Igisi oju ki o ri ọtá re – abra seus olhos e veja o seu inimigo
A Diáspora Bantu
Em 1452, meio século antes da descoberta do Brasil, os portugueses iniciaram a construção do Forte de Arquim, nas praias da Guiné Africana, entrando em contacto com povos litorâneos de raça negra islamizados, a quem por analogia com suas experiências anteriores na Península Ibérica, chamaram de “Mouros”. Mas as relações iniciais de escambo e comércio logo degeneraram em escravismo, pois que os “Mouros” da Europa eram seus inimigos e lá estavam sendo derrotados. Relatos dessa época dizem que: -“… desde o meados do século XV, o Forte de Arquim, na Guiné, dava por ano setecentos a oitocentos escravos”.
Entretanto, na agenda comercial ocidental, foi somente em 1471, que os comerciantes negreiros portugueses, Santarém e Escobar, ampliaram o tráfico de escravos e já em 1483, El Rey D. João II de Portugal mandou construir, nesse litoral, um forte que estava destinado a ser o grande empório do tráfego negreiro internacional: o Forte São Jorge da Mina. Os proventos portugueses foram de tal ordem, que toda esta região costeira africana tornou-se mundialmente conhecida pelo nome de Costa dos Escravos. No início, estes escravos eram obtidos pela dizimação de povoados litorâneos pacíficos e desprotegidos ou então pela troca de produtos, tais como o sal, tabaco, cachaça, aldodão, etc, em mesquinho comércio com os reinos interioranos, muitas vezes inimigos entre si, como os reinos de Monomotapa, Manicongo, Angola, Ghana Velho e Mali.
Com o passar do tempo, a Cruz confundiu-se com o Punho da Espada e ajudou a conquistar os reinos de Angola e do Manicongo, através de pseudoconversões religiosas e de subseqüentes intrigas palacianas, com a elevação aos tronos desses reinos de governantes títeres, tal como D. Afonso I, “rei” negro do novo Congo “cristão”, os quais escravizaram primeiramente seus inimigos e, após, seus próprios súditos. Nunca haverá desculpa para a escravidão, mas as guerras em África, apesar de fortemente instigadas e mantidas pelas potências européias, também em luta entre si, começaram pela ganância dos governantes locais em obter os lucros fáceis do comércio negreiro, até que todos eles fossem destronadospela Colonização.
E, assim, por quase dois séculos, afluíram ao Brasil principalmente as “peças” escravas de etnia Banto, do Congo e de Angola, aqui conhecidas como “negros minas”, denominação que indicava aos compradores apenas o local de embarque das “peças”, fosse qual fosse a origem étnica ou regional da qual os cativos proviessem, os quais iriam criar e manter as riquezas dos ciclos da cana de açucar, do couro e o da mineração aurífera e diamantífera brasileira.
Desta forma, os negros de etnia Banto, por mais de duzentos anos, foram dispersados pelo interior de um país de dimensões continentais como o Brasil, em uma diáspora em que se perderam grande parte de suas crenças religiosas ancestrais, só sobrevivendo a lembrança de um Ser Supremo – Zambi – e de um Panteão Divino composto pelos M’Inkisi e, ainda, a saudade e a crença em seus Antepassados semi-divinizados. Isto porque, primeiramente, no Brasil, muito poucos os “negros minas” cultuaram seus Antepassados e só puderam praticar seus cultos em comunhão com os cultos dos antepassados indígenas brasileiros – os Ra-Angás – e dos Seres Sobrenaturais Indígenas-cristianizados, os Encantados, cultos estes aonde encontraram guarida em suas fugas para a liberdade, desta comunhão nascendo o culto do “Catimbó” e o “Batuque” na área rural. Mais não puderam fazer por que eram levados ao tormento do trabalho escravo nas minas auríferas e diamantíferas, aonde a taxa de sobrevida baixou à 4 anos.
Somente havia escapatória dessa sina na fuga para seus “Quilombos” ou “refúgios” nas serras e sertão, que existiram por todo o Brasil, maiores ou menores, conhecidos ou só a poucos anos registrados, saudando eu aqui a memória de todos eles na figura de Aqualtune, princesa Banto que fundou a “Cerca Real do Macaco”, capital dos Quilombos dos Palmares, quilombo que cresceu e multiplicou-se, durando por cerca de 200 anos, na Serra do Barriga, nas Alagoas, Nordeste do Brasil, derrotado mas jamais vencido na figura de seu último rei Zumbi, que suicidou-se para não se render.
Posteriormente, com a chegada de maiores contingentes de origem Banto alocados também nas áreas urbanas e suburbanas, o “Batuque” rural evoluíu para o “Candombe” citadino – o terreiro onde se praticavam os cantos e danças – já agora permitidos por seus “senhores” para combater o “banzo”, sintoma físico do problema psico-somático da ânsia de liberdade, que quase sempre conduzia ao suicídio dos “negros minas”. E, foi para se protegerem que os “Candombes” Bantos acobertaram os seus “M’Inkisi” ou Divindades Inkicês com manto exterior dos “Santos” da Contra-Reforma Católica praticada no Brasil à época, nascendo com o tempo um real sincretismo religioso índigena-banto-cristão, mas, mesmo assim, os Congos e Angolas jamais se esqueceram totalmente de sua identidade natal.
Desses sentimentos de apego do escravizado à sua terra de origem, mesmo que ele fosse africano em segunda ou terceira geração, Joseph Ki-Zerbo (1972) dá-nos uma nítida amostra, com a seguinte referência : -“O culto dos defuntos, tão característico da religião dos Africanos, para quem os mortos não vivem, mas existem mais fortes do que neste mundo, tomou neste contexto um significado comovente e até sublime: acreditava-se que os mortos, agora libertados do látego do patrão tirano, iam fazer em sentido inverso a infernal travessia do Atlântico. Vagando sem entraves para o “continente bem amado”, iam juntar-se à assembléia venerada dos antepassados, lá longe, do outro lado da “grande água, no país da Guiné”.
Desta nostalgia patética, é testemunha a seguinte melodia :
-“Deus de Angola, Deus de Angola!
Tu ensinarás três palavras de oração,
três Padre-nossos e três Ave-marias,
que permitam ao Africano,
voltar um dia à Guiné!”-
E, na letra desta singela melodia-oração, ouve-se o eco do processo de assimilação e sincretismo que durou 300 anos (Sec. XVI ao Sec XVIII) com o “Candombe Banto” fundindo os cântigos dos Deuses M’Inkisi com liturgia dos Santos Católicos (esquecidas que estavam as fórmulas rituais em língua africana), também juntando ao culto de seus Antepassados o culto dos Encantados dos descendentes dos Tupis-Guaranis e que, no Sec. XX, após outros dois sincretismos, daria origem a um novo conceito religioso que, embora com profundo embasamento africano, iria refletir todas as esperanças dos diversos povos aqui exilados, massacrados ou espoliados de seus direitos: a Umbanda, um verdadeiro sincretismo inter-religioso.
A Diáspora Sudanesa
Séculos mais tarde da fundação do Forte de Arquim, os Portugueses construíram um novo forte em terras litorrâneas do povo Hweda, que os mercadores de escravos logo traduziram por Ajuda, daí o nome de Forte da Ajuda, por onde começou o fluxo de escravos de etnia sudanesa para o Brasil. A princípio, eram muito poucos e resultavam das guerras internas promovidas pelo Oba (rei) Aho do povo Fon, o qual iniciou um processo de independência política contra os Ulkumy (nome que a confederação de reinos sudaneses dava à si própria e constante do mapa do europeu Snelgrave – 1734) e em 1670 fundou o reino do Dahomey, atacando as regiões circunvizinhas do reino federado sudanês do Ketu.
Um dos sucessores do Oba Aho, o Oba (rei) Agadja (1708-1732), à falta de mais guerreiros, criou um Corpo de Exército composto pelas “Mulheres do Leopardo” e, com elas como elemento decisivo em batalha, em 1724 atacou o reino costeiro de Allada, fazendo mais de 8.000 prisioneiros. Tal fato fez com que o Forte de Ajuda subisse imediatamente para o topo do “ranking” dos polos exportadores de escravos e despertou a cobiça de seus congêneres holandeses, franceses e ingleses, pois que já os portugueses e espanhóis começavam a perder sua hegemonia nas rotas marítimas africanas. Mesmo assim, um grande contingente de escravos sudaneses afluíu ao Brasil E em 1726, Francisco Pereira Mendes, último comandante português do Forte de Ajuda, menciona em seus relatórios enviados à Bahia (Brasil), os ataques de represália dos Ayós (reino federado sudanes da cidade de Oyo) contra os territórios de Adagja, o Oba do Daomé, que havia atacado Allada em 1724. Mas, mesmo sob ataque, este Oba Agadja, fortemente apoiado pelos franceses, partiu para a conquista da cidade de Glehue na região costeira, o que fez em 1727, conquistando assim uma saída para o mar e habilitando o Daomé ao tráfico negreiro internacional.
Aumentou, então, a “exportação” daomeana de escravos Ulkuky, provavelmente da região do Reino de Ketu e que primeiramente foram “exportados” para o Caribe, na América Central, como o demonstra o nome pelo qual estes escravos ficaram conhecidos em Cuba, o de “Lucumi”, nome este muito próximo do verdadeiro: Ulkumy. Em 1728, um relatório do mesmo comandante português, Francisco Pereira Mendes, incólume e imparcial em seu comércio negreiro, nos informa do andamento desta guerra: -“Três reis do interior, poderosíssimos inimigos do Daomé, chamados Ayó Brabo, Acambú e Ahcomi, dando-se as mãos o cercaram.”- Ou seja, os reis sudaneses confederados invadem o recente Reino do Daomé e estas lutas perduram até 1743, quando foi celebrado um tratado de paz, mantendo o Daomé suas posições conquistadas, mas pagando um tributo em armas de fogo, munições e escravos aos Ayós, ou seja, à agora também separada federação da cidade de Oyo (a Velha).
E, assim, como é da própria natureza humana, seja ela branca, vermelha, amarela ou negra, também a Federação da Cidade de Oyo, tomou gosto pelos lucros fáceis do tráfico negreiro, no qual já vinham operando através das cidades costeiras da agora desmembrada Confederação Ulkumy, mormente em Badagri, Adja Popo, Eko, sendo que recém fundadas ciades de Porto Novo e Onin. O entreposto de Onin tornar-se-ia internacionalmente conhecido pelo nome de “Lagos”, à semelhança do primeiro entreposto de escravos de Portugal que havia sido estabelecido na cidadezinha de Lagos, perto do promontório de Sagres. E, assim, estabeleceram-se dois grandes pólos de exportação de escravos, em substituição ao Forte de São Jorge da Mina: pelo porto Daomeano de Glehue (antiga Ajuda) eram exportados os Lucumis (sudanêses de Ketu, Ilesa e Oyo); pelos portos de Badagri, Porto Novo e Lagos eram exportados os “Jejes” (Daomeanos) e os “Malês” (Peules, Fulbas e Haussás), estes últimos produto de capturas no outro extremo interiorano da confederação de reinos sudaneses.
Em 1777, Olivier Montaguèrre, novo comandante francês do antigo forte português de Ajuda, agora Forte São Luís de Gregory, reclamava de suas perdas à Companhia das Índias: -“Os “Aiaux” (Ôyó) fornecem escravos em Porto Novo, Badagri, Épé e aqui (Ajuda/Uidah), mas quase não houve escravos fornecidos pelos Dahomets.”-
A situação tornou-se grave para os traficantes franceses que resolveram intervir a favor de seus fornecedores Daomeanos fornecendo-lhes munições, mais armas de fogo de excelente qualidade e instrutores militares de seu uso, os quais lançaram os Daomeanos em uma campanha de guerrilhas-relâmpago contra os Ulkumy. Oito anos depois, em 1788, um novo comandante francês, Gourg, relata: -“Os Dahomets destruíram completamente um território de Nâgós!”- E, novamente, um ano depois, em 1789: -“O Rei do Dahomet invadiu profundamente as terras Ânâgós.”- E é assim que os termos “Nâgó” e “Ânâgós” aparecem pela primeira vez nas correspondências internacionais para designar aos escravos fornecidos pelos Daomeanos e que foram, sem dúvida, capturados à Confederação de Ilu Ulkumy, especialmente entre os Reinos de Ketu, Ijesa e parte de Oyo. O auge destes conflitos deu-se em 1821, quando o Rei Daomeano Guezo (1818-1858), cognominado o “Búfalo” por sua agressividade, infligiu pesada derrota à Federação Oyo, na batalha de Pawingan, chegando às portas da cidade de Oyo, mas recuando em seguida, devido a um acordo firmado com uma nova potência guerreira que vinha se formando lentamente ao norte e nordeste dos territórios da Confederação Ulkumy: os Haussás Islamizados, no Brasil conhecidos por “Malês”.
E, assim, foram os Haussás que, em 1827, riscaram a ancestral cidade de Oyo dos mapas, através da “conversão” ao Islamismo do Emir de Ilorin (antiga província de Ilu Ulkumy). Com a queda de Oyo, as cidades de Ogbomoso, Koyi, Owo e Ijebu também foram aniquiladas pelos Islamitas e suas populações sobreviventes procuraram refúgio em Ile Ife, a Cidade Santa dos Ulkumy que, absorvendo-as, transformou-se em um imenso campo de refugiados. Para aliviar esta situação, fundaram-se duas novas cidades: Ibadan e Modakeke. Tornando-se insustentável a existência dos refugiados na cidade de Modakeke, estourou uma revolta que a destruiu e que estendeu a destruição à Cidade Santa de Ifé. Assim, da antiga Confederação Ulkumy, transformados os Ketu e os Oyo em “Nâgós” com o sentido pejorativo de “lixo humano” dado pelos Daomeanos; os Ife e os Ijesa transformados em “Yarba” e/ou “Yarriba”, designação que os Haussás deram aos seus inimigos derrotados, a qual foi adotada posteriormente pelos Ingleses sob a forma “Yoruba” e que em língua portuguesa veio a dar o termo “Iorubá”, só restou a Federação da Cidade de Benin (a Antiga), por estar situada no meio destas duas frentes de batalha.
E apenas uma vez, nesse conflito todo, somente o Oba Nossa, rei do Benin, mostrou-se preocupado com o destino de seus compatriotas na escravidão e, em 1807, enviou ao Brasil uma embaixada tendo à frente o Oba de Onin (Lagos) que era seu vassalo. A vinda desta embaixada muito preocupou ao Conde da Ponte, o então Governador da Bahia (Brasil), que se assustou com uma possível rebelião dos “… Nâgós, tão numerosos nesta cidade.” Não deixava de ter razão, pois é desta época o ciclo de insurreições negras na Bahia (Brasil) (1800/1830), aonde os habitantes de raça branca não passavam de 5% da população. Mas, na verdade, nem sob o peso da escravidão os infelizes negros não se haviam dado conta de quem era o seu verdadeiro inimigo, tendo as todas as insurreições negras fracassado, pois “Nàgôs”, “Malês” e “Gegês” as denunciavam entre si. Em 1861, os Ingleses, a pretexto de acabar com o tráfico negreiro, intervieram diretamente no conflito ocupando a cidade de Lagos (Onin) e destronando Kosoko, o último Oba de Lagos, isolando desta forma a própria cidade de Benin, que era interiorana.
Em 1890, o general francês, Dodds, tomou a ferro e fogo a capital Daomeana, Abomey, destronando o último rei Daomeano, o Oba Behanzin, numa lógica conclusão da França de que seus antigos aliados (o Príncipe-presidente da França, Luís Napoleão Bonaparte, havia firmado um tratado de “amizade” com o Oba Guezo) não lhe serviam para mais nada, uma vez que extinguia-se o tráfico negreiro. Em 1897, também numa lógica conclusão de política interna, o Benin compreendeu o rumo dos novos tempos e preferiu “optar” por transformar-se em um Protetorado Britânico e, assim, colocou frente à frente o Leão Britânico e as Verdes Bandeiras de Allah, numa jogada política desesperada que, em 1904, resultou na conquista das cidades Islâmicas de Kano, Sokotô e Zana pelos ingleses, evidentemente apoiados por inúmeras “tropas nativas” do Benin que, desta forma, acabou por triunfar sobre os seus segundos arqui-inimigos, os Haussás Islamitas. Assim, no mínimo, desde 1724 (queda da cidade vassala de Allada) até 1904, portanto por cerca de quase 200 anos, a Confederação Ulkumy guerreou ferozmente, primeiro em uma e depois em duas frentes de combate, perdendo seus cidadãos em campos de batalha ou então capturados e escravizados em Cuba, Haiti, Antilhas Francesas, sul dos EUA, Brasil e, isto, sem se falar nos que foram enviados às metrópoles européias e asiáticas.
Não há como estimar a perda populacional específica dos Bantos e dos Sudaneses, mas para um cálculo geral sobre a perda populacional africana, B .E. Worth, em sua obra “History of West Indies”, cita que segundo estimativas do padre jesuíta Monens: -“No mínimo, pode-se estimar que foram reduzidos à escravidão 10 milhões de pretos e, sem exagerar, tem que se contar por cada um destes pretos, cinco outros abatidos em África ou que morreram no caminho ou no mar.”- E foi desta forma que, quase no raiar do nosso atual século XX, extinguiram-se civilizações autóctones de homens guerreiros, comerciantes empreendedores, religiosos e artistas que, apenas por serem os seus integrantes homens de raça negra, não têm a sua história corretamente ensinada em nossas escolas, apesar de fazerem parte integrante da verdadeira “raça brasileira” e do que muito que o “braço escravo” do negro (e do indígena brasileiro) fez na construção da Pátria Brasileira e na defesa de nossa soberania contra os Franceses, os Holandeses, os Portugueses e os Latinos-Americanos, saudando eu aqui a Henrique Dias e seu Batalhão Negro, mas não podendo esquecer-me de Felipe Camarão e sua Legião Indígena. E se expusemos aqui toda esta história sucinta de guerras africanas geradas pela maldita ânsia pelo “ouro negro”, é porque queremos ser bem compreendidos quando dissermos que os efeitos colaterais religiosos da Diáspora Negra, no Brasil, não se resumiu aos Negros Sudaneses e tão somente ao conceito de Obatala.
Não, também foram perseguidos aqui Tupã dos Tupy-Guarani, Zambi dos Bantos, Allah dos Malês e, também, Jeovah dos Cristãos Novos, porque já no Sec. XVI por aqui também “oficiou” o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição.
Mas todos os Credos exprimentaram aqui, em Pindorama, uma Purgação Histórica e uma Renascença Sincrética que, hoje, a 500 anos do início de sua “colonização, explode em vitalidade, beleza e segurança em seus novos valores adaptados aos novos tempos e à nova terra, porque finalmente aqui, no cadinho da intolerância da escravidão, aprenderam a reconhecer ao seu inimigo interno: a ganância pecuniária de seus próprios dirigentes e a intolerância racial e religiosa entre seus próprios irmãos de côr! Também, todas as insurreições negras no Brasil fracassaram porque os que cultuavam os Vodun (Jejes) e os que cultuavam os Orisa (Nàgôs) denunciavam entre si as tentativas de levante de cada lado e, os que cultuavam a Allah, denunciavam a todos. Mas, os “Nàgôs” aqui chegaram em grande número nos meados do século XIX e foram alocados nas cerranias das maiores cidades costeiras brasileiras, (Recife, Salvador, Rio de Janeiro) e, dado à proximidade da costa, puderam manter animado tráfico comercial entre o Brasil e a África. Portanto, num se mesclaram entre si e muito menos sicretizaram sua religião com a dos indígenas brasileiros como os bantos o fizeram:
- Os “Malês” islamizados foram quase totalmente exterminados em 1830/1835;
- Os “Jejes” sempre foram em menor número de escravizados, pois eram a facção vencedora nas guerras africanas e os sobreviventes estavam mais concentrados no Norte do Brasil, mormente em São Luís do Maranhão, onde existiu o único espaço religioso Daomeano puro – a “Casa dos Minas” – um reduto de resistência cultural dos Daomeanos, fundada pela tia do rei do Daomé, o Oba Guezo (1818-1858), exilada que foi pelo rei antecessor, o Oba Adondonzan (1797-1818), transportada por navios franceses, com seus familiares, servidores e bens materiais, tendo desembarcado no Brasil, não como escrava, mas na qualidade de refugiada política livre. Mas, talvez cansados de tantas guerras, os Vodun da Casa dos Minas não procuraram guerrear com os Orisa Yoruba e sua pouca ação de proselitismo, em território brasileiro, restringiu-se à partes do Maranhão, do Amazonas e do Piauí.
- Mas, ao contrário, os Ulkumy-Ayó-Nâgós-Yariba, enfim, os doutamente chamados “Iorubás” no Brasil, chegaram aqui em “tal número e em relativo pouco espaço de tempo”, como bem remarcou R. Bastide (1953), que puderam reestruturar e impor a sua cultura, a sua religião, a sua ritualística e a sua língua aos outros negros já aclimatados na Bahia, Recife e, mais tarde, Rio de Janeiro.
Assim sendo, ao sincretismo inicial inter-religioso Indígena-Banto-Cristão iria soprepor-se muito mais tarde (Sec. XIX), ou, se quiserem, mais recentemente, a ritualística dos “Nâgós” dos Candomblés de Nação, primeiramente substituindo os Inkices pelos Orixás, mas “vestindo” ainda o manto protetor do sincretismo daqueles com os Santos Católicos. Vê-se, desta forma, que a supremacia cultural e religiosa “Nàgô” cristalizou-se na absorsão temporária da fórmula do “Candomblé Banto”, transformando-os em “Candomblé de Nação Sudanesa”, instituição que não existia como tal na África e que refletiu a necessidade de reorganização da Liturgia e da Ritualística africana face a nova realidade da escravidão, reincorporando os Cultos dos Awon Orisa Patrilineares, dos Regionais e até dos inter-territoriais aos Cultos dos “Ôrìxás” brasileiros de mais viva lembrança entre os fiéis sobreviventes, cuja nova ordem de grandeza e/ou precedência cristalizou-se no “Xiré” ou “Ordem de Precedência” em que são saudados, nos cânticos e danças, os “Orixás” que ainda são cultuados, “à moda africana”, no Brasil.
Mas até nesta Renascença religiosa, a marca dos conflitos em África ficou indelevelmente impressa no bojo de suas manifestações, com os descendentes dos Sudaneses separando-se em “Nações”, como sejam as de “Kétu”, “Ìjêxá”, “Nâgó”, “Ôyó” e “Ifé” e é sintomático a revolta e decepção dos escravizados com alguns de seus “Orisa”, visível na mudança de características específicas dos que aqui foram novamente cultuados. Já não se invocavam, dos seiscentos Imolê ou Divindades, aqueles que eram símbolo da fecundidade ou da prosperidade agrícola, mas sim aqueles Orisa da Guerra, da Justiça e da Punição: avultaram-se assim, no Brasil, os “Ôrìxás” Ôgúm, Xângó e o Imolê Êxú. Também repudiaram ao culto dos Antepassados Bantos e dos Encantados caboclos, isolando deles o seu próprio culto dos Antepassados – o dos Onile e dos Baba Egun – cultuando a estes últimos em um novo tipo de “Terreiro”, o “Terreiro-li-ese-egun” ou “Terreiro-aos-pés-dos-Antepassados” e, de 40 anos para cá, começam a repudiar o “manto” protetor dos Santos Católicos sobre os Orixás, por que no Brasil a atual Constituição garante a liberdade de culto, graças a Deus, Tupã, Iavé, Zambi, Obatalá, Jeovah e Allah!
Este repúdio dos Orisa Nàgôs aos Inkices Bantos, aos Encantados Tupy-Guarani e aos antepassados de outrem, geraram a separação e a criação dos “Candomblé de Congo-Angola”, o “Candomblé de Caboclo”, o “Omoloco” e, também, à Macumba Urbana no seio da qual os Antepassados de todos se fundiram com o Espiritismo de Allan Kardec, mas que, entretanto, jamais repudiaram aos Orixás. Mas louvo aqui a Renascença dos Cultos Africanos Sudaneses, que nos legaram o conceito dos Orixás, com a sua coragem em manter sua religião; a tenacidade em seguir uma ritualística onerosa sob condições econômicas e financeiras adversas; a habilidade em não reviver os conflitos africanos do passado, mas transportá-los para o terreno poético das lendas dos “Ôrìxás”, mesmo deturpando os Ese Itan Ifa (os Versos dos Contos de Ifá), o que foi incontestavelmente superior à falta de perspicácia da atuação de seus governantes em África, os quais sustentaram uma guerra tempestuosa em que não podia haver ganhadores negros.
É por isso que nós, os cultuadores do Esoterismo de Umbanda, ao contrário do que muitos pensadores brancos pensaram e propagaram, pregamos que os cultos religiosos de orígem Indígena-Cristãos-Afros não são somente uma desestruturação de suas sociedades religiosas ou um resultado simplista da Diáspora Negra internacional. Subjacente a isto, no Brasil, elas são o exemplo da fortíssima solidariedade humana que estruturou, na desgraça da escravidão, a esperança imorredoura de identidade e liberdade de todas aquelas raças dizimadas ou escravizadas na Era do Colonialismo de qualquer nacionalidade, cujo efeito deletério ainda se faz sentir colateralmente no Apartheid, nos Guetos e nas Favelas.
E no caso particular do Orisa Orunmila-Ifa, mesmo que seu culto no Brasil tenha entrado em declínio e desaparecido publicamente dos Candomblés, sendo o Da Ifa Fun do Opon e o Dapele do Opele substituídos pelo “sacudir” dos Owo Merindilogun ou “Jogo dos 16 Búzios”, mais próprio das “Filhas de Ôxúm”, algumas delas maravilhosas “Mães de Santo” que, dizimados os homens, tomaram à si a sobrevivência do Culto dos “Ôrixás” no Brasil à qualquer custo, muitas vezes, ao custo de si próprias, ainda assim não podemos aceitar que, após 500 anos de lutas, sangue, suor e lágrimas dos nossos antepassados brasileiros pelo direito de professar livremente o que restou de suas ancestrais crenças particulares, sejam elas de origens “puras”, sincréticas ou sintéticas, devamos nós (Babalaôs ou Tatas de Inkicê, Babaogês ou “Pais-de-Santo”, Iyalorixás ou “Mães-de-Santo”) prestar obediência a um “Sacerdote Supremo Sudanês” para podermos A DA IFA FUN ou “CRIAR IFÁ PARA” este povo de agora, aqui e neste momento atual! Porque se eu encampar, a nível religioso do Brasil atual, a vontade de “poderosos” de qualquer origem, não estarei reconhecendo meu verdadeiro inimigo e acabarei por trair a memória de todos aqueles de qualquer raça que um dia combateram os preconceitos raciais e religiosos.
E é por isso que, mesmo sendo hoje da raça branca e Elu Ninu Ife ou Estrangeiro na Cidade Santa de Ifé, que atualmente todos somos, respeitosamente atrevo-me à invocar Igi, o Ser Espiritual Deslocado em que nos tornamos em nossa cegueira espiritual:
“Igisi oju ki o ri ọtá re”
“Abra seus olhos e veja o seu inimigo!”
E, provavelmente, veremos a nós próprios !!!
Mana, Axé e Benção
Baba Oberefun Si Okojumide