Pareidolia: cara de um, focinho do outro

Tenho visto circular pelo Facebook a imagem abaixo, que compara o belíssimo rabo-de-arraia do Cezar Mutante a um suposto “desenho antigo” mostrando um capoeirista acertando o mesmo golpe em um oponente.

Eu nunca tinha visto o tal “desenho antigo”, e fiquei curioso para saber de onde o mesmo vinha – certamente não pertencia aos artistas “clássicos” que ilustraram a capoeira em tempos pré-fotografia: Debret, Rugendas e Harro-Harring.

“Dança de guerra” – Rugendas
“Negros dançando” – Harro-Harring

“Escravo tocando berimbau” – Debret

Muito menos pertencia a outros artistas mais “modernos” como Kalixto ou Carybé…

Carybé

Kalixto

Com a curiosidade cada vez mais atiçada, prestei reparo no texto do rodapé do “desenho antigo” – que me levou até o site da BNF (Bibliothèque Nationale de France). Lá, encontrei um texto falando sobre a “diamanga malgache” (o mesmo nome citado no rodapé do “desenho antigo”). Como não sei ler francês, usei o tradutor do Google para me ajudar (traduzi apenas parte do texto original). O resultado foi o texto abaixo, inferido e completado por mim a partir do resultado da tradução automática:
Antes da ocupação francesa, os malgaxes praticavam o esporte, mas à sua maneira.


Havia vários tipos de esportes, como “balahazo”, o “tolona”, o “totohondry”, o “vikina” e o “diamanga”. E este último foi o mais popular. Consiste na troca de chutes entre adversários. O “diamanga” é lutado por dois jogadores apenas, ou entre dois grupos que fazem vários jogos – cada bairro, cidade e aldeia  tem seus campeões.


E reuniões entre os campeões são sempre eventos sensacionais para os espectadores, que vinham às vezes de longe para participar das lutas – exatamente como acontece hoje em Tananarivo durante os jogos de rugby entre equipes do campeonato na capital.

Bem, então agora sabemos que há uma luta de chutes originária de Madagascar (pátria dos malgaxes), chamada diamanga, que tem pelo menos um golpe parecido com a capoeira. Desse ponto em diante, eu não consigo mais entender a relação entre o desenho escolhido e o título da imagem, “Capoeira luta eficiente”.

O que a pessoa quis dizer com “no passado” ? Que a capoeira é descendente da diamanga ? Ou quis simplesmente ilustrar uma crença (a de que a capoeira sempre foi uma luta perigosa) a qualquer custo, e para isso usou a imagem que tinha à mão ?
Camaradas, a capoeira não é diamanga. Capoeira não é l’ag’ya. Capoeira não é danmye. Capoeira não é moring. Capoeira não é mani. Capoeira não é n’golo. Que são todas frutos da mesma raiz, negra e forte, disso não há dúvida – mas querer reduzir uma à outra apenas para provar um ponto de vista, no meu modo de ver, é uma grande injustiça para com todas essas lutas.
Mas talvez o ponto é que o autor da imagem não tenha tido a intenção consciente: ele pode simplesmente ter sido vítima da pareidolia. Esse fenômeno comum é um truque que nosso cérebro aplica em nós: os humanos são programados naturalmente para reconhecer padrões de imagem. É por isso que olhamos para uma nuvem e vemos “um castelo” ou “um tigre”; é por isso que vemos o rosto de uma santa na condensação de vapor na janela… O que você vê nas imagens abaixo ?
Uma cara na rocha ?

Um leão, ou uma árvore cortada ?

Uma tartaruga com um sapo nas costas, ou um cogumelo ?

Uma caixa “espantada” ?
Um peixe-ovo
E nas imagens abaixo, o que você vê ?
Capoeira ? Não, n’golo.

Capoeira ? Não, moring.
Capoeira ? Não, savate – que sequer tem raiz negra…

As últimas imagens não são exemplos clássicos de pareidolia, porquê não fazem com que o observador veja objetos que não existem. Mas não deixam de ser pareidolia no sentido de que levam a entender algo que não é real.
 De tudo o que foi dito, eu quero frisar algumas coisas:
1) a necessidade de se provar um ponto de vista usando quaisquer argumentos. Vi isso acontecer recentemente com a publicação de uma foto do Cacique Raoni “chorando por causa da construção de Belo Monte”. A foto era real, mas a situação em que ela ocorreu, não era. O choro do cacique aconteceu alguns anos antes do assunto Belo Monte surgir. Pergunto então: se pretendemos lutar contra uma mídia inconsequente e que forja fatos, é válido usar as mesmas armas que ela ? Informação é poder, e informação falsa é poder falso. Eu acredito que dois erros não fazem um acerto.
2) a necessidade de provar que a capoeira serve para a luta física. Primeiramente, me espanta que alguém que conheça a capoeira ainda tenha dúvida. Depois, me espanta o fato de alguém acreditar que uma vitória no ringue usando golpes de capoeira prova a eficiência da capoeira – como se a derrota no ringue provasse que a capoeira não é eficiente. Não existem estilos perfeitos, existem lutadores perfeitos. Praticantes de capoeira podem lutar, perder ou ganhar – mas como Mestre Pastinha bem disse, “caso a capoeira falhe, será culpa dos capoeiristas”.
Para terminar, uma bela imagem…
Capoeira? Sim! O Mestre Camisa Roxa aplica uma pantana em Fernando Pallos (1969)

No passo do urubu malandro

Texto: Carlos Eugênio Líbano soares

João Batista já tinha arriado quando viu cambando o pardo Marcelino, escravo de um tal Mendes Viana. O pardo era carrapeta, mas o João teve medo de ser agaturrado. Não iria cair na ébia, nem desgarrar como um capadócio que via um chanfalho qualquer, muito menos espirrar ou botocar. Nas rodas de capoeiragem da rua da Vala, mesmo pronto, João era leal, conhecido como um que firma.
Mas o pardo começou a florear, lustrar, figurar na sua frente, e ele ficou de guarda alta para não cair na lodaça. Começou a pegada como uma caveira do espelho, e João soube aprumar-se, dando uma carrapeta. A cambachilra atordoou o cativo. João tentou uma calçadeira, mas o cativo era bom de pulo. Ele então ficou caranguejando, ladeando. O pardo deu uma passarinhada, que fez João Batista cair num passo do constrangimento. Ele levantou-se, mas não estava lanhado. João começou a espalhar-se, a esperar. Nisto um estranjaparou para assistir a cena.
O pardo escravo era bom do jocotó, sabia fazer letras, era hábil no laço. João Batista não viu o pardo com um manhoso. Preparou seu passo. Deu uma pantana que o pardo foi cair nolajedo. Este se recuperou com uma rabanada, mas o livre escapou rabejando. O cativo aí tentou matreiramente passar um rabo de Galo. João Batista achou que aquilo era coisa dePiaba. Antes do bote ele deu um magnífico rabo de arraia, que derrubou o escravo com sardinha e tudo. João Gritou: “Se aprume, quero ver melado”.
Irado, o pardo partiu para encher como um tira-teima que resolve a turimbamba. Mas levou uma tunga e ficou ali mesmo. O boche, com cara de bife, olhava com gozo a Dança de Velho. Após rabear frente aos tentos do João este acertou uma pantana no Marcelino, que tungado, tentou trastejar junto ao bamba, mas tava pangaio. O mofento estava pronto, e ainda levou uma lamparina. Lanhado, ele saltou fora.
João Batista seguiu seu caminho, como um urubu malandro, enquanto o godeme assistiu tudo, com ar de mahana.
Roda…
O texto acima é uma narrativa imaginária de um combate de capoeiras nos tempos idos do Rio imperial, usando a gíria das antigas maltas. Estas gírias foram recolhidas por Jair Moura em seu livro Mestre Bimba: A crônica da capoeiragem, Salvador, ed. do autor, 1993. Pp. 65-66

Tai sabaki e o jeito que o corpo dá

Apesar de nunca ter praticado outra luta que não fosse capoeira, sempre gostei de ler sobre artes marciais e correlatos. Gosto de comparar estilos, não no sentido de “qual é melhor”, mas sim de “quão parecidos ou quão diferentes” – afinal de contas, todos os praticantes são humanos, e o corpo humano só consegue se mover dentro do limite de suas articulações.

Por esse motivo é que há chutes parecidos com o “martelo” no karate, no muay thai, no savate e no boxe chinês: um chute frontal, com o quadril rotacionado. O mesmo vale para joelhadas, socos, etcetera. Ainda que uma arte marcial use mais de um e menos de outro, ou mesmo que não use algum tipo de golpe, todo lutador está limitado a fazer o que seu corpo permite.

Um amigo é praticante de diversas artes marciais orientais (karate, judo, ninjutsu), e já conversamos bastante sobre o que diferencia e o que aproxima os nossos estilos. Certa vez, ele comentou comigo que uma coisa que achava muito bacana na capoeira, muito mais do que os golpes, era o tai sabaki. Quando viu que eu não tinha entendido do que se tratava, explicou: o tai sabaki é a movimentação do lutador, o “gerenciamento da posição”, a “gestão do corpo”.

Em artes marciais orientais, a técnica é usada para medir as distâncias, evasão, e mesmo conversão de defesa em ataque. Segundo a Wikipedia“sua maior finalidade é justamente evitar o enfrentamento direto, evitando, pois, um ataque e, na sequência, deixar a pessoa numa posição vantajosa. (…) não se deve resumir tai sabaki apenas como esquivas”.

Veja que interessante! A finalidade primária do tai sabaki é uma das grandes posturas filosóficas da  nossa amada capoeira: ela não foi criada como arma de enfrentamento direto. O negro, escravizado e em situação de desigualdade completa, valia-se da astúcia mais que das pernas. A capoeira era “dança” aos olhos do senhor, para só se manifestar como luta valente nas horas certeiras – e essas horas certeiras tinham que ser bem medidas pelo negro (sob pena de morte, em caso de erro): atacar na distração, atacar quando tinha certeza da vitória, atacar quando a superioridade númerica ou de armamentos do escravizador pudesse ser ludibriada.

Conforme o Mestre Bola Sete bem descreveu em seu livro “Histórias e Estórias da Capoeiragem”, o capoeirista tem “a obrigação de chorar no pé do seu inimigo”, para que esse, relaxado e até mesmo desprezando o oponente, possa ser pego de surpresa. 

Mestre Pastinha se referiu ao mesmo fato quando falou sobre o “capoeirista correr, e ai de quem correr atrás dele”, pois “o capoeirista corre para não ter que matar”. A capoeira é uma luta bravia e perigosa, mas que tem seu maior trunfo na dissimulação, em fazer o outro pensar que o capoeirista vale menos do que ele. 

Já o Mestre Duquinha, em sua bela entrevista, comenta uma das “regras não ditas” da capoeira:

Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…

Nunca tive dúvida de que a capoeira servisse para quebrar um osso, romper uma costela, tirar uma vida. A história mostra isso, e a física das alavancas está do lado da capoeira: um pé rodando tem a força de uma pedra atirada com força, uma rasteira encaixada quebra um braço ou um crânio. No entanto, o capoeirista moderno parece precisar mostrar que é capaz de exercer a violência da luta, e que ela é eficaz. 

Tenho visto cada vez mais a capoeira chegar à mídia através de torneios de luta aberta, MMA e similares. Entendo que isso é um sinal dos tempos, pois hoje em dia quer-se ter a violência contida: é melhor lutar no ringue, com regras definidas, do que brigar na rua ou na roda. 

Nada contra quem gosta ou participa desse tipo de evento (eu mesmo gosto de assistir, embora não pratique MMA), e acho que o raciocínio “lute no ringue, não brigue na roda” faz muito sentido – mas o que ele prova em relação ao que a capoeira-luta consegue fazer ?

Dentro de um ringue, não há dissimulação, não há espaço para isso. Os dois lutadores sabem que só vão sair dali quando houver um vencedor. A “surpresa” não pode ocorrer, pois como um capoeirista vai “chorar no pé do seu adversário”, quando já se sabe que a luta só termina com o nocaute ou a rendição, sem espaço para a apelação ? Em uma situação de luta real, o capoeirista poderia “render-se”, para então derrubar seu inimigo quando esse lhe desse as costas. Num ringue, isso é impossível.

O ringue exige a luta objetiva, enquanto a capoeira-luta é subjetiva – o que não deve ser entendido como “sem contato” ou “fraca”, e sim como “malandra”, “sem regras”. Vide Mestre Pastinha dizendo que a “as brigas de capoeira nas docas, ninguém podia conter”. Não cabiam em ringues… Podemos ter certeza que um rabo-de-arraia bem dado derruba qualquer forte, e inclusive temos visto isso acontecer – mas prova realmente que a capoeira é luta perigosa ? 

Pode-se argumentar que o faz-que-vai-e-não-vai da capoeira pode ser provado no ringue. E talvez possa mesmo. Mas qual estilo de luta não tem um faz-que-vai-e-não-vai ? Toda luta tem elementos de tai sabaki; todo ser vivo que luta (por comida ou por sua vida), a menos que seja MUITO mais forte que o adversário, precisa em algum momento tentar enganá-lo para obter a vitória.

No meu entendimento, os golpes, gingas e negaças da capoeira no ringue, não provam o valor da capoeira enquanto luta. Provam sim, o valor dos golpes, gingas e negaças da capoeira – e estes tem muito valor, sim senhor.

O valor da capoeira-luta é provado quando o capoeirista consegue sair do aperto sem precisar lutar, só ludibriando. Ou quando mesmo em situação de enfrentamento direto e inevitável, ele leva o adversário na conversa, até o ponto em que possa dar o golpe certeiro – aquele que incapacita o inimigo, ou o “coloca para dormir”. 

O meu amigo, sendo ninjutsuca, comentou uma vez que gostava de comparar os capoeiristas aos ninjas. E antes que você, leitor, comece a achar que o ninja era o cara que dava gritos loucos, jogava “estrelas”, fazia saltos mortais acrobáticos e soltava bombas de fumaça, lembre-se que isso aí é coisa de cinema. Os ninjas reais eram artistas marciais treinados para missões de espionagem ou assassinato – e faziam isso muito bem.

Segundo o meu amigo, a diferença entre o samurai, cheio de códigos de honra, e o ninja, era que se você marcasse um duelo com um samurai para o sábado às 6 da madrugada, ele estaria lá pontualmente. Já se você marcasse o duelo com um ninja para o sábado às 6 da madrugada, ele te mataria enquanto você dormisse, na quinta à noite.

Olha a malícia aí…

“O verdadeiro capoeirista não bate no camarada”

MESTRE JOÃO GRANDE
Publicada originalmente na jornal “A Tarde”, em 3 de julho de 1988
A Tarde: Por que o nome João Grande?
Mestre João Grande: Na academia do mestre Pastinha tinha dois Joãos: um pequeno eum grande. Um menor e um maior. O outro é pequeno mesmo.
AT: Onde o senhor nasceu?
MJG: Nasci no interior da Bahia, em Itagi, próximo de Jequié. Tenho 55 anos.
AT: Como o senhor velo parar na academia do mestre Pastinha?
MJG: No ano de 1953, quando eu já estava em Salvador e tinha 20 anos, passei numa roda de capoeira na Curva Grande, onde fica o Nina Rodrigues. Ali tinha capoeira todos os domingos. Eu que morava no Tororó, comecei a ir lá todos os domingos. Gostei da brincadeira. Então, perguntei a João Pequeno, que eu conhecia, onde ele aprendia capoeira. Ele me falou do Mestre Pastinha, que tinha uma academia no Candeal Pequeno, em Brotas. Paguei 20 mil réis e entrei para a academia. De lá só saí com a morte do Mestre Pastinha, há cinco anos.
AT: E como foi sua convivência com o Mestre Pastinha?
MJG: Assim que entrei na academia, comecei a treinar diretamente com o Mestre Pastinha. Mas a academia ficou parada durante um ano, porque o dono da sala, onde ela funcionava, pediu o local por briga política. O Mestre Pastinha ficou sem academia nenhuma. Então, a gente jogava capoeira no Corta Braço, no Retiro, nas academias de Waldemar, Cobrinha Verde, Mola. Até que os Filhos de Gandhi arranjaram uma salinha para Mestre Pastinha, no Pelourinho.
AT: Capoeirista era muito perseguido naquela época?
MJG: Ninguém gostava de capoeirista. Era como o candomblé, que todo mundo queria acabar. Capoeira era para gente da pesada, estivador, carregador de caminhão. Era coisa de malandro. Mas como o tempo foi mudando, capoeira agora é ensinada nos colégios, entre policiais civis e militares, nas Forças Armadas. Isso é coisa recente, de 1970 para cá.
AT: E como a capoeira foi ganhando espaço?
MJG: Foi através do Mestre Pastinha, que divulgou a capoeira junto aos jornalistas, escreveu sobre a capoeira… Foi tirando a impressão de que a capoeira era coisa de malandro. Mostrou que era um esporte, bom para a saúde.
AT: E qual era a filosofia da capoeira ensinada pelo Pastinha?
MJG: Ele dizia sempre que capoeira tem muita malícia, mas não é violenta. Capoeira tem jogo bonito, seguro, mas não violento. Para aplicar o golpe, não precisa derrubar o camarada, bater para matar. Bastava mostrar o golpe. Na capoeira angola não existem golpes premeditados. Tudo depende do capoeirista; ali na hora podem surgir golpes nunca vistos. Um angoleiro nunca pode dizer que aprendeu tudo sobre capoeira.
AT: E por que a capoeira hoje está tão violenta?
MJG: Há muitos mestres e pouca capoeira. Antigamente não era violenta. Mas agora, os mestres não estão tão dedicados. E só pensam em dinheiro.
AT: O que é a capoeira regional?
MJG: A capoeira regional, criada pelo Mestre Bimba, está mais próxima da luta livre. É uma capoeira para turista ver. É violenta e tem aquela coisa de mudança de faixa, que nem judô e caratê. Olha, nunca vi isso de dar faixa entre os angoleiros.
AT: O que é ser um bom capoeirista?
MJG: O bom capoeirista tem de tocar bem um berimbau, pandeiro, cantar…
AT: Qual a proposta do Grupo de Capoeira Angola-Pelourinho, do qual o senhor faz parte?
MJG: Manter a linha da capoeira da Angola, seguir os ensinamentos do Mestre Pastinha e não capoeira por dinheiro. No grupo só entra quem quer mesmo aprender capoeira. Aprender a capoeira mais por devoção e não como forma de luta e agressão. Capoeira é de um ensinamento muito profundo, é uma filosofia de vida.
AT: Como é que o senhor viu a morte de China, recentemente?
MJG: Eu estou na capoeira desde 1953 e nunca vi ninguém morrer na roda. A morte foi uma perversidade. Olha, eu fui inimigo de Caiçara durante um ano e jogamos capoeira, mas nem eu peguei ele, nem ele me pegou.
AT: Se o senhor não ganha dinheiro com a capoeira, como é que sobreviveu todo esse tempo?
MJG: Eu trabalho há 22 anos em posto de gasolina, lavando carro, etc., na Barros Reis, no bairro do Retiro. Capoeira só jogava à noite e domingo à tarde. Agora que estou me aposentando, vou passar a ensinar capoeira direto…
AT: E como foi sua participação no grupo folclórico “Viva Bahia”?
MJG: Entrei para o grupo em 1970. Trabalhava jogando capoeira, maculelê, puxada de rede. Viajei a Europa toda, durante dois anos. Depois disso fui para a Moenda, na Boca do Rio, onde passei quatro anos, dando show também, mas eles exploravam demais… voltava para casa às cinco da manhã.
AT: Hoje em dia, a maioria dos mestres são professores de Educação Física. Como é que o senhor analisa isso?
MJG: Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Os mestres antigos nunca foram professores de Educação Física. Aprendi capoeira com ajudante de caminhão, carregador de caminhão, estivador, o pessoal da pesada. E por que agora mestre tem de ir para a universidade? Eles querem tirar a gente da jogada, porque eles estão interessados em ganhar dinheiro, não na capoeira. Então acham que eu, o João Pequeno, o Waldemar, morremos para a capoeira. Eu nunca fui à escola. Minha vida foi praticamente só na capoeira.
AT: Quando foi que mulher passou a freqüentar as academias de capoeira?
MJG: Foi de 1970 para cá, quando a capoeira passou a ser ensinada nos colégios. Nos anos 50, na Bahia, só uma mulher jogava capoeira, era Chicão. Aprendeu na rua mesmo. Era uma mulher que brigava com a Polícia e andava de saia. Vendia acarajé, essas coisas. Amarrava a saia entre as pernas e entrava na roda. Homem não brincava com ela, porque senão ela batia e o camarada caía mesmo. Mas capoeira hoje é para homem, menino, mulher, só não aprende quem não quer!
AT: Em qualquer idade se aprende capoeira?
MJG: A capoeira nasce com a gente, basta descobrir isso.

Já paguei minha promessa

(Rafael Xikarangoma Tendulá)

Já paguei minha promessa
Já cumpri com minha missão
Agora peço licença
Prá vadiar no salão
E no pé-do-berimbau
Vim fazer minha devoção
Canto prá Nossa Senhora
Mãe de Deus, da Conceição
Por isso que digo assim
Que digo dessa maneira
Que os pecados de domingo
Pago na segunda-feira

Humanidade me cansou

Humanidade me cansou, 
Pelos seus julgamentos
Aquele que está fora, quer saber, 
O que rola dentro
E lá vai e voa o nome, 
o “talvez” e “ouvi falar”
E a cacatua veio jurando,
que ouviu gato ladrar
Não me diga o que não vale,
ou aumenta minha vida,
tem fofoca e aviso,
interesse e intriga
O que eu dizia e aonde,
você vem se lembrando,
por favor faz o esforço,
de se perguntar: por que e quando
O poder de uma estória,
rica de interpretar…
O seu julgamento de mim,
Eu não tento mais julgar

Camará

(Instrutor Rouxinol – A.L.D.E.I.A.)

“A capoeira me fez doutor”

MESTRE JOÃO PEQUENO

Publicada originalmente na revista Praticando Capoeira, #1

Como se sente hoje, aos 82 anos, símbolo da Capoeira Angola no Brasil e no mundo?
Eu me sinto muito bem. Continuo praticando minha capoeira, levando adiante o trabalho de Mestre Pastinha… não tenho doença, estou muito bem.
Como tem sido nesses anos todos dar continuidade ao trabalho de Mestre Pastinha?
Tem sido muito bom e eu sempre vou continuar com esse trabalho.
Mestre Pastinha fez algum pedido ou deixou alguma recomendação ao senhor antes de falecer?
Sim, ele me disse: “João, tome conta disso que eu vou morrer, mas só no corpo; e enquanto a capoeira existir meu nome vai estar vivo”
E para os outros alunos ele deixou alguma recomendação? 
Não, para os outros não que eu saiba.
Quando Mestre Pastinha começou a confiar-lhe a Academia?
Logo que cheguei na Academia de Mestre Pastinha ele já me “entregou” a Academia. Eu começava a ensinar os alunos novos que iam chegando… Eu ensinei muita gente… João Grande eu ensinei…
Como era a organização na Academia de Mestre Pastinha?
A mesma que eu uso hoje na minha Academia. Eu sigo tudo igual ao Mestre Pastinha.
O senhor e o Mestre João Grande eram os alunos “prediletos” de Mestre Pastinha. Isso causava algum ciúme nos outros alunos?
Mestre Pastinha dizia: “Na minha academia tem dois Joãos, um joga pelo ar, outro pelo chão, um é cobra mansa, o outro gavião”; ele se referia a mim e a João Grande.
Por que grandes mestres da capoeira, como Mestre Pastinha, morrem na miséria?
Eu não sei… Capoeira tem dessas coisas… Muitos dizem que a capoeira é maldita. Eu luto e trabalho para mostrar que a capoeira não é maldita. Eu não tinha estudo e graças à capoeira hoje eu sou doutor. A capoeira me fez doutor.
Como os alunos reagiram à doença do Mestre Pastinha? 
Todo mundo ficou triste mas não tinha nada para fazer.
Quais as dificuldades que tem enfrentado ultimamente?
Eu não sinto dificuldade nenhuma. Não tenho dificuldade… Eu estou bem… viajo, tenho minha Academia, participo de vários eventos…
O senhor acha que a Capoeira Angola mudou da década de 40 para hoje?
Mudou, e mudou para melhor. O jogo, principalmente, mudou para melhor. Hoje o pessoal joga bem embaixo…
O que Mestre Pastinha falava sobre a defesa da Capoeira Angola?
Mestre Pastinha falava que se você visse que um golpe ia acertar o companheiro era para freiar, porque a Capoeira Angola não é para acertar. Agora, ele sempre falou que a Capoeira Angola é luta, e é luta mesmo na hora em que você precisa se defender.
João Grande saiu do Brasil e obteve reconhecimento mundial com a capoeira. 0 senhor acha que se estivesse no exterior estaria em melhor situação?
João Grande está lá fora, ganhando dinheiro… Ele disse para mim. “Se eu estivesse no Brasil não teria dinheiro nem reconhecimento que eu tenho hoje”. Eu quando viajo dou meus cursos mas não estipulo cachê; João Grande estipula cachê em dólar, viaja com aluno e ainda com dois seguranças. (risos)
O senhor gostaria de dizer alguma coisa aos capoeiristas?
Que os capoeiristas não desviem a capoeira para o lado mau, porque a capoeira não é má; mau é o capoeirista que desvia ela pai a o mal. Que os capoeiristas façam capoeira mas façam capoeira com amor.
O senhor tem algum sonho?
Eu espero vida eterna, saúde, paz, tranqüilidade, entendimento, sabedoria… paia mim e para minha família. E que Deus dê resistência para eu continuar toda a vida com a capoeira.

“Tem muita coisa que sei e nunca vi ninguém fazer”

MESTRE ARTHUR EMÍDIO

Entrevista de Geraldo Bezerra de Menezes, originalmente publicada no Jornal do Brasil, em 20 de janeiro de 1987.
Mestre Artur Emídio de Oliveira, nascido em Itabuna, em 31 de março de 1930, é o primeiro e único cordel branco da capoeira (graduação máxima). O seu mestre foi Paizinho, que teve como mestre Nene, um africano, ex-escravo no Recife.
Desde que mestre Emídio se entende, a capoeira é sua vida. O pai, Emídio, e os irmãos também jogavam capoeira nas ruas de Itabuna. Aos 15 anos já era professor.
– No meu tempo, gingou na rua era preso. Corri muito da polícia. Eles vinham a cavalo… Várias vezes fomos em grupo à delegada para soltar o mestre Paizinho.
Depois de andar pelo Brasil, desafiando e lutando com quem aparecesse, mestre Arthur Emídio chegou ao Rio em 1953. Foi trabalhar no Cais do Porto, onde conheceu Valdemar Santana. Em Bonsucesso, abriu uma academia e fez escola. Hoje. independente do estão que se pratique, todos consideram Arthur Emidio um nome intocável na capoeira. O seu estilo é próprio.
– Minha ginga e meu jogo são diferentes. De meus alunos, destaco Mestre Celso. Rei da angola, para mim, são os mestres Malhado e Moraes. Mas esse negócio de angola, angolinha, capoeira tiririca (em Minas Gerais), regional senzala, não me atrai. A regional, por exemplo, é num compasso muito marcado. Capoeira é agilidade. Meu jogo é elástico.
Arthur Emidio lamenta que nada se faça pela capoeira. Já participou de mais de 50 simpósios – “tudo conversa” – e nunca foi consultado a respeito de nada – “tem muita coisa que sei e nunca vi ninguém fazer”.
Sobre o mestre Arthur Emidio, André Lacé, também mestre, faz um comentário consagrador:
– Sempre que joguei com o Mestre Arthur senti a seguinte sensação: a distância que vai de mim para de é bastante maior do que a distância que vai dele para mim Ou seja, o domínio dele na luta é absoluto.
Até boje o único cordel branco na capoeira, Arthur Emidio de Oliveira tem orgulho em dizer que já iez exibição para os presdentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck. Após a apresentação para Getúlio, na Bahia, ainda garoto, na solenidade que se seguiu, não se esquece das primeiras palavraa do discurso de Getúlio:
– Realmente, a capoeira é o esporte do Brasil

Casimiro D’Almeida, sangue brasileiro na África

Não conheci Casimiro D’Almeida. Não sei ao certo em que cidade viveu, que agruras passou, que amores teve. Não sei no que trabalhava, se teve família, se ainda está vivo. Sei de Casimiro pelo registro fonográfico que deixou – bem ao estilo do “gringo filmava e me fotografava, eu pouco ligava, também não sabia…”
De acordo com o registro Casimiro era neto de escravos brasileiros – mas nascido e criado no Benin, África. Não sei o nome de seus pais ou avós, mas sei que era descendente da raiz negra de escravos brasileiros que voltaram para a terra-mãe. 
As gravações de Casimiro, que constam nos arquivos do CREM (Centre de Recherche en Ethnomusicologie), foram feitas em 1950 – quando ele já tinha sua voz de homem feito, e acompanhava o canto batucando no que parece ser um pandeiro de couro frouxo, ou até mesmo uma caixinha de fósforos.
O que espanta um pouco, mas não muito, é o fato de Casimiro cantar em português do Brasil, bastante claro – embora com um leve sotaque (provavelmente pela língua oficial do Benin ser o francês). É sabido que muitos negros brasileiros, finda a escravidão, retornaram para a África. Muitos inclusive retornaram antes mesmo da abolição: degredados após a Revolta dos Malês (1835). 
Atlântico Negro – Na rota dos orixás

O que espanta e emociona no canto de Casimiro é perceber como a tradição oral e as festas populares trocam DNA entre si, como todas elas parecem partir de um ancestral comum. Como muito bem disse o finado Mestre Bigodinho, “é uma só”.
Nesses tempos de discussão sobre se a capoeira é de origem indígena, africana, brasileira ou marciana, eu prefiro me abster da peleja. Eu creio na origem brasileira, a partir da raiz negra – mas prefiro não bater pé  nem eriçar penas por conta disso. A origem da capoeira me importa menos que o passado ou o futuro próximos: creio que precisamos cuidar dela agora, tendo os olhos nas gerações recentes que deram-lhe o conteúdo que tem hoje, para só assim conseguirmos um bom porvir. Se a semente for bem cuidada, dará bom fruto e bela flor.
Mas algumas estrofes do que Casimiro cantou em 1950, é que chocam de maneira boa os ouvintes. São cantigas que decerto aprendeu com os pais ou com a comunidade em seu entorno (outros ex-escravos ou descendentes de ex-escravos ?). Seus avós podem ter retornado do Brasil em algum ponto a partir de 1835, então essas canções já eram conhecidas aqui – que bela relíquia é isso, ter a certeza que algo do que cantamos na capoeira remonta a quase 200 anos!

Alguns exemplos:

Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal
Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal
Meu amor é [???]
Eu sou vadio, vou vadiar
Sou vadio, vou vadiar

É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando
É de manhã, meu boi está me chamando

É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando
É de manhã, meu boi está me chamando

Meu boi tem o costume
Chamado que vai andando

As estrelas do céu correm
Eu também quero correr
As estrelas atrás da lua
E eu atrás do bem-querer

Isso sem contar as várias referências ao Senhor do Bomfim, e à burrinha – que ainda sai nas festas populares Brasil afora.

Não conheci Casimiro, nem no particular nem no público, mas o considero muito, devo muito ao conhecimento que ele teve, tinha ou tem. Um bastião de resistência, retrato da vitória da tradição oral de um povo sobre a sanha escravizadora de outro.

Viva Casimiro, e viva a abolição – que se foi apenas no papel em 13 de maio de 1888, pelo menos que seja  real nas cabeças em cada dia de cada mês de cada ano!