Tai sabaki e o jeito que o corpo dá

Apesar de nunca ter praticado outra luta que não fosse capoeira, sempre gostei de ler sobre artes marciais e correlatos. Gosto de comparar estilos, não no sentido de “qual é melhor”, mas sim de “quão parecidos ou quão diferentes” – afinal de contas, todos os praticantes são humanos, e o corpo humano só consegue se mover dentro do limite de suas articulações.

Por esse motivo é que há chutes parecidos com o “martelo” no karate, no muay thai, no savate e no boxe chinês: um chute frontal, com o quadril rotacionado. O mesmo vale para joelhadas, socos, etcetera. Ainda que uma arte marcial use mais de um e menos de outro, ou mesmo que não use algum tipo de golpe, todo lutador está limitado a fazer o que seu corpo permite.

Um amigo é praticante de diversas artes marciais orientais (karate, judo, ninjutsu), e já conversamos bastante sobre o que diferencia e o que aproxima os nossos estilos. Certa vez, ele comentou comigo que uma coisa que achava muito bacana na capoeira, muito mais do que os golpes, era o tai sabaki. Quando viu que eu não tinha entendido do que se tratava, explicou: o tai sabaki é a movimentação do lutador, o “gerenciamento da posição”, a “gestão do corpo”.

Em artes marciais orientais, a técnica é usada para medir as distâncias, evasão, e mesmo conversão de defesa em ataque. Segundo a Wikipedia“sua maior finalidade é justamente evitar o enfrentamento direto, evitando, pois, um ataque e, na sequência, deixar a pessoa numa posição vantajosa. (…) não se deve resumir tai sabaki apenas como esquivas”.

Veja que interessante! A finalidade primária do tai sabaki é uma das grandes posturas filosóficas da  nossa amada capoeira: ela não foi criada como arma de enfrentamento direto. O negro, escravizado e em situação de desigualdade completa, valia-se da astúcia mais que das pernas. A capoeira era “dança” aos olhos do senhor, para só se manifestar como luta valente nas horas certeiras – e essas horas certeiras tinham que ser bem medidas pelo negro (sob pena de morte, em caso de erro): atacar na distração, atacar quando tinha certeza da vitória, atacar quando a superioridade númerica ou de armamentos do escravizador pudesse ser ludibriada.

Conforme o Mestre Bola Sete bem descreveu em seu livro “Histórias e Estórias da Capoeiragem”, o capoeirista tem “a obrigação de chorar no pé do seu inimigo”, para que esse, relaxado e até mesmo desprezando o oponente, possa ser pego de surpresa. 

Mestre Pastinha se referiu ao mesmo fato quando falou sobre o “capoeirista correr, e ai de quem correr atrás dele”, pois “o capoeirista corre para não ter que matar”. A capoeira é uma luta bravia e perigosa, mas que tem seu maior trunfo na dissimulação, em fazer o outro pensar que o capoeirista vale menos do que ele. 

Já o Mestre Duquinha, em sua bela entrevista, comenta uma das “regras não ditas” da capoeira:

Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…

Nunca tive dúvida de que a capoeira servisse para quebrar um osso, romper uma costela, tirar uma vida. A história mostra isso, e a física das alavancas está do lado da capoeira: um pé rodando tem a força de uma pedra atirada com força, uma rasteira encaixada quebra um braço ou um crânio. No entanto, o capoeirista moderno parece precisar mostrar que é capaz de exercer a violência da luta, e que ela é eficaz. 

Tenho visto cada vez mais a capoeira chegar à mídia através de torneios de luta aberta, MMA e similares. Entendo que isso é um sinal dos tempos, pois hoje em dia quer-se ter a violência contida: é melhor lutar no ringue, com regras definidas, do que brigar na rua ou na roda. 

Nada contra quem gosta ou participa desse tipo de evento (eu mesmo gosto de assistir, embora não pratique MMA), e acho que o raciocínio “lute no ringue, não brigue na roda” faz muito sentido – mas o que ele prova em relação ao que a capoeira-luta consegue fazer ?

Dentro de um ringue, não há dissimulação, não há espaço para isso. Os dois lutadores sabem que só vão sair dali quando houver um vencedor. A “surpresa” não pode ocorrer, pois como um capoeirista vai “chorar no pé do seu adversário”, quando já se sabe que a luta só termina com o nocaute ou a rendição, sem espaço para a apelação ? Em uma situação de luta real, o capoeirista poderia “render-se”, para então derrubar seu inimigo quando esse lhe desse as costas. Num ringue, isso é impossível.

O ringue exige a luta objetiva, enquanto a capoeira-luta é subjetiva – o que não deve ser entendido como “sem contato” ou “fraca”, e sim como “malandra”, “sem regras”. Vide Mestre Pastinha dizendo que a “as brigas de capoeira nas docas, ninguém podia conter”. Não cabiam em ringues… Podemos ter certeza que um rabo-de-arraia bem dado derruba qualquer forte, e inclusive temos visto isso acontecer – mas prova realmente que a capoeira é luta perigosa ? 

Pode-se argumentar que o faz-que-vai-e-não-vai da capoeira pode ser provado no ringue. E talvez possa mesmo. Mas qual estilo de luta não tem um faz-que-vai-e-não-vai ? Toda luta tem elementos de tai sabaki; todo ser vivo que luta (por comida ou por sua vida), a menos que seja MUITO mais forte que o adversário, precisa em algum momento tentar enganá-lo para obter a vitória.

No meu entendimento, os golpes, gingas e negaças da capoeira no ringue, não provam o valor da capoeira enquanto luta. Provam sim, o valor dos golpes, gingas e negaças da capoeira – e estes tem muito valor, sim senhor.

O valor da capoeira-luta é provado quando o capoeirista consegue sair do aperto sem precisar lutar, só ludibriando. Ou quando mesmo em situação de enfrentamento direto e inevitável, ele leva o adversário na conversa, até o ponto em que possa dar o golpe certeiro – aquele que incapacita o inimigo, ou o “coloca para dormir”. 

O meu amigo, sendo ninjutsuca, comentou uma vez que gostava de comparar os capoeiristas aos ninjas. E antes que você, leitor, comece a achar que o ninja era o cara que dava gritos loucos, jogava “estrelas”, fazia saltos mortais acrobáticos e soltava bombas de fumaça, lembre-se que isso aí é coisa de cinema. Os ninjas reais eram artistas marciais treinados para missões de espionagem ou assassinato – e faziam isso muito bem.

Segundo o meu amigo, a diferença entre o samurai, cheio de códigos de honra, e o ninja, era que se você marcasse um duelo com um samurai para o sábado às 6 da madrugada, ele estaria lá pontualmente. Já se você marcasse o duelo com um ninja para o sábado às 6 da madrugada, ele te mataria enquanto você dormisse, na quinta à noite.

Olha a malícia aí…

Casimiro D’Almeida, sangue brasileiro na África

Não conheci Casimiro D’Almeida. Não sei ao certo em que cidade viveu, que agruras passou, que amores teve. Não sei no que trabalhava, se teve família, se ainda está vivo. Sei de Casimiro pelo registro fonográfico que deixou – bem ao estilo do “gringo filmava e me fotografava, eu pouco ligava, também não sabia…”
De acordo com o registro Casimiro era neto de escravos brasileiros – mas nascido e criado no Benin, África. Não sei o nome de seus pais ou avós, mas sei que era descendente da raiz negra de escravos brasileiros que voltaram para a terra-mãe. 
As gravações de Casimiro, que constam nos arquivos do CREM (Centre de Recherche en Ethnomusicologie), foram feitas em 1950 – quando ele já tinha sua voz de homem feito, e acompanhava o canto batucando no que parece ser um pandeiro de couro frouxo, ou até mesmo uma caixinha de fósforos.
O que espanta um pouco, mas não muito, é o fato de Casimiro cantar em português do Brasil, bastante claro – embora com um leve sotaque (provavelmente pela língua oficial do Benin ser o francês). É sabido que muitos negros brasileiros, finda a escravidão, retornaram para a África. Muitos inclusive retornaram antes mesmo da abolição: degredados após a Revolta dos Malês (1835). 
Atlântico Negro – Na rota dos orixás

O que espanta e emociona no canto de Casimiro é perceber como a tradição oral e as festas populares trocam DNA entre si, como todas elas parecem partir de um ancestral comum. Como muito bem disse o finado Mestre Bigodinho, “é uma só”.
Nesses tempos de discussão sobre se a capoeira é de origem indígena, africana, brasileira ou marciana, eu prefiro me abster da peleja. Eu creio na origem brasileira, a partir da raiz negra – mas prefiro não bater pé  nem eriçar penas por conta disso. A origem da capoeira me importa menos que o passado ou o futuro próximos: creio que precisamos cuidar dela agora, tendo os olhos nas gerações recentes que deram-lhe o conteúdo que tem hoje, para só assim conseguirmos um bom porvir. Se a semente for bem cuidada, dará bom fruto e bela flor.
Mas algumas estrofes do que Casimiro cantou em 1950, é que chocam de maneira boa os ouvintes. São cantigas que decerto aprendeu com os pais ou com a comunidade em seu entorno (outros ex-escravos ou descendentes de ex-escravos ?). Seus avós podem ter retornado do Brasil em algum ponto a partir de 1835, então essas canções já eram conhecidas aqui – que bela relíquia é isso, ter a certeza que algo do que cantamos na capoeira remonta a quase 200 anos!

Alguns exemplos:

Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal
Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal
Meu amor é [???]
Eu sou vadio, vou vadiar
Sou vadio, vou vadiar

É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando
É de manhã, meu boi está me chamando

É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando
É de manhã, meu boi está me chamando

Meu boi tem o costume
Chamado que vai andando

As estrelas do céu correm
Eu também quero correr
As estrelas atrás da lua
E eu atrás do bem-querer

Isso sem contar as várias referências ao Senhor do Bomfim, e à burrinha – que ainda sai nas festas populares Brasil afora.

Não conheci Casimiro, nem no particular nem no público, mas o considero muito, devo muito ao conhecimento que ele teve, tinha ou tem. Um bastião de resistência, retrato da vitória da tradição oral de um povo sobre a sanha escravizadora de outro.

Viva Casimiro, e viva a abolição – que se foi apenas no papel em 13 de maio de 1888, pelo menos que seja  real nas cabeças em cada dia de cada mês de cada ano!

Ao meu antigo senhor

O texto abaixo foi traduzido desse site aqui: http://www.lettersofnote.com/2012/01/to-my-old-master.html
Em agosto de 1865, um certo Coronel P. H. Anderson, de Big Spring, Tennessee, escreveu a seu ex-escravo, Jourdan Anderson, e requisitou que o mesmo voltasse a trabalhar em sua fazenda. Jourdan – que após ter sido alforriado, tinha se mudado para Ohio, encontrado trabalho pago e agora estava sustentando sua família – respondeu espetacularmente através da carta vista logo abaixo (uma carta que, segundo os jornais da época, ele ditou).
Ao invés de citar numerosos trechos de sua carta, eu vou simplesmente deixá-los apreciá-la. Leia até o fim.
(Origem: O livro dos alforriados).


Dayton, Ohio 

07 de agosto de 1865 

Ao meu antigo senhor, Coronel P. H. Anderson, Big Spring, Tennessee 

Senhor: eu recebi sua carta, e fiquei feliz por saber que o senhor não esqueceu Jourdon, e que você me quer de volta para viver com você novamente, promentendo me tratar melhor do que qualquer outra pessoa pode. Eu sempre me senti preocupado com você. Achei que os ianques teriam te enforcado há bastante tempo, por esconder os rebeldes que foram encontrados em sua casa. Suponho que eles nunca ouviram o caso de você ter ido à casa do Coronel Martin para matar o soldado da União que foi deixado por sua companhia no estábulo. Apesar de você ter atirado em mim duas vezes antes de eu te deixar, eu não queria ouvir sobre você ter sido machucado, e estou feliz por saber que você ainda está vivo. Me faria bem voltar para a velha casa novamente, e ver a Senhora Mary e as Senhoritas Martha e Allen, Esther, Green e Lee. Mande o meu amor a todos, e diga a eles que eu espero que nos encontremos num mundo melhor, se não nos encontrarmos nesse. Eu teria voltado para vê-los todos quando estava trabalhando no Hospital de Nashville, mas um dos vizinhos me disse que Henry pretendia atirar em mim se ele algum dia tivesse uma chance. 

Eu queria particularmente saber qual é a boa oportunidade que você propõe me dar. Eu estou indo razoavelmente bem aqui. Ganho 25 dólares por mês, mais provisões e roupas; tenho uma casa confortável para Mandy, – o pessoal aqui a chama de Senhora Anderson, – e as crianças – Milly, Jane e Grundy – vão à escola e estão aprendendo bem. O professor diz que Grundy tem vocação para pastor. Eles vão à escola dominical, e Mandy e eu estamos indo à igreja regularmente. Nós somos tratados gentilmente. Algumas vezes, nós ouvimos os outros dizendo, “Essas pessoas de cor eram escravos lá no Tennesse”. As crianças ficam sentidas quando escutam tal coisa; mas eu digo a eles que não foi nenhuma desgraça pertencer ao Coronel Anderson no Tennessee. Muitos crioulos aqui ficariam orgulhosos, como eu era, de chamá-lo mestre. Agora, se você escrever e disser qual salário vai me dar, eu poderei decidir melhor se será vantajoso para mim me mudar de volta. 

Sobre a minha liberdade, que você diz que eu posso ter, não há nada a ser ganho nisso, já que eu ganhei meus papéis de alforria em 1864 do General Marechal do Departamento de Nashville. Mandy diz que ela tem medo de voltar sem prova de que você está disposto a nos tratar justa e gentilmente; e nós achamos que devemos testar a sua sinceridade pedindo-lhe que nos envie os nossos salários do tempo em que lhe servimos. Isso nos fará esquecer e perdoar velhas mágoas, e confiar na sua justiça e amizade no futuro. Eu lhe servi fielmente por 32 anos, e Mandy por 20 anos. A 25 dólares por mês para mim, e 2 dólares por semana para Mandy, nossos ganhos somam 11.680 dólares. Some a isso os juros pelo tempo que nossos salários foram retidos, e deduza o que você pagou por nossas roupas, as três visitas que o médico fez a mim, e o dente extraído da Mandy, e o balanço mostrará que é justo para nós recebermos. Por favor, mande o dinheiro pelo Adam Express, aos cuidados de V. Winters, Esq., Dayton, Ohio. Se você falhar em nos pagar pelos nossos serviços leais do passado, nós só poderemos ter pouca fé em suas promessas para o futuro. Nós confiamos que o Criador tenha aberto seus olhos para todo o mal que você e seus pais fizeram a mim e aos meus pais, ao nos tratar como animais de carga por gerações, sem recompensa. Aqui eu recebo o meu salário a cada noite de sábado; mas no Tennessee nunca houve dia de pagamento para os negros, não mais que para os cavalos e as vacas. Certamente haverá um dia de acerto de contas para aqueles que negam ao trabalhador o seu pagamento. 

Ao responder essa carta, por favor diga se haverá alguma segurança para Milly e Jane, que estão crescidas agora, e são ambas belas meninas. Você sabe como foi com a pobre Matilda e Catherine. Eu prefiro ficar aqui e passar fome – e morrer, se preciso – do que ter minhas meninas abusadas pela violência e safadeza de seus jovens mestres. Por favor, indique também se foi aberta alguma escola para pessoas de cor em sua vizinhança. O grande desejo da minha vida agora é dar às minhas crianças uma educação, e vê-las criar hábitos virtuosos. 

Diga “olá” ao George Carter, e agradeça a ele por tomar a pistola da sua mão quando você estava atirando em mim.

Do seu antigo servo,

Jourdon Anderson.

João Pequeno foi pras terras de Aruanda

por Pedro Abib
discípulo do mestre João Pequeno
“Quando eu aqui cheguei, a todos eu vim louvar…”
Deve ter sido assim que mestre João Pequeno de Pastinha cantou quando chegou em terras de Aruanda, lugar mítico, para onde se acredita vão os mortos…que nunca morrem…como se crê em África !
Assim como João cantou tantas vezes essa mesma ladainha, onde quer que chegava para mostrar sua capoeira angola aos quatro cantos desse mundo … êita coisa bonita de se ver ! O velho capoeirista tocando mansamente seu berimbau e cantando…dando ordem pra roda começar. Os privilegiados que puderam compartilhar com João Pequeno esses momentos, sabem bem do que estou falando.
Foram 94 anos bem vividos. Aposto que daqui não levou mágoa, não era de seu feitio. Inimigos também não deixou, sua alma boa não permitiria. Partiu como um passarinho, leve e feliz, como vão todos os grandes homens: certeza de missão cumprida.
Deve estar agora junto de seu Pastinha, naquela conversa preguiçosa, que não precisa de muita palavra, que só os bons amigos sabem conversar. E seu Pastinha deve estar orgulhoso de seu menino. Fez direitinho tudo que ele pediu: tomou conta da sua capoeira angola com toda a dignidade, fazendo com que ela se espalhasse mundo afora. A semente que seu Pastinha plantou, João soube regar e cultivar muito bem. Êita menino arretado esse João Pequeno !
Nunca foi de falar muito. Só quando era preciso. E nessa hora saía cada coisa, meu amigo ! Coisa pra se guardar na mente e no coração. Mas muitas vezes falava só com o silêncio. Do seu olhar sempre atento, nada escapava. Observava tudo ao seu redor e sabia a hora certa de intervir, mostrar o caminho certo, quando achava que o jogo na roda tava indo pro lado errado. Até gostava de um jogo mais apertado, aquele em que o capoeira tem que saber se virar pra não tomar um pé pela cara. Mas só quando via que os dois tinham “farinha no saco” pra isso. João nunca permitiu que um jogador mais experiente ou maldoso abusasse de violência contra um outro inexperiente ou mal preparado.
Quando tinha mulher na roda então, aí é que o velho capoeirista não deixava mesmo que nenhum marmanjo tirasse proveito de maior força física ou malandragem pra cima de uma moça menos avisada no jogo, coisa comum na capoeira que é ainda muito machista. A não ser que ela tivesse como responder à provocação na mesma moeda. E era cada bronca quando via sujeito tratar mal uma mulher na roda, misericórdia ! Afinal, ele sempre dizia que “a capoeira é uma dança, então como é que você vai tirar uma mulher pra dançar e bater nela ?”. Não pode !
A simplicidade, a generosidade, a humildade, a paciência, a sabedoria, a fala mansa e contida, sem necessidade de intermináveis discursos de auto-promoção, eram as características mais notáveis de João Pequeno, próprias de um verdadeiro mestre. Muito diferente do que se vê na grande maioria dos mestres da atualidade, diga-se de passagem, que auto-proclamam sua importância para a capoeira, que fazem e acontecem… que batem no peito e falam, falam, falam.
Nesses quase 20 anos de convivência muito próxima a João Pequeno, tive o privilégio e a oportunidade de aprender algumas das mais caras (e raras) lições de vida e humanidade, que jamais teria aprendido em qualquer universidade, nem sequer poderia obter através de algum diploma qualquer que fosse. Esse homem analfabeto que nunca frequentou os bancos da escola, foi responsável por um legado de ensinamentos que orientam milhares e milhares de pessoas em nosso país e também no mundo todo, que reconhecem o valor de João Pequeno como um dos mais importantes mestres da cultura popular e da tradição afro-brasileira de todos os tempos.
João Pequeno representa a voz de todos os excluídos, marginalizados, oprimidos que através da capoeira encontraram uma forma de lutar e resistir, manter viva a tradição de seu povo e dar legitimidade a uma cultura que foi sempre perseguida e violentada nesse país. O velho capoeirista soube conduzir muito bem sua missão de liderança, responsável pela recuperação da capoeira angola a partir da década de oitenta do século passado, quando após a morte do Mestre Pastinha, se encontrava em franca decadência. Quando se instalou no Forte Santo Antonio em 1981, João iniciou a partir de sua academia um movimento importantíssimo de revalorização da capoeira angola, fazendo com que ela se difundisse e se consolidasse como expressão da tradição popular afro-brasileira, presente hoje em mais de 160 países.
Mas João Pequeno nunca precisou ficar afirmando isso por aí, nem tampouco dizer da sua importância para a capoeira. João é considerado um dos grandes baluartes da capoeira angola, mas ele nunca saiu proclamando isso para ninguém. Na sua humildade nos ensinou que o reconhecimento do valor do mestre tem que vir dos outros, da comunidade da qual faz parte e nunca do próprio discurso muitas vezes carregado de vaidade e arrogância. João simplesmente jogava e ensinava sua capoeira. E por isso era grande !
E de lá, das terras de Aruanda continuará a iluminar os caminhos de todos nós.
João Pequeno não morreu !
* Pedro Abib (Pedrão de João Pequeno) é capoeirista, sambista, cineasta e professor da Universidade Federal da Bahia

Gentil do Orocongo

Gentil e seu instrumento raro: satisfação por ser reconhecido depois de 40 anos de dedicação ao orocongo.

Gentil do Orocongo – Compondo o som do choro humano

por Julia Berutti

Florianópolis ­ Um instrumento raro, vindo da África, incorpora a musicalidade da Ilha de Santa Catarina e participa do Encontro com a Dança e a Músicas Brasileiras, hoje e amanhã, no teatro do Sesc Ipiranga, em São Paulo. Gentil Camilo Nascimento Filho, 58 anos, o Gentil do Orocongo, apresenta-se no espetáculo “Orocongo, Rabeca e Violino”, junto com Antônio Nóbrega, idealizador do evento, José Eduardo Gramani (conhecido pesquisador da rabeca), Mestre Paixão e Siba. O Encontro com a Dança e a Música se estende até 1º de agosto.

“É uma satisfação a gente persistir por 40 anos num instrumento meio esquecido e de repente ser reconhecido”, diz Gentil. Ontem, na véspera de sua partida, ele se dizia “eufórico”, mas parecia tranqüilo frente à primeira viagem de avião e ao fato de ser o único representante de Santa Catarina num evento que reúne músicos de todo o País. Ficou visivelmente preocupado somente quando soube que voltaria na segunda-feira: “Quem vai ficar no meu lugar na escola?” Atualmente, Gentil trabalha como vigia em uma escola básica estadual da comunidade de Mont Serrat, no Morro do Antão.

Natural de Siderópolis, zona mineira do Sul do Estado, Gentil veio ainda criança para Florianópolis, onde se instalou com a família na comunidade de Mont Serrat. Na Capital, ele dedicou-se à pesca e apaixonou-se pelo som que vinha da casa vizinha, onde morava Raimundo, filho de um cabo-verdiano (do arquipélago africano de língua portuguesa). Era o orocongo. Gentil, que nunca estudou música, aprendeu com Raimundo a tocar de ouvido e a fazer o próprio instrumento. Recentemente, fabricou um orocongo a partir do repenique a pedido da escola de samba Copa Lord.

Gentil tira todo o tipo de música do orocongo. Seu repertório valoriza as canções locais ­ “Rancho de Amor à Ilha”, de Zininho, e “Vou Botar Meu Boi na Rua”, do Engenho ­, passa por “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, e vai até as origens com as modinhas que aprendeu com o vizinho: “Ah, ah! Fruta do conde/ castanha do Pará/ a fruta que eu mais gostava/ que nesta terra não há”. Hoje, é um dos únicos conhecedores do instrumento.

Na década de 80, Gentil foi “descoberto” por Alan Cardoso, irmão do artista plástico Max Moura, que participava do grupo Pandorga, de Valdir Agostinho. O som plangente do instrumento abre a faixa-título do disco “Vou Botar Meu Boi na Rua”, do grupo Engenho. O redescobrimento e o convite para participar do encontro em São Paulo veio com o professor e pesquisador Paulo Dias. Em Florianópolis, Dias gravou cenas de Gentil tocando orocongo para um projeto do CD-ROM “Vozes do Brasil”, da editora Ática. O público catarinense vai ter oportunidade de ver Gentil do Orocongo na programação inaugural do Espaço Cultural Embratel, no tributo a Cruz e Sousa, terça-feira, a partir das 19h30.

O INSTRUMENTO

O som do orocongo assemelha-se ao choro humano. Na forma, parece um violino rústico. Com apenas uma corda, tocado por um arco e apoiado na altura do diafragma, o orocongo é confeccionado com a casca de coco ou com o fruto do porongo (também conhecido regionalmente por catuto). O braço é de madeira. Originalmente, a corda do arco era feita de crina de cavalo, e a do instrumento, de tripa. O músico Marcelo Muniz, um dos fundadores do grupo Engenho e diretor de Música da Fundação Catarinense de Cultura, afirma que o orocongo se propagou pela África junto com a religião islâmica, mas não deu origem a nenhum instrumento moderno por ser muito sensível: rico em microtons sem sons intermediários.

“Há similares na China”, diz Muniz. Motivado pela curiosidade pessoal, o músico pesquisa o instrumento desde que conheceu Gentil Nascimento, há 18 anos. Ele conhece pelo menos mais duas variações da denominação do orocongo: urucungo, no Nordeste (em iorubá significa “existe nele um buraco” e é o nome antigo do berimbau), e até aricongo, em Florianópolis. Segundo Muniz, é muito difícil precisar a difusão do orocongo no Brasil. “Deve ter outros casos isolados como o de seu Gentil.”

Como toda história que se difunde oralmente, a chegada do orocongo a Florianópolis tem aura de lenda. Lembrado somente como “Cabo Verde”, o antepassado do professor de Gentil teria chegado junto com um baiano de jangada na Barra da Lagoa, praia do Leste da Ilha, no final do século passado. Os náufragos resolveram morar na Ilha, e Cabo Verde foi cuidar da barragem que existia no Morro da Lagoa da Conceição. Diz a lenda que vivia com três mulheres e teve 36 filhos. Com o colega de naufrágio e o avô do artista Valdir Agostinho (seu Zé), Cabo Verde formou um trio que animava as festas da época: ele no orocongo; o baiano no pandeiro; e seu Zé no violão de doze cordas.

Orocongo, goje, ko

Navegando um bocadinho à procura de atabaques palongo, eu esbarrei no goje – um tipo de violino (ou viola de cabaça) bem parecido com o orocongo
Palongo
Yusufu Olatunji tocando goje
Goje
Lendo um pouquinho sobre o goje na Wiki, vi que um dos nomes para o instrumento é n’ko – e aí fiz uma ponte: quando assisti “Raízes“, uma das coisas que me deixou encucado foi que os descendentes do Kunta Kinte sabiam algumas palavras de mandinka. Uma delas era “ko”, que significa… “violino” 🙂
Na época, achei estranho a palavra para descrever o instrumento ocidental – nunca tinha parado para pensar que havia um violino mandingo… Volta do mundo.

Aspectos da influência africana no Brasil

por Gilberto Freyre

publicado originalmente na Revista Cultura, 1976

Que o Brasil começou a ser pré-Brasil como projeção humana e cultural da Europa – especificamente de Portugal – é fato inconfundivelmente histórico. Mas não explica por si só nem o aparecimento do Brasil como nova entidade sócio-cultural no mundo que se considere “moderno” – dando extensão sociológica a adjetivo tão impreciso – nem a sua consolidação em sistema nacional de convivência e de cultura.

Essa consolidação se processaria através da confluência de outras presenças ou de outras contribuições, além da européia. Um processo complexo e abrangente. O lastro de cultura e de população ameríndias não pode ser nunca desprezado. Mesmo porque subsiste. Mas a ele se acrescentaria fortemente outra presença não-européia: a negra africana.

A quase imediata, após o descobrimento do Brasil, presença negra africana no mesmo processo daria, paradoxalmente, a um elemento por algum tempo considerado inferior por historiadores e até antropólogos eurocêntricos, categoria, segundo nova e até revolucionária perspectiva, de co-colonizador do europeu ou do português. Daí ser oportuno aplicar-se essa perspectiva — e esse neologismo — à consideração daqueles relacionamentos culturais que, superando os étnicos, vêm resultando numa nação brasileira.

Lembro-me de que, ao referir-me em trabalho já remoto à contribuição cultural de negros da África, como valiosíssima para a formação brasileira, provoquei senão protestos, restrições, da parte daqueles intelectuais brasileiros, então ainda pouco inteirados do sentido antropológico ou sociológico da palavra cultura. Cultura negra? Cultura africana? Não havia. Daí protestos contra a tese da importância — importância que fui dos primeiros a procurar sugerir à base da antropologia mais científica — fora discípulo do antropólogo Franz, Boas, na Universidade de Colúmbia —  da influência de culturas africanas sobre a formação da cultura que viria a definir-se como brasileira. Curioso é terem vindo algumas dessas restrições de intelectuais, depois eminentes homens públicos; e, como tal, entusiastas da causa — pois é hoje uma causa — da aproximação do Brasil das culturas — pois já são tidas tranqüilamente como culturas — negras, da África, sem que isto signifique repudio à predominância de valores culturais europeus na formação brasileira. Pois o que o Brasil pretende é ser não anti-europeu, mas o contrário de sub-europeu, com as presenças não-européias na sua população e na sua cultura, valorizadas como merecem.

Que motivos, além dos somente emocionais e apenas políticos, de momento, temos para uma maior aproximação do Brasil com a África, à base dessas afinidades culturais é assunto que precisa de ser considerado nas suas bases. E a consideração desses fundamentos leva-nos de início à revisão de conceitos de Homem e de Cultura situados que retifiquem os de Homem Abstrato e de Cultura independente de sua ecologia, como se tal cultura fosse, por sua vez, outra abstração.

O conceito de Homem Abstrato está hoje, em grande parte, substituído pelo de Homem situado. O do Homem situado no Trópico é um conceito partido do Brasil e proclamado como válido pelos mestres da Sorbonne. O Homem, que o antropólogo estuda, comporta-se, em grande parte, situacionalmente. As instituições, os estilos de vida, as culturas que o Homem, assim situado, cria, conserva, desenvolve são instituições, estilos e culturas também condicionados, quando autênticos, por situações ou por ecologias. Situações de espaço físico que se projetam sobre situações de espaço sócio-cultural, condicionando, em grande parte, não só o caráter de instituições sociais e de culturas como a sua distribuição do espaço; a posição de umas com relação a outras; a maior ou menor cooperação ou a maior ou menor competição entre elas, instituições e entre grupos culturais. Na verdade — quando autênticos — instituições e grupos sócio-culturais inter-relacionados se apresentam psicoculturais. Compreende-se assim que das jovens nações africanas várias venham desenvolvendo, nas suas formas de existir e de coexistir, os chamados socialismos africanos, em vários pontos essenciais, diferentes dos marxismos ortodoxamente russos ou chineses. Do mesmo modo se compreende que o Brasil venha, há anos, experimentalmente se empenhando em desenvolver sua própria forma política de ser democracia, sem ouvir conselhos nem do The New York Times nem de Le Monde.

As culturas negras da África, juntamente com negros antropologicamente negros, isto é, através deles, quer como indivíduos biológicos, quer, mais do que isso, como pessoas sociais ou sócio-culturais, passaram, desde o século XVI, a fazer sentir sua presença na formação de um tipo miscigenado de homem paranacional e de uma configuração pré-nacional de cultura. Essa presença foi de tal modo ativa, dinâmica, influente, africanizante, que fez dos negros vindos da África para o Brasil, embora escravos, co-colonizadores – repita-se – desta parte da América, ao lado dos europeus, máximos como fundadores de nova cultura, em face de ameríndios aqui menos culturalmente desenvolvidos que aqueles negros africanos, desde o século XVI tão presentes no Brasil.

Biologicamente presentes. Culturalmente presentes. Presentes e marcantes, atuantes, influentes, contribuintes.

Contribuindo, através da mistura física, para a emergência de novos tipos de homens e novas formas de beleza de mulher. E através da mistura cultura para novas combinações culturais, como valores ou traços de origem negra ou de procedência africana colorindo valores e traços de cultura não só indígenas ou ameríndios como vindos criativa germinalmente não só da Europa como de certas áreas culturais da África. Vindos principalmente da Europa ibérica: a mais ativamente colonizadora do Brasil e ela própria já tocada, na Europa, por influências negras ou africanas.

Daí justificar-se aquele neologismo criado por sócio-antropólogo brasileiro: co-colonização. Conceito que corresponderia à caracterização do negro africano, a despeito de sua condição de escravo, como co-colonizador do Brasil com considerável influência aculturativa sobre o ameríndio, menos desenvolvido em sua cultura do que o negro africano. Um negro africano mais atuante no processo de formação biocultural brasileira do que o ameríndio de cultura menos desenvolvida que a dele.

O fato de virem se formando no Brasil uma sociedade e uma cultura nacionais para as quais vêm concorrendo tão incisivamente o europeu e o negro africano, ao lado do ameríndio, não significa uma sociedade e uma cultura fechadas a outras presenças. Há brasileiros das mais diversas procedências étnicas e culturais. Inclusive, há cerca de meio século, a japonesa, cada dia mais presente na composição da população e no desenvolvimento de uma civilização que, sendo euro-afro-ameríndia nas suas bases e nas suas constantes, não se arreceia das contribuições que lhe possam vir de outras fontes de energia humana e de vigor cultural, antes estima tais contribuições e os seus valores. Que assim é que as civilizações já seguras de suas bases e firmes nas suas constantes se engrandecem e se enriquecem; e não fechando-se nessas bases e nessas constantes e recusando outras presenças.

As idéias sobre tropicalismo em geral, e sobre Tropicologia, em particular, que estão partindo do Brasil, acentuam ser o mesmo Brasil parte de uma complexa civilização ecologicamente tropical, espalhada pelo Oriente, pela Africa, pela América, por outras áreas. Uma civilização ao mesmo tempo transnacional e multinacional, tendo por base a ecologia tropical e formada por um conjunto de áreas, todas tropicais ou quase tropicais. E todas marcadas por presenças européias unidas ou apenas justapostas às nativas. Umas e outras viriam, inter-relacionadas, pelas suas comuns condições ecológicas e pelos seus também comuns motivos essenciais de vida, constituindo-se em conjuntos pré-nacionais e depois nacionais, através de processos desenvolvidos num tempo mais que histórico.

Desenvolvidos em espaços tropiais. Em trópicos quer úmidos, quer áridos. Assim viriam se definindo condições sócio-tropicais e motivos predominantemente tropicais de vida e de desenvolvimento social. Estudos de tais situações estão esboçados em vários trabalhos brasileiros, aparecidos recentemente. Pois no Brasil há anos funciona, numa universidade federal, a de Pernambuco, um pioneiro Seminário de Tropicologia, especializado no estudo interdisciplinar de tais problemas. Enquanto o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, pelo seu Departamento de Antropologia e pelo seu Museu Antropológico, é outro centro de estudos socio-tropicais, ao lado do que funciona na Universidade Federal da Bahia.

Os condicionamentos ecologicamente tropicais de  formações sócio-culturais como a do Brasil euro-afro-ameríndio nas suas bases étnico-culturais, incluem, é claro, os que se refletem sobre suas formas de economia ou de governo, ainda em fase, quase todas de experimentação. Tal arrojo experimental não significa, no caso brasileiro, um Brasil anti-europeu e sim um Brasil apercebido de que, em vários aspectos do seu comportamento sócio-cultural, tem que ser extra-europeu. Para o que o advertem há meio século aqueles seus pensadores e cientistas sociais brasileiros, criadores de perspectivas sociológicas e antropológicas que, sem deixarem de ser ecumenicamente científico-sociais, são brasileiras, ecológicas eurotropicais nas suas aplicações ou projeções. E algumas, susceptíveis de ser utilizadas por outras sociedades nacionais em começo de desenvolvimento em espaços tropicais. Espaços onde agora madrugam ou amanhecem várias nações novas, algumas a enfrentarem problemas já enfrentados pelo Brasil euro-afro-ameríndio no seu modo de ser nação situada nos trópicos. No trópico úmido e no trópico árido.

São nações, várias das jovens repúblicas da África e do Oriente, ainda inseguras, e, por isto, por vezes anti-européias em suas atitudes e até fazendo, algumas delas, da negritude ou da amarelitude perigosas místicas racistas. A essas, como a outras nações novas, pode aproveitar a experiência de um Brasil há mais de século independente e há quatro séculos em desenvolvimento, primeiro pré-nacional, depois nacional, como civilização a procura de suas próprias formas de expressão dentro de uma ecologia tropical e sem repúdio aos valores europeus ligados incisivamente à sua base nacional. E já com uma arquitetura, com uma música, com uma pintura, com uma culinária, com um cristianismo, com um estilo de convivência, com uma higiene, com um futebol — futebol mais dionisíaco que britanicamente apolíneo — com um samba, em que se exprime, sob esses vários aspectos, um tipo de civilização novo. Novo, sobretudo, por ser mestiço, senão sempre nos sangues, nas interpenetrações de cultura. Interpenetrações que se afirmam em expressões que Blaise Cendras, o viajadíssimo Cendras, considerou tão significativas, ao destacar a cozinha brasileira como uma das três grandes cozinhas do mundo, as outras duas sendo, segundo ele, a chinesa e a francesa. Ora, a presença negra ou africana na cozinha brasileira é marcante: nos gostos como nos odores.

Sendo especificamente brasileiro, esse novo tipo de civilização é, nas suas características mais amplas, vigorosamente tropical pelo que inclui de valores europeus, quer humanos quer culturais, integrados em ambiente ou em ecologia tropical. Valores europeus desde os começos do Brasil misturados a valores mouros, indianos, ameríndios, africanos. Valores europeus, além dos ibéricos: ingleses, franceses, italianos, alemães, junto com os semitas, judeus, árabes e indianos, também presentes nos começos de civilização tão complexa. Paradoxalmente quase se poderá dizer: tão singularmente plural, além de complexa. Pois a formação do Brasil – singularidade brasileira – tem, desde seus começos, presenças as mais diversas.

A coexistência, nos começos de uma sociedade e, ao mesmo tempo, de uma cultura que viria a caracterizar-se como uma presença

moderna em espaço tropical parece ter predisposto o Brasil a combinar, de forma evidentemente feliz,  presenças aparentemente inconciliáveis ou incompatíveis como a européia e, além da ameríndia, a africana. O mito dessa incompatibilidade o Brasil vem destruindo de maneira irrecusável. Tais presenças, a formação  brasileira vem demonstrando que podem harmonizar-se sem uma das etnias tornar-se absoluta no seu domínio sobre as outras. Diga-se talvez melhor: com as três tendo oportunidades de se fazerem sentir, quer na formação, pela mistura biológica, de um novo tipo a princípio pré-nacional, depois nacional, de homem, quer no desenvolvimento de uma cultura também caracteristicamente nacional, complexa e abrangente no que a certa altura passou a receber, a admitir, a integrar de contribuições culturais vindas de outras procedências, além das básicas, às quais, com o tempo, se acrescentariam sem a elas se sobreporem.

Significativo neologismo antropossociológico brasileiro é, entre outros, metarraça. Significa além-raça. Pretende-se, com a expressão metarraça, definir uma consciência crescentemente típica do brasileiro como homem nacional, que tende a considerar insignificante a condição ou a origem étnica desse homem para só estimar o seu status, além de nacional, ecologicamente tropical e dinamicamente ocidental, de brasileiro. Já há anos os inquéritos oficiais brasileiros não indagam qual a cor ou qual a raça do inquirido: basta saber-se que é brasileiro. Condição – a de brasileiro – que vem sendo crescentemente identificada com a de moreno, embora essa identificação não signifique que todo brasileiro, para ser autêntico, deva ser biologicamente mestiço. O que ele não pode deixar de ser é culturalmente complexo. Moreno por ser negróide, em vários casos. Moreno por ser brunet. Moreno por ser bronzeado pelo sol tropical. Um amorenamento tão procurado pelo brasileiro crescentemente esportivo, ao se expor quase nu ao sol das praias. Procura, essa, tanto da parte de brunets para se amorenarem ainda mais quanto da parte de louros, hoje, no Brasil, como que sob a impressão de serem, como louros não amorenados pelo sol tropical, uns como intrusos na verdadeira natureza ou na verdadeira ecologia do seu país. Que brasileira, hoje, no Brasil, capricha em se conservar, como foi tendência entre suas avós, imune da ação morenizante do sol sobre sua pele de mulher imaculadamente alva? Esse amorenamento estético e ecológico pela ação do sol junta-se à morenidade por efeito da miscigenação cada dia mais extensa e mais generalizada entre os brasileiros. Morenidade mais que valorizada esteticamente, ao mesmo tempo que considerada evidência de integração do moreno, ou do amorenado, na ecologia tropical do Brasil.

O que se passa na área biológica também se está verificando na área sociológica. As evidências de presença de valores ou de influencias africanas nessa área o brasileiro de hoje não as considera desprimorosas para a sua gente.

Note-se, por exemplo, a muita africanização que vem fazendo do catolicismo, no Brasil, um culto repleto de símbolos, ritos, característicos que, sendo oficialmente os romanos, juntam à sua origem européia influências recebidas de crenças e de práticas religiosas do mais puro sabor africano. O culto da Virgem Maria que o diga, com suas assimilações do africano, de Iemanjá. Há, no Brasil, Nossas Senhoras, para os seus devotos, negras como a do Rosário ou pardas escuras como a de Guadalupe; e às quais se fazem promessas através de ex-votos que se constituíram, no Brasil, numa arte rústica de escultura em madeira e em barro, na sua maior parte muito mais africana do que européia no seu modo de ser brasileira. Também essas promessas envolvem, na sua sacralização de cores, significados simbólicos dessas cores que serão, vários deles, mais africanos nas suas implicações do que europeus. Ou do que ortodoxamente cristãos.

O maracatu é uma dança aparentemente recreativa e até carnavalesca que nos seus significados mais íntimos, representa toda uma complexa infiltração africana na religiosidade brasileira. Essas infiltrações se encontram, através dos chamados sincretismos, em não poucos dos cultos de santos que caracterizam o catolicismo praticado no Brasil: o culto de São Jorge, por exemplo. O de Santa Bárbara. O dos Santos Cosme e Damião.

Para os puristas da ortodoxia católica como um conjunto de crenças e ritos que deveriam conservar-se no Brasil rigorosamente fiéis a origens européias, tais infiltrações africanas representam degradação da religião cristã, tão presente na formação brasileira desde os seus começos. Desde aquela Primeira Missa celebrada em plena selva, com indígenas como testemunhas, por um franciscano, logo que o Brasil foi oficialmente descoberto por um almirante português devotamente católico. A verdade, porém, é que para a grande mairoia dos católicos brasileiros, seu catolicismo, com o tempo, se consolidaria, tendo infiltrações místicas e rituais de origem africana, como parte existencialmente válida do seu modo de ser religioso. Ou de ser católico.

Pois tais brasileiros não se consideram menos católicos por seguirem, nas suas práticas religiosas, assimilações de cultos ou de crenças negras ou africanas que vem colorindo, tropicalizando, deseuropeizando seu catolicismo sem que para eles, devotos brasileiros assim penetrados de influências africanas na sua religiosidade cristã, tais infiltrações venham descristianizando ou degradando o seu cristianismo.  As infiltrações africanas na religião, como na culinária, na música, na escultura, na pintura de origem européia, representam não uma degradação desses valores mas um seu enriquecimento. Uma sua harmonização com a ambiência, a natureza, e a ecologia tropicais, de que aquele brasielrio de origem africana, ou de cultura tão africana quanto européia, estaria mais próximo do que o preso a heranças exclusivamente européias tanto de sangue como de cultura. Isto não só quando, atualmente, católico no seu modo de ser religioso como quando adepto de cultos afro-brasileiros, predominantemente africanos nos seus ritos sem deixarem de ser católicos em parte considerável nas suas crenças. Evidências da muita interpenetração cultural que em vários setores vêm ocorrendo no Brasil.

Os exemplos aqui apresentados de influências ou presenças africanas ou negras na biologia e na cultura do brasileiro parecem indicar quanto essas presenças ou essas influências vêm sendo fortes no Brasil. Seria inexato dizer-se que o Brasil é uma África americana, pela preopnderância em grande número de brasileiros de sangues e de heranças culturais africanas. E sendo inexata tal africanidade da gente e da cultura brasileiras, resulta artificial a pretensão de estender-se a esta parte da América a mística de uma negritude rígida que fizesse de numeroso brasileiros simples transplantes de africanos, a espera de reintegração numa espécia de África maternalmente negra que estendesse até a América brasileira direitos de posse. Que estendesse esses direitos maternalmente. Imperialmente.

O que existe de antropológica e sociologicamente válido é uma presença africana no que, no Brasil de hoje, é tanto sociedade como cultura – cultura no seu sentido antropossociológico – impossível de ser subestimada. Impossível de deixar de ser considerada como efeito biossocial do que se admita ter sido uma co-colonização africana desta parte da América, ao lado da européia. Ou da ibérica. Ou da especificamente portuguesa. Quase rival dessa colonização, tais os seus lastros biológicos e culturais, lançados desde o século XVI, para que sobre eles se desenvolvesse, como vem se desenvolvendo, um novo tipo de cultura nacional: a sociedade e a cultura brasileiras.

É evidente que a colonização européia deu a esse novo tipo de sociedade e a esse novo tipo de cultura um instrumento de intercomunicação que só uma nação européia já unificada e já literariamente desenvolvida lhe poderia ter dado: a língua. No caso, a referida língua portuguesa herdeira da nobremente, prestigiosamente, latina.

Mas é também evidente que nenhuma língua européia, das trazidas para os trópicos por europeus, vem se tropicalizando tanto como a portuguesa, no Brasil. Isto pela ação, sobre ela, que não se deve deixar de reconhecer, das línguas indígenas que a paciente erudição dos jesuítas unificou numa língua geral. E essa língua geral, por algum tempo quase tão utilizada, em certas áreas do futuro Brasil, como a própria língua portuguesa.

Mas a tropicalizaçào que a língua portuguesa vem sofrendo no Brasil – tropicalização e, em parte, deseuropeização – vem resultando principalmente de infiltrações africanas. Só secundariamente das ameríndias. E essas infiltrações africanas na língua portuguesa do Brasil vêm se projetando no desenvolvimento de uma língua literária que já não é uma sublíngua literária com relação à consagrada como academicamente castiça pelos puristas portugueses mais intransigentes. Nela cada dia se afirmam com mais desenvoltura extra-acadêmica ritmos novos ao lado de expressões novas. E esses ritmos e essas expressões, quer na sua musicalidade, quer na sua expressividade, marcados pelo que neles são origens africanas até há algum tempo de uso limitado à chamada boca do povo: plebéias; vulgares; “dizeres de negros”; restos de dizeres de escravos; sobejos de senzalas.

Com os brasileirismos em ascensão na língua literária do Brasil, começa a afirmar-se, na literatura brasileira, uma presença africana que  vinha se limitando a aparecer na literatura oral. No folclore. Em sublínguas regionais.

Intensificada a ascensão que aqui se assinala, importará numa maior africanização da língua portuguesa escrita por brasileiros, sem que tal africanização venha a necessariamente importar na substituição da língua essencialmente portuguesa por outra preponderantemente africana. Apenas na maior presença africana numa língua em que os escritores, à proporção que se aprofunda sua identificação com a ecologia tropical, tendem a sentir maior necessidade de recorrerem a vocábulos vindos de línguas tropicais. Vindos de línguas africanas. Isto sem se ter que admitir prejuízo para a língua portuguesa como língua transnacional e não apenas nacional do Brasil ou de Portugal. Pois é lícito admitir-se que venham a tornar a desenvolver-se, no antigo Ultramar Português, línguas literárias estruturalmente portuguesas, grandemente penetradas de tropicalismos. Especialmente de africanismos. E muito particularmente — se tal vier a ocorrer — de brasileirismos cada vez mais presentes na língua portuguesa.

Ao que nos levam as considerações aqui esboçadas em torno da importância da presença negra ou africana na sociedade e na cultura brasileiras e na língua portuguesa do Brasil? Levam-nos a sugerir que tal presença vem resultando na formação, entre os brasileiros, quer de uma gente crescentemente, embora não exclusivamente, morena nos seus característicos cromáticos, quer crescentemente extra-européia, sem prejuízo do essencial de sua europeidade, na sua cultura. A místicas como a de um arianismo segregador ou a de uma negritude também segregadora opõe-se, no Brasil, a tendência para sínteses, quer biológicas através da miscigenação, quer sociológicas, através da interpenetração de culturas, nas quais as presenças não-européias são, em certos setores, já tão marcantes como as européias. O Brasil de hoje tende, cada dia mais, a orgulhar-se da presença africana, ou negra, na biologia e na cultura da sua gente. Tende a reconhecer no negro ou no africano um seu co-colonizador.

Tende, mais, a considerar sua independência, quer política, em particular, ou apenas econômica, quer sócio-cultural, em geral, o resultado menos de uma súbita descolonização que de uma precoce autocolonização: autocoIonização sendo outro neologismo sociológico criado por brasileiro. Tal autocolonização ter-se-ia processado em face de um poder europeu colonizador menos forte ou menos tentacular, nas suas expressões oficiais, que os demais poderes europeus colonizadores. Menos capaz de impor sua vontade e seus cânones à gente colonizada. Mais inclinado a transigir com essa gente, deixando-a sabiamente autocolonizar-se. Deixando o africano agir a seu lado como co-colonizador do Brasil.

Função — a de colonizar — a que ao português já se associara, por vezes superando o europeu puro, o mestiço euro-ameríndio: daí a grande ação bandeirante na formação brasileira. A do negro já ladino, ou abrasileirado, não seria menor, quer ao lado do português, quer, sob vários aspectos, superando-o, dada aquela sua fácil adaptação de nativo do trópico africano ao trópico brasileiro notada pelo inglês Bates. Adaptação que lhe permitiu, em terras palustres do Brasil, uma atividade ou um esforço difícil de ser desenvolvido pelo europeu colonizador, quando puramente europeu. É o que procuro demonstrar ter sucedido no interior mais remoto do Brasil — Mato Grosso — nas páginas em que recordo — em livro publicado em Lisboa e pouco conhecido entre nós, sobre a incorporação ao sistema lusotropical de sociedade e de cultura de tão importante área a ação colonizadora, nesse trecho de ainda áspero território brasileiro, do Governador Luís de Albuquerque de Mello e Cáceres. O qual, para tanto, se serviu grandemente não só de ameríndios como, de modo notável, de negros africanos. Esses negros africanos desempenharam aí função co-colonizadora, tendo realizado trabalhos contínuos e sistemáticos de que os ameríndios, ainda nômades e sem constância nos seus esforços, mostraram-se quase de todo incapazes. Em alguns casos, até negros fugidos — ou quilombolas — revelaram-se co-colonizadores do Brasil, raptando mulheres de tribos indígenas e cristianizando essas mulheres e os filhos afro-ameríndios. E com eles co-colonizando espaços virgens de terras tropicais que se tornariam nacionalmente brasileiras.

Por aí se explicam certos característicos da formação brasileira que a distinguem das de outras populações que de coloniais passaram a nacionais. Que lhe permitiram ser mais criativamente extra-européia quando ainda, sob todos os aspectos oficiais, colônia. Mas que, paradoxalmente, por isto mesmo, nunca deixaram que o brasileiro se extremasse em gente violentamente antieuropéia, por lhe faltarem de todo oportunidades para aquela, desde os séculos coloniais, gradual, porém incessante, autocolonização.

A qual se exprimiu de modo tão veemente na escultura do chamado Aleijadinho: uma escultura ecológica e, no seu estilo, mais extra-européia que passivamente subeuropéia. Com arrojos esteticamente tropicais. Arrojos esteticamente brasileiros.

Brasileiros e africanos negros, têm, neste setor — o estético — especialíssimas afinidades que os situam à parte do comum das relações que prendem latino-americanos – mesmo os das regiões tropicais da América: as mais marcadas pela presença africana — à África negra. Lembremo-nos de que chegou a haver na Nigéria – por exemplo — um estilo brasileiro não só de arquitetura como de decoração com figuras de bichos e de plantas tropicais brasileiras, sem considerarmos os brasileirismos que ali se comunicaram à culinária, às danças, aos folguedos, às devoções religiosas, ao folclore. Esse contágio não foi apenas um episódio no tempo histórico: o abrasileiramento de umas tantas formas de vida e de arte na Nigéria foi profundo. Sobrevive. Vive. Vive em criações em que a espontaneidade africana se tem servido de sugestões brasileiras para se afirmar ou reafirmar de um modo em que as duas forças — a brasileira e a africana — se têm encontrado como fontes da mesma tropical idade além de essencial, existencial. Assunto que o autor deste ensaio tem procurado versar em ensaios e até em livros: no intitulado “Problemas Brasileiros de Antropologia”, por exemplo.

É singularmente significativo da capacidade brasileira de elaborar cultura nacional valorizadora de contribuições de outras procedências além da européia — no caso a africana — o fato de ex-escravos já abrasileirados na sua cultura ou seus descendentes, terem se tornado, de regresso à África, uma presença culturalmente abrasileirante na mesma África, através do reencontro de ex-africanos com uma terra de origem cuja cultura passariam a modificar, a alterar, a abrasileirar, orgulhosos dos seus brasileirismos culturais. Como significativo é o fato de produtos caracteristicamente brasileiros como a mandioca e o caju terem se integrado, graças à mediação não só portuguesa como, em vários casos, à de africanos abrasileirados de volta à África, noutras culturas situadas em áreas tropicais e africanas.

Desses reencontros, têm resultado expressões nigerianas de arte em que ao brasileiro é fácil descobrir alguma coisa que, para ele, não é exótico: é, senão ancestralmente, colateralmente brasileiro. Por outro lado, parece quase certo do artista nigeriano de hoje que, em grande parte da arte brasileira mais autêntica, encontre alguma coisa de familiar, de fraterno, de aparentado com o que, para ele, é arte. Caso talvez único tanto no relacionamento da cultura africana com a já brasileira como no relacionamento da cultura já brasileira com as negras ou africanas.

Em certo artista jovem da Nigéria, de hoje, Jacob Afolabi, críticos estrangeiros têm encontrado parentesco com o espanhol Miró. Amor com amor se paga — poderia dizer-se. Pois não é exato de outro grande da pintura espanhola, Picasso, que desenvolveu sugestões de arte africana, comunicando-as a outros artistas europeus e de outras partes do mundo? Mas não só com os Picassos serão, por sua vez, as afinidades desse e de outros artistas africanos: também com artistas brasileiros a seu modo Picassos pela sua sensibilidade a sugestões africanas ou negras.

A esse propósito é curioso não ter se verificado no Brasil, tão impregnado de influência africana, mas no Uruguai apenas tocado, como aliás a Argentina, dessa influência, a primeira explosão em pintura nacional de país íbero-americano de temas africanos tratados com arte ao mesmo tempo que com amor. Esse pintor — anterior aos Di Cavalcanti, aos Cíceros Dias, a outros brasileiros voltados para assuntos afro-brasileiros, em constraste com a quase relutância do insigne Cândido Portinari — arianismo? — em abordá-los, foi Figari. Um Figari que dificilmente se compreende ter sido, nesse seu pioneirismo, um uruguaio e não um brasileiro. Em compensação, quando Di Cavalcanti se rendeu à magia de temas afro-brasileiros, o fez com o ardor de quem pretendesse recuperar tempos perdidos não só por ele, em particular, como coletivamente, nacionalmente, por toda a pintura brasileira.

A verdade é que, entretanto, os brasileiros, de modo especialíssimo, têm sido sempre uns predispostos à compreensão intuitiva e à assimilação amorosa de valores africanos; e, mais que outros não-africanos, inclinados a ser mediadores, também amorosos e intuitivos, entre o Ocidente lógico (e de que nós próprios não nos sentimos inteiramente parte) e a África e a Ásia antes intuitivas do que lógicas, quer nas suas artes, quer nos seus saberes. A essa afinidade geral, é que, no caso das relações do Brasil com as Áfricas negras e da receptividade brasileira a influências africanas, acrescentam-se outras que, através de uma série de contactos específicos, poderão aprofundar, particularizar, aprimorar a afinidade geral.

A essa altura, observe-se a vantagem que vem sendo para o Brasil a presença, na sua população e na sua cultura, da iletrados e até analfabetos, em parte descendentes de escravos africanos dos velhos dias patriarcais que, como reserva de gente intuitiva, espontânea, telúrica em sua adaptação ao trópico, vêm retardando uma demasiadamente rápida, além de absorvente, europeização e racionalização da gente brasileira, com sacrifício de suas aptidões mágicas. Aptidões mágicas comunicadas a tantos brasileiros e até portugueses de gênio ou talento artístico ou literário — um deles o português Eça de Queirós e, entre os brasileiros, um Sílvio Romero, um José Lins do Rego, um Jorge de Lima — pela “bá” negra já abrasileirada e pessoa íntima da família nas antigas casas-grandes. É ainda tema para estudo específico de um aspecto nada insignificante da influência negra ou africana, no Brasil, o estudo da figura da “bá” de sua influência na criação de meninos brasileiros a vida toda sob essa influência analfabética e neutralizante de convencionalismos lógicos de sua alfabetização ou do seu aburguesamento.

Explica-se pela ação dessas heranças psicoculturais sobre não poucos brasileiros, que artistas negros africanos, como atualmente Afolabi, tenham, para esses brasileiros, mais ainda que semelhanças com Mirós espanhóis, parentesco com os brasileiríssimos Cíceros dos Santos Dias, Emilianos Di Cavalcanti, Lulas Cardoso Ayres. Daí encontrar-se num Adebisi — que deliberadamente revive na sua arte o chamado estilo brasilo-nigeriano — semelhança também com a cerâmica brasileira pintada: a Francisco Brennand, por exemplo. Isto sem nos esquecermos do que vibra de africano — um africano abrasileirado ou pernambucanizado — em pinturas de vários brasileiros, além das já célebres de Di Cavalcanti: um Di Cavalcanti famoso pela glorificação de belezas de mulher brasileiramente negróides. Africanos conhecedores das artes da África, isto é, das formas autenticamente africanas de representação, interpretação e simbolização da figura humana, de animais e de plantas dos trópicos, parecem sentir essa africanidade nesses e noutros artistas brasileiros: quer nos já consagrados, quer em vários dos mais jovens e já notáveis como, dentre os modernos. Adão Pinheiro. Brasileiros, também com algum conhecimento das artes antigas e atuais do seu país, sentem de imediato o que há de brasileiro em artistas africanos da África.

A afinidade entre duas artes — a brasileira e a africana — mostras de desenhos de negros africanos no Brasil só fazem confirmá-la. Já o recordei, aliás, a propósito de uma dessas mostras. São, por isto, exposições em que, ao interesse puramente estético, se junta o psicocultural ou sócio-cultural. Justifica-se assim que um antropólogo cultural, ou um sociólogo, sem pretensão alguma a crítico profissional de arte ou, específico, de pintura, se interesse por tais exposições. O que faz como sapateiro que não sai do seu ofício.

O que é preciso, em casos dessa natureza, é que os críticos, mais especificamente críticos de arte, não se considerem donos absolutos do que se apresente como pintura, escultura ou arquitetura, pretendendo  negar a outros especialistas o direito de comentarern essas artes, sob outros critérios e de outros pontos de vista, de modo a poderem ampliar os apenas estéticos e até aprofundar as implicações dos estéticos. O critério antropológico-cultural é decerto um desses critérios e sob ele é que principalmente deve ser considerada a influência africana sobre o Brasil num setor — o estético — que se comunica com outras áreas psicoculturais.

Recorde-se desse critério que foi sob tal critério que se iniciou, no Brasil, a moderna valorização da presença africana na cultura brasileira, em geral, e em algumas das artes — uma delas, a pintura — em particular, sem nos esquecermos de datar daí a defesa sistemática do exercício dos cultos afro-brasileiros como cultos legitimamente religiosos e não “bruxaria” ou, “feitiçaria” ou “atentado à moral e aos bons costumes”. Defesa de que se tornou lúcido campeão o psiquiatra pioneiramente social Ulysses Pernambucano de Mello, discípulo do brasileiro fidalgamente negro que foi no Rio de Janeiro, o mestre de psiquiatria Juliano Moreira e fundador — Ulysses — de uma Escola Brasileira de Psiquiatria de valor reconhecido e proclamado pela Sorbonne. Se hoje é livre o exercício desses cultos e também o da um tanto sofisticada “umbanda”, deve-se essa liberdade religiosa de interesse para o relacionamento cultural do Brasil com a África ao pioneiríssimo Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife, no histórico Teatro Santa Isabel, em 1934. Dele resultaram dois volumes contendo os significativos estudos então apresentados: “Estudos Afro-Brasileiros” e “Novos Estudos Afro-Brasileiros”. Teve o Congresso do Recife o aplauso do antropólogo Franz Boas, a participação do norte-americano Melville J. Herskovits, o da inglesa Nancy Cunard e foi noticiado em primeira página pelo The New York Times como importante iniciativa brasileira de interesse cultural. Também empolgou sociólogos e antropólogos franceses. Tornou-se grande entusiasta dessa iniciativa recifense, retificadora da africanologia de Nina Rodrigues – para quem o negro africano era biológica e sociologicamente inferior – o professor Roger Bastide, podendo-se atribuir ao seu contacto com africanologistas do Recife seu interesse por assuntos afro-brasileiros, o ter produzido estudos como o que consagrou “a psicologia do cafuné”, mostrando-se senhor de subtilezas afro-brasileiras.

Parte do Congresso Afro-Brasileiro que se reuniu no Recife em 1934 foi uma exposição, sob a direção dopintor Cícero Dias, no Teatro Santa Isabel, não só de trabalhos de arte afro-brasileira como de evidências da semelhança entre várias expressões artísticas brasileiras — na música, na culinária, no traje popular de algumas regiões, nas jóias e adornos pessoais e não apenas na pintura.

Essa exposição organizada — acentue-se — pelo pintor Cícero Dias e por mim teve a colaboração de então estudantes universitários como Clarival Valadares e Mário Gibson Barbosa: o Mário Gibson Barbosa que, como Chanceler do Brasil, se notabilizaria pelo seu empenho em aproximar culturas negras ou africanas da brasileira. Dela — exposição — resultou que se interessassem pela arte africana, como fonte de arte lusotropical -como diríamos hoje — vários artistas brasileiros, então jovens. Um deles, o hoje consagrado Lula Cardoso Ayres. Note-se que data do Congresso Afro-Brasileiro do Recife a mais efetiva retificação da perspectiva da estudo da influência africana no Brasil em que se notabilizara na Bahia o sábio Nina Rodrigues, para quem, entretanto — repita-se — o negro africano, tão presente na formação brasileira, teria sido um inferior biológico. Erro em que também incorreu o insigne Euclides da Cunha. Em que incorreram outros brasileiros ilustres. Note-se mais que, do mesmo Congresso, data o maior pendor de Mestre Emiliano, que dele participou, por assuntos afro-brasileiros em contraste com a quase indiferença por tais assuntos de Cândido Portinari: o Portinari das virgens e anjos sempre nordicamente louros e róseos. O Portinari incapaz de compreender o Cristo negro do “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna: pioneirismo também partido do Recife, algum tempo depois daquele Congresso no qual s influência africana no Brasil foi considerada em vários dos seus aspectos. O Recife à pioneiridade do congresso de 34 acrescenta o fato atualíssimo de vários dos seus artistas mais jovens e mais vibrantemente renovadores serem pintores e escultores que, sensíveis às raízes africanas das artes plásticas brasileiras, vêm exprimindo essa sensibilidade em muitas das suas produções, o mesmo sendo certo das produções de compositores recifenses, de renome hoje nacional, como Capiba e Nelson Ferreira; e dos empenhos de quantos vêm animando no carnaval pernambucano as suas inspirações em grande parte africanas: maracatu, frevo, passo. Ainda o mesmo se pode dizer do que vem ocorrendo, nesses setores, na Bahia e no Rio de Janeiro: este, centro do afro-brasileiríssimo samba.

Ambiente, o dessa sensibilidade de modernos artistas brasileiros às raízes africanas das artes brasileiras de pintura, de escultura, de música — para não falarmos na culinária — favorável a uma “negritude” que viesse separar, no Brasil de hoje, aquele brasileiro que seja descendente, principalmente de negro africano, dos brasileiros de outras origens étnicas e culturais, tornando-o um “negro brasileiro” semelhante ao “negro americano”? Significativamente, de modo algum. Apenas, da parte de uns poucos, retoricamente. Insista-se em que aumenta no brasileiro esta consciência: a de ser um povo, quase todo, moreno — a palavra moreno, para designar nuances de cor escura de pele, tendo hoje, entre os brasileiros, uma elasticidade tal de sentido, que inclui os próprios pretos. Além do que, não são raros — repita-se — os alvos e louros que se deixam queimar pelo sol quente das praias brasileiras para se tornarem, por esse meio, antes ecológico do que biológico, morenos. Daí o também brasileiro conceito de metarraça, ou de além-raça, segundo o qual não interessa ao brasileiro, como tipo nacional de homem, apurar exatidões de origem ou de situação étnica, dado o fato de tais exatidões não afetarem nele sua condição nacional. O que não significa que não se valorizem projeções, quer de tipo físico, quer culturais, africanas ou negras, sobre característicos estéticos de figura física do homem ou, principalmente, da mulher brasileira, ou sobre sua cultura: suas artes, suas preferências de paladar, seus modos de sorrir, de rir, de andar. Pois em todos eles se observam, no Brasil, influências africanas ou negras.

Para um antropólogo ou sociólogo, tais casos são interessantíssimos: ilustram a realidade de não ser a raça nem a cor que fazem, especificamente, de um homem, isto ou aquilo, mas o que há de íntimo nos gostos, nas tendências, nas motivações — inclusive as artísticas — desse indivíduo, seja ele branco ou preto, africano ou europeu de origem. O contrário é também verdadeiro: o caso de Cruz e Sousa que o diga. Foi ele uma vocação para europeu surgida no Brasil, sob a pele de negro. Realizou-se através do “simbolismo” europeu, exaltando névoas, brumas e alvuras de paisagem, como na Nigéria atual, a pintora Georgina, nascida na Europa com vocação africana, está se realizando através de símbolos negro-africanos por ela empregados na sua arte empática.

Note-se que são numerosos os símbolos de origem africana ou negra que se abrasileiraram. Entre eles, a figa. O balangandã. Símbolos com seus sentidos místicos. Ou com atrativos estéticos sobrepostos a tais sentidos.

Também, peças de vestuário de mulher além de — como já foi recordado — adornos: brincos, colares, pulseiras. E ainda preferências por cores que, de litúrgicas ou místicas, vêm passando a estéticas e vêm sendo assimiladas pelos brasileiros e até estilizadas por modistas elegantes: a chinelinha baiana, o turbante, o cabeção picado de rendas, o xale. Notem-se também preferências por cores vindas de ligações dessas cores com motivos religiosos. O caso também de ervas, plantas, frutos, a alguns dos quais certa mística afro-brasileira vem atribuindo virtudes afrodisíacas.

Enquanto ao folclore brasileiro não faltam idealizações ou caracterizações de figuras africanas, das que se incorporaram à sociedade patriarcal brasileira — principal chave para a interpretação do ethos e da formação brasileira — como a “mãe preta”, a “bá”, a mucama, a “baiana”, a “mulata inzoneira”, o “negro velho”, o malungo, o “moleque”, o “crioulo”, o “negrinho do pastoreio”: inspiração, esse negrinho do pastoreio, de uma das obras-primas da literatura brasileira. Como inspirações de obras-primas da literatura foram a “escrava Isaura” (Bernardo Guimarães), “o mulato” (Aluísio de Azevedo), “o bom crioulo” (Isaias Caminha), o “moleque Ricardo” (José Lins do Rego), “o Balduíno” (Jorge Amado), ‘essa negra Fulô” (Jorge de Lima). Isto sem nos esquecermos das já recordadas “mulatas” — por vezes negras das chamadas puras, tão raras há anos no Brasil sempre miscigenado – do pintor Emiliano Di Cavalcanti que, como artista múltiplo, as sentia como artista literário e não somente como artista plástico. Mais de uma vez conversamos sobre o assunto, Di Cavalcanti e eu, devendo ser sempre notado que seu interesse pelos tipos afro-brasileiros de mulher veio de sua participação num congresso afro-brasileiro do Recife, em 1934, quase tão revolucionário da cultura brasileira como a Semana de Arte Moderna de São Paulo.

Da presença africana na música brasileira — presença que se constituiu numa influência tão atuante — já muito se tem dito. Mais do que de qualquer outra influência africana sobre expressões brasileiras de sensibilidade e de arte.

Não se faz sentir apenas sobre a música popular — na qual viriam a se notabilizar, nos nossos dias, o pretíssimo Patrício, Donga e Pixinguinha, – mas sobre a erudita em alguns dos seus mais altos aspectos. Sobre Heiton Villa-Lobos sugestões ou inspirações musicais africanas se projetaram; ao lado daquelas ameríndias por ele tão valorizadas como germinalmente brasileiras, nas suas criações. Menos, talvez, no seu caso, atuaram as sugestões africanas que as inspirações ameríndias, mas de modo algum foram as africanas recusadas por ele, como parece as ter recusado o aliás negróide no sangue, Carlos Gomes, de “O Guarani”. A romantização de origens ameríndias de valores brasileiros se extremou, a certa altura, no Brasil, em prejuízo do reconhecimento de ancestralidades negras ou africanas tanto culturais como biológicas. O que parece ter se verificado em virtude da presença do negro africano ter coincidido, no Brasil, com a sua presença sob a condição socialmente degradante de escravo, formando-se, em torno do ameríndio, o mito de se ter revelado demasiadamente altivo e, nessa atitude, superior ao negro, para conformar-se com a condição servil. A verdade sociológica a esse respeito é a ter o negro africano vindo para o Brasil, como escravo, procedido, em grande parte, e em alguns casos de modo notável, de áreas ou de condições de cultura superiores às dos ameríndios. Mais capazes, portanto, que ameríndios apenas nômades e pouco mais que caçadores ou pescadores, de trabalho contínuo e sistemático na agricultura, como se revelaria o africano sob aquela forma dê mãos e pés” de lavouras ou de agro-indústrias, como a da cana-de-açúcar: lavouras e agroindústrias que sem eles não teriam florescido, permitindo a consolidação sócio-econômica do Brasil. Ainda aqui o negro africano agiu como co-colonizador.

Nem para negritudes nem para branquitudes tem havido, no Brasil, ambientes ou condições. As vocações têm procurado, livremente, entre os brasileiros, meios ideais para se expressarem e sem realizarem conforme suas tendências, dentro de culturas flexíveis e à revelia de etnias rígidas, É por afinidades psicoculturais que o Brasil e a África apresentam semelhanças em várias expressões de cultura que as caracterizam. Isto sem nos esquecermos de que vem favorecendo essas semelhanças, além de experiências históricas, tanto de brasileiros como de africanos — e o mesmo se poderia dizer de goeses e de outros luso-orientais situados em áreas tropicais e como tal merecedores de atenções brasileiras — sua comum ecologia a tropical. São uns e outros, gentes situadas em áreas tropicais hoje sob impactos modernizantes. De modo geral vêm sabendo conciliar, africanos e brasileiros, através de configurações nacionais diversas, a ecologia tropical – sob tantos aspectos condicionante do modo de brasileiros como africanos e orientais tropicais já serem ou estarem se tornando, em suas culturas, além de nacionais, modernos — e a modernização em que se vêm empenhando. é preciso que a modernização não os torne antiecológicos, separando-os das fontes naturais das suas culturas nacionais — inclusive dos seus desenvolvimentos — ou artificializando suas expressões nacionais de cultura em puros arremedos de modernismos triunfantes em áreas econômica e tecnologicamente avançadas e inclinadas a dominarem culturas ainda em desenvolvimento. Nada de se repelirem europeísmos e até ianquismos culturais susceptíveis de ser adaptados a condições não-européias.

Mas nada de se tornarem brasileiros de origens tanto européias como não-européias, em sua culturas, subeuropeus ou subianques. Orientação particularmente válida, também, para as novas nações africanas que porventura encontrem em antecipações brasileiras exemplos a ser aproveitados nas suas novas situações sócio-culturais.

O autor deste ensaio, escrito especialmente para um número de “Cultura”, dedicado à África, embora em alguns trechos se repita — tanto tem escrito sobre o assunto — já foi acusado de negrófilo como de um feio pecado: o de dar relevo, segundo seus acusadores, exagerado, à presença negra na população e na cultura brasileiras. Não lhe parece ter resvalado em tal exagero e sim procurado restituir a justas proporções o que, naquela presença, vinha sendo, por não poucos “arianistas”, ocultado ou diminuído. Isto sob uma como mística arianista, por algum tempo tão proeminente, em alguns meios, no nosso país; e tão empenhada em negar ou diminuir a importância da contribuição negra ou africana para o desenvolvimento do Brasil em novo tipo de sociedade e de cultura, desviado de obsessões subeuropéias. Tanto que eminente sociólogo, talvez, senão dominado, afetado, por essa mística, chegou a anunciar um livro que daria, ao que parece, o Brasil como crescentemente “ariano”, isto é, crescentemente e triunfalmente caucasóide, considerando-se insignificante a presença africana ou negra em sua população ou em sua cultura. Para o que teria que processar-se um tal aumento de europeus brancos na população brasileira e de impactos europeizantes sobre a nossa cultura que os remanescentes de brasileiros de sangue negro se reduziriam a insignificâncias desprezíveis. Além do que, para deixar-se de reconher a influência negra sobre a formação brasileira seria preciso desconhecer a presença em altas expressões brasileiras de inteligência e de saber, de distinção nas artes e nos esportes, de descendentes de negros africanos como os Josés do Patrocínio, os Cruz e Sousa, os Lima Barreto, os Rebouças, os Teodoro Sampaio, os Julianos Moreira, os Pelés, para não falar nos Aleijadinhos, nos Josés Maurício, nos Machado de Assis, nos Cotejipe, nos Nilo Peçanha, nos Tobias Barreto, nos Antônios Torres, nos Dom Silvério.

Estudos no sentido de uma sistemática reabilitação da presença negra no Brasil terão contribuído para que aquele ilustre autor não viesse a publicar tão anticientífico quanto antibrasileiro pronunciamento, impressionado como teria ficado com a revelação, por esses estudos — inclusive os dos antropólogos Roquete Pinto e Fróis da Fonseca — de certas deficiências na sua apologia, talvez mais retórica que antropológica, do arianismo, num país como o nosso.

Intelectualmente honesto, como era, esse mestre brasileiro de ciência social, se ainda vivesse, renunciaria ao seu arianismo quase místico e aceitaria, senão totalmente, em parte, a realidade de ser o Brasil uma sociedade que opõe a fantasias como a arianista — tanto como a da negritude — a consciência de sua morenidade metarracial: uma situação concreta para a qual vêm concorrendo tanto a presença do negro, ao lado da do ameríndio, como a do europeu, na crescente formação de uma complexa população nacional profundamente miscigenada. E tão enriquecida de qualquer coisa como “vigor híbrido” por essa generalizada mistura de sangues como por uma igualmente complexa interpenetração de culturas — entre elas, as de origem africana — a formarem, no espaço brasileiro, novas combinações e estas a se constituírem numa já inconfundível civilização nacionalmente brasileira tanto quanto arrojadamente moderna, situada em trópicos tanto úmidos como áridos.

A Capoeira e o Navio de Teseu

Conta uma lenda grega que após derrotar o Minotauro, monstro com corpo de homem e cabeça de boi, o herói Teseu saiu da ilha de Creta em um navio, levando os jovens atenienses que teriam sido devorados pela fera.
Segundo o historiador grego Plutarco, “o navio com que Teseu e os jovens de Atenas retornaram de Creta tinha trinta remos, e foi preservado pelos atenienses até o tempo de Demétrio de Falero, porque eles removiam as partes velhas que apodreciam e colocavam partes novas, de forma que o navio se tornou motivo de discussão entre os filósofos a respeito de coisas que crescem: alguns dizendo que o navio era o mesmo e outros dizendo que não era.”
A mesma questão se traduziu em diversos outros momentos da história da humanidade:
Segundo Heráclito, é impossível que um homem entre duas vezes em um mesmo rio – porquê o rio nunca é o mesmo, está sempre mudando.
Platão descreveu uma situação em que hipoteticamente, ele e Sócrates começaram a trocar partes de suas carruagens. A cada dia, Platão pegava uma parte de sua carruagem, e substituía por uma parte da carruagem de Sócrates. Sócrates fazia o mesmo com a sua. Em dado momento, todas as peças da carruagem de Platão estavam na carruagem de Sócrates, e vice-versa. Eles trocaram de carruagem, ou não ? Se sim, a partir de que ponto a troca aconteceu ?
Locke falou sobre a meia que tem um furo. A meia é remendada com um pedaço de tecido. Mais adiante, aparece outro furo, que é remendado com outro pedaço. Ao longo do tempo, todo o material do qual é feito a meia, é trocado por pedaços de outros tecidos. Ainda é a mesma meia ?
Também fala-se sobre o machado de George Washington. A ferramenta teve o cabo substituído três vezes, e a lâmina duas – e ainda assim, era o machado de George Washington…
E a capoeira ? Cada mestre, cada praticante, acrescenta um pouco de si à capoeira ? Ele troca um nome de um golpe ? Ele canta uma música um pouco diferente ? Ele tem uma crença um pouco diferente da do seu mestre, e a passa para a próxima geração ? Isso pode ser considerado “trocar as tábuas do navio” ? Não que essa parte da capoeira estivesse podre, mas um novo conhecimento foi agregado, uma nova versão da tábua…
De acordo com o sistema filosófico de Aristóteles e seus sequidores, há quatro causas ou razões que descrevem uma coisa; estas causas podem ser analisadas para conseguir uma solução ao paradoxo.
A causa formal diz respeito à forma da coisa, enquanto a causa material se refere à matéria da qual a coisa é feita. O “o que é isso” de uma coisa, segundo Aristóteles, é sua causa formal. Então o Navio de Teseu é o mesmo navio, porque sua causa formal não mudou, ainda que que o material usado para construí-lo tenha variado ao longo do tempo.
Da mesma maneira, para o paradoxo de Heráclito, um rio tem a mesma causa formal, apesar de a causa material (a água do rio) mudar com o tempo, e consequentemente mudar para a pessoa que entra no rio.
Outra das causas de Aristóteles é a causa final, entendida como o propósito da coisa. Todas as “versões” do navio de Teseu teriam o mesmo significado mítico (de terem transportado Teseu) e político (de convencerem os atenienses de que Teseu existiu realmente), ainda que que a sua causa material mudasse com o tempo.
A causa eficiente é dada por como e por quem uma coisa é feita. Por exemplo, como os artesãos fabricam e montam alguma coisa. No caso do navio de Teseu, os trabalhadores que construíram o navio pela primeira vez, poderiam ter usado as mesmas ferramentas e técnicas para trocar todas as tábuas do navio, e ele ainda seria o mesmo.
Há outras abordagens ao problema, mas eu gostaria de tomar a aristotélica para derivar o meu raciocínio.
Sobre a causa formal da capoeira – a forma da arte é corporificada por nós, jogadores. Mas cada jogador é único, e manifesta a capoeira de um jeito só seu. Quando um mestre ensina a alguém a gingar, ele usa o seu jeito de gingar, e o aluno desenvolve o jeito dele. Por mais que vejamos gente “gingando igualzinho”, “jogando igualzinho”, e digamos que existem “robôs” e “clones” na capoeira, na prática nenhum jogador joga igual a outro. Vai haver sempre um trejeito diferente, algo que ele aprendeu com fulano, outro algo que aprendeu com beltrano, e quando tudo isso é cozido junto, sai um jogo só dele.
Pois bem, se aprendermos de ver, de treinar, e principalmente de jogar, não estamos trocando as tábuas da nossa capoeira ? Quem viu o vídeo do Mestre Pastinha jogando, percebe que o jogo dele era só dele – e nenhum dos alunos joga sequer parecido. Para onde foi esse jogo ? Hoje em dia, nas rodas, vê-se muito o “pula sela” ou “pula carniça”: o jogador salta por cima do outro, como na brincadeira infantil de mesmo nome. O movimento não era comum até alguns anos atrás, mas a tábua foi trocada.
Sobre a causa material, a capoeira é “feita” de pessoas. E cada pessoa é mutável, passageira. As nossas opiniões variam de dia para dia, de hora para hora – não somos feitos de pedra. Pessoas morrem, e outras pessoas assumem seus lugares no navio da capoeira – alguns são tábua de proa, outros são tábua de popa, alguns são remos. Mas todos são substituídos com o tempo.
Sobre a causa final, e provavelmente a que mais mudou e muda. A capoeira foi arma de libertação de um sistema escravagista explícito. Foi mecanismo de ascenção social para os capangas de políticos. Foi massa de manobra da monarquia contra a república. Foi demonstração de virilidade e valentia. Foi ferramenta para a definição do Estado Novo por Getúlio Vargas. Foi definidora do alicerce do movimento de resistência da cultura negra. Foi embaixadora do Brasil para o mundo. Foi âncora para tirar pessoas do crime. Foi academizada. Foi alvo de repressão. Foi utilizada para educação de portadores de necessidades especiais. Foi instrumento de reintegração de idosos. Foi ? Na média, pode-se dizer que ainda é, para muitas das características listadas.
Sobre a causa eficiente, talvez seja a mais complexa de se definir nesse contexto – e ao mesmo tempo a mais simples. A capoeira não é estática, como manifestação cultural alguma o é. Ela não está pronta, encontra-se em constante construção. Por mais que se conceba uma capoeira cristalizada, cujos movimentos e/ou seqüências são conhecidos, se analisarmos friamente, tudo o que o corpo consegue fazer, num contexto de jogo/roda, pode ser visto como capoeira.
Todo capoeirista é um dos artesãos que construiu e constrói a capoeira diariamente. O que se chama de “tradição”, também muda diariamente – às vezes devagar, às vezes depressa. O conhecimento transmitido oralmente tende a crescer, se estender: mesmo que lendas antigas não desapareçam, novas lendas surgem. Capoeiristas viram lendas, pequenas lendas que seja, ao vencerem essa ou aquela demanda. E a história deles é mais uma tábua no navio – sequer substitui uma tábua velha, ela é simplesmente mais uma tábua.
O navio da capoeira teve (e tem) suas tábuas trocadas e re-trocadas conforme convém a alguns, ou ao período histórico. Ou mesmo involuntariamente…. Ela é ainda o mesmo navio ?
Para encerrar, um trecho do livro “Last chance to see”, de Douglas Adams:
Eu me lembro de uma vez, no Japão, ter ido visitar o Templo do Pavilhão Dourado em Kyoto, e ficar surpreso em como ele tinha resistido bem à passagem do tempo desde que fora construído no século XIV. Me disseram que ele não tinha resistido bem de jeito nenhum, e que tinha de fato sido queimado até o chão duas vezes só neste século.

– Então este não é o prédio original ? – Perguntei ao meu guia japonês.
– Sim, claro que é – ele insistiu, surpreso com a minha pergunta
– Mas ele não foi queimado até o chão ?
– Sim
– Duas vezes
– Muitas vezes
– E reconstruído
– Claro que sim. Ele tinha sido queimado.
– Então como pode ser o mesmo prédio ?
– Ele é sempre o mesmo prédio.

Eu tive que admitir para mim mesmo que esse era de fato um ponto de vista perfeitamente racional – apenas partia de uma premissa inesperada. A idéia do prédio, a intenção dele, seu projeto, todos são imutáveis e são a essência do prédio. A intenção dos construtores originais é que sobrevive. A madeira da qual o projeto é construído apodrece e é trocada quando necessário. Ficar preocupado demais com os materiais originais, que são meras lembranças sentimentais do passado, é falhar em ver o prédio vivo em si mesmo.
Axé,
T.

Macaco Beleza

Extraído/adaptado de um texto de Augusto Mário Ferreira Jornalista/escritor, formado em capoeira pelo Mestre Bimba em 1956

Baseada em pesquisa histórica do advogado baiano Gabino Kruschewsky (“A Tarde”, 27/6/76, p. 6.), arquivada
na hemeroteca sobre capoeira do advogado/tenente, Esdras Magalhães dos Santos (Mestre Damião)

Quando desceu o portal de honra do navio da Marinha, o Conde D’Eu, em traje de gala, avistou uma Salvador engalanada para recebê-lo com honras de estilo. Já no tapete vermelho sobre o piso esburacado do cais do porto, recebeu as boas vindas do conselheiro Almeida Couto, presidente da província da Bahia, e as saudações da aristocracia local e também de membros da Guarda Nacional.

Marido da Princesa Isabel, herdeira do trono, o conde de origem francesa e naturalizado brasileiro, visitava a Bahia como representante do Imperador Dom Pedro II, que se reteve no Rio administrando as arruaças diárias contra a monarquia, insufladas pelos simpatizantes do pretendido regime republicano.

Conde D’Eu cumpria uma espécie de missão diplomática de apaziguamento dos ânimos políticos, alvoroçados pelo manifesto antimonarquista da Convenção de Itú, de 18 de abril de 1873. Ainda ressabiado de suas recentes aparições públicas, ele temia a repetição em Salvador dos apupos que os membros da Corte, inclusive ele, receberam durante um cortejo de carruagens, liderado pelo próprio Imperador quando este deixara a residência imperial da Quinta de Boa Vista para circular pelas ruas do Rio, numa daquelas tardes tumultuadas de 1883.

Nem o conde, nem ninguém sabia que, no mesmo instante de seu desembarque, no mesmo instante de seu desembarque, estudantes anti-monarquistas da Faculdade de Medicina da Bahia, preparavam-lhe uma manifestação hostil, com vaias, ovos e tomates podres, na Ladeira do Pelourinho, por onde deveria passar daí a pouco, e depois do acesso à Cidade Alta pela subida do Taboão.

Ignorava também que numa das vielas estreitas do Maciel de Cima, proximidades da mesma faculdade de Medicina, o arruaceiro debochado Manoel Benicio dos Passos, por conta de suas simpatias monárquicas, mobilizava um grupo de capoeiristas de primeira linha para empastelar a manifestação estudantil com porretes de peroba e golpes de capoeira. Mulato sarará de cabelo crespo, atlético e corajoso, curtido de muitas cadeias por arruaças, Manoel Benício recebeu o apelido de “Macaco Beleza”, pela extrema feiúra de sua cara e pela agilidade de macaco com que jogava.

Não deu outra: quando os estudantes interceptaram o cortejo do conde no sopé da Ladeira do Pelourinho e começaram a vaiar e a atirar ovos e tomates, a turma de Macaco Beleza caiu de pau (de peroba) em cima da estudantada. Em instantes dissolveu a manifestação, deixando muitos feridos pelas porretadas e pelos golpes de capoeira. Vitorioso, subiu num caixote e mandou ver um discurso inflamado em defesa da monarquia.

– Quero esse popular na recepção desta noite, no Palácio como meu convidado de honra – ordenou o conde D`Eu ao seu anfitrião, o conselheiro Almeida Couto. O Conselheiro tentou dissuadir o conde, informando tratar-se de um arruaceiro de péssimos antecedentes, um capoeirista (sinônimo de marginal na época), cuja presença na recepção poderia constranger os demais convidados. O conde contudo foi enfático:

– O Baile é meu e o convidado é meu.

Pouco tempo depois, já dois emissários do presidente da Província formalizavam o convite ao Macaco Beleza e negociavam com ele as condições estebelecidas pelo conselheiro Almeida Couto que começavam com uma advertência e uma ameaça:

– Fica proibido de fazer besteiras. Se fizer, vai mofar na cadeia, depois que o conde for embora.

Nem a advertência, nem a ameaça o preocupavam. Tinha outras preocupações:

– Só vou lá se o conselheiro pagar uma roupa nova pra mim – sentenciou o capoeirista, que jamais primara pela elegância. Irritado pela petulância do capoeirista, que ele detestava e a quem mandara prender várias vezes, e sobretudo pelo incômodo convite do conde, o conselheiro Almeida Couto obrigou a alfaiataria do Palácio a costurar em poucas horas uma roupa de gala para o Macaco Beleza, que enfatiotado e exalando perfume barato de prostituta, foi o primeiro a chegar ao palácio.

Depois de receber as honras da banda de música, ele esperou, como faziam os nobres, o anúncio de sua presença, feito pelo mestre de cerimônias para só então, com seu passo de malandro, atravessar o salão luminoso e enfeitado:

– Sua Excelência, o nobre senhor Manoel Benício dos Passos, convidado de honra em nome de sua Alteza Imperial. O anúncio supreendeu a oficialidade do Corpo a Guarda presente e revirou o estômago do Conselheiro Almeida Couto, que, por precaução isolou Macaco Beleza bem no fundo do salão. Após a chegada de todos os convidados, o conde D’Eu, com a imponência dos seus quarenta e dois anos, apareceu na mesma porta por onde entrara Macaco Beleza e esperou a vez do seu anúncio:

– Sua Alteza, representante do Imperador D. Pedro II, comandante em chefe das forças navais e terrestres, vitoriosas na guerra contra o Paraguai, Luís Felipe Maria Fernando Gastão D’Orleans, o conde D’Eu!

Macaco Beleza nem esperou o fim dos aplausos. Sob o olhar irado do Presidente da Provínica, atravessou o centro vazio do salão e, quebrando o protocolo, supreendeu o conde com um abraço vigoroso, desvencilhou-se e se apresentou ao conde, declamando em tom solene uma trova que demorara para decorar:

“Manoel Benício Passos,
vulgo Macaco Beleza.
Escravo da Monarquia
e servo de Vossa Alteza”

O Presidente da Província aproximou-se e tentou consertar o vexame e o conde, risonho e descontraído, mostrou-se encantado com a trova simplória e com a confessa fidelidade daquele homem do povo. Desconcertado o conselheiro Almeida Couto cochichou uma repreensão qualquer no ouvido do Macaco Beleza. O cochicho ninguém ouviu, mas a gargalhada geral ecoou pelo salão quando todos ouviram em voz alta a resposta galhofeira:

– Qual é “seu” conselheiro! Esta me estranhando? Pensou que eu ia fazer besteira? Pois não sabe que sou baiano, nascido na Bahia, e que baiano burro nasce morto!

A risada dos convidados e do conde consagrou a frase conhecida e repetida no país inteiro, mesmo passados estes cento e tantos anos, desde o ocorrido.

Manduca da Praia

Extraído/adaptado de um texto de Nestor Capoeira, publicado na Revista da Capoeira #03

Quando Alexandre Mello Moraes Filho, escritor que viveu há mais de cem anos no Rio de Janeiro, e que conheceu pessoalmente o terribilíssimo Manduca da Praia, publicou seu livro (Festas e Tradições Populares do Brasil (Rio: F. Briguiet e Cia, 1946)), eis o que ele contou:

Por volta de 1850, Manduca “iniciou sua carreira de rapaz destemido e valentão, agredindo touros bravos sobre os quais saltava, livrando-se”. Dotado de uma enorme força física e “destro como uma sombra”, Manduca cursou a escola de horário integral da malandragem e da valentia pelas ruas do Rio, na época de perigosos capoeiras como Mamede, Aleixo Açogueiro, Pedro Cobra, Bem-Te-Vi e Quebra Coco.

Desde cedo destacou-se no uso da navalha e do punhal; no manejo do Petrópolis – um comprido porrete de madeira de lei, companheiro inseparável dos valentões da época – na malícia da banda e da rasteira; e com o soco e a cabeçada e o rabo-de-arraia tinha uma intimidade a toda prova.

Manduca não era um “filósofo da capoeira” como, João Pequeno e João Grande; nem tampouco um representante do espírito da “malandragem alto astral” como Leopoldina. No entanto, tinha algo que o destacava e diferenciava de seus contemporâneos – facínoras, valentes e rufiões – fazendo que se tornasse uma lenda viva, e mais tarde um mito cantado e celebrado até os dias de hoje: uma inteligência fria, calculista e implacável; uma sede de poder, de status e de dinheiro, tudo isto aliado a uma visão de comerciante e de homem de negócios.

A capoeira do Rio, por volta de 1850, era muito diferente da que conhecemos hoje. A capoeira era perseguida pela polícia. Não havia academias. O jogo era quase que uma briga-de-rua, sem berimbau e sem floreio. Era a época em que as maltas de capoeiras, como a dos Gaiamus ou a dos Nagoas, aterrorizavam a população carioca.

Semelhante as gangues de nossos dias, as maltas daquela época dividiam a geografia da cidade em fatias e cada uma reinava absoluta na sua área. Manduca, no entanto, “não recebia influencias da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco”. Era capanga e guarda-costas de ilustres políticos.

“Nas eleições (do bairro) de São José, dava as cartas, pintava o diabo com as cédulas. Nos esfaqueamentos e nos sarrilhos próprios do momento, ninguém lhe disputava a competência”.

O Manduca “respondeu a 27 processos por ferimentos leves e graves, saindo absolvidos de todos eles pela sua influencia pessoal e de seus amigos”.

Manduca ficou mais célebre ainda com a chegada no Rio, do “deputado português Santana, que gostava de brigas, que não recuava diante de que quer que fosse, e que tendo notícia do Manduca, procurou-o. Encontrando-se os dois, houve desafio, acontecendo àquele (ao Santana) saltar nos ares ao primeiro camelo do nosso capoeirista, depois do que beberam champagne ambos, e continuaram amigos”.

Mas nem só de valentia e champagne; de mumunhas com políticos; de esfaqueamentos na época da das eleições vivia nosso personagem. Manduca, como dissemos, além da inteligência de predador tinha também o senso dos negócios. Valendo-se de seu prestígio e de seus conhecimentos nas altas esferas do poder, “montou uma banca de venda de peixe na praça do Mercado, era liso em seus negócios, ganhava bastante e tratava-se com regalo”.

Quando Mello Morais – o escritor – conheceu-o, há mais de cem anos, o Manduca já era um homem maduro. “Alto e reforçado, usava uma barba crescido em ponta, grisalha e cor de cobre…nunca dispensava o casaco grosso e comprido, e a grande corrente de ouro de que pendia o relógio…de olhos injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura tinha alguma coisa que infundia temor e confiança”.

O Manduca fez fama e dinheiro. Foi famoso, temido e respeitado. Foi feliz? Talvez só Besouro e Nascimento Grande ou o próprio Manduca pudesse responder a esta pergunta.

No meu Rio de Janeiro, se a memória não falha….