Extraído/adaptado de um texto de Augusto Mário Ferreira Jornalista/escritor, formado em capoeira pelo Mestre Bimba em 1956
Baseada em pesquisa histórica do advogado baiano Gabino Kruschewsky (“A Tarde”, 27/6/76, p. 6.), arquivada
na hemeroteca sobre capoeira do advogado/tenente, Esdras Magalhães dos Santos (Mestre Damião)
Quando desceu o portal de honra do navio da Marinha, o Conde D’Eu, em traje de gala, avistou uma Salvador engalanada para recebê-lo com honras de estilo. Já no tapete vermelho sobre o piso esburacado do cais do porto, recebeu as boas vindas do conselheiro Almeida Couto, presidente da província da Bahia, e as saudações da aristocracia local e também de membros da Guarda Nacional.
Marido da Princesa Isabel, herdeira do trono, o conde de origem francesa e naturalizado brasileiro, visitava a Bahia como representante do Imperador Dom Pedro II, que se reteve no Rio administrando as arruaças diárias contra a monarquia, insufladas pelos simpatizantes do pretendido regime republicano.
Conde D’Eu cumpria uma espécie de missão diplomática de apaziguamento dos ânimos políticos, alvoroçados pelo manifesto antimonarquista da Convenção de Itú, de 18 de abril de 1873. Ainda ressabiado de suas recentes aparições públicas, ele temia a repetição em Salvador dos apupos que os membros da Corte, inclusive ele, receberam durante um cortejo de carruagens, liderado pelo próprio Imperador quando este deixara a residência imperial da Quinta de Boa Vista para circular pelas ruas do Rio, numa daquelas tardes tumultuadas de 1883.
Nem o conde, nem ninguém sabia que, no mesmo instante de seu desembarque, no mesmo instante de seu desembarque, estudantes anti-monarquistas da Faculdade de Medicina da Bahia, preparavam-lhe uma manifestação hostil, com vaias, ovos e tomates podres, na Ladeira do Pelourinho, por onde deveria passar daí a pouco, e depois do acesso à Cidade Alta pela subida do Taboão.
Ignorava também que numa das vielas estreitas do Maciel de Cima, proximidades da mesma faculdade de Medicina, o arruaceiro debochado Manoel Benicio dos Passos, por conta de suas simpatias monárquicas, mobilizava um grupo de capoeiristas de primeira linha para empastelar a manifestação estudantil com porretes de peroba e golpes de capoeira. Mulato sarará de cabelo crespo, atlético e corajoso, curtido de muitas cadeias por arruaças, Manoel Benício recebeu o apelido de “Macaco Beleza”, pela extrema feiúra de sua cara e pela agilidade de macaco com que jogava.
Não deu outra: quando os estudantes interceptaram o cortejo do conde no sopé da Ladeira do Pelourinho e começaram a vaiar e a atirar ovos e tomates, a turma de Macaco Beleza caiu de pau (de peroba) em cima da estudantada. Em instantes dissolveu a manifestação, deixando muitos feridos pelas porretadas e pelos golpes de capoeira. Vitorioso, subiu num caixote e mandou ver um discurso inflamado em defesa da monarquia.
– Quero esse popular na recepção desta noite, no Palácio como meu convidado de honra – ordenou o conde D`Eu ao seu anfitrião, o conselheiro Almeida Couto. O Conselheiro tentou dissuadir o conde, informando tratar-se de um arruaceiro de péssimos antecedentes, um capoeirista (sinônimo de marginal na época), cuja presença na recepção poderia constranger os demais convidados. O conde contudo foi enfático:
– O Baile é meu e o convidado é meu.
Pouco tempo depois, já dois emissários do presidente da Província formalizavam o convite ao Macaco Beleza e negociavam com ele as condições estebelecidas pelo conselheiro Almeida Couto que começavam com uma advertência e uma ameaça:
– Fica proibido de fazer besteiras. Se fizer, vai mofar na cadeia, depois que o conde for embora.
Nem a advertência, nem a ameaça o preocupavam. Tinha outras preocupações:
– Só vou lá se o conselheiro pagar uma roupa nova pra mim – sentenciou o capoeirista, que jamais primara pela elegância. Irritado pela petulância do capoeirista, que ele detestava e a quem mandara prender várias vezes, e sobretudo pelo incômodo convite do conde, o conselheiro Almeida Couto obrigou a alfaiataria do Palácio a costurar em poucas horas uma roupa de gala para o Macaco Beleza, que enfatiotado e exalando perfume barato de prostituta, foi o primeiro a chegar ao palácio.
Depois de receber as honras da banda de música, ele esperou, como faziam os nobres, o anúncio de sua presença, feito pelo mestre de cerimônias para só então, com seu passo de malandro, atravessar o salão luminoso e enfeitado:
– Sua Excelência, o nobre senhor Manoel Benício dos Passos, convidado de honra em nome de sua Alteza Imperial. O anúncio supreendeu a oficialidade do Corpo a Guarda presente e revirou o estômago do Conselheiro Almeida Couto, que, por precaução isolou Macaco Beleza bem no fundo do salão. Após a chegada de todos os convidados, o conde D’Eu, com a imponência dos seus quarenta e dois anos, apareceu na mesma porta por onde entrara Macaco Beleza e esperou a vez do seu anúncio:
– Sua Alteza, representante do Imperador D. Pedro II, comandante em chefe das forças navais e terrestres, vitoriosas na guerra contra o Paraguai, Luís Felipe Maria Fernando Gastão D’Orleans, o conde D’Eu!
Macaco Beleza nem esperou o fim dos aplausos. Sob o olhar irado do Presidente da Provínica, atravessou o centro vazio do salão e, quebrando o protocolo, supreendeu o conde com um abraço vigoroso, desvencilhou-se e se apresentou ao conde, declamando em tom solene uma trova que demorara para decorar:
“Manoel Benício Passos,
vulgo Macaco Beleza.
Escravo da Monarquia
e servo de Vossa Alteza”
O Presidente da Província aproximou-se e tentou consertar o vexame e o conde, risonho e descontraído, mostrou-se encantado com a trova simplória e com a confessa fidelidade daquele homem do povo. Desconcertado o conselheiro Almeida Couto cochichou uma repreensão qualquer no ouvido do Macaco Beleza. O cochicho ninguém ouviu, mas a gargalhada geral ecoou pelo salão quando todos ouviram em voz alta a resposta galhofeira:
– Qual é “seu” conselheiro! Esta me estranhando? Pensou que eu ia fazer besteira? Pois não sabe que sou baiano, nascido na Bahia, e que baiano burro nasce morto!
A risada dos convidados e do conde consagrou a frase conhecida e repetida no país inteiro, mesmo passados estes cento e tantos anos, desde o ocorrido.