por Gilberto Freyre
publicado originalmente na Revista Cultura, 1976
Que o Brasil começou a ser pré-Brasil como projeção humana e cultural da Europa – especificamente de Portugal – é fato inconfundivelmente histórico. Mas não explica por si só nem o aparecimento do Brasil como nova entidade sócio-cultural no mundo que se considere “moderno” – dando extensão sociológica a adjetivo tão impreciso – nem a sua consolidação em sistema nacional de convivência e de cultura.
Essa consolidação se processaria através da confluência de outras presenças ou de outras contribuições, além da européia. Um processo complexo e abrangente. O lastro de cultura e de população ameríndias não pode ser nunca desprezado. Mesmo porque subsiste. Mas a ele se acrescentaria fortemente outra presença não-européia: a negra africana.
A quase imediata, após o descobrimento do Brasil, presença negra africana no mesmo processo daria, paradoxalmente, a um elemento por algum tempo considerado inferior por historiadores e até antropólogos eurocêntricos, categoria, segundo nova e até revolucionária perspectiva, de co-colonizador do europeu ou do português. Daí ser oportuno aplicar-se essa perspectiva — e esse neologismo — à consideração daqueles relacionamentos culturais que, superando os étnicos, vêm resultando numa nação brasileira.
Lembro-me de que, ao referir-me em trabalho já remoto à contribuição cultural de negros da África, como valiosíssima para a formação brasileira, provoquei senão protestos, restrições, da parte daqueles intelectuais brasileiros, então ainda pouco inteirados do sentido antropológico ou sociológico da palavra cultura. Cultura negra? Cultura africana? Não havia. Daí protestos contra a tese da importância — importância que fui dos primeiros a procurar sugerir à base da antropologia mais científica — fora discípulo do antropólogo Franz, Boas, na Universidade de Colúmbia — da influência de culturas africanas sobre a formação da cultura que viria a definir-se como brasileira. Curioso é terem vindo algumas dessas restrições de intelectuais, depois eminentes homens públicos; e, como tal, entusiastas da causa — pois é hoje uma causa — da aproximação do Brasil das culturas — pois já são tidas tranqüilamente como culturas — negras, da África, sem que isto signifique repudio à predominância de valores culturais europeus na formação brasileira. Pois o que o Brasil pretende é ser não anti-europeu, mas o contrário de sub-europeu, com as presenças não-européias na sua população e na sua cultura, valorizadas como merecem.
Que motivos, além dos somente emocionais e apenas políticos, de momento, temos para uma maior aproximação do Brasil com a África, à base dessas afinidades culturais é assunto que precisa de ser considerado nas suas bases. E a consideração desses fundamentos leva-nos de início à revisão de conceitos de Homem e de Cultura situados que retifiquem os de Homem Abstrato e de Cultura independente de sua ecologia, como se tal cultura fosse, por sua vez, outra abstração.
O conceito de Homem Abstrato está hoje, em grande parte, substituído pelo de Homem situado. O do Homem situado no Trópico é um conceito partido do Brasil e proclamado como válido pelos mestres da Sorbonne. O Homem, que o antropólogo estuda, comporta-se, em grande parte, situacionalmente. As instituições, os estilos de vida, as culturas que o Homem, assim situado, cria, conserva, desenvolve são instituições, estilos e culturas também condicionados, quando autênticos, por situações ou por ecologias. Situações de espaço físico que se projetam sobre situações de espaço sócio-cultural, condicionando, em grande parte, não só o caráter de instituições sociais e de culturas como a sua distribuição do espaço; a posição de umas com relação a outras; a maior ou menor cooperação ou a maior ou menor competição entre elas, instituições e entre grupos culturais. Na verdade — quando autênticos — instituições e grupos sócio-culturais inter-relacionados se apresentam psicoculturais. Compreende-se assim que das jovens nações africanas várias venham desenvolvendo, nas suas formas de existir e de coexistir, os chamados socialismos africanos, em vários pontos essenciais, diferentes dos marxismos ortodoxamente russos ou chineses. Do mesmo modo se compreende que o Brasil venha, há anos, experimentalmente se empenhando em desenvolver sua própria forma política de ser democracia, sem ouvir conselhos nem do The New York Times nem de Le Monde.
As culturas negras da África, juntamente com negros antropologicamente negros, isto é, através deles, quer como indivíduos biológicos, quer, mais do que isso, como pessoas sociais ou sócio-culturais, passaram, desde o século XVI, a fazer sentir sua presença na formação de um tipo miscigenado de homem paranacional e de uma configuração pré-nacional de cultura. Essa presença foi de tal modo ativa, dinâmica, influente, africanizante, que fez dos negros vindos da África para o Brasil, embora escravos, co-colonizadores – repita-se – desta parte da América, ao lado dos europeus, máximos como fundadores de nova cultura, em face de ameríndios aqui menos culturalmente desenvolvidos que aqueles negros africanos, desde o século XVI tão presentes no Brasil.
Biologicamente presentes. Culturalmente presentes. Presentes e marcantes, atuantes, influentes, contribuintes.
Contribuindo, através da mistura física, para a emergência de novos tipos de homens e novas formas de beleza de mulher. E através da mistura cultura para novas combinações culturais, como valores ou traços de origem negra ou de procedência africana colorindo valores e traços de cultura não só indígenas ou ameríndios como vindos criativa germinalmente não só da Europa como de certas áreas culturais da África. Vindos principalmente da Europa ibérica: a mais ativamente colonizadora do Brasil e ela própria já tocada, na Europa, por influências negras ou africanas.
Daí justificar-se aquele neologismo criado por sócio-antropólogo brasileiro: co-colonização. Conceito que corresponderia à caracterização do negro africano, a despeito de sua condição de escravo, como co-colonizador do Brasil com considerável influência aculturativa sobre o ameríndio, menos desenvolvido em sua cultura do que o negro africano. Um negro africano mais atuante no processo de formação biocultural brasileira do que o ameríndio de cultura menos desenvolvida que a dele.
O fato de virem se formando no Brasil uma sociedade e uma cultura nacionais para as quais vêm concorrendo tão incisivamente o europeu e o negro africano, ao lado do ameríndio, não significa uma sociedade e uma cultura fechadas a outras presenças. Há brasileiros das mais diversas procedências étnicas e culturais. Inclusive, há cerca de meio século, a japonesa, cada dia mais presente na composição da população e no desenvolvimento de uma civilização que, sendo euro-afro-ameríndia nas suas bases e nas suas constantes, não se arreceia das contribuições que lhe possam vir de outras fontes de energia humana e de vigor cultural, antes estima tais contribuições e os seus valores. Que assim é que as civilizações já seguras de suas bases e firmes nas suas constantes se engrandecem e se enriquecem; e não fechando-se nessas bases e nessas constantes e recusando outras presenças.
As idéias sobre tropicalismo em geral, e sobre Tropicologia, em particular, que estão partindo do Brasil, acentuam ser o mesmo Brasil parte de uma complexa civilização ecologicamente tropical, espalhada pelo Oriente, pela Africa, pela América, por outras áreas. Uma civilização ao mesmo tempo transnacional e multinacional, tendo por base a ecologia tropical e formada por um conjunto de áreas, todas tropicais ou quase tropicais. E todas marcadas por presenças européias unidas ou apenas justapostas às nativas. Umas e outras viriam, inter-relacionadas, pelas suas comuns condições ecológicas e pelos seus também comuns motivos essenciais de vida, constituindo-se em conjuntos pré-nacionais e depois nacionais, através de processos desenvolvidos num tempo mais que histórico.
Desenvolvidos em espaços tropiais. Em trópicos quer úmidos, quer áridos. Assim viriam se definindo condições sócio-tropicais e motivos predominantemente tropicais de vida e de desenvolvimento social. Estudos de tais situações estão esboçados em vários trabalhos brasileiros, aparecidos recentemente. Pois no Brasil há anos funciona, numa universidade federal, a de Pernambuco, um pioneiro Seminário de Tropicologia, especializado no estudo interdisciplinar de tais problemas. Enquanto o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, pelo seu Departamento de Antropologia e pelo seu Museu Antropológico, é outro centro de estudos socio-tropicais, ao lado do que funciona na Universidade Federal da Bahia.
Os condicionamentos ecologicamente tropicais de formações sócio-culturais como a do Brasil euro-afro-ameríndio nas suas bases étnico-culturais, incluem, é claro, os que se refletem sobre suas formas de economia ou de governo, ainda em fase, quase todas de experimentação. Tal arrojo experimental não significa, no caso brasileiro, um Brasil anti-europeu e sim um Brasil apercebido de que, em vários aspectos do seu comportamento sócio-cultural, tem que ser extra-europeu. Para o que o advertem há meio século aqueles seus pensadores e cientistas sociais brasileiros, criadores de perspectivas sociológicas e antropológicas que, sem deixarem de ser ecumenicamente científico-sociais, são brasileiras, ecológicas eurotropicais nas suas aplicações ou projeções. E algumas, susceptíveis de ser utilizadas por outras sociedades nacionais em começo de desenvolvimento em espaços tropicais. Espaços onde agora madrugam ou amanhecem várias nações novas, algumas a enfrentarem problemas já enfrentados pelo Brasil euro-afro-ameríndio no seu modo de ser nação situada nos trópicos. No trópico úmido e no trópico árido.
São nações, várias das jovens repúblicas da África e do Oriente, ainda inseguras, e, por isto, por vezes anti-européias em suas atitudes e até fazendo, algumas delas, da negritude ou da amarelitude perigosas místicas racistas. A essas, como a outras nações novas, pode aproveitar a experiência de um Brasil há mais de século independente e há quatro séculos em desenvolvimento, primeiro pré-nacional, depois nacional, como civilização a procura de suas próprias formas de expressão dentro de uma ecologia tropical e sem repúdio aos valores europeus ligados incisivamente à sua base nacional. E já com uma arquitetura, com uma música, com uma pintura, com uma culinária, com um cristianismo, com um estilo de convivência, com uma higiene, com um futebol — futebol mais dionisíaco que britanicamente apolíneo — com um samba, em que se exprime, sob esses vários aspectos, um tipo de civilização novo. Novo, sobretudo, por ser mestiço, senão sempre nos sangues, nas interpenetrações de cultura. Interpenetrações que se afirmam em expressões que Blaise Cendras, o viajadíssimo Cendras, considerou tão significativas, ao destacar a cozinha brasileira como uma das três grandes cozinhas do mundo, as outras duas sendo, segundo ele, a chinesa e a francesa. Ora, a presença negra ou africana na cozinha brasileira é marcante: nos gostos como nos odores.
Sendo especificamente brasileiro, esse novo tipo de civilização é, nas suas características mais amplas, vigorosamente tropical pelo que inclui de valores europeus, quer humanos quer culturais, integrados em ambiente ou em ecologia tropical. Valores europeus desde os começos do Brasil misturados a valores mouros, indianos, ameríndios, africanos. Valores europeus, além dos ibéricos: ingleses, franceses, italianos, alemães, junto com os semitas, judeus, árabes e indianos, também presentes nos começos de civilização tão complexa. Paradoxalmente quase se poderá dizer: tão singularmente plural, além de complexa. Pois a formação do Brasil – singularidade brasileira – tem, desde seus começos, presenças as mais diversas.
A coexistência, nos começos de uma sociedade e, ao mesmo tempo, de uma cultura que viria a caracterizar-se como uma presença
moderna em espaço tropical parece ter predisposto o Brasil a combinar, de forma evidentemente feliz, presenças aparentemente inconciliáveis ou incompatíveis como a européia e, além da ameríndia, a africana. O mito dessa incompatibilidade o Brasil vem destruindo de maneira irrecusável. Tais presenças, a formação brasileira vem demonstrando que podem harmonizar-se sem uma das etnias tornar-se absoluta no seu domínio sobre as outras. Diga-se talvez melhor: com as três tendo oportunidades de se fazerem sentir, quer na formação, pela mistura biológica, de um novo tipo a princípio pré-nacional, depois nacional, de homem, quer no desenvolvimento de uma cultura também caracteristicamente nacional, complexa e abrangente no que a certa altura passou a receber, a admitir, a integrar de contribuições culturais vindas de outras procedências, além das básicas, às quais, com o tempo, se acrescentariam sem a elas se sobreporem.
Significativo neologismo antropossociológico brasileiro é, entre outros, metarraça. Significa além-raça. Pretende-se, com a expressão metarraça, definir uma consciência crescentemente típica do brasileiro como homem nacional, que tende a considerar insignificante a condição ou a origem étnica desse homem para só estimar o seu status, além de nacional, ecologicamente tropical e dinamicamente ocidental, de brasileiro. Já há anos os inquéritos oficiais brasileiros não indagam qual a cor ou qual a raça do inquirido: basta saber-se que é brasileiro. Condição – a de brasileiro – que vem sendo crescentemente identificada com a de moreno, embora essa identificação não signifique que todo brasileiro, para ser autêntico, deva ser biologicamente mestiço. O que ele não pode deixar de ser é culturalmente complexo. Moreno por ser negróide, em vários casos. Moreno por ser brunet. Moreno por ser bronzeado pelo sol tropical. Um amorenamento tão procurado pelo brasileiro crescentemente esportivo, ao se expor quase nu ao sol das praias. Procura, essa, tanto da parte de brunets para se amorenarem ainda mais quanto da parte de louros, hoje, no Brasil, como que sob a impressão de serem, como louros não amorenados pelo sol tropical, uns como intrusos na verdadeira natureza ou na verdadeira ecologia do seu país. Que brasileira, hoje, no Brasil, capricha em se conservar, como foi tendência entre suas avós, imune da ação morenizante do sol sobre sua pele de mulher imaculadamente alva? Esse amorenamento estético e ecológico pela ação do sol junta-se à morenidade por efeito da miscigenação cada dia mais extensa e mais generalizada entre os brasileiros. Morenidade mais que valorizada esteticamente, ao mesmo tempo que considerada evidência de integração do moreno, ou do amorenado, na ecologia tropical do Brasil.
O que se passa na área biológica também se está verificando na área sociológica. As evidências de presença de valores ou de influencias africanas nessa área o brasileiro de hoje não as considera desprimorosas para a sua gente.
Note-se, por exemplo, a muita africanização que vem fazendo do catolicismo, no Brasil, um culto repleto de símbolos, ritos, característicos que, sendo oficialmente os romanos, juntam à sua origem européia influências recebidas de crenças e de práticas religiosas do mais puro sabor africano. O culto da Virgem Maria que o diga, com suas assimilações do africano, de Iemanjá. Há, no Brasil, Nossas Senhoras, para os seus devotos, negras como a do Rosário ou pardas escuras como a de Guadalupe; e às quais se fazem promessas através de ex-votos que se constituíram, no Brasil, numa arte rústica de escultura em madeira e em barro, na sua maior parte muito mais africana do que européia no seu modo de ser brasileira. Também essas promessas envolvem, na sua sacralização de cores, significados simbólicos dessas cores que serão, vários deles, mais africanos nas suas implicações do que europeus. Ou do que ortodoxamente cristãos.
O maracatu é uma dança aparentemente recreativa e até carnavalesca que nos seus significados mais íntimos, representa toda uma complexa infiltração africana na religiosidade brasileira. Essas infiltrações se encontram, através dos chamados sincretismos, em não poucos dos cultos de santos que caracterizam o catolicismo praticado no Brasil: o culto de São Jorge, por exemplo. O de Santa Bárbara. O dos Santos Cosme e Damião.
Para os puristas da ortodoxia católica como um conjunto de crenças e ritos que deveriam conservar-se no Brasil rigorosamente fiéis a origens européias, tais infiltrações africanas representam degradação da religião cristã, tão presente na formação brasileira desde os seus começos. Desde aquela Primeira Missa celebrada em plena selva, com indígenas como testemunhas, por um franciscano, logo que o Brasil foi oficialmente descoberto por um almirante português devotamente católico. A verdade, porém, é que para a grande mairoia dos católicos brasileiros, seu catolicismo, com o tempo, se consolidaria, tendo infiltrações místicas e rituais de origem africana, como parte existencialmente válida do seu modo de ser religioso. Ou de ser católico.
Pois tais brasileiros não se consideram menos católicos por seguirem, nas suas práticas religiosas, assimilações de cultos ou de crenças negras ou africanas que vem colorindo, tropicalizando, deseuropeizando seu catolicismo sem que para eles, devotos brasileiros assim penetrados de influências africanas na sua religiosidade cristã, tais infiltrações venham descristianizando ou degradando o seu cristianismo. As infiltrações africanas na religião, como na culinária, na música, na escultura, na pintura de origem européia, representam não uma degradação desses valores mas um seu enriquecimento. Uma sua harmonização com a ambiência, a natureza, e a ecologia tropicais, de que aquele brasielrio de origem africana, ou de cultura tão africana quanto européia, estaria mais próximo do que o preso a heranças exclusivamente européias tanto de sangue como de cultura. Isto não só quando, atualmente, católico no seu modo de ser religioso como quando adepto de cultos afro-brasileiros, predominantemente africanos nos seus ritos sem deixarem de ser católicos em parte considerável nas suas crenças. Evidências da muita interpenetração cultural que em vários setores vêm ocorrendo no Brasil.
Os exemplos aqui apresentados de influências ou presenças africanas ou negras na biologia e na cultura do brasileiro parecem indicar quanto essas presenças ou essas influências vêm sendo fortes no Brasil. Seria inexato dizer-se que o Brasil é uma África americana, pela preopnderância em grande número de brasileiros de sangues e de heranças culturais africanas. E sendo inexata tal africanidade da gente e da cultura brasileiras, resulta artificial a pretensão de estender-se a esta parte da América a mística de uma negritude rígida que fizesse de numeroso brasileiros simples transplantes de africanos, a espera de reintegração numa espécia de África maternalmente negra que estendesse até a América brasileira direitos de posse. Que estendesse esses direitos maternalmente. Imperialmente.
O que existe de antropológica e sociologicamente válido é uma presença africana no que, no Brasil de hoje, é tanto sociedade como cultura – cultura no seu sentido antropossociológico – impossível de ser subestimada. Impossível de deixar de ser considerada como efeito biossocial do que se admita ter sido uma co-colonização africana desta parte da América, ao lado da européia. Ou da ibérica. Ou da especificamente portuguesa. Quase rival dessa colonização, tais os seus lastros biológicos e culturais, lançados desde o século XVI, para que sobre eles se desenvolvesse, como vem se desenvolvendo, um novo tipo de cultura nacional: a sociedade e a cultura brasileiras.
É evidente que a colonização européia deu a esse novo tipo de sociedade e a esse novo tipo de cultura um instrumento de intercomunicação que só uma nação européia já unificada e já literariamente desenvolvida lhe poderia ter dado: a língua. No caso, a referida língua portuguesa herdeira da nobremente, prestigiosamente, latina.
Mas é também evidente que nenhuma língua européia, das trazidas para os trópicos por europeus, vem se tropicalizando tanto como a portuguesa, no Brasil. Isto pela ação, sobre ela, que não se deve deixar de reconhecer, das línguas indígenas que a paciente erudição dos jesuítas unificou numa língua geral. E essa língua geral, por algum tempo quase tão utilizada, em certas áreas do futuro Brasil, como a própria língua portuguesa.
Mas a tropicalizaçào que a língua portuguesa vem sofrendo no Brasil – tropicalização e, em parte, deseuropeização – vem resultando principalmente de infiltrações africanas. Só secundariamente das ameríndias. E essas infiltrações africanas na língua portuguesa do Brasil vêm se projetando no desenvolvimento de uma língua literária que já não é uma sublíngua literária com relação à consagrada como academicamente castiça pelos puristas portugueses mais intransigentes. Nela cada dia se afirmam com mais desenvoltura extra-acadêmica ritmos novos ao lado de expressões novas. E esses ritmos e essas expressões, quer na sua musicalidade, quer na sua expressividade, marcados pelo que neles são origens africanas até há algum tempo de uso limitado à chamada boca do povo: plebéias; vulgares; “dizeres de negros”; restos de dizeres de escravos; sobejos de senzalas.
Com os brasileirismos em ascensão na língua literária do Brasil, começa a afirmar-se, na literatura brasileira, uma presença africana que vinha se limitando a aparecer na literatura oral. No folclore. Em sublínguas regionais.
Intensificada a ascensão que aqui se assinala, importará numa maior africanização da língua portuguesa escrita por brasileiros, sem que tal africanização venha a necessariamente importar na substituição da língua essencialmente portuguesa por outra preponderantemente africana. Apenas na maior presença africana numa língua em que os escritores, à proporção que se aprofunda sua identificação com a ecologia tropical, tendem a sentir maior necessidade de recorrerem a vocábulos vindos de línguas tropicais. Vindos de línguas africanas. Isto sem se ter que admitir prejuízo para a língua portuguesa como língua transnacional e não apenas nacional do Brasil ou de Portugal. Pois é lícito admitir-se que venham a tornar a desenvolver-se, no antigo Ultramar Português, línguas literárias estruturalmente portuguesas, grandemente penetradas de tropicalismos. Especialmente de africanismos. E muito particularmente — se tal vier a ocorrer — de brasileirismos cada vez mais presentes na língua portuguesa.
Ao que nos levam as considerações aqui esboçadas em torno da importância da presença negra ou africana na sociedade e na cultura brasileiras e na língua portuguesa do Brasil? Levam-nos a sugerir que tal presença vem resultando na formação, entre os brasileiros, quer de uma gente crescentemente, embora não exclusivamente, morena nos seus característicos cromáticos, quer crescentemente extra-européia, sem prejuízo do essencial de sua europeidade, na sua cultura. A místicas como a de um arianismo segregador ou a de uma negritude também segregadora opõe-se, no Brasil, a tendência para sínteses, quer biológicas através da miscigenação, quer sociológicas, através da interpenetração de culturas, nas quais as presenças não-européias são, em certos setores, já tão marcantes como as européias. O Brasil de hoje tende, cada dia mais, a orgulhar-se da presença africana, ou negra, na biologia e na cultura da sua gente. Tende a reconhecer no negro ou no africano um seu co-colonizador.
Tende, mais, a considerar sua independência, quer política, em particular, ou apenas econômica, quer sócio-cultural, em geral, o resultado menos de uma súbita descolonização que de uma precoce autocolonização: autocoIonização sendo outro neologismo sociológico criado por brasileiro. Tal autocolonização ter-se-ia processado em face de um poder europeu colonizador menos forte ou menos tentacular, nas suas expressões oficiais, que os demais poderes europeus colonizadores. Menos capaz de impor sua vontade e seus cânones à gente colonizada. Mais inclinado a transigir com essa gente, deixando-a sabiamente autocolonizar-se. Deixando o africano agir a seu lado como co-colonizador do Brasil.
Função — a de colonizar — a que ao português já se associara, por vezes superando o europeu puro, o mestiço euro-ameríndio: daí a grande ação bandeirante na formação brasileira. A do negro já ladino, ou abrasileirado, não seria menor, quer ao lado do português, quer, sob vários aspectos, superando-o, dada aquela sua fácil adaptação de nativo do trópico africano ao trópico brasileiro notada pelo inglês Bates. Adaptação que lhe permitiu, em terras palustres do Brasil, uma atividade ou um esforço difícil de ser desenvolvido pelo europeu colonizador, quando puramente europeu. É o que procuro demonstrar ter sucedido no interior mais remoto do Brasil — Mato Grosso — nas páginas em que recordo — em livro publicado em Lisboa e pouco conhecido entre nós, sobre a incorporação ao sistema lusotropical de sociedade e de cultura de tão importante área a ação colonizadora, nesse trecho de ainda áspero território brasileiro, do Governador Luís de Albuquerque de Mello e Cáceres. O qual, para tanto, se serviu grandemente não só de ameríndios como, de modo notável, de negros africanos. Esses negros africanos desempenharam aí função co-colonizadora, tendo realizado trabalhos contínuos e sistemáticos de que os ameríndios, ainda nômades e sem constância nos seus esforços, mostraram-se quase de todo incapazes. Em alguns casos, até negros fugidos — ou quilombolas — revelaram-se co-colonizadores do Brasil, raptando mulheres de tribos indígenas e cristianizando essas mulheres e os filhos afro-ameríndios. E com eles co-colonizando espaços virgens de terras tropicais que se tornariam nacionalmente brasileiras.
Por aí se explicam certos característicos da formação brasileira que a distinguem das de outras populações que de coloniais passaram a nacionais. Que lhe permitiram ser mais criativamente extra-européia quando ainda, sob todos os aspectos oficiais, colônia. Mas que, paradoxalmente, por isto mesmo, nunca deixaram que o brasileiro se extremasse em gente violentamente antieuropéia, por lhe faltarem de todo oportunidades para aquela, desde os séculos coloniais, gradual, porém incessante, autocolonização.
A qual se exprimiu de modo tão veemente na escultura do chamado Aleijadinho: uma escultura ecológica e, no seu estilo, mais extra-européia que passivamente subeuropéia. Com arrojos esteticamente tropicais. Arrojos esteticamente brasileiros.
Brasileiros e africanos negros, têm, neste setor — o estético — especialíssimas afinidades que os situam à parte do comum das relações que prendem latino-americanos – mesmo os das regiões tropicais da América: as mais marcadas pela presença africana — à África negra. Lembremo-nos de que chegou a haver na Nigéria – por exemplo — um estilo brasileiro não só de arquitetura como de decoração com figuras de bichos e de plantas tropicais brasileiras, sem considerarmos os brasileirismos que ali se comunicaram à culinária, às danças, aos folguedos, às devoções religiosas, ao folclore. Esse contágio não foi apenas um episódio no tempo histórico: o abrasileiramento de umas tantas formas de vida e de arte na Nigéria foi profundo. Sobrevive. Vive. Vive em criações em que a espontaneidade africana se tem servido de sugestões brasileiras para se afirmar ou reafirmar de um modo em que as duas forças — a brasileira e a africana — se têm encontrado como fontes da mesma tropical idade além de essencial, existencial. Assunto que o autor deste ensaio tem procurado versar em ensaios e até em livros: no intitulado “Problemas Brasileiros de Antropologia”, por exemplo.
É singularmente significativo da capacidade brasileira de elaborar cultura nacional valorizadora de contribuições de outras procedências além da européia — no caso a africana — o fato de ex-escravos já abrasileirados na sua cultura ou seus descendentes, terem se tornado, de regresso à África, uma presença culturalmente abrasileirante na mesma África, através do reencontro de ex-africanos com uma terra de origem cuja cultura passariam a modificar, a alterar, a abrasileirar, orgulhosos dos seus brasileirismos culturais. Como significativo é o fato de produtos caracteristicamente brasileiros como a mandioca e o caju terem se integrado, graças à mediação não só portuguesa como, em vários casos, à de africanos abrasileirados de volta à África, noutras culturas situadas em áreas tropicais e africanas.
Desses reencontros, têm resultado expressões nigerianas de arte em que ao brasileiro é fácil descobrir alguma coisa que, para ele, não é exótico: é, senão ancestralmente, colateralmente brasileiro. Por outro lado, parece quase certo do artista nigeriano de hoje que, em grande parte da arte brasileira mais autêntica, encontre alguma coisa de familiar, de fraterno, de aparentado com o que, para ele, é arte. Caso talvez único tanto no relacionamento da cultura africana com a já brasileira como no relacionamento da cultura já brasileira com as negras ou africanas.
Em certo artista jovem da Nigéria, de hoje, Jacob Afolabi, críticos estrangeiros têm encontrado parentesco com o espanhol Miró. Amor com amor se paga — poderia dizer-se. Pois não é exato de outro grande da pintura espanhola, Picasso, que desenvolveu sugestões de arte africana, comunicando-as a outros artistas europeus e de outras partes do mundo? Mas não só com os Picassos serão, por sua vez, as afinidades desse e de outros artistas africanos: também com artistas brasileiros a seu modo Picassos pela sua sensibilidade a sugestões africanas ou negras.
A esse propósito é curioso não ter se verificado no Brasil, tão impregnado de influência africana, mas no Uruguai apenas tocado, como aliás a Argentina, dessa influência, a primeira explosão em pintura nacional de país íbero-americano de temas africanos tratados com arte ao mesmo tempo que com amor. Esse pintor — anterior aos Di Cavalcanti, aos Cíceros Dias, a outros brasileiros voltados para assuntos afro-brasileiros, em constraste com a quase relutância do insigne Cândido Portinari — arianismo? — em abordá-los, foi Figari. Um Figari que dificilmente se compreende ter sido, nesse seu pioneirismo, um uruguaio e não um brasileiro. Em compensação, quando Di Cavalcanti se rendeu à magia de temas afro-brasileiros, o fez com o ardor de quem pretendesse recuperar tempos perdidos não só por ele, em particular, como coletivamente, nacionalmente, por toda a pintura brasileira.
A verdade é que, entretanto, os brasileiros, de modo especialíssimo, têm sido sempre uns predispostos à compreensão intuitiva e à assimilação amorosa de valores africanos; e, mais que outros não-africanos, inclinados a ser mediadores, também amorosos e intuitivos, entre o Ocidente lógico (e de que nós próprios não nos sentimos inteiramente parte) e a África e a Ásia antes intuitivas do que lógicas, quer nas suas artes, quer nos seus saberes. A essa afinidade geral, é que, no caso das relações do Brasil com as Áfricas negras e da receptividade brasileira a influências africanas, acrescentam-se outras que, através de uma série de contactos específicos, poderão aprofundar, particularizar, aprimorar a afinidade geral.
A essa altura, observe-se a vantagem que vem sendo para o Brasil a presença, na sua população e na sua cultura, da iletrados e até analfabetos, em parte descendentes de escravos africanos dos velhos dias patriarcais que, como reserva de gente intuitiva, espontânea, telúrica em sua adaptação ao trópico, vêm retardando uma demasiadamente rápida, além de absorvente, europeização e racionalização da gente brasileira, com sacrifício de suas aptidões mágicas. Aptidões mágicas comunicadas a tantos brasileiros e até portugueses de gênio ou talento artístico ou literário — um deles o português Eça de Queirós e, entre os brasileiros, um Sílvio Romero, um José Lins do Rego, um Jorge de Lima — pela “bá” negra já abrasileirada e pessoa íntima da família nas antigas casas-grandes. É ainda tema para estudo específico de um aspecto nada insignificante da influência negra ou africana, no Brasil, o estudo da figura da “bá” de sua influência na criação de meninos brasileiros a vida toda sob essa influência analfabética e neutralizante de convencionalismos lógicos de sua alfabetização ou do seu aburguesamento.
Explica-se pela ação dessas heranças psicoculturais sobre não poucos brasileiros, que artistas negros africanos, como atualmente Afolabi, tenham, para esses brasileiros, mais ainda que semelhanças com Mirós espanhóis, parentesco com os brasileiríssimos Cíceros dos Santos Dias, Emilianos Di Cavalcanti, Lulas Cardoso Ayres. Daí encontrar-se num Adebisi — que deliberadamente revive na sua arte o chamado estilo brasilo-nigeriano — semelhança também com a cerâmica brasileira pintada: a Francisco Brennand, por exemplo. Isto sem nos esquecermos do que vibra de africano — um africano abrasileirado ou pernambucanizado — em pinturas de vários brasileiros, além das já célebres de Di Cavalcanti: um Di Cavalcanti famoso pela glorificação de belezas de mulher brasileiramente negróides. Africanos conhecedores das artes da África, isto é, das formas autenticamente africanas de representação, interpretação e simbolização da figura humana, de animais e de plantas dos trópicos, parecem sentir essa africanidade nesses e noutros artistas brasileiros: quer nos já consagrados, quer em vários dos mais jovens e já notáveis como, dentre os modernos. Adão Pinheiro. Brasileiros, também com algum conhecimento das artes antigas e atuais do seu país, sentem de imediato o que há de brasileiro em artistas africanos da África.
A afinidade entre duas artes — a brasileira e a africana — mostras de desenhos de negros africanos no Brasil só fazem confirmá-la. Já o recordei, aliás, a propósito de uma dessas mostras. São, por isto, exposições em que, ao interesse puramente estético, se junta o psicocultural ou sócio-cultural. Justifica-se assim que um antropólogo cultural, ou um sociólogo, sem pretensão alguma a crítico profissional de arte ou, específico, de pintura, se interesse por tais exposições. O que faz como sapateiro que não sai do seu ofício.
O que é preciso, em casos dessa natureza, é que os críticos, mais especificamente críticos de arte, não se considerem donos absolutos do que se apresente como pintura, escultura ou arquitetura, pretendendo negar a outros especialistas o direito de comentarern essas artes, sob outros critérios e de outros pontos de vista, de modo a poderem ampliar os apenas estéticos e até aprofundar as implicações dos estéticos. O critério antropológico-cultural é decerto um desses critérios e sob ele é que principalmente deve ser considerada a influência africana sobre o Brasil num setor — o estético — que se comunica com outras áreas psicoculturais.
Recorde-se desse critério que foi sob tal critério que se iniciou, no Brasil, a moderna valorização da presença africana na cultura brasileira, em geral, e em algumas das artes — uma delas, a pintura — em particular, sem nos esquecermos de datar daí a defesa sistemática do exercício dos cultos afro-brasileiros como cultos legitimamente religiosos e não “bruxaria” ou, “feitiçaria” ou “atentado à moral e aos bons costumes”. Defesa de que se tornou lúcido campeão o psiquiatra pioneiramente social Ulysses Pernambucano de Mello, discípulo do brasileiro fidalgamente negro que foi no Rio de Janeiro, o mestre de psiquiatria Juliano Moreira e fundador — Ulysses — de uma Escola Brasileira de Psiquiatria de valor reconhecido e proclamado pela Sorbonne. Se hoje é livre o exercício desses cultos e também o da um tanto sofisticada “umbanda”, deve-se essa liberdade religiosa de interesse para o relacionamento cultural do Brasil com a África ao pioneiríssimo Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife, no histórico Teatro Santa Isabel, em 1934. Dele resultaram dois volumes contendo os significativos estudos então apresentados: “Estudos Afro-Brasileiros” e “Novos Estudos Afro-Brasileiros”. Teve o Congresso do Recife o aplauso do antropólogo Franz Boas, a participação do norte-americano Melville J. Herskovits, o da inglesa Nancy Cunard e foi noticiado em primeira página pelo The New York Times como importante iniciativa brasileira de interesse cultural. Também empolgou sociólogos e antropólogos franceses. Tornou-se grande entusiasta dessa iniciativa recifense, retificadora da africanologia de Nina Rodrigues – para quem o negro africano era biológica e sociologicamente inferior – o professor Roger Bastide, podendo-se atribuir ao seu contacto com africanologistas do Recife seu interesse por assuntos afro-brasileiros, o ter produzido estudos como o que consagrou “a psicologia do cafuné”, mostrando-se senhor de subtilezas afro-brasileiras.
Parte do Congresso Afro-Brasileiro que se reuniu no Recife em 1934 foi uma exposição, sob a direção dopintor Cícero Dias, no Teatro Santa Isabel, não só de trabalhos de arte afro-brasileira como de evidências da semelhança entre várias expressões artísticas brasileiras — na música, na culinária, no traje popular de algumas regiões, nas jóias e adornos pessoais e não apenas na pintura.
Essa exposição organizada — acentue-se — pelo pintor Cícero Dias e por mim teve a colaboração de então estudantes universitários como Clarival Valadares e Mário Gibson Barbosa: o Mário Gibson Barbosa que, como Chanceler do Brasil, se notabilizaria pelo seu empenho em aproximar culturas negras ou africanas da brasileira. Dela — exposição — resultou que se interessassem pela arte africana, como fonte de arte lusotropical -como diríamos hoje — vários artistas brasileiros, então jovens. Um deles, o hoje consagrado Lula Cardoso Ayres. Note-se que data do Congresso Afro-Brasileiro do Recife a mais efetiva retificação da perspectiva da estudo da influência africana no Brasil em que se notabilizara na Bahia o sábio Nina Rodrigues, para quem, entretanto — repita-se — o negro africano, tão presente na formação brasileira, teria sido um inferior biológico. Erro em que também incorreu o insigne Euclides da Cunha. Em que incorreram outros brasileiros ilustres. Note-se mais que, do mesmo Congresso, data o maior pendor de Mestre Emiliano, que dele participou, por assuntos afro-brasileiros em contraste com a quase indiferença por tais assuntos de Cândido Portinari: o Portinari das virgens e anjos sempre nordicamente louros e róseos. O Portinari incapaz de compreender o Cristo negro do “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna: pioneirismo também partido do Recife, algum tempo depois daquele Congresso no qual s influência africana no Brasil foi considerada em vários dos seus aspectos. O Recife à pioneiridade do congresso de 34 acrescenta o fato atualíssimo de vários dos seus artistas mais jovens e mais vibrantemente renovadores serem pintores e escultores que, sensíveis às raízes africanas das artes plásticas brasileiras, vêm exprimindo essa sensibilidade em muitas das suas produções, o mesmo sendo certo das produções de compositores recifenses, de renome hoje nacional, como Capiba e Nelson Ferreira; e dos empenhos de quantos vêm animando no carnaval pernambucano as suas inspirações em grande parte africanas: maracatu, frevo, passo. Ainda o mesmo se pode dizer do que vem ocorrendo, nesses setores, na Bahia e no Rio de Janeiro: este, centro do afro-brasileiríssimo samba.
Ambiente, o dessa sensibilidade de modernos artistas brasileiros às raízes africanas das artes brasileiras de pintura, de escultura, de música — para não falarmos na culinária — favorável a uma “negritude” que viesse separar, no Brasil de hoje, aquele brasileiro que seja descendente, principalmente de negro africano, dos brasileiros de outras origens étnicas e culturais, tornando-o um “negro brasileiro” semelhante ao “negro americano”? Significativamente, de modo algum. Apenas, da parte de uns poucos, retoricamente. Insista-se em que aumenta no brasileiro esta consciência: a de ser um povo, quase todo, moreno — a palavra moreno, para designar nuances de cor escura de pele, tendo hoje, entre os brasileiros, uma elasticidade tal de sentido, que inclui os próprios pretos. Além do que, não são raros — repita-se — os alvos e louros que se deixam queimar pelo sol quente das praias brasileiras para se tornarem, por esse meio, antes ecológico do que biológico, morenos. Daí o também brasileiro conceito de metarraça, ou de além-raça, segundo o qual não interessa ao brasileiro, como tipo nacional de homem, apurar exatidões de origem ou de situação étnica, dado o fato de tais exatidões não afetarem nele sua condição nacional. O que não significa que não se valorizem projeções, quer de tipo físico, quer culturais, africanas ou negras, sobre característicos estéticos de figura física do homem ou, principalmente, da mulher brasileira, ou sobre sua cultura: suas artes, suas preferências de paladar, seus modos de sorrir, de rir, de andar. Pois em todos eles se observam, no Brasil, influências africanas ou negras.
Para um antropólogo ou sociólogo, tais casos são interessantíssimos: ilustram a realidade de não ser a raça nem a cor que fazem, especificamente, de um homem, isto ou aquilo, mas o que há de íntimo nos gostos, nas tendências, nas motivações — inclusive as artísticas — desse indivíduo, seja ele branco ou preto, africano ou europeu de origem. O contrário é também verdadeiro: o caso de Cruz e Sousa que o diga. Foi ele uma vocação para europeu surgida no Brasil, sob a pele de negro. Realizou-se através do “simbolismo” europeu, exaltando névoas, brumas e alvuras de paisagem, como na Nigéria atual, a pintora Georgina, nascida na Europa com vocação africana, está se realizando através de símbolos negro-africanos por ela empregados na sua arte empática.
Note-se que são numerosos os símbolos de origem africana ou negra que se abrasileiraram. Entre eles, a figa. O balangandã. Símbolos com seus sentidos místicos. Ou com atrativos estéticos sobrepostos a tais sentidos.
Também, peças de vestuário de mulher além de — como já foi recordado — adornos: brincos, colares, pulseiras. E ainda preferências por cores que, de litúrgicas ou místicas, vêm passando a estéticas e vêm sendo assimiladas pelos brasileiros e até estilizadas por modistas elegantes: a chinelinha baiana, o turbante, o cabeção picado de rendas, o xale. Notem-se também preferências por cores vindas de ligações dessas cores com motivos religiosos. O caso também de ervas, plantas, frutos, a alguns dos quais certa mística afro-brasileira vem atribuindo virtudes afrodisíacas.
Enquanto ao folclore brasileiro não faltam idealizações ou caracterizações de figuras africanas, das que se incorporaram à sociedade patriarcal brasileira — principal chave para a interpretação do ethos e da formação brasileira — como a “mãe preta”, a “bá”, a mucama, a “baiana”, a “mulata inzoneira”, o “negro velho”, o malungo, o “moleque”, o “crioulo”, o “negrinho do pastoreio”: inspiração, esse negrinho do pastoreio, de uma das obras-primas da literatura brasileira. Como inspirações de obras-primas da literatura foram a “escrava Isaura” (Bernardo Guimarães), “o mulato” (Aluísio de Azevedo), “o bom crioulo” (Isaias Caminha), o “moleque Ricardo” (José Lins do Rego), “o Balduíno” (Jorge Amado), ‘essa negra Fulô” (Jorge de Lima). Isto sem nos esquecermos das já recordadas “mulatas” — por vezes negras das chamadas puras, tão raras há anos no Brasil sempre miscigenado – do pintor Emiliano Di Cavalcanti que, como artista múltiplo, as sentia como artista literário e não somente como artista plástico. Mais de uma vez conversamos sobre o assunto, Di Cavalcanti e eu, devendo ser sempre notado que seu interesse pelos tipos afro-brasileiros de mulher veio de sua participação num congresso afro-brasileiro do Recife, em 1934, quase tão revolucionário da cultura brasileira como a Semana de Arte Moderna de São Paulo.
Da presença africana na música brasileira — presença que se constituiu numa influência tão atuante — já muito se tem dito. Mais do que de qualquer outra influência africana sobre expressões brasileiras de sensibilidade e de arte.
Não se faz sentir apenas sobre a música popular — na qual viriam a se notabilizar, nos nossos dias, o pretíssimo Patrício, Donga e Pixinguinha, – mas sobre a erudita em alguns dos seus mais altos aspectos. Sobre Heiton Villa-Lobos sugestões ou inspirações musicais africanas se projetaram; ao lado daquelas ameríndias por ele tão valorizadas como germinalmente brasileiras, nas suas criações. Menos, talvez, no seu caso, atuaram as sugestões africanas que as inspirações ameríndias, mas de modo algum foram as africanas recusadas por ele, como parece as ter recusado o aliás negróide no sangue, Carlos Gomes, de “O Guarani”. A romantização de origens ameríndias de valores brasileiros se extremou, a certa altura, no Brasil, em prejuízo do reconhecimento de ancestralidades negras ou africanas tanto culturais como biológicas. O que parece ter se verificado em virtude da presença do negro africano ter coincidido, no Brasil, com a sua presença sob a condição socialmente degradante de escravo, formando-se, em torno do ameríndio, o mito de se ter revelado demasiadamente altivo e, nessa atitude, superior ao negro, para conformar-se com a condição servil. A verdade sociológica a esse respeito é a ter o negro africano vindo para o Brasil, como escravo, procedido, em grande parte, e em alguns casos de modo notável, de áreas ou de condições de cultura superiores às dos ameríndios. Mais capazes, portanto, que ameríndios apenas nômades e pouco mais que caçadores ou pescadores, de trabalho contínuo e sistemático na agricultura, como se revelaria o africano sob aquela forma dê mãos e pés” de lavouras ou de agro-indústrias, como a da cana-de-açúcar: lavouras e agroindústrias que sem eles não teriam florescido, permitindo a consolidação sócio-econômica do Brasil. Ainda aqui o negro africano agiu como co-colonizador.
Nem para negritudes nem para branquitudes tem havido, no Brasil, ambientes ou condições. As vocações têm procurado, livremente, entre os brasileiros, meios ideais para se expressarem e sem realizarem conforme suas tendências, dentro de culturas flexíveis e à revelia de etnias rígidas, É por afinidades psicoculturais que o Brasil e a África apresentam semelhanças em várias expressões de cultura que as caracterizam. Isto sem nos esquecermos de que vem favorecendo essas semelhanças, além de experiências históricas, tanto de brasileiros como de africanos — e o mesmo se poderia dizer de goeses e de outros luso-orientais situados em áreas tropicais e como tal merecedores de atenções brasileiras — sua comum ecologia a tropical. São uns e outros, gentes situadas em áreas tropicais hoje sob impactos modernizantes. De modo geral vêm sabendo conciliar, africanos e brasileiros, através de configurações nacionais diversas, a ecologia tropical – sob tantos aspectos condicionante do modo de brasileiros como africanos e orientais tropicais já serem ou estarem se tornando, em suas culturas, além de nacionais, modernos — e a modernização em que se vêm empenhando. é preciso que a modernização não os torne antiecológicos, separando-os das fontes naturais das suas culturas nacionais — inclusive dos seus desenvolvimentos — ou artificializando suas expressões nacionais de cultura em puros arremedos de modernismos triunfantes em áreas econômica e tecnologicamente avançadas e inclinadas a dominarem culturas ainda em desenvolvimento. Nada de se repelirem europeísmos e até ianquismos culturais susceptíveis de ser adaptados a condições não-européias.
Mas nada de se tornarem brasileiros de origens tanto européias como não-européias, em sua culturas, subeuropeus ou subianques. Orientação particularmente válida, também, para as novas nações africanas que porventura encontrem em antecipações brasileiras exemplos a ser aproveitados nas suas novas situações sócio-culturais.
O autor deste ensaio, escrito especialmente para um número de “Cultura”, dedicado à África, embora em alguns trechos se repita — tanto tem escrito sobre o assunto — já foi acusado de negrófilo como de um feio pecado: o de dar relevo, segundo seus acusadores, exagerado, à presença negra na população e na cultura brasileiras. Não lhe parece ter resvalado em tal exagero e sim procurado restituir a justas proporções o que, naquela presença, vinha sendo, por não poucos “arianistas”, ocultado ou diminuído. Isto sob uma como mística arianista, por algum tempo tão proeminente, em alguns meios, no nosso país; e tão empenhada em negar ou diminuir a importância da contribuição negra ou africana para o desenvolvimento do Brasil em novo tipo de sociedade e de cultura, desviado de obsessões subeuropéias. Tanto que eminente sociólogo, talvez, senão dominado, afetado, por essa mística, chegou a anunciar um livro que daria, ao que parece, o Brasil como crescentemente “ariano”, isto é, crescentemente e triunfalmente caucasóide, considerando-se insignificante a presença africana ou negra em sua população ou em sua cultura. Para o que teria que processar-se um tal aumento de europeus brancos na população brasileira e de impactos europeizantes sobre a nossa cultura que os remanescentes de brasileiros de sangue negro se reduziriam a insignificâncias desprezíveis. Além do que, para deixar-se de reconher a influência negra sobre a formação brasileira seria preciso desconhecer a presença em altas expressões brasileiras de inteligência e de saber, de distinção nas artes e nos esportes, de descendentes de negros africanos como os Josés do Patrocínio, os Cruz e Sousa, os Lima Barreto, os Rebouças, os Teodoro Sampaio, os Julianos Moreira, os Pelés, para não falar nos Aleijadinhos, nos Josés Maurício, nos Machado de Assis, nos Cotejipe, nos Nilo Peçanha, nos Tobias Barreto, nos Antônios Torres, nos Dom Silvério.
Estudos no sentido de uma sistemática reabilitação da presença negra no Brasil terão contribuído para que aquele ilustre autor não viesse a publicar tão anticientífico quanto antibrasileiro pronunciamento, impressionado como teria ficado com a revelação, por esses estudos — inclusive os dos antropólogos Roquete Pinto e Fróis da Fonseca — de certas deficiências na sua apologia, talvez mais retórica que antropológica, do arianismo, num país como o nosso.
Intelectualmente honesto, como era, esse mestre brasileiro de ciência social, se ainda vivesse, renunciaria ao seu arianismo quase místico e aceitaria, senão totalmente, em parte, a realidade de ser o Brasil uma sociedade que opõe a fantasias como a arianista — tanto como a da negritude — a consciência de sua morenidade metarracial: uma situação concreta para a qual vêm concorrendo tanto a presença do negro, ao lado da do ameríndio, como a do europeu, na crescente formação de uma complexa população nacional profundamente miscigenada. E tão enriquecida de qualquer coisa como “vigor híbrido” por essa generalizada mistura de sangues como por uma igualmente complexa interpenetração de culturas — entre elas, as de origem africana — a formarem, no espaço brasileiro, novas combinações e estas a se constituírem numa já inconfundível civilização nacionalmente brasileira tanto quanto arrojadamente moderna, situada em trópicos tanto úmidos como áridos.