Nascimento Grande

Extraído/adaptado de um texto de Severino Barbosa, publicado na Revista Capoeira #04

Seu nome era José Antônio do Nascimento, mais conhecido em Recife como Nascimento Grande. Nunca recusou uma luta e nem mesmo perdeu alguma. Era alto, robusto, moreno, bigodes longos, cortês, usava invariavelmente um chapelão desabado, capa de borracha dobrada no braço, pesava aproximadamente 130 quilos e usava sua tão famosa bengala, que conforme ele: “uma bengalada derrubava um homem, duas desacordavam e três matavam”.

Honesto, embora protegido dos chefões e políticos da época, mesmo tendo consciência de sua força, nunca provocava os adversários e jamais tomava a iniciativa das lutas. Preferia ser insultado para depois revidar e esganar o inimigo. Isso o fez famoso e odiado pelos “brabos” de Recife. Alguns diziam que ele tinha o corpo fechado, pois foi atacado por diversas vezes por disparos de arma de fogo a queima roupa e nunca foi ferido. Tudo graças a um amuleto com um “Santo Lenço” que ele carregava.

Segue a descrição de algumas lutas travadas por ele:

  • Antonio Padroeiro, ajudado por mais sete homens foi abatido por um tiro de arma de fogo que foi tomada dele por Nascimento Grande. Após levar um tiro, Antonio Padroeiro foi espancado até a morte.
  • Pajéu, o maior malfeitor do bairro de São José, atacou Nascimento Grande com uma “peixeira”, mas foi desarmado, recebeu uma surra e foi obrigado a vestir-se de mulher, sob gargalhadas do público.
  • Certa vez, Nascimento foi cercado por uma viatura. Subiu então em um telhado e dele pulou sobre a viatura atacando os soldados com bengaladas, obrigando-os a fugir.
  • A maior luta de Nascimento Grande foi contra João Sabe Tudo, que era seu mais feroz adversário e um dos valentões mais temidos de Recife. Os dois evitam se encontrar, só que em um Domingo de manhã se esbarraram perto da ponte do Largo da Paz. Não houve tempo pra discussões e a briga começou. João Sabe Tudo de “peixeira” na mão e Nascimento Grande com a bengala. Golpes zuniam no ar, e foi se formando a multidão, com grupos de curiosos que aplaudiam ora um ora outro combatente. A Cada rasteira, negaça os aplausos choviam. E os dois valentões avançavam um contra o outro, ou recuavam estrategicamente, ambos ligeiros e valentes. Mas as horas do dia foram passando e a batalha continuava, cada vez mais violenta, sem vencido sem vencedor. E os dois lutadores, em fugas, avanços e negaças, foram descendo a Rua Imperial. A multidão acompanhando. Atingiram a Praça Sérgio Loreto. Avancaram mais e de repente chegaram a Matriz de São José. Entraram na Igreja, e a multidão barulhenta atrás deles. Foi quando apareceu o Vigário da Matriz, indignado. Gritou para os dois valentões, feridos e extenuados, e os fez parar. Mais ainda, intimou que respeitassem a casa de Deus e exigiu que apertassem as mãos. Os dois inimigos, embora desconcertados, obedeceram. Foi essa a última luta de Nascimento Grande e João Sabe tudo, os maiores valentões do Recife Antigo.

Nascimento Grande morreu velho, aos 90 anos.

A Diáspora Negra no Brasil

Igisi oju ki o ri ọtá re – abra seus olhos e veja o seu inimigo

A Diáspora Bantu

Em 1452, meio século antes da descoberta do Brasil, os portugueses iniciaram a construção do Forte de Arquim, nas praias da Guiné Africana, entrando em contacto com povos litorâneos de raça negra islamizados, a quem por analogia com suas experiências anteriores na Península Ibérica, chamaram de “Mouros”. Mas as relações iniciais de escambo e comércio logo degeneraram em escravismo, pois que os “Mouros” da Europa eram seus inimigos e lá estavam sendo derrotados. Relatos dessa época dizem que: -“… desde o meados do século XV, o Forte de Arquim, na Guiné, dava por ano setecentos a oitocentos escravos”.

Entretanto, na agenda comercial ocidental, foi somente em 1471, que os comerciantes negreiros portugueses, Santarém e Escobar, ampliaram o tráfico de escravos e já em 1483, El Rey D. João II de Portugal mandou construir, nesse litoral, um forte que estava destinado a ser o grande empório do tráfego negreiro internacional: o Forte São Jorge da Mina. Os proventos portugueses foram de tal ordem, que toda esta região costeira africana tornou-se mundialmente conhecida pelo nome de Costa dos Escravos. No início, estes escravos eram obtidos pela dizimação de povoados litorâneos pacíficos e desprotegidos ou então pela troca de produtos, tais como o sal, tabaco, cachaça, aldodão, etc, em mesquinho comércio com os reinos interioranos, muitas vezes inimigos entre si, como os reinos de Monomotapa, Manicongo, Angola, Ghana Velho e Mali.

Com o passar do tempo, a Cruz confundiu-se com o Punho da Espada e ajudou a conquistar os reinos de Angola e do Manicongo, através de pseudoconversões religiosas e de subseqüentes intrigas palacianas, com a elevação aos tronos desses reinos de governantes títeres, tal como D. Afonso I, “rei” negro do novo Congo “cristão”, os quais escravizaram primeiramente seus inimigos e, após, seus próprios súditos. Nunca haverá desculpa para a escravidão, mas as guerras em África, apesar de fortemente instigadas e mantidas pelas potências européias, também em luta entre si, começaram pela ganância dos governantes locais em obter os lucros fáceis do comércio negreiro, até que todos eles fossem destronadospela Colonização.

E, assim, por quase dois séculos, afluíram ao Brasil principalmente as “peças” escravas de etnia Banto, do Congo e de Angola, aqui conhecidas como “negros minas”, denominação que indicava aos compradores apenas o local de embarque das “peças”, fosse qual fosse a origem étnica ou regional da qual os cativos proviessem, os quais iriam criar e manter as riquezas dos ciclos da cana de açucar, do couro e o da mineração aurífera e diamantífera brasileira.

Desta forma, os negros de etnia Banto, por mais de duzentos anos, foram dispersados pelo interior de um país de dimensões continentais como o Brasil, em uma diáspora em que se perderam grande parte de suas crenças religiosas ancestrais, só sobrevivendo a lembrança de um Ser Supremo – Zambi – e de um Panteão Divino composto pelos M’Inkisi e, ainda, a saudade e a crença em seus Antepassados semi-divinizados. Isto porque, primeiramente, no Brasil, muito poucos os “negros minas” cultuaram seus Antepassados e só puderam praticar seus cultos em comunhão com os cultos dos antepassados indígenas brasileiros – os Ra-Angás – e dos Seres Sobrenaturais Indígenas-cristianizados, os Encantados, cultos estes aonde encontraram guarida em suas fugas para a liberdade, desta comunhão nascendo o culto do “Catimbó” e o “Batuque” na área rural. Mais não puderam fazer por que eram levados ao tormento do trabalho escravo nas minas auríferas e diamantíferas, aonde a taxa de sobrevida baixou à 4 anos.

Somente havia escapatória dessa sina na fuga para seus “Quilombos” ou “refúgios” nas serras e sertão, que existiram por todo o Brasil, maiores ou menores, conhecidos ou só a poucos anos registrados, saudando eu aqui a memória de todos eles na figura de Aqualtune, princesa Banto que fundou a “Cerca Real do Macaco”, capital dos Quilombos dos Palmares, quilombo que cresceu e multiplicou-se, durando por cerca de 200 anos, na Serra do Barriga, nas Alagoas, Nordeste do Brasil, derrotado mas jamais vencido na figura de seu último rei Zumbi, que suicidou-se para não se render.

Posteriormente, com a chegada de maiores contingentes de origem Banto alocados também nas áreas urbanas e suburbanas, o “Batuque” rural evoluíu para o “Candombe” citadino – o terreiro onde se praticavam os cantos e danças – já agora permitidos por seus “senhores” para combater o “banzo”, sintoma físico do problema psico-somático da ânsia de liberdade, que quase sempre conduzia ao suicídio dos “negros minas”. E, foi para se protegerem que os “Candombes” Bantos acobertaram os seus “M’Inkisi” ou Divindades Inkicês com manto exterior dos “Santos” da Contra-Reforma Católica praticada no Brasil à época, nascendo com o tempo um real sincretismo religioso índigena-banto-cristão, mas, mesmo assim, os Congos e Angolas jamais se esqueceram totalmente de sua identidade natal.

Desses sentimentos de apego do escravizado à sua terra de origem, mesmo que ele fosse africano em segunda ou terceira geração, Joseph Ki-Zerbo (1972) dá-nos uma nítida amostra, com a seguinte referência : -“O culto dos defuntos, tão característico da religião dos Africanos, para quem os mortos não vivem, mas existem mais fortes do que neste mundo, tomou neste contexto um significado comovente e até sublime: acreditava-se que os mortos, agora libertados do látego do patrão tirano, iam fazer em sentido inverso a infernal travessia do Atlântico. Vagando sem entraves para o “continente bem amado”, iam juntar-se à assembléia venerada dos antepassados, lá longe, do outro lado da “grande água, no país da Guiné”.

Desta nostalgia patética, é testemunha a seguinte melodia :

-“Deus de Angola, Deus de Angola!
Tu ensinarás três palavras de oração,
três Padre-nossos e três Ave-marias,
que permitam ao Africano,
voltar um dia à Guiné!”-

E, na letra desta singela melodia-oração, ouve-se o eco do processo de assimilação e sincretismo que durou 300 anos (Sec. XVI ao Sec XVIII) com o “Candombe Banto” fundindo os cântigos dos Deuses M’Inkisi com liturgia dos Santos Católicos (esquecidas que estavam as fórmulas rituais em língua africana), também juntando ao culto de seus Antepassados o culto dos Encantados dos descendentes dos Tupis-Guaranis e que, no Sec. XX, após outros dois sincretismos, daria origem a um novo conceito religioso que, embora com profundo embasamento africano, iria refletir todas as esperanças dos diversos povos aqui exilados, massacrados ou espoliados de seus direitos: a Umbanda, um verdadeiro sincretismo inter-religioso.

A Diáspora Sudanesa

Séculos mais tarde da fundação do Forte de Arquim, os Portugueses construíram um novo forte em terras litorrâneas do povo Hweda, que os mercadores de escravos logo traduziram por Ajuda, daí o nome de Forte da Ajuda, por onde começou o fluxo de escravos de etnia sudanesa para o Brasil. A princípio, eram muito poucos e resultavam das guerras internas promovidas pelo Oba (rei) Aho do povo Fon, o qual iniciou um processo de independência política contra os Ulkumy (nome que a confederação de reinos sudaneses dava à si própria e constante do mapa do europeu Snelgrave – 1734) e em 1670 fundou o reino do Dahomey, atacando as regiões circunvizinhas do reino federado sudanês do Ketu.

Um dos sucessores do Oba Aho, o Oba (rei) Agadja (1708-1732), à falta de mais guerreiros, criou um Corpo de Exército composto pelas “Mulheres do Leopardo” e, com elas como elemento decisivo em batalha, em 1724 atacou o reino costeiro de Allada, fazendo mais de 8.000 prisioneiros. Tal fato fez com que o Forte de Ajuda subisse imediatamente para o topo do “ranking” dos polos exportadores de escravos e despertou a cobiça de seus congêneres holandeses, franceses e ingleses, pois que já os portugueses e espanhóis começavam a perder sua hegemonia nas rotas marítimas africanas. Mesmo assim, um grande contingente de escravos sudaneses afluíu ao Brasil E em 1726, Francisco Pereira Mendes, último comandante português do Forte de Ajuda, menciona em seus relatórios enviados à Bahia (Brasil), os ataques de represália dos Ayós (reino federado sudanes da cidade de Oyo) contra os territórios de Adagja, o Oba do Daomé, que havia atacado Allada em 1724. Mas, mesmo sob ataque, este Oba Agadja, fortemente apoiado pelos franceses, partiu para a conquista da cidade de Glehue na região costeira, o que fez em 1727, conquistando assim uma saída para o mar e habilitando o Daomé ao tráfico negreiro internacional.

Aumentou, então, a “exportação” daomeana de escravos Ulkuky, provavelmente da região do Reino de Ketu e que primeiramente foram “exportados” para o Caribe, na América Central, como o demonstra o nome pelo qual estes escravos ficaram conhecidos em Cuba, o de “Lucumi”, nome este muito próximo do verdadeiro: Ulkumy. Em 1728, um relatório do mesmo comandante português, Francisco Pereira Mendes, incólume e imparcial em seu comércio negreiro, nos informa do andamento desta guerra: -“Três reis do interior, poderosíssimos inimigos do Daomé, chamados Ayó Brabo, Acambú e Ahcomi, dando-se as mãos o cercaram.”- Ou seja, os reis sudaneses confederados invadem o recente Reino do Daomé e estas lutas perduram até 1743, quando foi celebrado um tratado de paz, mantendo o Daomé suas posições conquistadas, mas pagando um tributo em armas de fogo, munições e escravos aos Ayós, ou seja, à agora também separada federação da cidade de Oyo (a Velha).

E, assim, como é da própria natureza humana, seja ela branca, vermelha, amarela ou negra, também a Federação da Cidade de Oyo, tomou gosto pelos lucros fáceis do tráfico negreiro, no qual já vinham operando através das cidades costeiras da agora desmembrada Confederação Ulkumy, mormente em Badagri, Adja Popo, Eko, sendo que recém fundadas ciades de Porto Novo e Onin. O entreposto de Onin tornar-se-ia internacionalmente conhecido pelo nome de “Lagos”, à semelhança do primeiro entreposto de escravos de Portugal que havia sido estabelecido na cidadezinha de Lagos, perto do promontório de Sagres. E, assim, estabeleceram-se dois grandes pólos de exportação de escravos, em substituição ao Forte de São Jorge da Mina: pelo porto Daomeano de Glehue (antiga Ajuda) eram exportados os Lucumis (sudanêses de Ketu, Ilesa e Oyo); pelos portos de Badagri, Porto Novo e Lagos eram exportados os “Jejes” (Daomeanos) e os “Malês” (Peules, Fulbas e Haussás), estes últimos produto de capturas no outro extremo interiorano da confederação de reinos sudaneses.

Em 1777, Olivier Montaguèrre, novo comandante francês do antigo forte português de Ajuda, agora Forte São Luís de Gregory, reclamava de suas perdas à Companhia das Índias: -“Os “Aiaux” (Ôyó) fornecem escravos em Porto Novo, Badagri, Épé e aqui (Ajuda/Uidah), mas quase não houve escravos fornecidos pelos Dahomets.”-

A situação tornou-se grave para os traficantes franceses que resolveram intervir a favor de seus fornecedores Daomeanos fornecendo-lhes munições, mais armas de fogo de excelente qualidade e instrutores militares de seu uso, os quais lançaram os Daomeanos em uma campanha de guerrilhas-relâmpago contra os Ulkumy. Oito anos depois, em 1788, um novo comandante francês, Gourg, relata: -“Os Dahomets destruíram completamente um território de Nâgós!”- E, novamente, um ano depois, em 1789: -“O Rei do Dahomet invadiu profundamente as terras Ânâgós.”- E é assim que os termos “Nâgó” e “Ânâgós” aparecem pela primeira vez nas correspondências internacionais para designar aos escravos fornecidos pelos Daomeanos e que foram, sem dúvida, capturados à Confederação de Ilu Ulkumy, especialmente entre os Reinos de Ketu, Ijesa e parte de Oyo. O auge destes conflitos deu-se em 1821, quando o Rei Daomeano Guezo (1818-1858), cognominado o “Búfalo” por sua agressividade, infligiu pesada derrota à Federação Oyo, na batalha de Pawingan, chegando às portas da cidade de Oyo, mas recuando em seguida, devido a um acordo firmado com uma nova potência guerreira que vinha se formando lentamente ao norte e nordeste dos territórios da Confederação Ulkumy: os Haussás Islamizados, no Brasil conhecidos por “Malês”.

E, assim, foram os Haussás que, em 1827, riscaram a ancestral cidade de Oyo dos mapas, através da “conversão” ao Islamismo do Emir de Ilorin (antiga província de Ilu Ulkumy). Com a queda de Oyo, as cidades de Ogbomoso, Koyi, Owo e Ijebu também foram aniquiladas pelos Islamitas e suas populações sobreviventes procuraram refúgio em Ile Ife, a Cidade Santa dos Ulkumy que, absorvendo-as, transformou-se em um imenso campo de refugiados. Para aliviar esta situação, fundaram-se duas novas cidades: Ibadan e Modakeke. Tornando-se insustentável a existência dos refugiados na cidade de Modakeke, estourou uma revolta que a destruiu e que estendeu a destruição à Cidade Santa de Ifé. Assim, da antiga Confederação Ulkumy, transformados os Ketu e os Oyo em “Nâgós” com o sentido pejorativo de “lixo humano” dado pelos Daomeanos; os Ife e os Ijesa transformados em “Yarba” e/ou “Yarriba”, designação que os Haussás deram aos seus inimigos derrotados, a qual foi adotada posteriormente pelos Ingleses sob a forma “Yoruba” e que em língua portuguesa veio a dar o termo “Iorubá”, só restou a Federação da Cidade de Benin (a Antiga), por estar situada no meio destas duas frentes de batalha.

E apenas uma vez, nesse conflito todo, somente o Oba Nossa, rei do Benin, mostrou-se preocupado com o destino de seus compatriotas na escravidão e, em 1807, enviou ao Brasil uma embaixada tendo à frente o Oba de Onin (Lagos) que era seu vassalo. A vinda desta embaixada muito preocupou ao Conde da Ponte, o então Governador da Bahia (Brasil), que se assustou com uma possível rebelião dos “… Nâgós, tão numerosos nesta cidade.” Não deixava de ter razão, pois é desta época o ciclo de insurreições negras na Bahia (Brasil) (1800/1830), aonde os habitantes de raça branca não passavam de 5% da população. Mas, na verdade, nem sob o peso da escravidão os infelizes negros não se haviam dado conta de quem era o seu verdadeiro inimigo, tendo as todas as insurreições negras fracassado, pois “Nàgôs”, “Malês” e “Gegês” as denunciavam entre si. Em 1861, os Ingleses, a pretexto de acabar com o tráfico negreiro, intervieram diretamente no conflito ocupando a cidade de Lagos (Onin) e destronando Kosoko, o último Oba de Lagos, isolando desta forma a própria cidade de Benin, que era interiorana.

Em 1890, o general francês, Dodds, tomou a ferro e fogo a capital Daomeana, Abomey, destronando o último rei Daomeano, o Oba Behanzin, numa lógica conclusão da França de que seus antigos aliados (o Príncipe-presidente da França, Luís Napoleão Bonaparte, havia firmado um tratado de “amizade” com o Oba Guezo) não lhe serviam para mais nada, uma vez que extinguia-se o tráfico negreiro. Em 1897, também numa lógica conclusão de política interna, o Benin compreendeu o rumo dos novos tempos e preferiu “optar” por transformar-se em um Protetorado Britânico e, assim, colocou frente à frente o Leão Britânico e as Verdes Bandeiras de Allah, numa jogada política desesperada que, em 1904, resultou na conquista das cidades Islâmicas de Kano, Sokotô e Zana pelos ingleses, evidentemente apoiados por inúmeras “tropas nativas” do Benin que, desta forma, acabou por triunfar sobre os seus segundos arqui-inimigos, os Haussás Islamitas. Assim, no mínimo, desde 1724 (queda da cidade vassala de Allada) até 1904, portanto por cerca de quase 200 anos, a Confederação Ulkumy guerreou ferozmente, primeiro em uma e depois em duas frentes de combate, perdendo seus cidadãos em campos de batalha ou então capturados e escravizados em Cuba, Haiti, Antilhas Francesas, sul dos EUA, Brasil e, isto, sem se falar nos que foram enviados às metrópoles européias e asiáticas.

Não há como estimar a perda populacional específica dos Bantos e dos Sudaneses, mas para um cálculo geral sobre a perda populacional africana, B .E. Worth, em sua obra “History of West Indies”, cita que segundo estimativas do padre jesuíta Monens: -“No mínimo, pode-se estimar que foram reduzidos à escravidão 10 milhões de pretos e, sem exagerar, tem que se contar por cada um destes pretos, cinco outros abatidos em África ou que morreram no caminho ou no mar.”- E foi desta forma que, quase no raiar do nosso atual século XX, extinguiram-se civilizações autóctones de homens guerreiros, comerciantes empreendedores, religiosos e artistas que, apenas por serem os seus integrantes homens de raça negra, não têm a sua história corretamente ensinada em nossas escolas, apesar de fazerem parte integrante da verdadeira “raça brasileira” e do que muito que o “braço escravo” do negro (e do indígena brasileiro) fez na construção da Pátria Brasileira e na defesa de nossa soberania contra os Franceses, os Holandeses, os Portugueses e os Latinos-Americanos, saudando eu aqui a Henrique Dias e seu Batalhão Negro, mas não podendo esquecer-me de Felipe Camarão e sua Legião Indígena. E se expusemos aqui toda esta história sucinta de guerras africanas geradas pela maldita ânsia pelo “ouro negro”, é porque queremos ser bem compreendidos quando dissermos que os efeitos colaterais religiosos da Diáspora Negra, no Brasil, não se resumiu aos Negros Sudaneses e tão somente ao conceito de Obatala.

Não, também foram perseguidos aqui Tupã dos Tupy-Guarani, Zambi dos Bantos, Allah dos Malês e, também, Jeovah dos Cristãos Novos, porque já no Sec. XVI por aqui também “oficiou” o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição.

Mas todos os Credos exprimentaram aqui, em Pindorama, uma Purgação Histórica e uma Renascença Sincrética que, hoje, a 500 anos do início de sua “colonização, explode em vitalidade, beleza e segurança em seus novos valores adaptados aos novos tempos e à nova terra, porque finalmente aqui, no cadinho da intolerância da escravidão, aprenderam a reconhecer ao seu inimigo interno: a ganância pecuniária de seus próprios dirigentes e a intolerância racial e religiosa entre seus próprios irmãos de côr! Também, todas as insurreições negras no Brasil fracassaram porque os que cultuavam os Vodun (Jejes) e os que cultuavam os Orisa (Nàgôs) denunciavam entre si as tentativas de levante de cada lado e, os que cultuavam a Allah, denunciavam a todos. Mas, os “Nàgôs” aqui chegaram em grande número nos meados do século XIX e foram alocados nas cerranias das maiores cidades costeiras brasileiras, (Recife, Salvador, Rio de Janeiro) e, dado à proximidade da costa, puderam manter animado tráfico comercial entre o Brasil e a África. Portanto, num se mesclaram entre si e muito menos sicretizaram sua religião com a dos indígenas brasileiros como os bantos o fizeram:

  1. Os “Malês” islamizados foram quase totalmente exterminados em 1830/1835;
  2. Os “Jejes” sempre foram em menor número de escravizados, pois eram a facção vencedora nas guerras africanas e os sobreviventes estavam mais concentrados no Norte do Brasil, mormente em São Luís do Maranhão, onde existiu o único espaço religioso Daomeano puro – a “Casa dos Minas” – um reduto de resistência cultural dos Daomeanos, fundada pela tia do rei do Daomé, o Oba Guezo (1818-1858), exilada que foi pelo rei antecessor, o Oba Adondonzan (1797-1818), transportada por navios franceses, com seus familiares, servidores e bens materiais, tendo desembarcado no Brasil, não como escrava, mas na qualidade de refugiada política livre. Mas, talvez cansados de tantas guerras, os Vodun da Casa dos Minas não procuraram guerrear com os Orisa Yoruba e sua pouca ação de proselitismo, em território brasileiro, restringiu-se à partes do Maranhão, do Amazonas e do Piauí.
  3. Mas, ao contrário, os Ulkumy-Ayó-Nâgós-Yariba, enfim, os doutamente chamados “Iorubás” no Brasil, chegaram aqui em “tal número e em relativo pouco espaço de tempo”, como bem remarcou R. Bastide (1953), que puderam reestruturar e impor a sua cultura, a sua religião, a sua ritualística e a sua língua aos outros negros já aclimatados na Bahia, Recife e, mais tarde, Rio de Janeiro.

Assim sendo, ao sincretismo inicial inter-religioso Indígena-Banto-Cristão iria soprepor-se muito mais tarde (Sec. XIX), ou, se quiserem, mais recentemente, a ritualística dos “Nâgós” dos Candomblés de Nação, primeiramente substituindo os Inkices pelos Orixás, mas “vestindo” ainda o manto protetor do sincretismo daqueles com os Santos Católicos. Vê-se, desta forma, que a supremacia cultural e religiosa “Nàgô” cristalizou-se na absorsão temporária da fórmula do “Candomblé Banto”, transformando-os em “Candomblé de Nação Sudanesa”, instituição que não existia como tal na África e que refletiu a necessidade de reorganização da Liturgia e da Ritualística africana face a nova realidade da escravidão, reincorporando os Cultos dos Awon Orisa Patrilineares, dos Regionais e até dos inter-territoriais aos Cultos dos “Ôrìxás” brasileiros de mais viva lembrança entre os fiéis sobreviventes, cuja nova ordem de grandeza e/ou precedência cristalizou-se no “Xiré” ou “Ordem de Precedência” em que são saudados, nos cânticos e danças, os “Orixás” que ainda são cultuados, “à moda africana”, no Brasil.

Mas até nesta Renascença religiosa, a marca dos conflitos em África ficou indelevelmente impressa no bojo de suas manifestações, com os descendentes dos Sudaneses separando-se em “Nações”, como sejam as de “Kétu”, “Ìjêxá”, “Nâgó”, “Ôyó” e “Ifé” e é sintomático a revolta e decepção dos escravizados com alguns de seus “Orisa”, visível na mudança de características específicas dos que aqui foram novamente cultuados. Já não se invocavam, dos seiscentos Imolê ou Divindades, aqueles que eram símbolo da fecundidade ou da prosperidade agrícola, mas sim aqueles Orisa da Guerra, da Justiça e da Punição: avultaram-se assim, no Brasil, os “Ôrìxás” Ôgúm, Xângó e o Imolê Êxú. Também repudiaram ao culto dos Antepassados Bantos e dos Encantados caboclos, isolando deles o seu próprio culto dos Antepassados – o dos Onile e dos Baba Egun – cultuando a estes últimos em um novo tipo de “Terreiro”, o “Terreiro-li-ese-egun” ou “Terreiro-aos-pés-dos-Antepassados” e, de 40 anos para cá, começam a repudiar o “manto” protetor dos Santos Católicos sobre os Orixás, por que no Brasil a atual Constituição garante a liberdade de culto, graças a Deus, Tupã, Iavé, Zambi, Obatalá, Jeovah e Allah!

Este repúdio dos Orisa Nàgôs aos Inkices Bantos, aos Encantados Tupy-Guarani e aos antepassados de outrem, geraram a separação e a criação dos “Candomblé de Congo-Angola”, o “Candomblé de Caboclo”, o “Omoloco” e, também, à Macumba Urbana no seio da qual os Antepassados de todos se fundiram com o Espiritismo de Allan Kardec, mas que, entretanto, jamais repudiaram aos Orixás. Mas louvo aqui a Renascença dos Cultos Africanos Sudaneses, que nos legaram o conceito dos Orixás, com a sua coragem em manter sua religião; a tenacidade em seguir uma ritualística onerosa sob condições econômicas e financeiras adversas; a habilidade em não reviver os conflitos africanos do passado, mas transportá-los para o terreno poético das lendas dos “Ôrìxás”, mesmo deturpando os Ese Itan Ifa (os Versos dos Contos de Ifá), o que foi incontestavelmente superior à falta de perspicácia da atuação de seus governantes em África, os quais sustentaram uma guerra tempestuosa em que não podia haver ganhadores negros.

É por isso que nós, os cultuadores do Esoterismo de Umbanda, ao contrário do que muitos pensadores brancos pensaram e propagaram, pregamos que os cultos religiosos de orígem Indígena-Cristãos-Afros não são somente uma desestruturação de suas sociedades religiosas ou um resultado simplista da Diáspora Negra internacional. Subjacente a isto, no Brasil, elas são o exemplo da fortíssima solidariedade humana que estruturou, na desgraça da escravidão, a esperança imorredoura de identidade e liberdade de todas aquelas raças dizimadas ou escravizadas na Era do Colonialismo de qualquer nacionalidade, cujo efeito deletério ainda se faz sentir colateralmente no Apartheid, nos Guetos e nas Favelas.

E no caso particular do Orisa Orunmila-Ifa, mesmo que seu culto no Brasil tenha entrado em declínio e desaparecido publicamente dos Candomblés, sendo o Da Ifa Fun do Opon e o Dapele do Opele substituídos pelo “sacudir” dos Owo Merindilogun ou “Jogo dos 16 Búzios”, mais próprio das “Filhas de Ôxúm”, algumas delas maravilhosas “Mães de Santo” que, dizimados os homens, tomaram à si a sobrevivência do Culto dos “Ôrixás” no Brasil à qualquer custo, muitas vezes, ao custo de si próprias, ainda assim não podemos aceitar que, após 500 anos de lutas, sangue, suor e lágrimas dos nossos antepassados brasileiros pelo direito de professar livremente o que restou de suas ancestrais crenças particulares, sejam elas de origens “puras”, sincréticas ou sintéticas, devamos nós (Babalaôs ou Tatas de Inkicê, Babaogês ou “Pais-de-Santo”, Iyalorixás ou “Mães-de-Santo”) prestar obediência a um “Sacerdote Supremo Sudanês” para podermos A DA IFA FUN ou “CRIAR IFÁ PARA” este povo de agora, aqui e neste momento atual! Porque se eu encampar, a nível religioso do Brasil atual, a vontade de “poderosos” de qualquer origem, não estarei reconhecendo meu verdadeiro inimigo e acabarei por trair a memória de todos aqueles de qualquer raça que um dia combateram os preconceitos raciais e religiosos.

E é por isso que, mesmo sendo hoje da raça branca e Elu Ninu Ife ou Estrangeiro na Cidade Santa de Ifé, que atualmente todos somos, respeitosamente atrevo-me à invocar Igi, o Ser Espiritual Deslocado em que nos tornamos em nossa cegueira espiritual:

“Igisi oju ki o ri ọtá re”
“Abra seus olhos e veja o seu inimigo!”

E, provavelmente, veremos a nós próprios !!!

Mana, Axé e Benção
Baba Oberefun Si Okojumide

“Ou Mato ou Morro”: Capoeira como Weltanschauung

Entrevista com Eduardo de Andrade Veiga – Entrevista realizada em São Paulo, em 20-10-99, por Luiz Jean Lauand. Eduardo Veiga, batizado por Bimba com o nome de guerra Duquinha, é capoeirista da velha guarda e foi discípulo de Mestre Bimba. É ainda professor aposentado da Univ. Federal da Bahia. Atuou também – aplicando a “filosofia da educação da capoeira” – como professor no Centro de Treinamento de Professores Anísio Teixeira (do Governo da Bahia). 

“Ou mato ou morro: ou me escondo no mato, ou fujo para o morro…”

Luiz Jean: Poucos capoeiras refletem sobre sua arte e poucos intelectuais conhecem “por dentro” a capoeira. Nessa sua situação privilegiada – você foi assistente de Mestre Bimba e, por outro lado, vice-reitor de universidade – poderia falar-nos de como começou nessa arte e da capoeira como visão-de-mundo?

Eduardo Veiga: Antes de mais nada, quero deixar registrado que este meu depoimento tem o caráter de uma homenagem a meu professor (de capoeira e, portanto, de vida), o grande Mestre Bimba, cujo centenário de nascimento se celebra no dia 23-11-99. Comecei a jogar capoeira (quero observar, desde já, que capoeira “se joga”: não é “arte marcial” de iniciativa agressiva; depois voltaremos a falar disso) ainda bastante jovem, em meados da década de 40, “vestindo farda” do Colégio dos Maristas de Salvador, e ingressei na capoeira como atividade complementar de minha formação pessoal. Escolher Mestre Bimba era seguir um caminho natural de excelência: Bimba já estava consagrado como grande capoeirista.

Por estranho que pareça, a Academia de Mestre Bimba ficava na “Laranjeiras”, na época, a conhecida rua do meretrício. Só andar nesta rua já significava aprender: para chegar à Academia, era necessária a disposição de enfrentar eventuais problemas: a calçada era estreita, só uma pessoa podia passar e não raramente algum “valentão” – dos da zona – podia provocar… De modo que nós íamos pelo meio da rua. Assim, a própria localização da Academia – já servia para ir ensinando duas lições, muito úteis para a mentalidade do capoeira: evitar o confronto desnecessário (no caso, evitar o passeio estreito) e evitar expor-se inutilmente ao perigo (passar perto das portas, de onde poderia surgir agressão de surpresa).

O ritual de ensino de Mestre Bimba começava por uma rigorosa seleção de quem entrava e de quem podia prosseguir na escola: tanto em termos de capacidade física como em termos de comportamento em relação aos colegas e ao mestre. Daí a escola ter um Regulamento – uma espécie de “código interno” – orientando a conduta dos discípulos. Nesse regulamento (talvez o primeiro código escrito de aprendizagem de comportamento da capoeira: um “código” seria impensável, por exemplo na capoeira de angola, extremamente fluída e espontânea…), encontravam-se normas como por exemplo: a de guardar silêncio durante a prática e observar atentamente o jogo dos companheiros.

Mestre Bimba era também um educador muito sensível às fases de progresso dos alunos, sabendo extrair o potencial e avaliar as possibilidades de cada um. A sentença que cunhei – um tanto jocosamente – “Ou mato ou morro” (no sentido de “Ou me escondo no mato, ou fujo para o morro…”) – indica em sua formulação literal a temerária atitude de coragem irresponsável; já a jocosa interpretação poderia ser mal-entendida como pura e simples covardia. Na verdade, a capoeira não é nem uma coisa nem outra. A capoeira surge como objetivação, como consubstanciação da mentalidade do escravo, submetido a uma situação de desesperada injustiça e sem ter a quem recorrer ante o arbítrio de seus dominadores.

Que defesa cabe em uma tal situação? Como sobreviver? Assim, desenvolveu-se entre os escravos – de modo mais ou menos inconsciente, mas profundamente racional – uma técnica, uma arte, um jogo, um jeito (ou talvez o único jeito) de ser e viver (ou sobreviver…). Isto corresponde a duas situações historicamente vivenciadas: a de enfrentamento direto dos desesperados escravos com o poderoso sistema dos senhores (“mato ou morro” no sentido literal) e o esquivar-se a qualquer confronto (esconder-se no mato), buscando o mato como espaço sobre o qual é possível uma forma de vida independente: os quilombos (é interessante observar que já os holandeses surpreendiam-se com a familiaridade, a facilidade, a desenvoltura com que os escravos transitavam pelos matos e morros…). Essa atitude é a base da capoeira. Subtrair-se ou, ao menos, procurar minimizar os horrores da escravidão, em busca de uma vida livre e digna (na medida do possível, evitando o desigual enfrentamento). Assim se compreendem certas “regras” (naturalmente, não escritas…) da capoeira em sua forma originária (a que deu origem a grandes mestres como Bimba), como por exemplo:

  • Prontidão em observar o adversário e o ambiente. Como não se trata de iniciativa de agressão, mas de esquivar-se de um possível dano, é pela atenta observação que se vê a real dimensão do perigo e as rotas de fuga. Por exemplo, o capoeirista deve observar se o potencial agressor (e para o escravo – desde o “boçal”, recém-desembarcado dos navios negreiros, ou o “ladino” ou “crioulo”, já aclimatados – qualquer branco é um potencial agressor…) está de paletó aberto ou fechado (se aberto, há a possibilidade de ele sacar rapidamente uma arma…).
  • Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…
  • Enquanto não mata, a pancada é suportável. Em todo caso, sempre há uma expectativa e, na primeira oportunidade real, o capoeirista aplica o seu golpe (daí a necessidade da rapidez e do reflexo, inclusive a partir de situação de imobilidade). Em outra formulação jocosa: na primeira oportunidade não é que ele dá o troco, ele “fica com tudo”…

Naturalmente, há diversos níveis de “capoeirismo”, adaptados aos diversos graus de “encurralamento” social… Em qualquer caso, essa malícia para a luta, essa arte enquanto técnica, encontra uma representação simbólica no jogo entre amigos, que brincam capoeira (agora transformada em arte mesmo), entre ritmos, danças e cantos:

“Água de beber.

É Água de beber camarada…”

A estética substitui a violência e, também nesse sentido, pode-se falar de uma educação pela capoeira, independe de qualquer propósito de defesa ou ataque. Sobrevive a capoeira mesmo fora de um contexto de escravidão: ela, por assim dizer, ganha vida própria e emancipa-se das desumanas situações que lhe deram origem.

Por outro lado, muitos aspectos das relações de trabalho nacional (e, como se sabe, também do sincretismo religioso ou do futebol etc. etc.) são afins à mentalidade que estamos descrevendo. Não se trata só da escravidão formal; num caso extremo, “pratica capoeira”, hoje, um trabalhador mal pago que faz “corpo mole” e conscientemente busca esforçar-se o mínimo possível (guardando, naturalmente, na presença do chefe, as formas externas de prontidão, solicitude, integração na firma etc. etc.). Um boy é encarregado de entregar uma correspondência urgente num endereço que requer uma hora de percurso. Ele acata solicitamente a ordem, sai com presteza e, mal virada a primeira esquina, já começa a treinar malabarismo, girando – com arte e maestria – a pasta na ponta do indicador direito; penteia-se ante as vitrines das lojas; no primeiro fliperama, desenvolve outras habilidades etc. Quando, após três ou quatro horas, retorna, queixa-se de dor de cabeça (o trânsito infernal, manifestações de greve…) e pede à secretária o reembolso do (pretenso) táxi que teve que tomar (“como o chefe falou que era urgente…”).

Neste, e em tantos outros aspectos, a capoeira – totalmente incorporada à mentalidade nacional – é uma importante clave de interpretação do Brasil. Não se trata de “malandragem” ou preguiça, mas de um fenômeno complexo que inclui uma escravidão que persiste disfarçadamente: por que o escravo vai empenhar-se em algo que – de nenhum modo – lhe pertence ou beneficia? E não esqueçamos que “escravo” é um conceito relativo: só cessa de haver escravo, quando cessa de haver feitor… É nessa linha que se encontra o agudo pensamento de autores como Anande das Areias e Nestor Capoeira.

É evidente que a capoeira traduz realidades muito distintas das veiculadas por artes marciais, digamos, como o jiu-jit-su, caratê ou de ninjas & cia. O Brasil é diferente; o brasileiro procura não chocar de frente: ele pode te destruir, mas sempre com ares de vítima ou de quem não quer nada…

Evidentemente, toda essa mentalidade de que estamos falando pode degenerar em uma grave situação de caos – como aconteceu no final do século passado com as “maltas” capoeirísticas do Rio de Janeiro ou como acontece hoje com alguns políticos brasileiros… Daí o valor de Mestre Bimba que, como líder carismático, procurou racionalizar um código de honra e criar uma elite de capoeira: praticar a arte do escravo com a alma do príncipe! Quem não se dedicasse seriamente ao estudo ou ao trabalho, estava excluído da academia. Aliás, diga-se de passagem, muitos escravos negros provinham de famílias nobres africanas e, alguns, com nível cultural muito superior ao de seus senhores.

LJ: Que outros aspectos destacaria das práticas da capoeira? E da capoeira como meio de educação?

EV: Um aspecto importante na minha formação – eu, na época era muito moço – foi o de preparação para as dificuldades da vida. Para quem teve a feliz oportunidade de ser “puxado” (que significa, em linguagem de capoeira, “ensinado” – e vocês, professores de filosofia da educação, podem explorar as ricas sugestões desse termo -; um ensino em que o professor vai se adequando à capacidade do discípulo, como quem “puxa” para fazer aflorar o jogo próprio de cada um…) por mestre Decânio, certamente se lembra de como ele, logo que iniciava o treino, procurava alertar com um ligeiro e repentino tapa sem machucar, porém suficiente para deixar em desconforto ou furioso quem o recebesse. Ora, na aula seguinte e nas mais outras ou tantas quantas necessárias, o Decânio repetia esse gesto… Era um estímulo meio amargo, entretanto, em duas ou três vezes – ou um pouco mais – o remédio atingia o efeito desejado. E Decânio já procurava outro para dar o seu remédio pouco convencional e amargo. Nós, aprendizes, nos conscientizávamos de que quem não observa bem, literalmente “leva tapa na cara”. Ele nos ensinava a ficar atento às possibilidades de agressão do adversário.

Outra lembrança “pedagógica”. Menos drásticos, porém mais excitantes eram os treinos para a prontidão que mestre Bimba usava. Ele portava um apito. Na situação de treino, dois alunos deveriam enfrentar-se: um dos oponentes se armava antes da luta, porém só podia usar a arma ao ouvir o apito. O sinal era também válido para o outro: ao som do apito, poderia reagir. Como é óbvio, somente Mestre Bimba sabia o momento em que iria ocorrer o sinal. Fazia-o em função da aprendizagem. Isso porque, durante a luta há momentos oportunos (e outros que não o são) para se puxar uma arma. O mesmo se pode dizer em relação a tomá-la, podendo chegar ao ponto, de mesmo sendo capoeirista, o outro tomar-lhe a arma, antecipando-se ao gesto de sacar. Obviamente, só após a ordem de ação autorizada pelo apito. Nessa situação, a capoeira funciona também como metáfora da vida: há o momento certo de agir para acometer ou defender.

Uma terceira situação corresponde ao treinamento de dois iniciantes, que com o tempo vão aumentando gradualmente a precisão, velocidade e graça nas seqüências de golpes. Os alunos mais adiantados percebiam que os formados quando os “puxavam” com mais velocidade tinham o cuidado de não atingi-los, parando o golpe a poucos centímetros do ponto de impacto. Este gesto possibilitava ao aluno dar prosseguimento à seqüência de golpes e contragolpes. Por isso as solas ou pontas das “basqueteiras (kedis) pretas” de Aquiles Gadelha eram muito conhecidas dos alunos. Elas deram muitos sustos, pois a cada momento estavam em frente do peito ou do rosto perplexo dos aprendizes. Era o resultado das “bençãos” (pontapé frontal) e “martelos” (de lado) ou “armadas soltas estancadas” (golpe giratório). Não é este o papel de todo verdadeiro professor e educador que – auxilia o aluno, mostrando-lhe as dificuldades e o modo de superá-las, sem massacrá-lo, porém fazendo-o suar bastante? É nesse clima de solidariedade e confiança, ao som do berimbau, que se canta de verdade:

“Água de beber.

É Água de beber camarada…”

Nem sempre é apropriado estancar um golpe. Numa “armada solta”, caso se encolha a perna no meio do caminho para não machucar o adversário, pode não ser uma boa alternativa. A percepção deve estar concentrada também no esboço de defesa que o aluno faz… E para isso o tempo é muito curto para se decidir o que fazer. No caso de se aplicar rasteira nas mãos durante os “aus” (rotação descendente substituindo o apoio dos pés pelas mãos) sucessivos, o procedimento correto de quem aplica a rasteira é de fazê-la com muita velocidade, porque caso contrário não encontrará o que puxar. Porém se encontra a mão apoiada, é para fazer o arrasto com muito vigor. Isto facilita o “rolê” (giro) de defesa do oponente. Este treino só é feito no curso de especialização. Em função do exposto “capoeirar” é saber aplicar golpes:

  1. “em câmara lenta”, suave e graciosamente;
  2. desferir golpes com alta velocidade a partir de uma situação de repouso;
  3. modificar a trajetória de um golpe ou estancá-lo em vista da percepção de algo “novo” após ter desfechado o golpe de defesa ou ataque;
  4. durante o jogo da capoeira, o que se observa é uma “seqüência” de golpes desferidos em velocidades desde o lento quase imperceptível até aqueles em que a vista, talvez não acompanhe. O meio ambiente dos golpes é a ginga: e o ritmo e a velocidade seguem o compasso da orquestra, muitas vezes composta de um só berimbau dolente.
  5. a ginga é tão importante que ela aparece sozinha no item 5 do Regulamento de Bimba e o “gingado” é conteúdo programático da primeira lição. O gingado é como uma rampa de lançamento para se disparar uma violenta cabeçada ou se defender dando um “au” com rolê saindo-se do raio de ação do oponente, que procura, mas não sabe mais onde, encontrar o adversário. Gingando, o capoeira determina as distâncias mais convenientes, inclusive para “amarrar o jogo” do adversário. Por mais que se descreva o gingado, sempre existe o inesperado no adversário: ele esconde manhas ou pode até não significar nada. Tanto simula e dissimula como esconde ou gera golpes ou defesas. É no gingado que os floreios e as negaças se harmonizam. Quando bem feitos, o adversário procura e nada encontra ou encontra sem esperar o que não procura… É malícia pura.
  6. emprega-se a expressão “jogar capoeira” à semelhança de “manejar com destreza, jogar com armas”. Então o capoeira é aquele que é destro no manejo de armas, a semelhança do jogo de florete ou espada. Somente que as suas armas por excelência são os dedos, as mãos abertas ou fechadas de frente ou lateral ou em “cutila”, os pés, as articulações ligeiramente dobradas e a cabeça também são usadas. Sem dúvida, aprende-se também a usar armas simples e convencionais ou improvisadas;
  7. joga-se também no sentido de brincar. É aprender brincando – é demonstrar que se sabe de forma alegre. Por isso o capoeirista não machuca quando joga em situação de aprendizagem ou demonstração. Conserva um sorriso as vezes até matreiro de quem com facilidade saiu-se de uma situação difícil ardilada. Pode também representar um pouco de zombaria face ao outro que nem se apercebeu claramente do que aconteceu, ou melhor, do que poderia ter acontecido….

Todos esses ensinamentos estão centradas no modelo de ser e de aprender de Mestre Bimba (sem demérito de outros grandes mestres), que inquestionavelmente é um referencial firme para tema.

Eu, em minha vida pessoal e também como professor (e professor de professores) sempre me remeto à capoeira como metáfora da vida: viver é capoeirar. E há também uma mentalidade de capoeira, mesmo quando você não é o oprimido. Uma vez, há muitos anos, um ladrão invadiu minha casa: eu e minha mulher acordamos com o sujeito ameaçando-nos com uma barra de ferro. Nem sei como, de um pulo já estava ao lado dele que, assustado, fugiu. Eu fui atrás, com muito furor, mas só até a porta: daí em diante, “persegui-o” um pouco, mas não para alcançá-lo (isso é capoeira pura), era só para estimulá-lo a fugir: rápido e para longe. Como consegui dar aquele pulo? Não sei! Inconscientemente, eu tinha me programado (capoeira é observação e antecipação) para, numa situação dessas, “virar um bicho” (um ladrão, por definição, não teme tanto a um homem, mas não há homem que não tema um bicho…)

Resumindo, eu diria que a capoeira, sim representa uma visão de mundo, marcada por um conjunto de atitudes de defesa em situação de forte desigualdade: seja o oponente um feitor; um governo (há empresas que praticam contra o governo a capoeira fiscal…); um professor, pai ou sargento opressor; um seqüestrador (li recentemente no Estadão as indicações da polícia para o caso de você ser seqüestrado e era um “manual de capoeira”: indicavam por exemplo, não encarar, não discutir, dormir só quando o seqüestrador estiver acordado e vice-versa; etc.); ou mesmo o mundo como um todo, sempre ameaçador à fragilidade humana. Por isso, encontram-se traços de capoeira em qualquer cultura em que haja situações de opressão. A capoeira não se baseia na agressão positiva nem na mera resignação passiva; é a defesa racional levada ao limite do possível, na inaparência de jogo, ginga e lúdico.

O último dos malandros da velha escola

Entrevista com Nestor Capoeira concedida ao site www.planetcapoeira.com
Tradução: Teimosia
13 de junho de 2002

Na primavera desse ano, Nestor Capoeira visitou Nova York pela primeira vez. Ele veio ministrar um workshop de capoeira de dois dias, e fez uma palestra sobre o que ele julga ser o jogo da capoeira.

Nestor é familiar a muitas pessoas pelo livro “Capoeira – Pequeno Manual do Jogador”, freqüentemente a primeira obra literária sobre capoeira lida. Nestor Capoeira é na verdade autor de quarto livros, dos quais três sobre capoeira e um em formato de romance. Nós descobrimos também que ele recentemente terminou seu PhD, estudando a globalização da capoeira e sua relação com as estruturas nômades de poder. Suas palestras acabaram se tornando discussões iluminadas sobre capoeira.

Nessa entrevista, a primeira parte de uma série de artigos sobre Nestor Capoeira, nós perguntamos a Nestor sobre seu próximo livro, e sobre a globalização do jogo da capoeira. O site Planet Capoeira vai publicar brevemente as transcrições das duas palestras ministradas por ele em sua estadia em Nova York.

Eu passei um bom tempo com Nestor não apenas durante os workshops e palestras, mas também tive a chance de partilhar algumas refeições e umas poucas garrafas de vinho com o estimado mestre. O que eu descobri foi que, ao contrário de muitos dittos “mestres” dos dias atuais, ele aparece como um dos últimos dos malandros de outrora, que abraça o jogo da capoeira não pela técnica brilhante, mas sim com a arte da mandinga. Essa entrevista, conduzida durante uma boa refeição (e não poucas garrafas de vinho) em um bom restaurante italiano em Nova York, traz um pouco das quarto décadas de Nestor na capoeira, e mudou radicalmente o modo como eu penso a respeito do jogo da capoeira. Eu estou honrado em dividir minha experiência com vocês.

PlanetCapoeira: Você pode nos falar um pouco sobre seu novo livro?

Nestor: O Livro “Pequeno Manual do Jogador”, da forma como eu vejo, dá uma visão mais ampla, um plano geral. Para o iniciante ele é muito importante, porquê o livro o situa no contexto geral. Você encontra uma história simplificada, alguma coisa sobre malícia, as “regras” da capoeira, de tal forma que a pessoa compreenda a filosofia por trás disso tudo. Há ainda alguma informação sobre a música, não entrando muito em detalhes mas dizendo algo sobre como os três berimbaus funcionam em conjunto, e vai por aí…

O método básico de aprendizado e o meu modo de ensinar capoeira. É claro, cada professor de capoeira acha que o seu jeito de ensinar é o melhor (risos). Assim é “Pequeno Manual do Jogador”. No segundo livro, “Os fundamentos da malícia”, eu pego algumas partes mais específicas e me aprofundo nelas. Fisicamente, o livro tem 380 páginas ou algo próximo disso. O que eu fiz nele foi entrevistar pessoas que eu admiro muito, como Muniz Sodré. Ele é um baiano que tem um lugar muito importante entre os mais importantes grupos de Candomblé da Bahia, e então ele realmente entende do que fala. Ele estudou com Bimba na década de 50. Mas ele é também um acadêmico, que pratica karate até os dias de hoje e está em muito boa forma. Ele é a cabeça do programa de pós-graduação da Divisão de Comunicação da UFRJ. Ele fala 12 ou 13 idiomas, e têm estudado a mídia por muito tempo.

Então eu perguntei a essas pessoas como ele e como Jair Moura, outro jogador de capoeira que participou do filme com João Grande e João Pequeno na década de 50 e tem alguns livros escritos sobre Bimba e Itapoan… Eu entrevistei esses caras, escrevi um capítulo dedicado a cada um deles, e os questionei: “Sobre o quê vocês querem falar ?”. Um deles, por exemplo, disse que ele queria falar sobre o período entre 1810 e 1830, porquê é muito importante na história da influência cultural africana e da escravidão. Então eu escrevi um capítulo sobre cada um, depois escrevi minhas considerações e pedi a eles que fizessem comentários.

E esses comentários estão no livro também. É um livro que tem a minha contribuição, mas cujo ponto mais forte são os pontos de vistas dessas pessoas, que são especialistas e escolheram falar sobre períodos específicos ou contextos sobre os quais eles têm um conhecimento único. Eu escrevi um pouco mais sobre a malícia, considerações sobre essa parte da capoeira e alguns exercícios relacionados à compreensão da malícia. Eu discuto alguns exercícios que uso no meu treinamento, e que meus filhos usam. Exercícios para quem já tem de 5 a 10 anos de capoeira. Para manter seu jogo afiado. A maioria são floreios para quando se está de cabeça-para-baixo e tesouras, especialmente quando se está no chão e o parceiro de pé tenta tirar vantagem da situação. Ainda, como ir para o chão para atrair o parceiro a atacar, e então tirar vantagem. Esse é meu segundo livro, do qual gosto muito. Dos meus 3 livros sobre capoeira, é o mais completo.

PlanetCapoeira: Você disse que os professores têm sua própria aproximação à capoeira. Seu professor original foi Leopoldina. Como a visão dele afetou seu entendimento do jogo?

Nestor: Eu treinei com Leopoldina apenas por um par de anos e em 1968 eu ingressei no Grupo Senzala. Eu tinha então 22 anos e fiquei de 68 a 1990. Então realmente a maior influência no meu treinamento até 10 ou 12 anos atrás foi o método de ensino usado na Senzala. Esse era uma aproximação que eu construí junto com meus colegas na Senzala, caras da minha idade, e depois pessoas mais novas que deram suas contribuições. O método de Leopoldina era completamente diferente, não era estruturado. Suas aulas eram uma grande diversão. Você desenvolvia muito a criatividade e a improvisação.

Mas o desenvolvimento técnico era mais lento; o que você aprenderia em 3 ou 4 anos, poderia ser feito em 1 ano com a metodologia da Senzala. Mas naqueles 3 ou 4 anos você teria a criatividade e uma grande capacidade de improvisar. Esses métodos que nós criamos, não apenas o que eu chamo de “estilo regional Senzala”, mas também no desenvolvimento da angola, permitem que os estudantes se desenvolvam muito rapidamente, mas após 3 ou 4 anos eles não improvisam mais. No início eles improvisam porque eles erram (risos). Mesmo na angola, eles aprendem de forma metódica – “coloque sua mão dessa forma, sua cabeça dessa forma, esse movimento nós não usamos”, etc.

A angola moderna absorveu, ou foi influenciada pelo que Bimba criou. O que eu tenho tentado fazer desde 1990, quando deixei a Senzala de forma diplomática, é tentar coisas diferentes. Eu não queria usar graduações nem uniformes. Eu não quero ter que “obrigar” os alunos a nada. Não forço obrigações a eles. Eu queria me livrar da idéia de “eu pertenço a esse grupo ou clã”. Queria fazer alguma coisa mais tranqüila, mais relaxada. Mas não estou me referindo ao treinamento.

O treinamento tem que ser forte. Mas as obrigações para com o grupo, essas eu decidi abandonar. Pensei sobre como eu poderia os elementos do ensinamento que Leopoldina usava e que o pessoal da angola usavam durante a década de 60. Eu queria reintroduzir aquele método, mantendo os elementos que eu tive quando aprendi capoeira na rua, como quando aprendi a andar de bicicleta. Não o tipo que você tem em uma aula estruturada, freqüentada 4 vezes por semana… Então eu comecei a pensar que eu tinha que criar exercícios de improvisação, por exemplo, coisas muito simples que pessoas que estão praticando capoeira não fazem por vergonha de serem taxados como bobos. Por exemplo, tente apenas se mover em volta do seu parceiro (parado, de pé) sem soltar golpes, mas sem gingar e outros clichês de “movimentação”.

A mesma coisa no chão. Você anda como um gato, movendo-se em volta da pessoa sem usar negativa, rolê… Coisas simples assim. Isso funcionou muito bem porque você desenvolve um método diferente do que está em voga. Você precisa de 5 ou 10 anos para ter alunos formados por esse método, e então pode ver o resultado do que você fez. E os resultados são meus filhos, Itapuã e Bruno, que em minha opinião não são os melhores jogadores do mundo, é claro, mas são jogadores muito bons. Eles tem essa habilidade com a improvisação. Eles podem ir a rodas de angola, como nós fomos à academia do João Grande recentemente. Jogaram com todo mundo, e têm seu próprio estilo, que não é Angola, mas se adaptam. Porquê seus movimentos são mais livres.

Eu acho que dei um pequeno passo nessa direção, que funcionou. Se meus filhos forem a algum lugar onde as pessoas jogam duro, eles jogam duro também, sem problemas. Não estou dizendo que todo mundo deva fazer isso. Acho que todas as tendências de capoeira existentes, do grupo de capoeira como um clã, da coisa com os angoleiros dizendo que eles são tradicionais, guardando as tradições reais, precisam existir porquê isso mantém as diferentes possibilidades. Para que pessoas com diferentes personalidades possam achar seus próprios espaços, mais próximos aos seus modos de ser. Para mim, eu descobri que depois dos meus 25 anos eu criei o meu próprio espaço particular, da mesma maneira.

PlanetCapoeira: Agora que a capoeira está se tornando um jogo globalizado, o que as outras culturas trazem para a arte? Qual a influência européia? Ou a americana?

Nestor: Isso é uma coisa nova. Há um relacionamento distinto aqui. Todos os diferentes estilos de capoeira foram forjados no mesmo contexto cultural, que a princípio, a Bahia – com a regional e a angola. Então, na década de 60, houve a contribuição de grupos de capoeira do Rio e São Paulo para o cenário. Como a mentalidade é diferente nesses estados, não apenas a forma da arte mudou um pouco, mas a própria arte se tornou mais suja, e as pessoas começaram a dizer “aquele FDP me copiou” !

Todo mundo está jogando quase do mesmo jeito – alguns mais técnicos, outros menos, mas quase do mesmo modo. No estilo regional Senzala, nas acrobacias, na Angola… Mas agora que a capoeira foi para o exterior, eu acredito que os movimentos do jogo e a parte musical não vão ser muito alteradas, mas a contribuição obviamente vai mudar muito. Eu acho, por exemplo, que com os europeus, eu sei o que vai acontecer. Eles valorizam muito a história e cultura – isso vai ser uma coisa importante na capoeira: conhecer a história, a cultura, os livros. Para obter PhD nesses aspectos, por exemplo…

Alguém que esteja na capoeira terá que fazer isso no futuro. O que eu quero dizer é que na década de 60, quando comecei, muitos dos melhores alunos de Bimba não sabiam como tocar o berimbau e os demais instrumentos. Eles não se importavam. É a mesma coisa para muitos dos praticantes de angola naquela época. O berimbau era algo a ser aprendido apenas se você quisesse. Mas no final da década de 70 e dos 90 em diante, para obter uma certa corda ou graduação, você TEM que tocar o berimbau. É agora parte do aprendizado da capoeira saber como tocar os ritmos da angola e da regional.

No futuro, com a cultura européia sendo agregada, você terá que conhecer os livros e a pesquisa sendo feita. As coisas se tornam um pouco mais complicadas (risos). Complicadas não, mais holísticas – uma palavra na moda atualmente… Isso envolve mais coisas do que atualmente. A parte negativa é que esses caras que são acadêmicos, como eu (risos), que têm PhD, vão começar a empurrar as coisas de tal forma que o conhecimento se tornará mais importante que o jogo em si. Como pessoas da angola ou da regional acham que seus estilos são mais importantes que o próprio jogo, quando o jogo é que define a capoeira. Todas essas outras coisas são ilusão – coisas que são construídas sobre o que é realmente importante. Esses são os aspectos positivos e negativos da contribuição européia, a meu ver.

PlanetCapoeira: E os Estados Unidos ? Eu gostaria de saber mais sobre isso…

Nestor: Pelo que tenho visto e ouvido até agora, eu acho que eles vão trazer algo de tecnológico – vídeos, CD-ROMs, livros, tudo comprato pela internet. Isso é algo que tem um lado muito positivo, porquê você vai ser capaz de ouvir, por exemplo, as palavras de João Pequeno, João Grande e Acordeon. Mesmo essa entrevista estará acessível via internet. Isso é uma coisa muito boa. Mas a parte negativa eu acredito que seja a falta de contato pessoa-pessoa. Como você e eu. Nós treinamos juntos, e agora estamos almoçando juntos. Começamos então a não apenas trocar idéias, mas porquê estamos juntos, nós sentimos como a outra pessoa é.

Como a outra pessoa joga o seu jogo da vida, e nós roubamos, se formos espertos, as melhores partes do jogo do outro. Eu acho que isso vai ser um pouco perdido. Quantas pessoas vão ter acesso pessoal a João Grande ? Você tem que ir à sua academia e aprender algo que você não pode aprender através da tecnologia. Você absorve algo, a malícia daquele cara, que foi destilada pelo tempo. Os velhos mestres têm malícia, desenvolvida ao longo de muito tempo, e isso você só pode ver pessoalmente. É a forma como eu vejo. As pessoas sempre dizem “Ah, os bons velhos tempos…” de Bimba, de Pastinha e de outros. Eu acho que se Bimba, Pastinha e todos os mestre antigos, se todos eles pudessem viver agora, eles prefeririam. É claro ! As únicas coisas que nós temos que superar hoje em dia são problemas como solidão e consumismo desenfreado. Há muitas armadilhas na sociedade atual nas quais você pode cair. Mas nos tempos deles, havia armadilhas também. Havia a polícia ! (risos)

PlanetCapoeira: Com o resto do mundo abraçando a capoeira, vão haver mudanças na capoeira no Brasil?

Nestor: Eu acho, como eu disse, que o jogo não será tão afetado. Talvez comecem a surgir músicas em outros idiomas. Eu estou gravando um CD, não de capoeira, mas com instrumentos de capoeira. É cantado em inglês, francês e segue por aí. É chamado “Músicas imorais de amor e danação por um jogador de capoeira decadente” (risos). É um pouco pornográfico às vezes. Como Tom Waits – muito obscuro e depressivo, como “Eu vou colocar um feitiço em você” quando um amante te abandona (risos). Mas de qualquer forma, o que eu acho que vai mudar é a mentalidade e a relação de poder entre grupos e pessoas. Porquê tudo tem relações de poder. Como alguns caras como Michel Foulcault (filósofo francês) dizem, a vida pode ser entendida através das relações de poder.

Eu acho que isso é um pouco restritivo, mas é uma boa aproximação. Na capoeira e no candomblé, algumas pessoas vêem algo de bonito, exótico, primitivo, e acham que as relações de poder são mais simples do que se você estiver numa grande organização multinacional. Ao contrário, algumas vezes é mais complicado, mais poderoso e perigoso porquê na multinacional ou na instituição burocrática há regras, há coisas nas quais você não pode mexer sem se estrepar. Na capoeira, você pode sair e matar alguém e eles dirão “muito bem, ninguém sabe que foi você”, como no submundo, entre as máfias.

Como eu disse outro dia em minha palestra sobre grupos nômades, você quer entender a capoeira ? Assista filmes do Tarantino ou “O poderoso chefão”. Apenas a violência nesses filmes é maior e a arte é menor, mas é o mesmo tipo de coisa – a traição, o não poder confiar. Trata-se de enganar a outra pessoa, que é o ensinamento da capoeira. Então alguém pode pensar que a capoeira é, em padrões ocidentais, uma coisa muito ruim. Não. Eu acho que ela é exatamente muito neutra. Te ensina como ver dentro das coisas. O cidadão comum é muito ingênuo. Eu vivi aqui (nos Estados Unidos) entre 56 e 57. Quando me lembro como adultos relacionados ao poder e governo eram completamente ingênuos…

Mas após o Vietnã, o movimento pelos direitos civis, o americano moderno não é mais tão ingênuo. De qualquer forma, as pessoas que detêm o poder (e não estou falando do governo, mas de pessoas por si mesmas, proprietários, etc), todos conhecem a malícia muito bem. Como manipular as situações, como tirar vantagem. É apenas o indivíduo normal, que não conhece, e acredita e confia cegamente… Há americanos dizendo que se a população soubesse como as salsichas e a política são feitas, eles não dormiriam à noite (risos). É uma frase maravilhosa. É o que a capoeira te dá: a percepção de como as salsichas são feitas (risos). Então com a contribuição da Europa e Estados Unidos, nós saberemos como as salsichas são feitas na Alemanhã e como os hambúrgueres são feitos no McDonalds nos EUA (risos).

Carybé – retratando o Brasil

Carybé não era nem argentino nem italiano. Era um homem de muitas cores, absorvendo todas elas, assim como o faz o preto na escala cromática. Pintava negros, índios e brancos.Quando partiu para outra viagem, disseram que foi fazer arte no céu. É provável que um dia desses, ao acordarmos e olharmos para as nuvens, encontremos nelas grandes baianas com seus tabuleiros ou negros jogando capoeira. Pode ser também que todo o céu se transforme numa imensa aquarela ou que o arco-íris mude de cor. Para quem veio de longe mostrar ao povo da Bahia a beleza desta terra, nada é impossível. Nem mesmo ser Obá de Xangô. E em se tratando de tão alto posto na hierarquia dos orixás, nada mais adequado que despedir-se saudando seu orixá-regente: KAWÓ-KABIYÈSILÉ!!!

Biografia

Hector Júlio Parude Bernabó – Carybé – nasceu dia 9 de fevereiro de 1911, em Lanús, Provincia de Buenos Aires. Aos 6 meses muda-se para Itália com seus pais Constantina e Eneas e seus quatro irmãos, onde permanece até os oito anos. Em 1919, veio de navio para o Rio de Janeiro e instalou-se no bairro de Bomsucesso. Em 1927, inicia seus estudos na Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro, a qual abandonou no segundo ano e voltou para Argentina, em 1929, para trabalhar no jornal “Notícias Gráficas”, em Buenos Aires. Entre 1935 e 1936, trabalhou com Júlio Cortazar no jornal “El Diário”. Em 1937 mudou-se para o jornal “Prégon” que o mandou para Salvador com um projeto ambicioso: fazer uma reportagem com Lampião. Só que ele teve que se contentar em desenhar as cabeças do “rei do cangaço” e seus capangas, já então decapitadas. O jornal, porém, fechou durante sua estada em Salvador e durante um ano Carybé viajou de ita (navio) por várias cidades do litoral norte chegando até Belém; depois voltou para o Rio de Janeiro e, de lá, para Buenos Aires.

Sua família morava no Rio e ele já tinha no currículo trabalhos em publicidade para jornais de lá, de São Paulo e de Buenos Aires, além de ter pintado muitos cartazes de rua. Já se considerava um “branco suspeito”, como dizia. Ouvira dizer que sua família (mãe gaúcha, pai italiano) havia uma tia preta que até fumava cachimbo. Sua morenização parecia uma fatalidade.

Em 1939, realizou sua primeira exposição coletiva com o artista Clemente Moreau, no Museu Municipal de Belas Artes de Buenos Aires e ilustrou o livro “Macumba, Relatos de la Tierra Verde”, de Bernardo Kordan. Em 1940, faz ilustrações para o livro “Macunaíma”, de Mário de Andrade, e o traduz para o espanhol juntamente com Raul Brie. Em 1941, desenha o “Almanaque Esso”, cujo pagamento lhe permite fazer uma longa viagem para Montevidéu, Corumbá, Cuiabá, visitando os garimpos de Pochoréu, Lageado e Cassununga, Uberaba, Pirapora, Juazeiro da Bahia, até Salvador onde passa alguns meses.
De lá, visitou o Norte o Nordeste passando por Juazeiro do Norte, Fortaleza, Belém, Manaus e depois até a Bolívia para então retornar a Buenos Aires.

Em 1943, realizou sua primeira exposição individual na Galeria Nordiska em Buenos Aires. Em 1950, a convite do Secretário da Educação, veio para a Bahia para trabalhar e passou a residir em Salvador. Durante sua carreira, Carybé participou de mais duzentas exposições individuais e coletivas em museus e galerias de arte da Europa, Estados Unidos, Canadá, África, Brasil, Japão, China e diversos países da América do Sul e Central, ilustrou dezenas de livros, e realizou murais para instituições como, entre outras, o Memorial da América Latina, American Airlines no Aeroporto Kennedy de Nova York e Banco da Bahia.

Com uma carta do escritor Rubem Braga ao então secretário de Educação da Bahia, Anísio Teixeira, em 1950, Carybé arrumou o emprego que pediu a Deus: desenhar cenas baianas. “Foi a sopa no mel. Nunca mais fui embora. A Bahia tem tudo que um pintor procura: luz, água e mar aberto. A gente vê o corpo humano funcionando”.

Quando morreu do coração, no dia 1 de Outubro de 1997, durante uma sessão num terreiro de candomblé, em Salvador, ele já era tão baiano quanto um outro estrangeiro, o etnólogo francês Pierre Verger, havia sido em vida. O artista plástico sofria de uma insuficiência respiratória crônica que provocou a parada cardíaca, a qual o matou.

Obra

Retratista fiel das tradições, crenças e costumes do povo baiano, Carybé projetou em sua arte os fundamentos da nação brasileira, na qual se misturam o negro, o índio e o branco. Desprezava a mitificação de seu trabalho, dizendo que “rabiscar papel e pintar telas não são atos de criação”. Resumidamente, contentava-se em afirmar: “Eu copio a vida”.

Desenhista brilhante, Carybé pertence à mais depurada crônica visual da Bahia, que tanto pode ser vista nos desenhos que criou para os livros de Jorge Amado quanto na vasta galeria de tipos de deuses do candomblé. Amante da vida, foi tocador de pandeiro, bom dançarino e contador de histórias. Seu maior orgulho foi ser Obá de Xangô.

Certamente, por isso, que as cenas da religião afro ocupam boa parte da produção deixada por ele. Dono de uma vasta obra, na qual se estimam cerca de 5.000 trabalhos, entre pinturas, desenhos, esculturas e esboços, com poucos golpes de pincel, ele era capaz de resumir a forma de baianas prostradas de joelhos com magníficos círculos coloridos.

Suas obras fazem parte do acervo das mais respeitáveis instituições, como o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque; Fundação Gulbenkian, de Lisboa; Museus de Arte Moderna da Bahia e São Paulo e Fundação Raymundo de Castro Maya, no Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, os trabalhos de Carybé não pararam de se valorizar e ele passou a viver só de arte. “Um quadro meu vale 10.000 dólares”, orgulhava-se ele, no começo de 1997, embora alguns possam chegar a até 30.000. Para ele, não tinha muita importância. “A economia é a peste negra. Nada sei sobre ela”, dizia.

Das muitas atividades que desempenhou no Brasil, algumas gostava de citar como curriculares, a exemplo de pandeirista do Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda, e ilustrador das obras de Jorge Amado, do qual era fraternal amigo desde que passou a morar na Bahia. Foi parceiro de Paulo Vanzolini, autor de capas de livros de Gabriel García Marquéz, ilustrador de inúmeras obras e autor do mural do Memorial da América Latina, em São Paulo. No decorrer da vida, o artista mingau foi muito pouco premiado – primeiro lugar em desenho numa bienal de São Paulo e por duas vezes sala especial em outras bienais. Gostava de pintar, mas não de ficar expondo, “emoldurar quadros, fazer catálogos, dar entrevistas, essas coisas aborrecidas”.

Para ele, a única coisa insuportável na vida era ficar parado, esperando um estalo de criatividade. “Inspiração é besteira”, dizia.

Candomblé

Adotando a natureza típica da terra, o pintor integrou-se suavemente ao candomblé, a religião dos negros iorubás, fazendo-se filho de Oxóssi e presidente do Conselho dos Obás no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, da Mãe Stella.

Acima de tudo, no entanto, tinha o título de Obá de Xangô, o posto mais alto dado pelo candomblé, seu maior orgulho. “Sou amoroso e devoto da religiosidade afro-brasileira, de seus deuses modestos e humanos, que hoje se defrontam com estes deuses contemporâneos, terríveis e vorazes, que são a tecnologia e a ciência”, dizia.

Segundo o amigo, o escritor Jorge Amado, Carybé foi como um observador de dentro, envolvido com a religião, que ele se dispôs a retratar. “Outros podem reunir dados frios e secos, violentar o segredo com as máquinas fotográficas e, com os gravadores e fazer em torno dele maior ou menor sensasionalismo, a serviço dos racismos diversos, mas apenas Carybé e ninguém mais poderia preservar os valores da religião da Bahia”. Nancy, sua esposa durante 50 anos, costumava contar que o marido era um homem de tanta fé que jamais levava papel ou lápis para as cerimônias.

Achava falta de respeito. Guardava tudo de cabeça e desenvolveu uma memória visual fora do comum.

Temas de Candomblé

Jornal do Commercio – Recife, 03 de outubro de 1997

Temas de Candomblé
por CARYBÉ

(Apresentação do livro homônimo, com 27 desenhos de Carybé. Editado pela Coleção Recôncavo, da Livaria Turista, de Salvador, Bahia, em 1951, com tiragem de 1500 exemplares autografados pelo autor.)

“Depois do meio-dia começa. A sombra escala trabalhosamente muralhas de fortes e conventos, barrancos, ladeiras e buracos, ganha terreno às pressas e antes que o vintém do sol acabe de se deitar detrás de Itaparica ela já moureja nos fundos, verdes e doces vales da Bahia.

Os fifós vão abrindo quadros familiares na escurama. Jantares servidos, retratos de casamento, máquinas de coser e gente, muita gente, fazendo coisas, representando a vida nos pequenos teatros das janelas e portas iluminadas. Já a sombra vitoriosa comeu o verde das bananeiras, as ribanceiras vermelhas, os pés de jaca, os coqueiros, a gente. Só ternos brancos e vestidos mal-assombrados sobem e descem as ladeiras sem gente dentro, ou cachorros silenciosos como que voando na noite e, detrás do samba do alto falante do armazém, o baticúm dos atabaques rola-rum, rumpí, lé, rum-rumpilé, rum, rumpí, lé.

Subiu um foguete de três estalos e muitas cores. Oxóssi já está farejando caça debaixo dos cajueiros e das cajás. Não são árvores da terra dele não mas já acostumou. Passa o bonde saudando também com faíscas verdes e estrondo de ferralha. Rum, rumpí, lé, estoura outro foguete. Outro orixá desceu. “Atotô, meu pai Omolú, me livre deste reumatismo que amarra meu pé. Sou ganhador, meu pai!” E Omolú, dono das pestes e da bexiga, murmura, detrás das palhas que lhe cobrem o rosto, o remédio. Seiva de folhas e raízes ou água de sereno e sucos vegetais e o pé de tio Artur volta a suportar balaios imensos, camas, malas, tudo…

A cidade gorda, farta de cacau e fumo está debruçada sobre o mar, fingindo não saber de nada, tomando a fresca, vendo a lua se escamando na maré de enchente. E se fosse outra noite, se fosse uma noite de trovoada, por uma boca tiraria ladainhas a Santa Bárbara e pela outra cantaria para Iansã, bonita como o que, enfrentando os coriscos com seu alfange na mão. Dançando ao som dos pipocos; que não tem medo de relâmpago, nem de egúns do outro mundo. Ela dança levando na cabeça o fogo que roubou a Xangô enquanto a chuva derrete o barro vermelho que vira sangue vale abaixo até ir tingir o começo do mar.

Rum, rumpí, lé.

Exú fazendo coisa. Entrando nos sobradões do Pelourinho e saindo no “baton” de “rouge” da mocinha da Barra, rindo de suas estrepolias, gozando nós todos, apressando os fins-de-mês. Mas não é mau, não: um galo, pinga e um pouco de farofa e fica sensibilizado, desfaz qualquer perversidade e chega a ficar com pena do que fez.

Rum, rumpí, lé e agogô de som agudo, e muito perfume, e espelhos, e pentes bonitos, e sedas, jóias e o que há de bom para Oxúm que mora no Dique.

Qualquer morador do Tororó ou da Usina já a viu sobre as águas verdes. As lavadeiras lhe cantam de cócoras, esfregando a sujeira dos outros, refletidas de cabeça para baixo dentro dágua que nem figuras de baralho. Muitas delas são suas filhas, e não há quem duvide vendo-as subir majestosas debaixo de trouxas enormes, o vestido molhado grudando no corpo, as ancas de cabaça moendo safras inteiras de samba. Ela escolhe as mais bonitas, as mais dengosas para descer aos terreiros.

Orayeyêo! Uma roxa e outra cor de formiga, duas oxúns passam, nada quer dizer o vestido de chita desbotada nem a bacia na cabeça. Não estão vendo? São deusas. Deusas da água. Da água verde do dique do Tororó.

Vitorina, Raimunda, Chica, fritam acarajé, vendem bolos, fato, cocada, mingau e são deusas também. Rum, rumpí, lé. E os Orixás descem, de dia ou de noite, tanto faz. Vem Ogúm o guerreiro; Oxalá, velho, imaculado, cajado acabando em pássaro, na mão trêmula; Iemanjá tangendo espumas, cheirando a mar; Obaluaê transformando a febre e as convulsões em danças terríveis, belas no mistério da palha roxa que lhe cobre a figura.

Há muita confusão aqui, senhor! Os sinos badalam nas torres cor de osso, São Lázaro come pipocas, há anjos de madeira com asas de arara e oxês escuros empapados de azeite. Incenso, mirra, ouro e munguzá; ouro nas farofas e nas enlouquecidas naves barrocas, mirra e incenso não faltam, estão no ar transparente, nas brisas que vêm de tão longe, no aromado passar de uma creoula.

E há paz nos largos pátios de azulejo, paz na sombra vertical dos arvoredos encantados, na água das quartinhas, na luz imensa da Bahia, luz a prumo que soca de sombra fresca os velhos portões de pedra, luz do meio-dia, a hora do Cão.”

Morre Carybé

Jornal do Commercio – Recife, 03 de outubro de 1997

Bahia não tem mais a leveza de Carybé
Agência Estado

SALVADOR – O artísta plástico argentino Hector Bernabó, o Carybé, de 86 anos, radicado na Bahia desde a década de 30, foi sepultado às 11h30 de ontem no cemitério Jardim da Saudade. Cerca de 150 pessoas acompanharam a cerimônia marcada pela emoção. O escritor Jorge Amado, amigo íntimo de Carybé, passou meia hora no velório mas não ficou para o sepultamento por recomendação médica. Ele sentiu-se mal na noite de qarta-feira, quando participava de uma reunião no terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, situado no bairro de São Gonçalo do Retiro na periferia de Salvador. Foi levado para o Hospital Roberto Santos onde morreu de ataque do coração.

Carybé, que na Bahia significa um mingau dado a mulher parida, era amigo de farra de alguns “baianos fundamentais” como o escritor Jorge Amado, o etnólogo Pierre Verger e o pintor Calazans Neto. Embora fosse considerado um dos artistas mais talentosos de sua geração, nunca se preocupou em ganhar dinheiro com seus quadros, através dos quais retratava a Bahia, seus personagens e os orixás.

Ele ilustrou livros de Guimarãs Rosa (entre os quais Grande Sertão: Veredas) Jorge Amado e seu último grande trabalho foi o conjunto de gravuras que serviu de base para as novas vinhetas da TVE da Bahia, lançadas no ano passado. Foi a primeira vez que ele trabalhou com a televisão e confessou-se maravilhado com o resultado. “Misturaram meus desenhos colocaram na maquína e eles saíram andando, dançando, pulando”, disse na época dando sua interpretação particular para a animação obtida pelo computador.

Como a América vai transformar a Capoeira

Contra-Mestre Pererê, para o site PlanetCapoeira.com em 30 de janeiro de 2001
Tradução: Teimosia
Eu tenho pensado bastante desde que escrevi meu último artigo para o Planet Capoeira, e descobri a necessidade de explorar aIgumas das questões que eu mesmo levantei da última vez. Tenho estado imerso na comunidade da capoeira por alguns anos, e tive muitas discussões tanto com brasileiros quanto com americanos sobre como a capoeira tem sido oferecida para e aceita pelos americanos. Uma das considerações primárias é que a razão original pela qual existe tanta capoeira fora do Brasil é porquê ela oferece para o instrutor um retorno financeiro que não seria possível em solo brasileiro. Como um capoeirista americano me disse uma vez: “Para os brasileiros, capoeira é igual a dolar e aponta o norte do mapa”. 
Alguns podem se iludir pensando que a capoeira está sendo ensinada por motivos mais altruísticos ou por razões estéticas, e ainda que esses aspectos tenham certo papel, você estaria errado em pensar que essas são as razões pelas quais a capoeira tem sido ensinada na América do Norte por brasileiros. Eu tive o infortúnio de ser o assistente de um instrutor brasileiro que lutou por anos para se estabelecer com a capoeira aqui nos EUA (ele atualmente retornou ao Brasil). Como seu assistente, testemunhei conflitos sérios que surgiram quando outros mestres ou instrutores começaram a se estabelecer no “seu” território e esquemas para conseguir centenas de alunos e construir uma academia enorme. A situação persistiu e persistiu, e eu soube diversas vezes de questões e problemas similares, da boca de outros mestres na região em que vivo. Também recebi muita informação de vários estudantes de outros grupos com os quais estive em contato durante os anos. 
A única vez que eu ouvi essas pessoas (mestres e instrutores brasileiros) falarem sobre arte, tradição e respeito e responsabilidade era quando elas estavam ensinando a seus alunos como se comportarem. Muito mais freqüentes eram as discussões políticas mesquinhas e planos para conseguir mais dinheiro. Eu estou convicto de que muitos mestres e instrutores brasileiros na América do Norte tiveram e têm uma influência positiva e maravilhosa nas vidas de muitas pessoas aqui. Entretanto, quero reafirmar que para acreditar que esta é a razão primária pela qual estes professores estão aqui dividindo sua cultura e arte, em primeiro lugar uma pessoa tem que ser muito ingênua.
Eu acredito piamente que a capoeira de ambos os estilos, tradicional e contemporânea (ou derivações de ambos) está aqui para ficar. Por quê ? Porquê os americanos amam a capoeira. Eles gostam de jogar, e gostam de ver. Você já pode vê-la em filmes, em revistas sobre saúde, em videoclipes, em videogames, em clubes de dança, em performances de rua, em torneios de artes marciais. Você pode encontrar garotos nas praças do centro de Seattle jogando capoeira tanto quanto dançando break, e eu sei que eles nunca tiveram uma aula com um instrutor de capoeira. Eles “pegaram” no ar, da TV, de assistir um amigo ou seus irmãos mais velhos que visitaram São Francisco e que estudaram capoeira cinco anos atrás e ainda sabem alguns movimentos. A maioria desses tipos de capoeira é claramente pouco sofisticada, da perspectiva de um capoeirista “legítimo”. É um intercâmbio de chutes de artes marciais e esquivas derivadas de jogos infantis como “queimada” que, apesar de rudimentar, nunca havia sido feito antes. 
Freqüentemente essas atividades são acompanhadas de música hip-hop num aparelho estéreo. O que está faltando é contexto, e contexto é feito do entusiasmo dos participantes. Eles não sentem a cultura afro-brasileira e a história que os mestres da capoeira prezam e mantêm nem sentem falta da conexão com ela. Um de meus estudantes mais antigos recentemente visitou uma zona rural no México e presenciou um pouco de capoeira. Ele disse que foi uma das coisas mais bizarras que já viu, mas era considerada “capoeira verdadeira” pelos mexicanos que estavam praticando, mesmo que nenhum deles tivesse conhecimento do que era um berimbau e muitas outras coisas consideradas importantes e tradicionais na capoeira. Acredito que isso é um sinal muito claro: se os mestres brasileiros falham em passar tudo de sua arte para seus estudantes estrangeiros e não formam pessoas de nível elevado na capoeira (em uma tentativa de manter o controle sobre a) isso não vai deter esses gringos de forma alguma. Esses não-brasileiros vão simplesmente criar por si mesmos o que não entendem ou não sabem. Vão tomar a capoeira para si, e já é muito tarde para controlar a situação. 
A única coisa que os brasileiros podem fazer agora é colocar a si mesmos em uma posição de “resguardo”, um lugar de apoio e esperançosamente, de influência para o cenário da comunidade norte-americana de capoeira. Se os brasileiros que estão na vanguarda da comunidade norte-americana de capoeira falharem em fazer isso, continuando a trazer jovens instrutores brasileiros (e a adicioná-los ao sistema de associações de capoeira norte-americanas controladas por brasileiros) ao invés de criarem uma nova geração de instrutores a partir dos seus próprios alunos gringos, eles vão efetivamente perder o controle de sua amada arte aqui nos EUA e nos demais lugares. Apesar de que estou certo de que eles vão continuar a prosperar, negócios como de costume. 
Se esses mestres e instrutores brasileiros ficam com raiva da sucessão de eventos que está logo ali no horizonte, eles não têm ninguém a não ser a si mesmos para culpar. Eles deviam ter questionado seus próprios motivos para virem aqui como instrutores profissionais de capoeira, em primeiro lugar. Se você oferece algo a outros e espera manter o controle sobre como eles usam, bem, isso é pura tolice e possivelmente má-fé. A reação que tenho visto freqüentemente de diversos mestres brasileiros (o que de maneira alguma se aplica a todos) quando confrontados com a idéia de não-brasileiros tendo seus próprios grupos e escolas é explodir em explicações sobre falhas individuais e/ou falar em chutar os rabos deles (muito profissional…). Parece haver muito poucos mestres brasileiros com visão e discernimento para no mínimo modificar suas agendas e tratar dessa questão, como é claramente necessário.
Essa ocorrência de quebra do monopólio aconteceu com outras artes aqui na América do Norte. Um bom exemplo é o que aconteceu com o Aikidô. Os mestres japoneses nos EUA agressivamente controlaram o estabelecimento na América do Norte por anos, até que a estrutura do poder “virou de cabeça para baixo” (isso parece ser uma metáfora muito comum nessa arte, o que é compartilhado com a capoeira). Um grupo de aikidokas (praticantes de aikidô) americanos com anos de experiência sentiu que estava sendo negado a eles o acesso às graduações mais altas e então, como é freqüentemente o caso de rebeldes e revolucionários, eles coletivamente se desligaram e começaram a sua própria organização de Aikidô. Em poucos anos, sua organização se tornou tão grande que efetivamente tirou dos japoneses o monopólio do aikidô nos EUA, e através de seus próprios esforços, criou um elo direto com a principal organização de aikidô no Japão. 
As várias organizações japonesas e americanas agora coexistem, e a situação se amenizou bastante. Há histórias similares sobre praticamente todas as artes marciais que entraram nos EUA. Uma vez que você compartilha uma forma de arte com outra cultura em larga escala, é difícil e possivelmente errado esperar manter controle completo sobre como a arte é absorvida pela nova cultura. Novas formas e idéias vão surgir, quer você queira ou não. Eu percebo que isso é considerado blasfêmia, e que muitos dos estudantes mais antigos que são completamente dedicados a seus mestres vão chiar com as minhas palavras, achando que minhas idéias são repreensíveis. Entretanto, esse fato não está em suas mãos também, e eles têm ainda menos a dizer sobre isso do que seus mestres. São todos aqueles estudantes que se sentiram barrados, explorados, abandonados e então pularam fora, ou aqueles que não tiveram contato com instrutores qualificados, é que vão causar a eventual revolução em todos os estilos de capoeira num futuro próximo. Nesse momento exato, essas pessoas facilmente ultrapassam em número os estudantes que treinam com um instrutor nos EUA. 
Eles podem ser muito dedicados ou ser relaxados, mas coletivamente têm muito poder e influência. Há também um interesse crescente vindo dos praticantes de vários outros sistemas de artes marciais para incluir desde um “chute de capoeira” em seus métodos até a inclusão da capoeira como um sub-sistema inteiro em sua arte marcial. Artes marciais nos EUA representam um grande negócio. Uma das minhas linhas de trabalho é como instrutor para a Escola Internacional de Dublês, organização baseada nos EUA. Estou em contato constante com uma gama de instrutores de artes marciais “bem-sucedidos” em todo o país. Muitos desses instrutores tem centenas, se não milhares de estudantes nessas organizações enormes, e mantêm conexões através da indústria de saúde e entretenimento. Como eu sou um dos poucos contatos com a capoeira que eles têm, recebo comentários freqüentes de como a capoeira tem se tornado popular aos seus olhos. 
Tenho sido convidado por organizações de artes marciais e de combate simulado em todo o continente para fazer demonstrações em seus eventos e ministrar workshops como instrutor de capoeira. Como um dublê, me sugerem constantemente que eu envie meu currículo devido às minhas habilidades como capoeirista. A indústria do entretenimento está acordando para o fato de que a capoeira é extremamente rentável, e esse reconhecimento certamente vai causar um impacto extenso e imprevisível na arte. Capoeira é muito atraente, e mesmo em sua forma mais modesta ela fascina o observador. Ela vende. Olha lá!
O Contra-Mestre Pererê (Eric Johnson) é graduado pelo Mestre Nô, e mantém em Seattle uma filial do Grupo de Capoeira Angola Palmares.

Nietzsche e a tradição

Trombei há pouco com esse artigo: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_7_10.htm

A abrangência do texto começa pelas “festas de boi”, mas eu creio que podemos expandí-la para qualquer folguedo popular, capoeira incluída. E justamente caminhando nessa linha de pensamento, de festas populares sendo alteradas com o decorrer do tempo, de personagens transitando entre festas, me lembrei de uma conversa que tive com um amigo faz um tempo: o que é a tradição, e como ela nos serve ?
Na época, acabamos indo esbarrar em Nietzsche (“Alvorada”):

Conceito de moralidade dos costumes.


Em comparação com o modo de vida de todos os milênios de humanidade, nós, humanos conteporâneos, vivemos uma era imoral: o poder do costume está fantasticamente enfraquecido, e o senso de moral, tão rarefeito que poderia ser descrito mais ou menos como evaporado. Isso é o motivo de perguntas fundamentais sobre a origem da moralidade serem tão difíceis para nós, recém-chegados – e mesmo quando as formulamos, descobrimos ser impossível enunciá-las – porquê elas soam estranhas ou porquê elas parecem depreciar a própria moralidade !

Isso é, por exemplo, o caso da proposição mestra: a moralidade não é nada além da obediência aos costumes, de quaisquer tipos que eles possam ser; os costumes, entretanto, são o modo tradicional de nos comportarmos e avaliarmos. Nas coisas nas quais nenhuma tradição comanda, não há moralidade; e quão menos a vida é determinada pela tradição, menor o círculo da moralidade. O ser humano livre é imoral porquê em todas as coisas ele está determinado a confiar apenas em si mesmo, e não em uma tradição: em todas as condições da humanidade, “mal” significa o mesmo que “individual”, “livre”, “caprichoso”, “não-usual”, “inédito”, “incalculável”.

Julgada pelos padrões dessas condições, uma ação realizada não porquê a tradição comanda, mas por outros motivos (por exemplo, porquê é útil ao indivíduo), ainda que sejam exatamente os motivos pelos quais a tradição foi um dia criada, é chamada imoral e sentida como imoral por aquele que a realizou: porquê não foi realizada com obediência à tradição.


O que é a tradição ? Uma autoridade maior à qual se obedece, não porquê ela comanda o que é útil para nós, mas simplesmente porquê ela comanda. O que distingue então o sentimento de existência da tradição, do sentimento de medo em si ? É o medo da presença de um intelecto superior que comanda, de um poder incompreensível e indefinido, de algo mais que pessoal – há superstição nesse medo. Originalmente, toda a educação e cuidado com a saúde, casamento, cura de doenças, agricultura, guerra, discurso e silêncio, negociação com outros povos e com deuses, pertencia ao domínio da moralidade: tais atividades demandavam que se observasse prescrições sem que se pensasse como um indivíduo.

Originalmente, entretanto, tudo era costume, e quem quer que desejasse se elevar acima disso devia tornar-se um ditador de leis e curandeiro e algum tipo de semi-deus: isso quer dizer, ele tinha que criar costumes – algo assustador, mortalmente perigoso !

O fato é que a conversa nunca terminou, mas as pulgas continuam me mordendo a orelha. “Tudo o que é demais, é muito”, “toda unanimidade é burra”, diz o povo… Em excesso, até carinho da mamãe e canja de galinha fazem mal. E o excesso de zelo com a tradição, como fica ? Não corremos o risco de engessar a história que nós próprios construímos diariamente ?
Outro dia postei um vídeo no YouTube, e achei um comentário interessante:

“Nunca vi um angoleiro que prestasse colocar joelho no chão, dar aú na frente da cabeça do camarada, ou botar a cabeça no pé do camarada… é por isso que esses dois estão na praça da Republica, sem uniforme, e sem nexo…”
De onde vem a tradição de “não por o joelho no chão” ? Será provinda daquela necessidade antiga de “não sujar a roupa” ? O conceito ainda se aplica em tempos modernos ? Eu não coloco o joelho no chão porquê aprendi assim – mas qual o motivo real, o rationale por trás ? E quanto à falta de uniforme ? Quanto tempo um costume precisa existir para virar tradição ? Uniformes na capoeira existem há uns 70-80 anos… A roda na praça da República acontece há uns 40 anos (até onde sei) – já deu tempo de ter criado as suas próprias tradições ? Existem tradições universais, dentro da capoeira ?

Menino, quem foi teu mestre ?

Ouvi falar de Ângelo Augusto Decanio Filho pela primeira vez em 1997, ao assistir o documentário “Pastinha – Uma vida pela capoeira”. Lá estava ele, sentado defronte ao computador e falando sobre como os dois capoeiristas se tornam um durante o jogo – o Transe Capoeirano.
Conheci o trabalho de Ângelo Augusto Decanio Filho no início de 2003, remando na internet atrás de boas fontes de informação sobre capoeira.
Clica daqui, clica dali, e esbarrei com o site “Capoeira da Bahia”. Fiquei ao mesmo tempo exultante e intrigado com a qualidade e a quantidade de material. Como tinha coisa boa de ler, e como diabos uma só pessoa poderia ter feito tudo aquilo ? Seria ele um “polvo humano” com 8 braços para digitar ?
Fui me embrenhando na leitura, e quando dei por mim, a tarde de trabalho já se tinha ido – mais um dia de labuta perdido para a vadiagem da capoeira. Naquela mesma noite, após sair da roda, revi o documentário sobre a vida do Mestre Pastinha – dando atenção especial ao discurso sobre o transe. Quem era aquele senhor, mestre capoeira, médico ?
Outro dia veio e se foi, horas escorridas dentro do “Capoeira da Bahia”. “A herança de Mestre Bimba”. “A herança de Mestre Pastinha”. “O Transe Capoeirano”. “Falando de capoeira”. Naquela mesma semana, enviei um email ao mestre perguntando se precisava de ajuda para organizar volume tão grande de dados. A resposta veio de bate-pronto: “Sim” – e minha vida começou a mudar.
Baixei o conteúdo inteiro do site, e gastei o horário de almoço do mês seguinte organizando e formatando, sugerindo e discutindo com o mestre o layout do site. Passamos a nos falar periodicamente por telefone, e em longas conversas eu aprendi que o trabalho bom é feito para os outros, sem esperar nada em troca. Nas palavras de Decanio, “Não se vê grãos de areia quando o cimento está pronto – faça bem a sua parte e não se preocupe com o reconhecimento”.
Naqueles dias, soube do tempo em que ele lecionara medicina gratuitamente, e senti vergonha por todos os vídeos que eu havia digitalizado e feito questão de por o meu nome. Rodas antigas, nas quais não joguei, não toquei, sequer estive presente – só tive o trabalho de transferir do videocassete para o computador e por na internet para quem quisesse ver. Sobravam boas intenções, mas faltava humildade.
Outra lição veio quando um amigo da Universidade de Indiana enviou para Decanio as gravações históricas de Mestre Bimba, escondidas num acervo americano de música folclórica desde a década de 1940. A iniciativa de difundir o material foi imediata (“que se cobre só a despesa com o envio, porquê quem trabalha de graça é relógio”), primeiramente pelos correios, depois pela própria internet. Nada se guarda, nada se leva.
Encontrei Ângelo Augusto Decanio Filho pessoalmente em novembro de 2003, quando embarquei para Salvador juntamente com minha esposa, para uma temporada de férias. E ali, na Vivenda Yemanjá, Praia de Tubarão, Paripe, vim realmente ver quem é e do que é feito o Mestre Decanio. A casa cheia de história, de conhecimento. A aparelhagem de ginástica nos fundos. O poste de cimento onde o mestre me fez praticar rasteiras, com o auxílio de uma câmara-de-ar. Os patins-de-mão, exercícios para todo o corpo.
E a biblioteca, abarrotada até o teto com livros, fitas de vídeo e discos. Compêndios de medicina. Volumes e mais volumes sobre informática. As obras completas de Pierre Verger, grande amigo do mestre. Literatura, romances, cordéis. Os manuscritos e um quadro do Mestre Pastinha, originais – que ele fez questão de digitalizar e difundir. Obras de Carybé, também grande amigo. LPs de capoeira, candomblé e umbanda. Facas de arremesso da aeronáutica. Ferramentas, equipamento militar. Computador com acesso à internet. Qualquer interessado em capoeira, em cultura afro-brasileira, em conhecimento humano, poderia se perder naquele espaço para sempre – ser tragado pelo montante de informação.
As prosas com o mestre renderam horas. O corpo fechado que escapou de tiros. Os treinos a portas fechadas, armados com cacetes de jenipapo, depois que o Mestre Bimba ia embora. O joelho arrebentado no treino de judô, a recuperação por meio de massagens. Os encontros com o sobrenatural – que para ele, Decanio, não saíam da esfera do natural. Psicomotricidade e erês; sistema nervoso central e eguns; física e metafísica – o mestre falava do mundo sólido e do que não se pode ver de uma maneira que assustava a mim, ignorante das coisas. 
Ali, na cozinha de sua casa, a garrafa de Óleo Juventa para manter as juntas lisas; o aluá geladinho; o molho de pimenta para o café da manhã; lembranças do Mestre Waldemar; o caruru e as histórias de Dona Bena, relembrando os tempos do Mestre Bimba.
Nas saídas de Paripe para o Pelourinho, casos e mais casos sobre os pontos por onde passávamos. Alagados, Periperi, Cidade Alta, o centro histórico. “Nesse casarão, Pastinha deu aulas antes dos tempos da CECA”. “Essa igreja, no meu tempo de menino, tinha os entalhes escondidos por camadas de cal e tinta”. “Repare como a cultura branca tentou se afirmar no Terreiro de Jesus, circundando a praça de igrejas”. Aqui onde fica esse prédio, era um casario colonial”. “Aqui Caiçara tomou o quepe de um general gringo que visitava o Brasil”. Decanio tirava a casca do presente, deixando ver um passado vivo e colorido…
Quando dei meus primeiros passos na Cidade Baixa, um pombo me acertou uma bela rajada na testa. “Os pombos daqui reconhecem mineiro de longe”, riu o mestre.
Ainda no Pelourinho, as visitas e o encontro com outros mestres-capoeira. A academia do Mestre Nenel, onde Decanio me apresentou à “mulher-barbada”, receita legada por Bimba. A festa da Zumbimba, onde pude ver o próprio Decanio jogar capoeira com Boinha, cercado pela Turma de Bimba.
Jogo ladino, apertado – que macaco velho não põe a mão em cumbuca. A bela roda na ABCA, ouvindo Pelé da Bomba e seu vozeirão. A boa conversa com Bola Sete, Itapoan e Canelão. A meninada do Projeto Camaradinhas, a alegria de Pangolim. Visitas ao Mestre João Pequeno, as conversas entre Decanio e ele. Vozes mansas falando de casos bravos, sabedoria na simplicidade.
E a Ilha de Maré, onde encontramos Seu Dundunga, nos seus mais de 100 anos – ele é quem salvou Decanio em uma ocasião de naufrágio, tempos atrás. E ele, Dundunga, relatou como o mestre passou desde então a velejar pelas ilhas da baía com seus alunos de medicina. “Médicos da família”, num tempo em que o poder público sequer pensava nisso – atendimento gratuito e personalizado. “Atendíamos durante o dia, fazíamos festa à noite”.
Por todo canto onde andamos em Maré, o povo vinha vê-lo, cumprimentá-lo. “Dessa menina eu fiz o parto” – e a menina tinha seus 40 anos. “Esse menino, consertei-lhe a perna quebrada” – e o menino já era grisalho. Decanio irradiava esperança, encarnava o altruísmo no meio da gente da ilha.
Voltei de Salvador em meados de dezembro, trazendo um pedaço da Bahia no peito. O que Ângelo Augusto Decanio Filho, Mestre Decanio, Deco, me ensinou, ninguém me tira: que a verdadeira recompensa por um trabalho bem feito não pode ser vista, medida, contada. Não pede reconhecimento, fama, glória. Que ninguém muda a cabeça de ninguém voluntariamente – ser o exemplo é o máximo que se pode fazer. Que compartilhar é o caminho para a felicidade do homem – seja conhecimento, amizade, comida. E que a capoeira é um instrumento de inclusão, antes de tudo: abriga pobres e ricos, brancos e pretos, analfabetos e doutores – qualquer um que se entregue ao toque do berimbau.
Menino, quem foi teu mestre ?
Que te deu essa lição ?
A ele devo respeito,
Saúde e obrigação

Salve, Mestre Decanio. Parabéns, meu amigo. Axé, meu pai.
Teimosia
Manaus, 09 de fevereiro de 2006