João Mina quer ver Muleque Bimba na boa capoeiragem

Publicado originalmente no jornal Estado da Bahia, em 15 de março de 1948

A notícia divulgada pelo Diários Associados de que o mais famoso capoeirista baiano, Muleque Bimba, que dirige uma escola dessa briga, tornada nacional, pretende vir ao Rio fazer exibições públicas dos nove cortes que inventou, causou sensação entre os profissionais da defesa pessoal. Existe mesmo urn movimento para que se efetive a vinda de Muleque Bimba, o sexagenário que ensina a muitos moços de sua terra os golpes sinistros da capoeiragem, sabendo-se até que já foi seu aluno o hoje deputado Juracy Magalhães.

Entre nós, João Mina é o mais velho dos três últimos remanescentes da já remota época das batucadas e capoeiragens que até o primeiro quartel deste século pertubaram a ordem e a tranqüilidade públicas. Tem mais de sessenta anos o preto velho e arrasta seus atuais pesados dias ali pelo Estácio.

Está aqui neste seu criado, diz João Mina para o repórter numa tendinha do morro. Um negro que fazia batuque e capoeira no morro da Favela, que é o lugar que nasceu o samba no Rio.

Batuque quem fazia era negro de macumba, negro bom de santo, bom de garganta e, principalmente, bom de perna para tirar outro da roda. Tinha batuque todo dia na favela, com a negrada metendo a perna e jogando parceiro no chão, até a polícia chegar. Aí, então, como num passe de mágica, a batucada virava samba, entrando as mulheres dos batuqueiros na roda. Homem não dançava samba. Samba é nome de filha de santo, mas todo mundo de fora que subia o morro procurando mulher, dizia que ia ver samba e por samba ficou a dança que elas dançavam e que era batuque mais mole e bem remexido. Era coco.

Assim que apolícia saía, o batuque continuava e os batuqueiros entravam duro na capoeiragem. Pobre do moleque que cochichasse quando o batuqueiro cantasse:                                          

Olha a banda                                                                  
Olha a banda                                                                  
Negro da ronda                                                                

Podia contar que ia levar uma banda jogada, quer dizer, uma rápida e violenta pernada que o atirava fora da roda, principalmente se tivesse mulher boa perto dele. Mas se o muleque saísse dessa, o batuqueiro sem perder o ritmo do batuque emendava:

Batuqueiro novo                                                              
Dava um baú
Pra não perder o amô…

A banda jogada passava pra banda de frente e o batuque soltava logo um baú no parceiro, atirando o muleque no chão, pelas costas.

Outro corte ruim de defender, pra batuqueiro novo, era a tiririca, quando o mestre cantava:

Tiririca é faca de cortar                                                       I
Quem não pode não intimida
Deixa quem pode intimar…

Um pé ficava no chão e outro subia virando com força no pé do ouvido do parceiro. Mas a capoeiragem tinha muitos cortes ruins. Tinha o dourado, a encruzilhada, tinha o rabo de arraia….

Sim, João Mina, o fulminante rabo de arraia…

Pois é, meu filho, o rabo de arraia…

Os outros que ouviam, reverentes, a palestra do velho João Mina, fizeram um sinal negativo para o repórter. O homem da tendinha serviu umas doses de cachaça e João Mina continou:

Batuqueiro bom brincava na frente do fandango e caninha verde, no Carnaval, abrindo ala como se faz hoje diretor de corda de escola de samba. Batuqueiro bom brincava de noite na Praça Onze de Junho, que já foi reduto enfezado de gente do morro.

Um dia, os batuqueiros da Favela tiveram uma arrelia. Houve então, uma separação. Os grandes ficaram na Favela e os outros foram para o morro de Santo Antônio. Casaca de Bronze, capoeira de respeito e capanga de político, uma noite, ninguém sabe porque, nem por ordem de quem, botou fogo em tudo quanto era barracão do morro de Santo Antônio e fugiu, fugiu que até hoje não se sabe notícias dele.

A negrada que ficou sem barraco no morro de Santo Antônio foi toda para o morro da Mangueira, os homens fazendo batuque e as mulheres sambando. O lugar onde eles levantaram os barracos ficou sendo chamado o Santantoinho de Mangueira. Depois é que vieram para a Estação, Querosene, Salgueiro. Apareceu o samba mesmo, quando Epitácio Pessoa mandou mudar o mulherio da Glória e da Lapa para a Cidade Nova.                      

Mas por aí, Sampaio Ferraz e Alfredo Pinto tinham dado cabo de muito batuqueiro, de muito moleque de capoeiragem. Isso de escola de samba é coisa nova, coisa boa, de preto, político trabalhador, que não quer mais saber de malandragem, nem de pernada.

João Mina rematou:

Pois é menino, eu tinha vontade de ver esse tal Muleque Bimba, para me lembrar dos velhos cortes do meu tempo… Será que ele briga mesmo?

Descemos o morro e Tancredo Silva, que apesar de moço, é o terceiro dos remanescentes, disse-nos:

Bernardo Sapateiro faltou ao encontro. Ele, que é daquele tempo, ia contar porque João Mina não quis falar do rabo-de-arraia.

Você não sabe ?

Dizem que numa batucada na Praça Onze, num carnaval, João Mina deu um rabo de arraia num sujeito e ele morreu ali mesmo. João Mina foi para a detenção e ficou na sombra uns anos. Quando voltou, trouxe a cuíca e nunca mais quis saber de batucada. Era só cuíca. E a batucada virou samba. Depois, Edgard trouxe o tamborim.

Na rua do Estácio, Tancredo Silva ainda disse:

Olha, menino, João não falou que, quando o batuque enfezava, os batuqueiros cantavam:

É ordem do Rei pra matar.
É ordem do Rei pra matar.

E o rabo de arraia comia solto até morrer o parceiro que estava condenado pela negrada. Essa ordem do Rei entre os batuqueiros vem do tempo em que o Brasil era Reinado, e que a capangada tinha ordem para acabar com os pretos que conspiravam.

Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 6 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Caiçara: Os mestres da Bahia não agradou, [???] de mim. Ah, é. Ele não bota roda de capoeira depois que [???] a mim nem a polícia. Eu boto é cinquenta conto nas pedras de lá, e com outros eu quebro o boné. O meu filho saiu com o outro boné meu, quebro o boné, boto a bengala assim. Aí quando eu chego, aí pode entrar, ficar na roda. Eu tenho uma corda que eu boto, e o pessoal não fica. Nem a polícia acaba. Ave Maria, a roda grande. Ninguém joga dinheiro em roda de capoeira. Ninguém joga. Dinheiro, não. Agora, trabalho, de canto. Tudo é trabalho, antes de vadiar. Vou ali dentro dar uma palavra…

Mestre Matiole: Amanhã vai ter mais oportunidade…

MC: É… Já pode acabar com essa parte de acobracia da capoeira, da capoeira acobracia. Negócio de acobracia não existe.

MM: Não gosta não, mestre ?

MC: Não, acobracia não. Gosto de ver sabe o quê ? É autenticidade. Ciência, destreza, malícia, agilidade. Acobracia…

MM: O senhor fala que a capoeira é uma só…

MC: É, angola ! Autêntica. A capoeira só existe uma, angola é angola. Não brinque que eu meto a bengala em você. Não dê risada não, rapaz. Você é feio e eu sou bonito. Hehehe.
[conversa inaudível]

MC: Entendeu agora o [???] ? Mas nem que fosse mestre de capoeira. Então [???] não ensinaram ele como mestre, vamos apoiar. Mas não que ele fosse mestre.

[Mestre Caiçara cantando]

A Capoeira e o Navio de Teseu

Conta uma lenda grega que após derrotar o Minotauro, monstro com corpo de homem e cabeça de boi, o herói Teseu saiu da ilha de Creta em um navio, levando os jovens atenienses que teriam sido devorados pela fera.
Segundo o historiador grego Plutarco, “o navio com que Teseu e os jovens de Atenas retornaram de Creta tinha trinta remos, e foi preservado pelos atenienses até o tempo de Demétrio de Falero, porque eles removiam as partes velhas que apodreciam e colocavam partes novas, de forma que o navio se tornou motivo de discussão entre os filósofos a respeito de coisas que crescem: alguns dizendo que o navio era o mesmo e outros dizendo que não era.”
A mesma questão se traduziu em diversos outros momentos da história da humanidade:
Segundo Heráclito, é impossível que um homem entre duas vezes em um mesmo rio – porquê o rio nunca é o mesmo, está sempre mudando.
Platão descreveu uma situação em que hipoteticamente, ele e Sócrates começaram a trocar partes de suas carruagens. A cada dia, Platão pegava uma parte de sua carruagem, e substituía por uma parte da carruagem de Sócrates. Sócrates fazia o mesmo com a sua. Em dado momento, todas as peças da carruagem de Platão estavam na carruagem de Sócrates, e vice-versa. Eles trocaram de carruagem, ou não ? Se sim, a partir de que ponto a troca aconteceu ?
Locke falou sobre a meia que tem um furo. A meia é remendada com um pedaço de tecido. Mais adiante, aparece outro furo, que é remendado com outro pedaço. Ao longo do tempo, todo o material do qual é feito a meia, é trocado por pedaços de outros tecidos. Ainda é a mesma meia ?
Também fala-se sobre o machado de George Washington. A ferramenta teve o cabo substituído três vezes, e a lâmina duas – e ainda assim, era o machado de George Washington…
E a capoeira ? Cada mestre, cada praticante, acrescenta um pouco de si à capoeira ? Ele troca um nome de um golpe ? Ele canta uma música um pouco diferente ? Ele tem uma crença um pouco diferente da do seu mestre, e a passa para a próxima geração ? Isso pode ser considerado “trocar as tábuas do navio” ? Não que essa parte da capoeira estivesse podre, mas um novo conhecimento foi agregado, uma nova versão da tábua…
De acordo com o sistema filosófico de Aristóteles e seus sequidores, há quatro causas ou razões que descrevem uma coisa; estas causas podem ser analisadas para conseguir uma solução ao paradoxo.
A causa formal diz respeito à forma da coisa, enquanto a causa material se refere à matéria da qual a coisa é feita. O “o que é isso” de uma coisa, segundo Aristóteles, é sua causa formal. Então o Navio de Teseu é o mesmo navio, porque sua causa formal não mudou, ainda que que o material usado para construí-lo tenha variado ao longo do tempo.
Da mesma maneira, para o paradoxo de Heráclito, um rio tem a mesma causa formal, apesar de a causa material (a água do rio) mudar com o tempo, e consequentemente mudar para a pessoa que entra no rio.
Outra das causas de Aristóteles é a causa final, entendida como o propósito da coisa. Todas as “versões” do navio de Teseu teriam o mesmo significado mítico (de terem transportado Teseu) e político (de convencerem os atenienses de que Teseu existiu realmente), ainda que que a sua causa material mudasse com o tempo.
A causa eficiente é dada por como e por quem uma coisa é feita. Por exemplo, como os artesãos fabricam e montam alguma coisa. No caso do navio de Teseu, os trabalhadores que construíram o navio pela primeira vez, poderiam ter usado as mesmas ferramentas e técnicas para trocar todas as tábuas do navio, e ele ainda seria o mesmo.
Há outras abordagens ao problema, mas eu gostaria de tomar a aristotélica para derivar o meu raciocínio.
Sobre a causa formal da capoeira – a forma da arte é corporificada por nós, jogadores. Mas cada jogador é único, e manifesta a capoeira de um jeito só seu. Quando um mestre ensina a alguém a gingar, ele usa o seu jeito de gingar, e o aluno desenvolve o jeito dele. Por mais que vejamos gente “gingando igualzinho”, “jogando igualzinho”, e digamos que existem “robôs” e “clones” na capoeira, na prática nenhum jogador joga igual a outro. Vai haver sempre um trejeito diferente, algo que ele aprendeu com fulano, outro algo que aprendeu com beltrano, e quando tudo isso é cozido junto, sai um jogo só dele.
Pois bem, se aprendermos de ver, de treinar, e principalmente de jogar, não estamos trocando as tábuas da nossa capoeira ? Quem viu o vídeo do Mestre Pastinha jogando, percebe que o jogo dele era só dele – e nenhum dos alunos joga sequer parecido. Para onde foi esse jogo ? Hoje em dia, nas rodas, vê-se muito o “pula sela” ou “pula carniça”: o jogador salta por cima do outro, como na brincadeira infantil de mesmo nome. O movimento não era comum até alguns anos atrás, mas a tábua foi trocada.
Sobre a causa material, a capoeira é “feita” de pessoas. E cada pessoa é mutável, passageira. As nossas opiniões variam de dia para dia, de hora para hora – não somos feitos de pedra. Pessoas morrem, e outras pessoas assumem seus lugares no navio da capoeira – alguns são tábua de proa, outros são tábua de popa, alguns são remos. Mas todos são substituídos com o tempo.
Sobre a causa final, e provavelmente a que mais mudou e muda. A capoeira foi arma de libertação de um sistema escravagista explícito. Foi mecanismo de ascenção social para os capangas de políticos. Foi massa de manobra da monarquia contra a república. Foi demonstração de virilidade e valentia. Foi ferramenta para a definição do Estado Novo por Getúlio Vargas. Foi definidora do alicerce do movimento de resistência da cultura negra. Foi embaixadora do Brasil para o mundo. Foi âncora para tirar pessoas do crime. Foi academizada. Foi alvo de repressão. Foi utilizada para educação de portadores de necessidades especiais. Foi instrumento de reintegração de idosos. Foi ? Na média, pode-se dizer que ainda é, para muitas das características listadas.
Sobre a causa eficiente, talvez seja a mais complexa de se definir nesse contexto – e ao mesmo tempo a mais simples. A capoeira não é estática, como manifestação cultural alguma o é. Ela não está pronta, encontra-se em constante construção. Por mais que se conceba uma capoeira cristalizada, cujos movimentos e/ou seqüências são conhecidos, se analisarmos friamente, tudo o que o corpo consegue fazer, num contexto de jogo/roda, pode ser visto como capoeira.
Todo capoeirista é um dos artesãos que construiu e constrói a capoeira diariamente. O que se chama de “tradição”, também muda diariamente – às vezes devagar, às vezes depressa. O conhecimento transmitido oralmente tende a crescer, se estender: mesmo que lendas antigas não desapareçam, novas lendas surgem. Capoeiristas viram lendas, pequenas lendas que seja, ao vencerem essa ou aquela demanda. E a história deles é mais uma tábua no navio – sequer substitui uma tábua velha, ela é simplesmente mais uma tábua.
O navio da capoeira teve (e tem) suas tábuas trocadas e re-trocadas conforme convém a alguns, ou ao período histórico. Ou mesmo involuntariamente…. Ela é ainda o mesmo navio ?
Para encerrar, um trecho do livro “Last chance to see”, de Douglas Adams:
Eu me lembro de uma vez, no Japão, ter ido visitar o Templo do Pavilhão Dourado em Kyoto, e ficar surpreso em como ele tinha resistido bem à passagem do tempo desde que fora construído no século XIV. Me disseram que ele não tinha resistido bem de jeito nenhum, e que tinha de fato sido queimado até o chão duas vezes só neste século.

– Então este não é o prédio original ? – Perguntei ao meu guia japonês.
– Sim, claro que é – ele insistiu, surpreso com a minha pergunta
– Mas ele não foi queimado até o chão ?
– Sim
– Duas vezes
– Muitas vezes
– E reconstruído
– Claro que sim. Ele tinha sido queimado.
– Então como pode ser o mesmo prédio ?
– Ele é sempre o mesmo prédio.

Eu tive que admitir para mim mesmo que esse era de fato um ponto de vista perfeitamente racional – apenas partia de uma premissa inesperada. A idéia do prédio, a intenção dele, seu projeto, todos são imutáveis e são a essência do prédio. A intenção dos construtores originais é que sobrevive. A madeira da qual o projeto é construído apodrece e é trocada quando necessário. Ficar preocupado demais com os materiais originais, que são meras lembranças sentimentais do passado, é falhar em ver o prédio vivo em si mesmo.
Axé,
T.

O ABC de Pedro Cem

Vou narrar agora um fato
Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu,
Fortuna que como aquela,
Ainda não apareceu.

Pedro Cem era o mais rico,
Que nasceu em Portugal,
Sua fama enchia o mundo
Seu nome anda em geral,
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real.

Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar,
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar,
Cem lanchas e cem barcaças,
Tudo isto a navegar.

Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias,
Cem depósitos de fazendas
Cem moinhos e cem padarias
E tinha dentro do mar,
Cem currais de pescarias.

Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais que havia,
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia,
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia.

Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados,
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados,
Ocupava mensalmente,
Dezesseis mil empregados.

Diz a história aonde eu li
O todo desse passado,
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado
Não olhava para um pobre,
Nem falava com criado.

Uma noite teve um sonho
Um rapaz o avisava
Que aquele orgulho dele
Era quem o castigava
Aquela grande fortuna
Assim como veio voltava.

Ele acordou agitado
Pelo sonho que tinha tido,
Que rapaz seria aquele?
Que lhe tinha aparecido.
Depois pensou, oral sonho,
E devaneio do sentido.

Um dia, no meio da praça
Ele a uma moça encontrou,
Essa vinha quase nua,
Aos pés se ajoelhou
Dizendo: senhor? olhai!
O estado em que estou.

Ele torceu para um lado
E disse: minha senhora?
Olhe sua posição!
E veja o que faz agora
Reconheça seu lugar,
Levante-se e vá embora.

Oh! senhor por esse sol
Que de tão alto flutua,
Lembrai-vos que tenho fome
Estou aqui quase nua,
Sou obrigada a passar,
Nesse estado em plena rua.

Ele repleto de orgulho
Não deu ouvido, saiu,
A pobre ergue-se chorando
Chegou adiante caiu,
Vinha passando uma dama
Que com o manto a cobriu.

Era a marquesa de Évora
Uma alma lapidada,
Tirando o seu rico manto
Cobriu essa desgraçada,
Ali conheceu que a pobre,
Foi pela fome prostrada.

Levante-se minha filha
E pegando-lhe pela mão,
Dizendo a criada a ela:
Vá ali comprar um pão
Que a essa pobre infeliz,
Falta alimentação.

Entregando-lhe uma bolsa
Com quarenta e dois mil réis.
Apenas tirou dali
Um diploma e uns papéis
Não consentindo que a moça
Se ajoelhasse aos seus pés:

E com aquela quantia
Ela comprou um tear,
Tinha mais duas irmãs
Foram as três trabalhar
Dali em diante mais nunca,
Faltou-lhe com que passar.

Vamos agora tratar
Pedro Cem como ficou
E o nervoso que sentiu
Uma noite que sonhou
Que um homem lhe apareceu
E disse Ume bem quem eu sou.

Que tens feito do dinheiro
Que tomaste emprestado?
Meu senhor mandou saber
Em que o tens empregado?
E por qual razão cumpriu
As ordens que ele tem dado?

Ele perguntou no sonho
Mas que dinheiro eu tomei,
Até aos próprios monarcas
Dinheiro muito emprestei,
O vulto zombando dele,
Disse: quem tu és eu sei.

Que capital tinhas tu
Quando chegastes ao mundo?
Chegastes nu e descalço
Como o bicho mais imundo
Hoje queres ser tão nobre,
Sendo um simples vagabundo.

E metendo a mão no bolso
Tirou dele uma mochila,
Dizendo é esta a fortuna
Que tu hás de possuí-la,
Farás dela profissão,
Pedindo de vila em vila.

Pedro Cem sonhando disse:
Ave agoureira te some
Tua presença me perturba
Tua frase me consome
De qual mundo tu viestes?
Diz-me por favor teu nome.

Meu nome, disse-lhe o vulto
Es indigno de saber,
Meu grande superior
Proibiu-me de dizer
Apenas faço o serviço
Que ele me manda fazer.

Despertando Pedro Cem
Daquilo contrariado,
Ter dois sonhos quase iguais
Ficou impressionado,
Resolveu contrafazer,
E ficar reconcentrado.

Pensou em tirar por ano
Daquela grande riqueza
Sessenta contos de réis
E dar de esmola à pobreza
Depois refletindo, disse:
Não me dá maior franqueza.

Porque ainda mesmo Deus
Querendo me castigar,
Não afundará num dia
Meus cem navios no mar,
As cem fazendas de gado,
Custarão a se acabar.

As cem fábricas de tecidos
Que tenho funcionando,
Os parreirais de uvas
Que estão todos safregando,
Cem botes que tenho no porto
Todo dia trabalhando.

Cem armazéns de fazendas
As cem alfaiatarias,
As cem fundições de ferro
Cem currais de pescarias
Os cem moinhos, cem padarias.

E as centenas de contos
Nos bancos depositados,
E tudo isso em poder
De homens acreditados
Ainda Deus querendo isso
Seus planos eram errados.

Pedro Cem naquela hora
Estava impressionado,
Quando aproximou-se dele
O seu primo criado,
E disse aí tem um homem,
Diz vos trazer um recado.

Manda que entre a pessoa
Ele ao criado ordenou:
Era um marinheiro velho
Chegando ali o saudou,
Que novas traz, meu amigo?
Pedro Cem lhe perguntou.

Disse o velho marinheiro:
Venho-vos, participar,
Que dez navios dos vossos
Ontem afundaram no mar
Morreram as tripulações,
Só eu me pude salvar.

Que navios foram esses?
Perguntou-lhe Pedro Cem,
Respondeu o marinheiro:
Foi “Tejo” e “Jerusalém”
E “Douro” e “Penafiel”
Os outros eu não sei bem.

Aquele inda estava ali
Outro portador bateu,
O empregado das vacas
Contou o que sucedeu;
Incendiaram os cercados
E todo o gado morreu.

Pedro Cem nada dizia
Ficando silencioso,
Apenas disse: na terra
Não há homem venturoso,
Quem se julga mais feliz
E pior que cão leproso.

Chegou outro portador
O empregado da vinha,
Disse o depósito estourou
Vazou o vinho que tinha
Pedro Cem disse: meu Deus!…
Que sorte triste esta minha.

Saiu aquele entrou outro
Era um coronel norueguês,
Disse nos mares do norte
Andava um pirata inglês,
Noventa navios vossos
Tomou ele de uma vez.

Meu Deus!… Meu Deus!… que fiz eu
Exclamava Pedro Cem
Não há homem nesse mundo
Que possa dizer vou bem,
Quando menos ele espera
A negra desgraça vem.

Dos cem navios que tinha
Alguns foram afundados
E outros pelos piratas
Nos mares foram tomados
Acrescentou a pessoa:
Vinham todos carregados.

Ali mesmo veio o mestre
Da barca “Flor do Mundo”
Esse fitou Pedro Cem
Com silêncio profundo
Depois disse: senhor marquês?
Dez barcaças foram ao fundo.

Quatro vinham carregadas
Com bacalhau e azeite,
Duas vinham da Suécia
Com queijo, manteiga e leite,
De todas as mercadorias
Não tem uma que se aproveite.

Quatro das dez que afundaram
Traziam pérola e metal,
Só da Ilha da Madeira
Vinha um milhão em coral
Topázio, rubi, brilhante,
Ouro, esmeralda e cristal.

Pedro Cem baixou a vista
Nada pôde refletir,
Exclamou que faço eu?
Devo deixar de existir,
Mas matando-me não vejo,
Isso até onde pode ir.

Chegou o moço de campo
Tremendo e muito assustado
E disse: senhor marquês
Venho aqui horrorizado
Deu murrinha nas ovelhas
E mal triste em todo gado.

Naquele momento entrou
Um rapaz auxiliar,
Esse puxando um papel
Disse: venho procurar,
Tudo quanto se perdeu
Na barca “Ares de Mar”.

Pedro Cem perguntou quanto
Tirou o moço uns papéis
Que se lia entre brilhantes
Pulseiras, colares, anéis,
Um milhão e quatrocentos
E vinte contos de réis.

Entrou outro auxiliar
Disse eu quero pagamento,
Por tudo que se perdeu
No navio “Chave do Vento”
Que vinha da América do Norte
Com grande carregamento.

Chegou um tabelião
Dá licença sr. Marquês
Venho lhe participar
Que o grande Banco Francês,
Dois Alemães, três Suíços,
Quebraram todos de vez.

Lá se foi minha fortuna
Exclamava Pedro Cem,
Ontem fui milionário
Hoje não tenho um vintém
Só mesmo na campa fria,
Eu hoje estaria bem.

Dando balanço nos bens
Que até desesperam.
Tudo quanto possuía
Não dava para pagar
Nem pela décima parte
Os prejuízos do mar.

Exclamava: oh! Pedro Cem
Que será de ti agora!
No pouco que me restava
A justiça fez penhora,
Pedro Cem de agora em diante
Vai errar de mundo afora.

Carpir esta sorte dura
Que a desventura me deu,
Talvez muitas vezes vendo
Aquilo que já foi meu.
Em lugar que não se saiba
Quem neste mundo fui eu.

Ali no terraço mesmo
Forrando o chão se deitou
As onze e meia da noite
O sono conciliou
No sono sonhando viu,
O rapaz que lhe falou.

Aquele perguntou, Pedro
Como te foste de empresa,
Já estás conhecendo agora
Quanto é grande a natureza?
Conheceste que teu orgulho
Foi quem te fez a surpresa?

Metendo a mão na algibeira
Dali um quadro tirou
Onde havia dois retratos
Que a Pedro Cem os mostrou
Conheces esses retratos?
O rapaz lhe perguntou.

Via-se naquele quadro
Uma dama bem vestida
Pedro Cem disse por sonho:
Essa é minha conhecida
A outra uma moça pobre
Com fome no chão caída.

Perguntava-lhe o rapaz:
Quem é esta conhecida?
E a marquesa de Evora
E esta que está caída?
Essa? é uma miseravel,
Dessa classe desvalida.

O rapaz puxa outro quadro
Verde cor de esperança,
Onde via-se uma monarca
Suspendendo uma balança
Estava pesando nela
Caridade e esperança.

Mostrou-lhe mais quatro quadros
Que Pedro Cem conheceu,
Tinha a marquesa de Évora
Quando a bolsa à pobre deu
Que estirou a mão dizendo:
Toma este dinheiro que é teu.

No quadro via-se um anjo
Assim nos diz a história,
Com uma flor onde se lia:
Jardim da eterna glória,
Presenteado por Deus,
Esta palma de vitória.

Quem planta flores tem flores
Quem planta espinho tem espinho
Deus mostra ao espírito fraco
O que nega ao mesquinho,
A virtude é um negócio
A boa ação um pergaminho.

Depois que ele acordou
Triste impressionado,
Interrogava a si próprio
Por que sou tão desgraçado?
Achou na cama a mochila,
Com que tinha sonhado.

Será esta a tal mochila
Que o fantasma me mostrou;
E esta que o homem em sonho
Em desespero exclamou:
Na noite em que a cruel sina,
Por sonho me visitou.

De tudo restava apenas
A casa de moradia,
Essa mesmo embargaram
Antes de findar-se o dia
Então disse Pedro Cem,
Cumpriu-se a profecia.

Lançando a mão na mochila
Saiu no mundo a vagar
Implorando a caridade
Sem alguém nada lhe dar,
Por umas cinco ou seis vezes
Tentou se suicidar.

Ele dizia nas portas:
Uma esmola a Pedro Cem,
Que já foi capitalista
Ontem teve, hoje não tem
Á quem já neguei esmola
Hoje a mim nega também.

Foi ele cair com fome
Em casa daquela moça,
Quando foi à porta dela
Com fome, frio e sem força,
Que ele não quis olhá-la
A marquesa deu-lhe a bolsa.

A criada o viu cair
Exclamou: minha senhora!
Ande ver um miserável
Que caiu de fome agora,
Onde? perguntou a moça
Ama disse: ali fora.

A moça disse à criada:
Que trouxesse leite e pão
Aproximando-se dele
Disse: o que tens meu irmão
Bateste em todas as portas
Não encontraste cristão.

Senhora se vós soubésseis
Quem é esse desgraçado,
Não abrirás a porta
Nem me davas esse bocado.
Respondeu ela: conheço,
Mas eu esqueço o passado.

Me recordo que a marquesa
Fez minha felicidade,
Viu-me caída com fome
Teve de mim piedade,
Deu-me com que comprar pão
E esta propriedade.

Pedro Cem se levantou
Disse obrigado e saiu,
Andando duzentos passos
Tombou por terra, caiu
E umas frases tocantes,
Em alta voz proferiu:

“Vai unir-se à terra fria
O que não soube viver
Soube ganhar a fortuna
Mas não soube perder
Se tenho estudado a vida
Tinha aprendido a morrer.

Foi como a corrente d’água
Que pela serra desceu,
Chegou o verão e secou
Ela desapareceu,
Ficando só os escombros
Por onde a água correu.

Eu tive tanta fortuna
Não socorria a ninguém,
A todos que me pediram
Eu nunca dei vintém,
Hoje preciso pedir,
Não há quem me dê também.

Não desespero, pois sei
Que grandes rimas hoje expio,
Nasci em berços dourados
Dormi em colchão macio
Hoje morro como os brutos
Neste chão sujo e frio.

Foram as últimas palavras
Que ele ali pronunciou,
Margarida aquela moça,
Que a marquesa embrulhou
Botou-lhe a vela na mão
Ele ali mesmo expirou.

A justiça examinando
Os bolsos de Pedro Cem,
Encontrou uma mochila
E dentro dela um vintém
E um letreiro que dizia:
Ontem teve e hoje não tem

Peleja de Riachão com o Diabo

Autor: Leandro Gomes de Barros

Riachão estava cantando
Na cidade de Açu,
Quando apareceu um negro
Da espécie de urubu,
Tinha a camisa de sola
E as calças de couro cru.

Beiços grossos e virados
Como a sola de um chinelo
Um olho muito encarnado
O outro muito amarelo,
Este chamou Riachão
Para cantar um martelo.

Riachão disse: eu não canto
Com negro desconhecido,
Porque pode ser escravo,
E anda por aqui fugido
Isso é dar cauda a nambu
E entrada a negro enxerido.

Negro – Eu sou livre como o vento
A minha linhagem é nobre,
Eu sou um dos mais ilustres
Que o sol deste mundo cobre
Nasci dentro da grandeza
Não saí de raça pobre.

Riachão – Você nega porque quer
Está conhecido demais,
Você anda aqui fugido
Me diga que tempo faz
Se você não foi cativo,
Obras desmentem sinais.

N – Seja livre ou seja escravo
Eu quero é cantar martelo,
Afine a sua viola
Vamos bater-se em duelo
Só com a minha presença
O senhor está amarelo.

R – Vejo um vulto tão pequeno
Que nem o posso enxergar,
Julgo que nem é preciso
Minha viola afinar
Pela ramagem da árvore
Vê-se o fruto que ela dá.

N – Riachão isto são frases
De homem muito atrasado,
Porque são vistos fenômenos
Que na terra têm se dado
Uma cobra tão pequena
Mata um boi agigantado.

R – M eu riacho pela seca
Dá cheias descomunais
Na correnteza das águas
Descem grandes animais
Jibóias, surucujubas,
E monstruosos “Jaguais”

N – O Jaguar rende-me culto
A serpente aos meus pés morre
No que chegar minha ira
Só um poder o socorre
Eu digo ao rio, pare aí!
A água pára e não corre…

R – Você não é Josué
Que mandou o sol parar
E esse parou três dias
Para a guerra se acabar
Nem Moisés que com a vara
Fez o mar também secar.

N – Faço tudo que eu quiser
Minha força não tem limite
Os feitos por mim obrados
Não vejo homem que imite
Eu determino uma coisa
Não há força que a evite!

R – Salomão também fazia
O que queria fazer
Por meio de mágica ou química
Quis segunda vez nascer
Mas em vez do nascimento
Conseguiu ele morrer.

N – Salomão facilitou
Confiado na ciência
Encaminhou tudo bem
Mas faltou-lhe a paciência
Se não fosse aquele erro
Tinha tido outra existência.

R – Eu necessito saber
onde é seu natural
Porque não sei se o senhor
Tem nascimento legal
De qual nação é que vem
Se procede bem ou mal.

N – Você vem interrogar-me
Eu lhe interrogo também,
Diga para onde vai
E de qual parte é que vem
Se é solteiro, ou casado
Diga que profissão tem?

R Não tenho superior
Sou filho da liberdade
E não conto a minha vida
Pois não há necessidade
Porque não sou foragido
Nem você é autoridade!

N – É preciso advertir-lhe,
Fazer-,lhe observação
M e trate com muito jeito,
Cante com mais atenção!
Veja que não se descuide
E passe o pé pela mão!

R – Eu, para cantar repente,
Já estou muito habilitado:
Conheço algumas matérias,
Sou um pouco adiantado
Tive estudo quatro anos,
Me considero letrado!

N – Sou professor de matérias
Que sábio não as conhece;
A lei que dito no mundo,
O próprio rei obedece
Meus feitos são conhecidos,
A fama se estende e cresce.

R – Você diz que tem ciência,
Dê-m e um a explicação:
Se a Terra faz movimento
De quem é a rotação?
Porque é que em 12 horas
Há um a transformação?

N – Não é o Sol quem se move,
Este é fixo em seu lugar,
A Terra está sobre os eixos,
Os eixos a fazem rodar,
Que, por essa rotação
Faz a luz do Sol faltar.

R – Descreva o grande mistério
Que entre nós a Terra tem:
De que é formada a chuva?
Em que estado ela vem?
Se é criada aqui perto
Ou noutro lugar além?

N – A água em estado líquido
Por meio de abaixamento
Que há na temperatura,
E pelo resfriamento
Essa água é condensada,
Ajudada pelo vento.

A corrente atmosférica
De um a montanha elevada,
Que ajuda a temperatura,
Forma nuvem condensada.
Do vento movendo as nuvens
É disso a chuva formada,

Que essa chuva, depois
Que toda a Terra ensopar,
Por meio da evaporação
Torna ao espaço voltar,
Reproduzindo, o processo
Que acabei de lhe tratar.

R – O senhor conhece bem
Este país brasileiro?
Ora, respondeu o Negro:
N – Eu conheço o estrangeiro
Desde o córrego mais pequeno
Até o maior ribeiro!

Por exemplo, o Amazonas,
Que extrema com o Pará;
O Pará com o Maranhão,
Piauí com o Ceará,
E assim todos os outros
Se alguém duvida, vá lá!

E se qualquer um daqui;
Pretendendo viajar
Até o Rio de Janeiro
E não querendo ir por mar,
Eu lhe ensino o caminho
Ele vai sem se vexar.

R – Como faz essa viagem?
Onde se encontra o caminho?
Lugar de uma só morada,
Sem haver mais um vizinho
Tanto que, em muitos lugares
Não anda um homem sozinho!

N – Pode qualquer um sair
Do Açu ao Mossoró;
Querendo pode passar
Na cidade Caicó,
Subir pela margem esquerda
Do rio de Seridó

Riachão disse consigo:
– Esse negro é um danado!
Esse saiu do Inferno,
Pelo Demônio mandado,
E para enganar-me veio
Em um negro transformado!

Disse o negro: – Meu amigo,
não queira desconfiar,
Garanto que o senhor
Não ouviu bem eu cantar,
Na altura que eu canto
outro não pode chegar!

R – Vá na altura em quer for!
Riachão lhe respondeu.
Remexa todos os livros
Que o senhor aprendeu
Eu não conheço esse ente
Que cante m ais do que eu!

N – Você ficará sabendo
O peso de um cantador
Quando me ver outra vez
Me trate de professor,
Render-me-á obediência,
Conhecerá meu valor!

R – O senhor diga o seu nome,
Eu quero lhe conhecer,
Pois só assim posso dar-lhe
O valor que merecer,
Em tudo que você diz
A inda não posso crer.

N – Você, sabendo quem sou
Talvez que fique assombrado,
Superior a você
Comigo tem se espantado
Os grandes da sua Terra
Eu tenho subjugado!

R – Eu canto há dezoito anos,
Há vinte toco viola,
Sempre encontro cantador
Que só tem fama e parola
Quando canta meio dia,
Cai nos meus pés, no chão rola.

N – Eu já canto há muitos anos,
Não vou em toda função,
Arranco pontas de touro,
Quebro o furor do leão,
Nunca achei esse duro
Que para mim tenha ação.

R – Garanto que de hoje em diante,
O senhor tem que encontrar
A força superior
Que o obrigue a se calar,
Porque eu boto o cerco,
Quem vai não pode voltar!

N – Manoel, tu és criança,
Só tens mesmo é pabulagem!
Vejo que falar é fôlego,
Porém obrar é coragem
Juro que’ de agora em diante
Não contarás mais vantagem!

R – Meu pai chamava-se Antônio,
Seu apelido era Rio;
De uma enxurrada que dava
Cobria todo o baixio
Secava em tempo de inverno
Enchia em tempo de estio.

N – Conheci muito seu pai,
Que vivia de pescar,
Sua mãe era tão pobre,
Que vivia de um tear
Seu padrinho tomou você
E levou-o para criar.

R – Onde mora o senhor,
Que meu avô conheceu?
Que eu nem me lembro mais
Do tempo que ele morreu
E você está parecendo
Muito mais moço que eu!

N – Eu sei do dia e da hora
Que nasceu seu bisavô,
Chamava-se Ana Mendes
A parteira que o pegou
E conheci muito o frade
E o vi quando o batizou.

R – Bote sua maca abaixo
Conte essa história direito,
Da forma que você conta
Eu não fico satisfeito
Como ver-se um objeto
Antes daquilo ser feito?

N – Seu bisavô se chamava
Apolinário Cancão
Era filho de um ferreiro
Que o chamavam Gavião
Sua bisavó Lourença
Filha de Amaro Assunção.

R – Mas que idade tem você,
Que me faz admirar?
Conheceu meu bisavô
Eu não posso acreditar,
Assim destas condições
Faz até desconfiar.

N – Seu bisavô e o avô
Foram por mim conhecidos,
Seu pai, sua mãe, você
Antes de serem nascidos
Já estavam em minha nota
Para serem protegidos.

R – Que proteção tem você
Para proteger alguém?
Sua pessoa e os trajes
Mostram o que você tem
A sua cor e aspecto
Esclarecem muito bem.

N – Eu protejo você tanto,
Que o defendi de morrer
Você se lembra da onça
que um a vez quis lhe comer
Que apareceu um cachorro
E fez a onça correr?

R – Me lembro perfeitamente
Quando a onça m e emboscou
Já ia marcando o salto
Quando um cachorro chegou
A onça correu com medo,
Eu não sei quem me salvou…

N – Pois foi este seu criado
Que viu a onça emboscá-lo
Eu chamei por meu cachorro
Para da onça livrá-lo
Se lembra quando você
Ouviu o canto dum galo?

R – Eu me lembro disso tudo
Porque assim foi passado;
Mas que idade tinha eu
Quando esse caso foi dado?
Eu era tão pequenino
Que m eu pai teve cuidado.

N – Você tinha nove anos
Foi caçar um novilhote
Se entreteu com umas flores
Que tinha lá no serrote
A onça foi esperá-lo
Para sangrá-lo no bote.

Riachão disse consigo:
– De onde veio esse ente,
Que de toda minha vida
Conhece perfeitamente?
Este, será que é o Diabo
Que está figurado em gente?

N – O senhor pergunta assim
De que parte venho eu…
Eu venho de onde não vai
Pensamento como o seu
E saí do ideal
Primeiro que apareceu!

R – Agora acabei de crer
Que tu és o inimigo!
Te transformaste em homem,
Para vir cantar comigo,
Mas eu acredito em Deus
Não posso correr perigo!

N – Ainda não, lhe ameacei,
Nem pretendo ameaçá-lo!
Estou pronto a defendê-lo,
Se alguém quiser atacá-lo
Em minha humilde pessoa,
Tem um pequeno vassalo!

R – Não quero saber de ti,
Porque tu és traidor:
Desobedeceste a Deus,
Sendo Ele o Criador!
Fizeste traição a Ele
Quanto mais a um pecador…

N – Riachão, amas a Deus
Sendo mal recompensado!
Deus fez de Paulo um Monarca
De Pedro um simples soldado
Fez um com tanta saúde,
Outro cego e aleijado!

R – Se Deus fez de Paulo um rei,
Porque Paulo merecia
Se fez de Pedro um soldado,
Era o que a Pedro cabia:
Se não fosse necessário,
O grande Deus não fazia!

N – O teu vizinho e parente
Enricou sem trabalhar;
Teu pai trabalhava tanto
E nunca pode enricar
Não se deitava uma noite
Que deixasse de rezar!

R – M eu pai morreu na pobreza,
Foi fiel ao seu Senhor!
Executou toda ordem
Que lhe deu o Criador
E foi um a das ovelhas
Que deu mais gosto ao pastor!

N – Arre lá! Lhe disse o Negro.
Você é caso sem jeito!
Eu com tanta paciência,
Estou lhe ensinando direito
Você vê que está errado,
Faz que não vê o defeito!

R – É muito feliz o homem
Que com tudo se consola!
posso morrer na pobreza,
Me achar pedindo esmola
Deus me dá para passar
Ciência e esta viola!

O negro olhou Riachão
Com os olhos de cão danado,
Riachão gritou: – Jésus,
Homem Deus Sacramentado!
Valha-me a Virgem Maria,
A Mãe do Verbo Encarnado!

o negro, soltando um grito,
Dali desapareceu.
De uma catinga de enxofre
A casa toda se encheu,
Os cães uivaram na rua,
O chão da casa tremeu.

Riachão ficou cismado
Com cantor desconhecido,
Que, quando encontrava um,
Tomava logo sentido
O seu primeiro repente
Era a Deus oferecido.

Essa história que escrevi
Não foi por mim inventada:
Um velho daquela época
Tem ainda decorada.
Minha aqui só são as rimas
Exceto elas, mais nada!

Vejo capoeira em tudo

Vejo capoeira em tudo
Que vivo no dia a dia
O peixe nada gingando
No riacho de água fria
A nuvem que negaceia
Jogando no céu, passeia
Gato cantando, é que mia

Capoeira está aí
Pra quem quiser reparar
Sirene gritando avisa
Cavalaria a passar
Cachorro faz desafio
Latindo horas a fio
Convidando pra jogar

Por dentro da mata verde
Vejo ipê fazer lambança
A sua chamada pro céu
Com o galho que balança
Responda com atenção
Se subir, cair no chão
Não vá querendo vingança

Vejo capoeira em tudo
No jeito do galo cantar
Em vovó limpando couve
Na cozinha pro jantar
Cada folha escolhida
É uma escolha que a vida
Na roda nos faz jogar

Ônibus que pego às seis
Capoeira me ensina
Sem espaço prá mexer
Aperto não me amofina
Andando pra todo rumo
Ele balança, eu me aprumo
Cumprindo com minha sina

O fio esticado no poste
É corda de berimbau
O arco não se enverga
Mas o som sai, bem ou mal
O vento é quem tira o som
E é tocador do bom
Que assobia no quintal

Vejo capoeira em tudo
No dia em que nasci
Aqui o meu obrigado
Deixo aos que conheci
Faço a volta do mundo
Olho no olho, no fundo
E deixo a boca sorrir

À minha mãe agradeço
Por ter me posto na Terra
Ao meu pai, muito obrigado
Meu sentimento encerra
Gratidão e liberdade
Meu pai se foi, que saudade !
Eu continuo na guerra

Aos meus irmãos, obrigado
Por brigarem, por sorrirem
Por ensinarem amizade
Por falarem, por mentirem
Por mostrarem que o ninho
Tem mais de um passarinho
Por vocês quatro existirem

Aos amigos, obrigado
Pelas mãos para apertar
Pelas cervejas caídas
Pelos ombros de apoiar
Pelas palavras de apoio
O trigo separa do joio
Respiro amizade no ar

Ao amor, muito obrigado
Pelas horas divididas
Na saúde, na doença
As risadas repartidas
Pelo frescor na noite quente
Na noite fria, ardente
Pelas vindas, pelas idas

Aos mestres que me ensinaram
Não tenho como pagar
Não se paga uma vida
Não se paga o caminhar
Agradeço a essas pessoas
Para mim, mais do que boas
João, Capacete, KK

Vejo capoeira em tudo
Dia, noite, madrugada
Aqui o meu obrigado
Aos que vejo na jornada
Dou na roda uma volta só
Vou calado, que é melhor
E solto no vento a risada

Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 5 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Caiçara: Bahia… Dos meus cantos, das minhas horas, dos meus trabalhos… Tem que tá contigo. As minhas oração. [???] a minha paz, o meu silêncio. Eu trabalho muito com ebó, faço muito ebó, viu ? Trabalho com Deus, com santo, com o diabo e com Maria Padilha. Hahahaha.


Mestre Matiole: Ô mestre… Falando de religião, esta parte do candomblé… É que a população não entende muito o que é isso… Muitas vezes o cara pensa que está mexendo é com o diabo, mexendo com essas coisas. E justamente também por causa disso que o senhor falou, que o senhor parou porquê tem muita gente ruim mexendo nisso.


MC: É.


MM: Muita falsidade…


MC: Muita falsidade. Mas existe a oportunidade do candomblé autêntico. E existe a oportunidade do candomblé para turista. E existe a oportunidade do candomblé de cachaça, o candomblé de ilusão do povo. Mas o candomblé original, autêntico e histórico do afro-brasileiro, existe. Eu mesmo, dou os dados do senhor. Já um qualquer, [???] numa hora particular… Então eu exprico como é a origem do candomblé, o fundamento do candomblé, os cantos do candomblé, o toque de Exu a Olorum. Em suas encruzilhadas. Olorum é Deus. Os orixás. Os babá e os eguns. Os orixás é Ogum, é Tempo, é Ossaim. Você não pode falar demais dos orixás… Daqui a pouco você vai até abrir uma casa de candomblé. Hahaha.


MM: Quem sou eu, mestre… Ô mestre, o senhor falou para a gente do maculelê…


MC: O maculelê, foi criado pelo… Um moço, ele hoje é falecido. De Santo Amaro, de nome Popó. É a dancinha dos pauzinho. Aquilo não tem fundamento não… É coisa que… Foi criado outro dia. Agora, o candomblé e a capoeira autêntica, não. Porquê é uma coisa…


MM: Mais séria…


MC: É.


MM: Ô mestre, o senhor aceita um refrigerante, ou água ?


MC: Uma aguinha, um pouquinho de água… Não… Um refrigerante.


MM: Um refrigerante.


MC: Você viu a porrada que eu dei ?


MM: Senhor ?


MC: Você viu a porrada que eu dei ?


MM: Aonde ?


MC: Você não viu eu falando não ?


MM: Vi…


MC: Gostou das minhas opiniões ? Por causa que hoje em dia tem mais mestres do que aluno… Fazendo daquilo um comércio ! Que não pode fazer… [???] Fazer alguma coisa com permissão. Mostrar autenticidade. Então você cria. É como você plantar feijão em cima da terra… da pedra. Esse limpar a terra, para poder plantar feijão. Quem é que vai colher com permissão, é você ou ele ?


MM: É ele, né ?


MC: É ele, porquê limpou a terra ! Quem plantou, quer dizer, você não. Você vai bater com a cabeça. É como se dá com os capoeiristas que estão aí [???] gravando a todos. Suspendeu a perna, deu uma meia-lua, é mestre de capoeira. Porra… Não pode ser… Não sabe os fundamentos… Não conhece os toques, não conhece os cantos, a origem da capoeira. Não é porque você suspendeu a perna, você ??? Não, vamos ver lá o que é que é. Então pronto, eu não discordo que você saiba suspender a perna. [???] Aprender a brigar na rua. Tá procurando brigar [???] Não tá procurando criar uma coisa que você pode, amanhã ou depois, se apresentar. Uma coisa original. Uma coisa autêntica, uma coisa que você, quando nasceu, e depois você ouviu falar. E tinha raiz. Então vamos procurar voltar, descobrir a raiz… Daquilo que é nosso.


MM: [???]


MC: Aprendi a [???] Só dentro de casa. Saia para fora de casa para se livrar [???]


MM: [???]


MC: [???] Não dá não, que foi comprado na rua… Dois anos, onze meses e três dias. Uma dormia com a cabeça aqui, outra cá. E eu no meio. Hahahaha.


MM: E dava conta das duas, mestre ?


MC: Hein ?


MM: E dava conta das duas, mestre ? Toda noite ?


MC: Toda noite ! Dava uma cipoada com uma, ia tomar um banho. Daí a pouco, dava uma cipoada com a outra e ia tomar banho. Aí vinha dormir. Hahahaha. De manhã cedo, era um fecha-casa. Hahahaha. A mulher disse que precisava aprender quem era mais inteligente, para derrubar o mastro. Hahahaha.


MM: Mas elas não se pegavam não ?


MC: Não… Era tudo na boa. Procure saber, e se for mentira minha, me chame de cínico ! Procure saber lá na Bahia… Mestre Caiçara morou com duas mulheres. Morava no São Cristóvão, na ladeira do São Cristóvão. Eu era magarefe no Retiro, tinha açougue [???] Era chiquezinha, toda bonitinha. Porra… E as muié brigava, e [???] mestre de capoeira, batia nesses moleque, entrava nas roda, acabava com as roda [???] Hahahaha. Já briguei muito. Procê… Hein ? Beleza…


MM: Já brigou muito, mestre ?


MC: Já briguei muito…


MM: Na roda também ?


MC: Na roda, não… Fora da roda.


MM: Hein ?


MC: Casa de jogo, cabaré… [???] Sou todo baleado. Capoeira eu brigava, acabava com as roda.


MM: Acabava com as rodas ?


MC: Até na casa do… na academia do Mestre Bimba, eu invadi e meti o pau nele por lá. Daí a pouco ele quebrou a minha boca. Eu era abusado como uma porra, chapéu de veludo, a sola no bolso, calça diagonal, sapato [???] branco. E é vem Caiçara, corre ! Até no matadouro onde eu matava boi. Meus colega tinha medo, iam para dentro do mato jogar baralho. Todo mundo melado de sangue, açougueiro.


MM: O senhor mexeu com açougue muitos anos, mestre ?


MC: Hum ?


MM: O senhor mexeu com açougue muitos anos ?


MC: Açougue ? Eu era magarefe, matava boi, tinha açougue, aquela coisa toda. [???] como uma pinóia.


MM: [???], mestre ?


MC: Eu era…


MM: Dava marretada ?


MC: Era… Matava com… Tinha uma machadinha desse tamanho. Batia aqui, ele caia. Tinha dia que eu tava zangado, matava o boi, sangrava e bebia o sangue. Alucinado. É… Eu era malvado como uma porra. [???] não foi… Tem alguns deles por aí, não é só na Bahia.
MM: Mestre, alunos do senhor… O senhor teve algum assim, bom ?
MC: Ah, tem um bocado… Tanto aqui como no exterior… É. Esses mestres de São Paulo, tudo respeita meus aluno… que tenho em São Paulo. Até hoje eu tenho um lá, chamado Silvestre.


MM: Silvestre é aluno do senhor ?


MC: É. Que eles tudo respeita. Tinha Nego Dimola, tinha o Gajé, essa turma toda, o Paulo Limão, cê lembra ? Ah, veio mais o Moraes, aqui no Rio… o finado… Zeca. Zeca Dez Conto. Ah, sim… Tinha Sina, tinha Waldemar, tinha aquele menino chamado.. Acaçá, neguinho Acaçá.