fala de Bimba da época que viveu com ele. Bimba gostava de falar em parábola. Mas Bimba mudou muito no decorrer do tempo. A angola também mudou da época de Pastinha para cá; é mentira dizer que não mudou.
O capoeirista joga diferente, dependendo do ambiente, momento histórico que está vivendo, trajetória histórica dele. A palavra de uma pessoa só pode ser compreendida no determinado instante que é dita, olhada e julgada. Depois, ela perde todo o significado. Nada que é humano é definitivo. Nós estamos em processo de transformação permanente… depois que eu encontro determinada pessoa eu não sou mais o mesmo, eu cresci, mesmo que essa pessoa não preste, se eu souber interpretar eu aprendo com ela.
Não tem ninguém que não possa dar nada a ninguém. A verdade é que a humanidade toda é uma unidade. Não adianta querer julgar Bimba pelas minhas palavras ou pelas de Hélio. Eu posso dizer que eu não conheço ninguém que eu possa comparar a Bimba. Para nós todos ele era o pai, o paradigma do pai. O que a gente tem que aprender é a verdadeira lição que a capoeira dá: somos todos irmãos. A coisa mais gostosa é a gente encontrar um ex-companheiro de capoeira. A capoeira une todas as gerações, todos os homens. Ele permite que cada um seja ele próprio, cada um faz a capoeira que é capaz.
O senhor acha que está tendo muita agressividade nas rodas de capoeira hoje em dia?
Não, na grande maioria das rodas eu vejo a camaradagem. Mas eu vejo uma coisa que não é para ser feita na roda, que me preocupa: cada um está jogando capoeira como se não existisse o outro. Estão soltando golpe de torto a direito e sem querer acertam o outro. A primeira regra que a gente aprende é que não se solta um golpe sem ver onde vai pegar. Não se solta um golpe sem primeiro cavar a oportunidade do golpe ser eficiente. É como a semente: você não vai jogar em qualquer lugar do solo. O golpe é como a semente, tem que selecionar o lugar para aplicá-lo; isso é o que chamam de armar o golpe. Hoje ninguém está estudando o jogo, está dando pontapé, cabeçada, salto, como se estivesse sozinho na roda. Não desenvolve a parceira, a audácia, a noção de desequilíbrio e cria sltuações de acidente. Essa é a única coisa que é lamentável para mim.
Outra coisa que me preocupa é que estão acelerando o ritmo da capoeira cada vez mais e consequentemente não há oportunidade de se ver o que se está fazendo na roda. Eles ainda não perceberam que essa angústia, esse ritmo acelerado, nos leva a um estado de consciência diferente da vigília. Nesse ritmo, você faz movimentos com propósito de agressão e às vezes você entra num movimento que pode até matar o outro. O ritmo acelerado fez você perder a consciência, o que poderia ser freado não é mais. Bimba não admitia um golpe na capoeira que não pudesse ser utilizado numa luta. Outra coisa errada que eu vejo é o capoeirista inclinar o corpo para trás para se esquivar do golpe; isso é errado, o certo é você acompanhar o golpe esquivando-se e não jogando o corpo para trás.
Até quando o senhor teve contato com Mestre Bimba?
Até a véspera dele ir para Goiânia.
Como eram os treinos de emboscadas feitos por Mestre Bimba?
O treino de emboscada não pode ser reconhecido como emboscada, pois o intuito não era fazer a emboscada e sim fugir da emboscada. Era dado um trajeto para o capoeirista. e no meio eram colocados obstáculos para não deixá-lo passar e chegar ao final: se o capoeirista fosse detectado nessa área, ele tinha sido pego, aí a brincadeira acabava. O treino de emboscada não era feito para o capoeirista apanhar, e sim para ele aprender a fugir das emboscadas; não era guerrilha e sim fuga. Você tinha que passar pelas armadilhas sem ser pego; se fosse pego não era aprovado; não tinha essa de bater no capoeirista porque ele foi pego. Se o outro pegasse o camarada, acabou, ia comemorar e não bater. Era igual brincadeira de criança, o pega pega, pegou já era, já mostrou a falha. Com o passar do tempo houve uma modificação no conceito do treino de emboscada, onde esse passou a ter caráter de luta: o emboscado passou a bater no emboscador. Nada em capoeira é para bater.
Quais são seus planos na capoeira?
Continuar vivo e dizendo a verdade.