Não conheci Casimiro D’Almeida. Não sei ao certo em que cidade viveu, que agruras passou, que amores teve. Não sei no que trabalhava, se teve família, se ainda está vivo. Sei de Casimiro pelo registro fonográfico que deixou – bem ao estilo do “gringo filmava e me fotografava, eu pouco ligava, também não sabia…”
De acordo com o registro Casimiro era neto de escravos brasileiros – mas nascido e criado no Benin, África. Não sei o nome de seus pais ou avós, mas sei que era descendente da raiz negra de escravos brasileiros que voltaram para a terra-mãe.
As gravações de Casimiro, que constam nos arquivos do CREM (Centre de Recherche en Ethnomusicologie), foram feitas em 1950 – quando ele já tinha sua voz de homem feito, e acompanhava o canto batucando no que parece ser um pandeiro de couro frouxo, ou até mesmo uma caixinha de fósforos.
O que espanta um pouco, mas não muito, é o fato de Casimiro cantar em português do Brasil, bastante claro – embora com um leve sotaque (provavelmente pela língua oficial do Benin ser o francês). É sabido que muitos negros brasileiros, finda a escravidão, retornaram para a África. Muitos inclusive retornaram antes mesmo da abolição: degredados após a Revolta dos Malês (1835).
Atlântico Negro – Na rota dos orixás
O que espanta e emociona no canto de Casimiro é perceber como a tradição oral e as festas populares trocam DNA entre si, como todas elas parecem partir de um ancestral comum. Como muito bem disse o finado Mestre Bigodinho, “é uma só”.
Nesses tempos de discussão sobre se a capoeira é de origem indígena, africana, brasileira ou marciana, eu prefiro me abster da peleja. Eu creio na origem brasileira, a partir da raiz negra – mas prefiro não bater pé nem eriçar penas por conta disso. A origem da capoeira me importa menos que o passado ou o futuro próximos: creio que precisamos cuidar dela agora, tendo os olhos nas gerações recentes que deram-lhe o conteúdo que tem hoje, para só assim conseguirmos um bom porvir. Se a semente for bem cuidada, dará bom fruto e bela flor.
Mas algumas estrofes do que Casimiro cantou em 1950, é que chocam de maneira boa os ouvintes. São cantigas que decerto aprendeu com os pais ou com a comunidade em seu entorno (outros ex-escravos ou descendentes de ex-escravos ?). Seus avós podem ter retornado do Brasil em algum ponto a partir de 1835, então essas canções já eram conhecidas aqui – que bela relíquia é isso, ter a certeza que algo do que cantamos na capoeira remonta a quase 200 anos!
Alguns exemplos:
Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal Papai, mamãe, quando eu vinha de Portugal Meu amor é [???] Eu sou vadio, vou vadiar Sou vadio, vou vadiar
É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando É de manhã, meu boi está me chamando
É de manhã, é de manhã, meu boi está me chamando É de manhã, meu boi está me chamando
Meu boi tem o costume Chamado que vai andando
As estrelas do céu correm Eu também quero correr As estrelas atrás da lua E eu atrás do bem-querer
Isso sem contar as várias referências ao Senhor do Bomfim, e à burrinha – que ainda sai nas festas populares Brasil afora.
Não conheci Casimiro, nem no particular nem no público, mas o considero muito, devo muito ao conhecimento que ele teve, tinha ou tem. Um bastião de resistência, retrato da vitória da tradição oral de um povo sobre a sanha escravizadora de outro.
Viva Casimiro, e viva a abolição – que se foi apenas no papel em 13 de maio de 1888, pelo menos que seja real nas cabeças em cada dia de cada mês de cada ano!
One thought on “Casimiro D’Almeida, sangue brasileiro na África”
É… São muitas as disputas pelas origens, tantas que se perde de vista aquilo que talvez seja mais fundamental para entender a formação das culturas – o diálogo entre elas. É por isso q eu gosto muito das ideias de um cara q provavelmente tb inspiraram o Rota dos Orixás. Ele se chama Paul Gilroy e escreveu um livro excelente, chamado Atlântico Negro.
É… São muitas as disputas pelas origens, tantas que se perde de vista aquilo que talvez seja mais fundamental para entender a formação das culturas – o diálogo entre elas. É por isso q eu gosto muito das ideias de um cara q provavelmente tb inspiraram o Rota dos Orixás. Ele se chama Paul Gilroy e escreveu um livro excelente, chamado Atlântico Negro.
No ano passado, eu apresentei um artigo num Congresso q talvez possa te interessar: http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1306954845_ARQUIVO_Artigo_CONLAB_1jun11.pdf
Abs!