por Pedro Abib
discípulo do mestre João Pequeno
“Quando eu aqui cheguei, a todos eu vim louvar…”
Deve ter sido assim que mestre João Pequeno de Pastinha cantou quando chegou em terras de Aruanda, lugar mítico, para onde se acredita vão os mortos…que nunca morrem…como se crê em África !
Assim como João cantou tantas vezes essa mesma ladainha, onde quer que chegava para mostrar sua capoeira angola aos quatro cantos desse mundo … êita coisa bonita de se ver ! O velho capoeirista tocando mansamente seu berimbau e cantando…dando ordem pra roda começar. Os privilegiados que puderam compartilhar com João Pequeno esses momentos, sabem bem do que estou falando.
Foram 94 anos bem vividos. Aposto que daqui não levou mágoa, não era de seu feitio. Inimigos também não deixou, sua alma boa não permitiria. Partiu como um passarinho, leve e feliz, como vão todos os grandes homens: certeza de missão cumprida.
Deve estar agora junto de seu Pastinha, naquela conversa preguiçosa, que não precisa de muita palavra, que só os bons amigos sabem conversar. E seu Pastinha deve estar orgulhoso de seu menino. Fez direitinho tudo que ele pediu: tomou conta da sua capoeira angola com toda a dignidade, fazendo com que ela se espalhasse mundo afora. A semente que seu Pastinha plantou, João soube regar e cultivar muito bem. Êita menino arretado esse João Pequeno !
Nunca foi de falar muito. Só quando era preciso. E nessa hora saía cada coisa, meu amigo ! Coisa pra se guardar na mente e no coração. Mas muitas vezes falava só com o silêncio. Do seu olhar sempre atento, nada escapava. Observava tudo ao seu redor e sabia a hora certa de intervir, mostrar o caminho certo, quando achava que o jogo na roda tava indo pro lado errado. Até gostava de um jogo mais apertado, aquele em que o capoeira tem que saber se virar pra não tomar um pé pela cara. Mas só quando via que os dois tinham “farinha no saco” pra isso. João nunca permitiu que um jogador mais experiente ou maldoso abusasse de violência contra um outro inexperiente ou mal preparado.
Quando tinha mulher na roda então, aí é que o velho capoeirista não deixava mesmo que nenhum marmanjo tirasse proveito de maior força física ou malandragem pra cima de uma moça menos avisada no jogo, coisa comum na capoeira que é ainda muito machista. A não ser que ela tivesse como responder à provocação na mesma moeda. E era cada bronca quando via sujeito tratar mal uma mulher na roda, misericórdia ! Afinal, ele sempre dizia que “a capoeira é uma dança, então como é que você vai tirar uma mulher pra dançar e bater nela ?”. Não pode !
A simplicidade, a generosidade, a humildade, a paciência, a sabedoria, a fala mansa e contida, sem necessidade de intermináveis discursos de auto-promoção, eram as características mais notáveis de João Pequeno, próprias de um verdadeiro mestre. Muito diferente do que se vê na grande maioria dos mestres da atualidade, diga-se de passagem, que auto-proclamam sua importância para a capoeira, que fazem e acontecem… que batem no peito e falam, falam, falam.
Nesses quase 20 anos de convivência muito próxima a João Pequeno, tive o privilégio e a oportunidade de aprender algumas das mais caras (e raras) lições de vida e humanidade, que jamais teria aprendido em qualquer universidade, nem sequer poderia obter através de algum diploma qualquer que fosse. Esse homem analfabeto que nunca frequentou os bancos da escola, foi responsável por um legado de ensinamentos que orientam milhares e milhares de pessoas em nosso país e também no mundo todo, que reconhecem o valor de João Pequeno como um dos mais importantes mestres da cultura popular e da tradição afro-brasileira de todos os tempos.
João Pequeno representa a voz de todos os excluídos, marginalizados, oprimidos que através da capoeira encontraram uma forma de lutar e resistir, manter viva a tradição de seu povo e dar legitimidade a uma cultura que foi sempre perseguida e violentada nesse país. O velho capoeirista soube conduzir muito bem sua missão de liderança, responsável pela recuperação da capoeira angola a partir da década de oitenta do século passado, quando após a morte do Mestre Pastinha, se encontrava em franca decadência. Quando se instalou no Forte Santo Antonio em 1981, João iniciou a partir de sua academia um movimento importantíssimo de revalorização da capoeira angola, fazendo com que ela se difundisse e se consolidasse como expressão da tradição popular afro-brasileira, presente hoje em mais de 160 países.
Mas João Pequeno nunca precisou ficar afirmando isso por aí, nem tampouco dizer da sua importância para a capoeira. João é considerado um dos grandes baluartes da capoeira angola, mas ele nunca saiu proclamando isso para ninguém. Na sua humildade nos ensinou que o reconhecimento do valor do mestre tem que vir dos outros, da comunidade da qual faz parte e nunca do próprio discurso muitas vezes carregado de vaidade e arrogância. João simplesmente jogava e ensinava sua capoeira. E por isso era grande !
E de lá, das terras de Aruanda continuará a iluminar os caminhos de todos nós.
João Pequeno não morreu !
* Pedro Abib (Pedrão de João Pequeno) é capoeirista, sambista, cineasta e professor da Universidade Federal da Bahia
me lembro como se fosse ontem a primeira vez que pude ver mestre João Pequeno numa roda de capoeira. Anos 90 não existia youtube, a gente via os mestres quando via mesmo : se esgueirava, ponta do pé pra no meio da multidão ver os mestres nos eventos de capoeira. E o mestre veio a convite do mestre Pintor, do grupo Bantus, junto com seu Brandãozinho e outras figuras de Salvador. Ainda – ou já – havia uma certa animosidade entre os grupos de regional, muita gente não podia se encontrar em roda que a mesma terminava em briga. Mas o Paulo Pintor recebeu todos muito bem, franqueou a acesso ao mestre a todo mundo, foi muito bacana. Principalmente com gente como a gente, que era "fiote" e não ofereceria nenhum perigo a ninguém. E foi mágico, sem demagogia, porque o mestre era pedra bruta,emanava dele a energia da capoeira pura, da capoeira plena, a gente sentia a capoeira no ar, quase palpável. Mas algumas pessoas ,talvez, não se sensibilizavam tanto com isso. Na hora da roda, com o mestre liderando depois de ter jogado barbaramente, dois jogadores se estranharam de um jeito feio, fútil batalha de egos, desrespeitoso sem educação, coisas daquele tempo. A violência só não foi mais feia porque o mestre, provavelmente incomodado e querendo ensinar a seus discípulos, simplesmente levantou do banquinho em que tocava e cantava e foi andando na direção contrária à dos brigões, mudando o centro da roda de lugar. Ao invés de parar a roda, apartar os brigões, quebrar a energia, tirar os jogadores da roda, o mestre tirou a roda dos jogadores. Genial. Muita gente não entendeu o que estava acontecendo e demorou a seguir o mestre na sua movimentação, inclusive os que jogavam. Sim, os caras insistiam em ficar "jogando" e se agarravam o tempo todo, aquela coisa esquisita. Foi risível ver a cara de espanto dos dois quando, quase se beijando, olham pra trás e percebem que a roda mudou de lugar . . . Literalmente, "tiraram eles" … Foi risível não, foi engraçado pra baralho. E não pense vc que o mestre fez isso para humilhar os caras, não . . . ensinar sim, tripudiar não … Porque o Mestre João Pequeno era tão mestre que tinha prazer em falar, ensinar . . . ele sabia de sua missão,e com a sabedoria, a galhardia e a generosidade que só os mestres têm a cumpria com brilho nos olhos. Você que está lendo até agora pode estar pensando que eu convivi muito com o mestre pra falar dele com essa intimidade. Ledo engano. Vi o mestre ao vivo algumas vezes, ele nem me conheceu pra poder me reconhecer. Mas assim como outros grandes, ele viveu entre nós e qualquer pessoa que se interesse um pouco sobre antropologia sabe que ele deixa um legado inestimável pra nossa cultura. . . Ele e outros que já se foram, outros tantos que continuam aí, esses mestres realmentes foram, são e serão sempre uma pérola para a história desse país, representantes de um tempo e de um lugar mítico onde valores como caráter, lealdade, hombridade, respeito, inteligência, poesia, mandinga, abundavam entre os homens, a ponto de serem "gastos" em vadiações de beira de cais, largos, praças . . . virando, até, teatrinho pra gringo. Por isso cabe a nós, simples mortais, agradecer a eles todos. Brigado, mestre. "Vai com Deus, descansa em paz"