Por D. David Dreis (tradução: Teimosia)
Publicado na revista
Black Belt no início dos anos 70
A nação brasileira está dando uma longa e dura olhada no seu passado xadrez. Algumas das coisas que ela vê, precisam ser lavadas e esfregadas, de maneira que façam boas leituras em livros de história. Rebeliões escravas à base de derramamento de sangue, são parte de seu folclore. E o Brasil está finalmente aceitando a capoeira como o verdadeiro poder negro da nação.
Por muitos anos, o Brasil tem posto à margem a sua herança com a capoeira. Ela tem sido negligenciada, desconsiderada e negada. Historiadores lutam contra a censura burocrática para encontrar clareiras, buracos na história que tiveram que ser preenchidos. Alguns anos atrás, um português de 81 anos, testemunha ocular dos buracos na história, contou uma estória: a estória era sobre capoeira.
Vicente Ferreira Pastinha foi o homem que fez o preenchimento. O que ele falou em extensão foi sobre as rebeliões escravas contra a crueldade da perseguição e a ferramenta de auto-defesa empregada pelos escravos, criada pelos negros.
Agora que o Brasil está dando essa olhada relutante, ele está aprendendo sobre a capoeira, e estremecendo com o que aprendeu. Descrições apropriadamente feitas pelo velho homem atestam sobre os braços e pernas se movendo rapidamente, batalhando contra a investida de senhores de escravos impiedosos, lutando contra a grande organização da opressão apenas para serem esmagados em derrota sangrenta. A capoeira teve seus resultados mais aterrorizantes nos levantes escravos contra os saqueadores da dignidade human, os donos de terra que estiveram em operação desde a colonização do Brasil pelos portugueses. Com cada supressão vieram mais e mais restrições, até que em fim, cansados e espancados, os africanos insurgentes, os escravos, foram derrotados. Como a população branca escreveu os livros de história, eles apagaram as marcas negras da capoeira, fingindo que elas nunca existiram. Pastinha permaneceu vivo e trouxe a realidade do passado para o foco.
Mantida viva no segredo de almas endurecidas, a arte marcial continuou a ser ensinada e aprendida, e se movimentos eram exibidos, dizia-se que eram uma inocente dança nativa. Esse foi o modo da capoeira sobreviver à tortura do tempo.
Pastinha revelou como os aspectos culturais da arte pareceram desaparecer e como praticantes desesperados usaram a arte para quebrar os estatutos que foram colocados em seus caminhos. Que eles usaram a capoeira para a destruição e o dano, sem rima ou razão, é também parte da história desfigurada. Sem a cultura e a herança, assim como é muito ensinado no mundo das artes marciais, nada sobra a não ser a destruição e a demolição. De novo e de novo, negros insurgentes foram mortos em confrontos sangrentos. A herança da capoeira pareceu desaparecer para sempre.
Hoje, aos 81 anos de idade e cego, sem posses exceto pela renda que lhe foi assegurada por discípulos devotados da arte, Pastinha é cuidado por alunos que o olham com o mesmo respeito e dedicação que praticantes do karate e judo japoneses olham seus senseis. Ele vive em Salvador, Brasil, e ainda pratica a arte marcial, apesar de que os anos e o despeito cobraram taxas na sua destreza.
Mas assim como Pastinha revelou o passado, um instrutor de 68 anos conhecido apenas como “Mestre Bimba” está avançando para o futuro com sua instrução da arte marcial. Desde que ele começou a ensinar capoeira, muitos praticantes passaram por suas mãos e estão avançando a arte ainda mais.
Cinco anos atrás, um grupo liderado por Benjamin Muniz começou a fazer um estudo verdadeiro e esquemático do “kata” da capoeira, transferindo o que pastinha relatou em termos viáveis e ensináveis. Relutantemente, a nação começou a reconhecer a capoeira e aceitá-la pelo que era, apesar de acirradamente se negarem a reconhecê-la como esporte nacional – sabendo muito bem que a capoeira não é de maneira alguma um esporte. Hoje, ela foi “lavada” como uma dança cultural, nativa. Desta maneira, a capoeira é, para a hierarquia brasileira, “aceitável”.
Prestígio internacional
Muniz e seu grupo, o Olodum, estão fazendo demonstrações onde quer que consigam encontrar audiência. Seus esforços em festivais folclóricos lhes conseguiram prestígio internacional, apesar da desajeitada ajuda dada pelos canais oficiais do país.
Em 1968, o Olodum representou o Brasil no 3o Festival Folclórico Latino Americano, realizado na Argentina, e levou o segundo lugar geral após ter vencido três medalhas de ouro e uma de prata. Este ano, eles ficaram em primeiro lugar no Festival Latino Americano realizado no Peru. Sua performance foi tão tocante, suportada por instrumentos musicais que são parte de sua aparência “lavada”, que o ministério brasileiro está fazendo homenagem à arte com a inclusão de demonstrações de capoeira na sua agenda oficial de demonstrações.
Mas esta homenagem é ao desenvolvimento do negro nas artes marciais. Apesar de os estudantes de hoje serem membros de todas as raças, assim como acontece de muitos dos estudantes de artes marciais orientais serem brancos, os negros recebem a maior homenagem através de seu desenvolvimento da capoeira.
Nada faz o negro andar mais orgulhoso de si do que seu laço na cultura da arte marcial. Essa herança tornou-se arraigada no folclore da história das aretes marciais. E há uma pitada de oriental em sua constituição.
Quão estranho foi para essa herança surgir no Brasil e aparentemente terminar lá, porque os escravos foram negociados e espalhados por todo o mundo. Muito possivelmente, se tivesse havido instrutores da arte marcial nos Estados Unidos, a capoeira poderia ter mudado a face da história na América do Norte.
Esse não é um tratado de direitos civis; é um testemunho de uma arte marcial legítima e austera, que se identifica com todas as tradições de outras formas de arte marcial. Assim como os senhores feudais japoeneses oprimiram a população de Okinawa, fazendo com que estes buscassem maneiras efetivas de auto-defesa, assim é com a capoeira, desenvolvida a partir do africano escravo que foi treinado para lutar contra elementos em sua terra natal, mas que voltou o uso do seu treinamento para lutar contra os atormentadores da dignidade humana no Brasil.
Representantes do Brasil, aqueles que desejam olhar com prazer a história de sua nação, gostariam que as demonstrações de dança continuassem a ser tratadas como dança. De fato, a capoeira, por seus aspectos potencialmente perigosos, precisa ser praticada como uma dança, um kata, mas não pode haver um kumite. Os praticantes conhecem a regra e são forçados a aceitá-la, mas eles acreditam sinceramente que a arte poderia ser um esporte dinâmico se as rédeas do governo míope fossem removidas.
Sabidamente, há muitos praticantes da arte que estão trabalhando sem chutes ou socos. Isso tem resultado em alguns efeitos danosos, e mesmo eles reconhecem que o poder da arte precisa ser moldado de alguma maneira em um esporte do qual a nação possa ter orgulho. Assim como Gichin Funakoshi moldou o karate e Jigoro Kano moldou o judo, os líderes da capoeira, talvez Mestre Bimba, estão buscando por uma combinação de esporte e arte.
A ênfase da capoeira é na força muscular, flexibilidade das articulações e movimentos rápidos. Todos esses são calculados para subjugar, e subjugar rapidamente, qualquer ameaça, qualquer batalha.
Movimentos corporais rápidos
A capoeira usa muitos movimentos corporais rápidos, como a maioria das artes marciais. Mas ela põe mais ênfase no poder das pernas, armamento pesado quando usado por lutadores treinados. Um capoeirista pode enfrentar um oponente face a face, mas em uma fração de segundo ele pode descer ao nível do solo, disparando um pé fortemente em uma área de ataque vital. Tem sido dito que o lutador de capoeira, treinado para colocar poder de ataque em seus pés, pode efetivamente destruir um homem com um chute mortalmente bem posicionado.
Que isso aguça o interesse daqueles que a veem, tem sido bastante bem-documentado. Em Los Angeles para comparecer a um festival folclórico, os membros do Olodum foram cercados por estudantes, pedindo para demonstrarem em escolas e universidades locais. Em cada demonstração, havia mais interesse em trazer a arte marcial para os Estados Unidos. Muitas das pessoas fazendo os pedidos eram, para a surpresa de ninguém, da comunidade negra.
Em São Paulo, Brasil, Waldemar dos Santos é o homem responsável por tornar a capoeira popular. Sua é uma missão que já viu a face da determinação turvada pelas barreiras à sua perseverança.
Dos Santos, um homem baixo e forte com mãos e testa marcados por cicatrizes, aprendeu sua capoeira nas ruas. Mas ele é o mais proeminente professor nesta cidade onde os estudos de judo e karate atingiram um novo pico de interesse e prática. Aos 37, o homem está determinado a ver a capoeira se tornar ainda mais importante que essas outras artes marciais. “Essa é brasileira”, ele diz com certeza. “Esta arte de combate está no sangue”.
Tão eminente é Dos Santos sobre a capoeira e seus laços nacionalistas, que mais de 100 estudantes aprendem sob sua tutela. Ele aprendeu a arte marcial nas clareiras de terra batida, que vieram a se toranr “academias” para a capoeira do Rio de Janeiro, Brasil – mas agora que retornou a São Paulo, o jovem está determinado a tornar a capoeira “oficial”.
Ele também, sofreu a opressão das autoridades, tendo nomeado seu “curso” um movimento folclórico brasileiro. Seus estudantes praticam no que era o salão de uma casa, suas paredes agora sujas com palmas e pés sujos. Após seis meses de movimentos de “dança”, que na realidade são o “kata”, Dos Santos instrui seus alunos na fase violenta da arte. “Eu admito”, diz ele, não muito orgulhos da afirmação, “que a capoeira brasileira é um dos estilos formalizados mais sujos que eu conheço”.
Quão “suja” a capoeira tem sido, ou se tornou ? Os livros de história não são claros sobre esse ponto, também. Há muitas lendas cercando a arte marcial e explicando como ela foi usada por marinheiros brasileiros que a aprenderam e “adaptaram” dos escravos. De acordo com algumas fontes que relutantemente admitem isso, os marinheiros usavam a capoeira para matar, afixando facas e navalhas a seus pés e mãos antes de entrar numa luta. Dos Santos dá de ombros ao falar sobre essa faceta. Talvez assim tenha sido como a arte tenha sido feita “bastarda” pelos marinheiros brasileiros, me ele tem confiança nas mãos e pés vazios para ultrapassar esse vício.
Registros policiais recentes
Registros policiais recentes no Rio mostram o que acontece quando a capoeira sai de controle. A polícia militar tentou prender um capoeirista bêbado apelidado Mestre Satã. Satã encarou um pelotão de 24 policiais e os combateu ao empate. Sete policiais foram hospitalizados, dois com braços quebrados e dois com fígados rompidos. Quando Satã ainda estava de pé, desafiante, após uma bateria de 24 cassetetes, a polícia teve que decidir por atirar nele ou deixá-lo desacordado. Decidiram pela última opção.
“Os pés são as armas mais mortais de um homem”, diz Paulo Romero, um praticante de capoeira do Rio. “A cabeça é a parte mais fraca. A capoeira visa trazer a arma mais forte contra o ponto de fraqueza”.
Mestre Bimba definiu o esporte-arte moderno e traçou 72 movimentos distintos que tem nomes vivazes, similares aos dados no tai chi chuan, tais como “tesoura do papai”, “bananeira” e “rabo-de-arraia”.
“Antes da Segunda Guerra Mundial”, Mestre Bimba diz, “a capoeira era ilegal”.
A polícia era chamada onde quer que houvesse a prática. Agora, finalmente, ela está sendo apreciada pela beleza física que realmente é. Velocidade, agilidade e multiplicação da força são a chave.
Mestre Bimba sabe que essa definição está em conflito com a visão dos capoeiristas sobre a arte. “Capoeira é tão graciosa quanto um balé, mas foi criada para matar”, ele admite. “Em uma luta de rua no velho Brasil colonial, capoeira era uma luta até o fim. Uma faca, uma navalha, uma garrafa quebrada, faziam um capoeira valer 20 homens”.
Pastinha, entretanto, foge do desprezo contra a arte. Historicamente, ela pertence ao Brasil e deveria ser reconhecida, em sua opinião. “Como brasileiro”, ele diz, “eu estou orgulhoso desse país amistoso. O capoeira encontrando seu adversário tem a possibilidade por meio da leveza e da rapidez da arte, de desarmar qualquer oponente, ou tomando sua arma ou vencendo-o ao atirar o adversário armado no chão”.
Pastinha ainda é a autoridade primária na arte, e ele tem cuidado de desenvolvê-la até um ponto de respeitabilidade. Mestre Bimba é o mais reconhecido praticante e professor no Brasil, e seus estudadnete são tão entusiastas das técnicas, quanto são estudantes de qualquer lugar. Há alguns infelizes por ela estar presa ao aspecto de demonstração, por mais chamativo que ele seja com seu acompanhamento musical e roupas coloridas, geralmente calças listradas que dão uma aparência berrante e carnavalesca que a maioria. Ao menos a arte está sendo nutrida e algum dia talvez, se ela continuar a viver e ganhar em popularidade, a capoeira pode tornar-se uma arte marcial completa e uma paixão nacional.
Nesse momento, uma universidade a aceita como parte de seu currículo, dentro de seu programa folclórico. Movê-la para a educação física pode ser uma realização delicada, mas enquanto esse dia não chega, os seguidores da arte vão continuar a demonstrá-la, permitindo às pessoas se esquecerem que ela é realmente um exemplo do poder negro.