Publicado originalmente no jornal Estado da Bahia, em 15 de março de 1948
A notícia divulgada pelo Diários Associados de que o mais famoso capoeirista baiano, Muleque Bimba, que dirige uma escola dessa briga, tornada nacional, pretende vir ao Rio fazer exibições públicas dos nove cortes que inventou, causou sensação entre os profissionais da defesa pessoal. Existe mesmo urn movimento para que se efetive a vinda de Muleque Bimba, o sexagenário que ensina a muitos moços de sua terra os golpes sinistros da capoeiragem, sabendo-se até que já foi seu aluno o hoje deputado Juracy Magalhães.
Entre nós, João Mina é o mais velho dos três últimos remanescentes da já remota época das batucadas e capoeiragens que até o primeiro quartel deste século pertubaram a ordem e a tranqüilidade públicas. Tem mais de sessenta anos o preto velho e arrasta seus atuais pesados dias ali pelo Estácio.
Está aqui neste seu criado, diz João Mina para o repórter numa tendinha do morro. Um negro que fazia batuque e capoeira no morro da Favela, que é o lugar que nasceu o samba no Rio.
Batuque quem fazia era negro de macumba, negro bom de santo, bom de garganta e, principalmente, bom de perna para tirar outro da roda. Tinha batuque todo dia na favela, com a negrada metendo a perna e jogando parceiro no chão, até a polícia chegar. Aí, então, como num passe de mágica, a batucada virava samba, entrando as mulheres dos batuqueiros na roda. Homem não dançava samba. Samba é nome de filha de santo, mas todo mundo de fora que subia o morro procurando mulher, dizia que ia ver samba e por samba ficou a dança que elas dançavam e que era batuque mais mole e bem remexido. Era coco.
Assim que apolícia saía, o batuque continuava e os batuqueiros entravam duro na capoeiragem. Pobre do moleque que cochichasse quando o batuqueiro cantasse:
Olha a banda
Olha a banda
Negro da ronda
Podia contar que ia levar uma banda jogada, quer dizer, uma rápida e violenta pernada que o atirava fora da roda, principalmente se tivesse mulher boa perto dele. Mas se o muleque saísse dessa, o batuqueiro sem perder o ritmo do batuque emendava:
Batuqueiro novo
Dava um baú
Pra não perder o amô…
A banda jogada passava pra banda de frente e o batuque soltava logo um baú no parceiro, atirando o muleque no chão, pelas costas.
Outro corte ruim de defender, pra batuqueiro novo, era a tiririca, quando o mestre cantava:
Tiririca é faca de cortar I
Quem não pode não intimida
Deixa quem pode intimar…
Um pé ficava no chão e outro subia virando com força no pé do ouvido do parceiro. Mas a capoeiragem tinha muitos cortes ruins. Tinha o dourado, a encruzilhada, tinha o rabo de arraia….
Sim, João Mina, o fulminante rabo de arraia…
Pois é, meu filho, o rabo de arraia…
Os outros que ouviam, reverentes, a palestra do velho João Mina, fizeram um sinal negativo para o repórter. O homem da tendinha serviu umas doses de cachaça e João Mina continou:
Batuqueiro bom brincava na frente do fandango e caninha verde, no Carnaval, abrindo ala como se faz hoje diretor de corda de escola de samba. Batuqueiro bom brincava de noite na Praça Onze de Junho, que já foi reduto enfezado de gente do morro.
Um dia, os batuqueiros da Favela tiveram uma arrelia. Houve então, uma separação. Os grandes ficaram na Favela e os outros foram para o morro de Santo Antônio. Casaca de Bronze, capoeira de respeito e capanga de político, uma noite, ninguém sabe porque, nem por ordem de quem, botou fogo em tudo quanto era barracão do morro de Santo Antônio e fugiu, fugiu que até hoje não se sabe notícias dele.
A negrada que ficou sem barraco no morro de Santo Antônio foi toda para o morro da Mangueira, os homens fazendo batuque e as mulheres sambando. O lugar onde eles levantaram os barracos ficou sendo chamado o Santantoinho de Mangueira. Depois é que vieram para a Estação, Querosene, Salgueiro. Apareceu o samba mesmo, quando Epitácio Pessoa mandou mudar o mulherio da Glória e da Lapa para a Cidade Nova.
Mas por aí, Sampaio Ferraz e Alfredo Pinto tinham dado cabo de muito batuqueiro, de muito moleque de capoeiragem. Isso de escola de samba é coisa nova, coisa boa, de preto, político trabalhador, que não quer mais saber de malandragem, nem de pernada.
João Mina rematou:
Pois é menino, eu tinha vontade de ver esse tal Muleque Bimba, para me lembrar dos velhos cortes do meu tempo… Será que ele briga mesmo?
Descemos o morro e Tancredo Silva, que apesar de moço, é o terceiro dos remanescentes, disse-nos:
Bernardo Sapateiro faltou ao encontro. Ele, que é daquele tempo, ia contar porque João Mina não quis falar do rabo-de-arraia.
Você não sabe ?
Dizem que numa batucada na Praça Onze, num carnaval, João Mina deu um rabo de arraia num sujeito e ele morreu ali mesmo. João Mina foi para a detenção e ficou na sombra uns anos. Quando voltou, trouxe a cuíca e nunca mais quis saber de batucada. Era só cuíca. E a batucada virou samba. Depois, Edgard trouxe o tamborim.
Na rua do Estácio, Tancredo Silva ainda disse:
Olha, menino, João não falou que, quando o batuque enfezava, os batuqueiros cantavam:
É ordem do Rei pra matar.
É ordem do Rei pra matar.
E o rabo de arraia comia solto até morrer o parceiro que estava condenado pela negrada. Essa ordem do Rei entre os batuqueiros vem do tempo em que o Brasil era Reinado, e que a capangada tinha ordem para acabar com os pretos que conspiravam.