Dê uma reparada nesse vídeo:
Pensando num argumento mínimo: pela quantidade de etnias negras trazidas e misturadas à força aqui no Brasil, seria humanamente impossível manter qualquer tradição imutável. Toda tradição oral é viva, e muda quando mudam os que a mantém viva. Não há tradição oral estática – todas refletem sinais de seus tempos.
O seu mestre não faz tudo igual ao que o mestre dele fazia, é fisicamente impossível. A termodinâmica garante que a transmissão de energia entre dois pontos sempre acarreta perda: a energia elétrica, ao ir para a lâmpada, não gera apenas luz – também gera calor. A sua energia, ao pedalar uma bicicleta, não gera apenas o movimento – também aquece as correntes, faz barulho, range. Não existem sistemas de energia “fechados”, que uma vez abastecidos, nunca mais precisem de combustível.
É claro que trazer conceitos físicos para dentro do campo da mente humana é sempre perigoso, mas me arrisco a defender a posição nesse caso. Nenhum ser humano é uma ilha, todos estamos expostos a opiniões diariamente, e algumas dessas opiniões mudam a nossa cabeça. Não é que fulano despreza o que o mestre dele ensinou: ele é uma pessoa com gostos e direitos, e no gosto e direito dele, vai ajeitar um pouquinho aquilo que aprendeu – para que goste ainda mais.
Por esse motivo é que os uniformes mudam de uma geração para outra; as baterias mudam de formato; os grupos ficam mais ou menos agressivos; as letras se alteram; os golpes mudam de nome; alguns golpes deixam de ser praticados (Você sabe o que é um bochecho ? E um baú ? E uma pantana ? E se sabe, tem certeza que faz igualzinho ao que se fazia em 1920 ?).
Entendo que a beleza da capoeira está justamente nessa falta de definições – é diferente de artes marciais orientais cuja forma e filosofia estão descritas em pergaminhos com centenas ou milhares de anos de idade. A capoeira é mais nebulosa, mais difusa, dá mais lugar ao praticante pensar e definir ele mesmo a arte. Temos sim luminares, capoeiristas cujo pensamento e ações formaram e formam gerações – Pastinha, Noronha, Cobrinha Verde, Waldemar, Bimba, Canjiquinha, e tantos outros. Mas no meu modo de ver, eles não deixaram regras rígidas: cada um deixou o “seu jeito certo”, e se em algum momento discriminou o jeito do outro, não deveria ser julgado por isso – cada um era produto de seu tempo, e suas palavras faziam sentido naquele contexto.
Nós que chegamos agora, os mais novos, temos o privilégio de poder beber a água de muitas fontes, e desenhar nosso caminho baseando-nos naquilo que nos agradar, do que cada um dos “monstros” deixou.
Embora não esteja ligada diretamente à capoeira, eu gosto muito de uma frase de Lee Jun Fan, também conhecido como Bruce Lee. Tendo fundado um estilo, o jeet kune do, Bruce Lee parece paradoxal ao afirmar que sua arte não tem forma. O jeet kune do, por definição, não tem um jeito certo de se fazer.
“Se as pessoas disserem que o jeet kune do é diferente disso ou daquilo, então deixe o nome jeet kune do ser apagado, pois é isso que ele é, apenas um nome. Não se preocupe com ele.”
Pode soar zen demais, mas é algo que eu percebo, mesmo implicitamente, na capoeira. A expressão física da capoeira importa muito menos, para mim, do que o estado mental. O desejo do capoeirista, ao jogar, me encanta mais que o jogo em si… Perceba que não quero dizer que cabe tudo ou que vale tudo na capoeira, e sim que cabe tudo e vale tudo o que for feito com respeito ao próximo, à sua integridade física e moral.
A capoeira com amor, faz amigos. A capoeira, sem amor, nem capoeira é…
Salve camarada!
Peço licença para comentar a sobre a questão da origem da capoeira.
Como você bem notou toda pergunta sobre a origem procura um momento onde as coisas estavam indivisas, bem claras e delimitadas. Dizem os psicanalista que esta busca tem haver com o desejo de unidade que perdemos quando separados de nossa mãe por nosso pai (por isso todo capoeirista quer um mestre de uma linhagem pura para recompor sua unidade – capoeira: mãe; mestre: pai). Dizem os sociólogos que isso tem haver com o poder, um sujeito ao dizer que sua capoeira é próxima da origem busca uma posição de poder sobre os outros (vide as disputas de pureza entre as linhagens de capoeira).
Na questão da origem, sua posição parece ser: "a origem da capoeira é múltipla". E ainda: "ela está em constante mudança", de modo que é impossível definí-la. Além disto, você apresenta princípios éticos para dizer o que é a capoeira: ela é um estado mental, ela é um desejo de jogar, ela é respeito, preservação da integridade física, amor.
Discordo das suas posições. Para mim a capoeira não é una, nem múltipla. Seguindo Bruce Lee, capoeira é um nome que se dá a um conjunto de ritos (ou técnicas corporais) e mitos ensinamentos, reflexões sobre a prática), logo a capoeira não existe (ou existe apenas como um nome), o que existe são infinitos ritos e mitos que se combinam de diversas formas para compor o que se chama capoeira em cada momento histórico. Por diversas circunstâncias destes ritos e mitos vão sendo abandonados, outros incorporados, de modo que a capoeira é uma combinação de uma diversidade de histórias e técnicas corporais. Nós, capoeiristas, vivemos de diversas formas neste turbilhão e tentamos definir o que é a capoeira para nós, o que ela faz em nossas vidas, para onde ela nos leva.
Aliás, este é o único ponto de vista para falar da capoeira, que dizer, a perspectiva ética que pergunta: o que a capoeira é para mim ? como ela se compõem comigo? o que me faz bem e o que não faz na capoeira? (Isto não é uma posição relativista).
Meu critério ético é simples. Para mim, nos dias atuais, a capoeira é inventar estilos de jogos, fabricar gestos a partir das referências de cada linhagem. Desta perspectiva, só é um "verdadeiro" capoeirista (independente do seu estado mental, respeito, amor, etc.) aquele que se esforça por criar um estilo que permita lançá-lo para além das coisas que aprendeu em sua linhagem. O estilo mostra o que um determinado corpo é capaz, quando vemos um capoeirista de estilo descobrimos novas possibilidades. O estilo é a capoeira nômade, a linhagem a capoeira sedentária.
Isto vale atualmente, porque antes a capoeira foi valentia e sobretudo com Pastinha (mas não só) ela se tornou estilo.
Excelente linha de raciocínio! Me lembrou um pouco isso aqui:
http://campodemandinga.blogspot.com.br/2010/11/capoeira-e-o-navio-de-teseu.html
Axé,
T.
Camarada,
não conhecia o seu texto, trata-se de um grande esforço para pensar a capoeira (sinceramente, um caminho mais interessante que a maioria das textos acadêmicos).
Se entendi bem, para você a capoeira seria um conjunto de corpos humanos (causa material) singularizadas ou enformadas pela vontade dos jogadores (indivíduos singulares) que partem de diferentes motivações (individuais ou sociais, ex. libertação, ascensão social, capangagem, formar uma academia). Além disto, a capoeira seria construída por cada pessoa a partir de seu próprio corpo (causa eficiente).
Meu caminho de pensamento é diferente. A capoeira é formado por técnicas corporais e mitos ou narrativas. Numa linguagem aristotelica, poderia chamar as técnicas de matéria e os mitos de forma.
No entanto, para Aristóteles a unidade ou identidade de um dado ser (substância) é sempre a matéria subordinada à forma.Por esse caminho pensa-se a identidade da capoeira, e você é forçado a admitir que a única identidade da capoeira é sua forma humana, porém (como você mesmo notou) toda a atividade humana é extremamente variada e, portanto, impossível definir sua identidade (uma raciocínio fulminante a ortodoxia vigente na capoeira que quer estabelecer uma identidade para ela).
Já no caminho que eu propus, minha intenção é pensar esta diferença alucinante que perpassa a capoeira – mas não a partir das pessoas e sim das combinações diversas que ocorrem entre técnicas corporais e mitos. Neste sentido o que chamamos capoeira se constitui em alguns instantes da história como uma identidade por força das pressões sociais e das relações de força(que se dão através dos mitos). Assim, todo mito limita a capoeira de suas possibilidades quase infinita. Gostaria de ajudar a libertar a capoeira de todo mito e transformá-la em arte – arte do corpo e da vida em um mundo sempre caótico e insubordinado à qualquer forma. (Esta libertação da capoeira já aconteceu diversas vezes, por exemplo, como os gymnastas do Rio antigo, com Bimba e Pastinha e, talvez, com Suassuna e Camisa. Porém depois de libertar a capoeira da forma anterior, eles inseriram uma nova forma para aprisionar a capoeira.
Talvez as coisas estejam um pouco abstratas, vou tentar melhorar. Minha questão seria que coisas posso juntar e separar da minha prática da capoeria para tornar meu corpo mais astuto, mais expressivo, mais efeciente? Mestre Pastinha tentou uma pequena estrutura burocrática (organização da bateria, cargos e funções), preocupações estéticas, mistérios religiosos (aliás ninguém entende Pastinha sem ligar estes mistérios que estão nos manuscritos).
Camisa tentou as ciências do corpo, a ideologia empresarial (só enfraqueceu a capoeira), reativou as rivalidades "tribais", etc.
Sou-lhe grato pela interlocução e peço desculpas pelo tamanho do texto.