“Desafiei todos os valentes”

Entrevista com Mestre Bimba
Originalmente publicado no Diário de Goiânia, em 1973

Mestre Bimba, conte-nos de onde veio, seu nome completo, sua história.

Meu pai chamava-se Luis Pereira Machado, minha mãe Maria Martinha do Bonfim, meu nome é Manoel Reis Machado. Muita gente me pergunta: “Porque Mestre Bimba?” Eu não gosto de dizer… Tem gente que acha que é por causa da luta, mas não é. Porque lá em Salvador, onde eu nasci em 1900, “bimba” também quer dizer pancada. Meu nome é por causa de outra coisa. É por causa de uma aposta. Minha mãe teve vinte e cinco filhos, eu fui o último. Dizem que eu nasci muito gordo. Minha mãe apostou com a parteira que eu era homem e a parteira dizia que era mulher. Então, para saber se eu era homem ou era mulher, como era muito gordo, abriram minhas carnes para ver… e encontraram lá a “bimba”!… (Mestre Bimba reclama do garçom do Hotel Presidente, onde esta entrevista foi feita: “Cadê o tira-gosto. rapaz?”).


Trabalhei em carpintaria, trabalhei também na estiva, isso por volta de 1918. Carregava peso de 120 quilos… Conheci nesta época um mestre de Capoeira de Angola. Essa é a capoeira de Angola, porque existe também a Regional, que eu criei. Ele se chamava Bentinho. Ele era filho de dois africanos, eu sou neto de africanos. A partir desta época, então, eu aprendi a Capoeira de angola e passei a criar a regional.

Como era vista a luta de Capoeira naqueles anos?

Naquela época, quando se falava em Capoeira, falava-se baixo Os que aprendiam capoeira só pensavam em ser bandidos.

Ser valente estava na moda?

Era gostoso. Já pensou o que era, pra essas pessoas, enfiar a peixeira na barriga dos outros, rapaz?… Mas então, tem gente que pensa que Capoeira é luta de queda. De maneira que de 1918 a 1936, eu, Mestre Bimba, desafiei todos os valentes e venci: A luta que mais demorou, durou um minuto e dois segundos. Daí para cá mudei muito de vida. Larguei a estiva, larguei tudo, tomei outro curso de vida.

Qual a diferença fundamental entre a Capoeira Regional e a Capoeira de Angola?

Os capoeiras de Angola, a única coisa de bom que tinham era a coragem. Então, o que aconteceu? Um rapaz de doze, quinze anos, até vinte, quando aprendia a luta, naquele tempo, a tendência era pra comprar um revólver ou uma faca. Então, quer dizer que isto não era um esporte… E quem tirou a Capoeira do Brasil da unha da polícia, eu acho que abaixo de Deus fui eu…

Quer dizer. Mestre Bimba, que a capoeira de Angola era aquele que botava uma navalha na ponta do berimbau?

Muito bem. Falou.

O senhor teve um conhecimento profundo da Capoeira de Angola antes de criar a Regional?

Por dez anos eu ensinei Capoeira de angola. Depois eu passei a ensinar Regional. E peguei a ganhar dinheiro. Mas eu sou um homem pobre. O que eu tenho muito é amizade. Os homens mais ricos da Bahia passaram por minhas mãos. Se eu fosse dizer o nome de todos eles, passava a tarde inteira.


Com tanta gente boa, dando aula até pra Governador (tem governador, não tem?), como é que tudo ocorreu de forma que o senhor tivesse que sair da Bahia, por problema financeiro?


Na Bahia, acontece o seguinte: se o senhor chegar e pedir um auxílio para uma festa, um festejo carnavalesco, para uma qualquer coisa, que pertence à farra, tá bom. Mas se for para curar, para ensinar, para ajudar uma academia a bem do povo, não acha.

Quantos grupos de Capoeira existem na Bahia?

Agora eu não sei nem contar. Primeiro existia só o meu, agora existem uns trinta e oito.

O senhor acha que essa atual invasão de turistas está estragando a Bahia?

Quando eu apresentei espetáculos de folclore na Bahia, sempre fui muito elogiado. Mas agora, atualmente, existe muita falsificação. Seguinte: Capoeira é luta pra homem (e também pra mulher, depende). Mas acontece que pra ganhar dinheiro, até Capoeira do Amor já existe. A mulher fica deitada, vem o sujeito e salta por cima da palma da mão dela; só que aí se desloca sobre o próprio corpo, se agarram, e saem rolando… Bimba não ensinou isso não…

A música que se utiliza na Capoeira, talvez por ser baseada no berimbau, dá a impressão de ser pobre, repetida. Acontece isso, realmente ?

Berimbau tem oito toques. Numa roda, pode-se tocar um toque, ou dois, ou oito… Quer dizer: não é um instrumento que tem o “estoque” que tem o violão e outros instrumentos. Mas dá pra satisfazer… A regra é um berimbau e dois pandeiros.

O Maculelê tem origem própria ou veio da Capoeira?

Não, não tem nada a ver Maculelê com a Capoeira. A lenda do Maculelê vem dos índios que existiam no Brasil. Teve uma tribo que brigou com outra. Então, do lado de uma tribo tem um herói que venceu com dois pedaços de pau. Daí o nome: Maculelê.

Existem algumas variações: Samba-Duro, Samba-de-Roda… Como é que são esses sambas?

Samba-de-Roda só se faz com mulher, com meninas. O Samba-Duro é samba de queda, um samba de batuque – é mais pesado. É um samba de homem, é sambando e derrubando. O Samba-de-Roda, dá licença. É só pras meninas mexerem com as cadeiras.

Nessas tradições todas de música e dança da Bahia, existe uma influência multo grande dos africanos. Há também influências portuguesas e indígenas no folclore baiano?

Além do batuque e desses sambas, o que restou foi um “terno” chamado Rancho Feliz, que não existe mais e que se incorporou ao folclore. Então, tudo isso foi criado pelas “cachoiranas”, mulheres apropriadas para o samba Dessas mulheres pra cá é que se aprendeu o que é Samba-de-Roda.

Mestre, existe uma dança francesa que se desenvolveu por volta de 1650, chamada “Savata”. Tem uma semelhança entre esta dança e a Capoeira, é uma dança e ao mesmo tempo uma luta; como na Capoeira, usam-se os pés e as mãos, apesar de não se utilizarem instrumentos musicais. Esta “Savata” pode ter Influenciado a Capoeira?

Eu acredito que não. Porque a Savata foi criada pelos estrangeiros e a Capoeira pelos brasileiros. Há semelhança, mas não tem nada a ver com a Capoeira. Justamente uma coincidência.

Existe Capoeira hoje em Angola?

Em Angola nunca houve Capoeira. Tem dois escritores do Rio de Janeiro que dizem que a Capoeira veio da África. Mas não. Ela foi criada no Brasil, nas senzalas, nos engenhos, onde os pretos trabalhavam. Então quando eram calçados pelo chamado “Capitão do Mato”, eles se defendiam com pesadas, rasteiras. Em princípio a lenda de Capoeira é essa, que existia em 1918 quando meu pai criou a Dança-de-Batuque e quando eu criei a Capoeira Regional.

Esse assunto aqui é diferente. Tem-se comentado muito, ultimamente, sobre a “deformação” da cidade de Salvador, principalmente em função do turismo e da construção de viadutos, abertura de avenidas, etc. Comenta-se inclusive que alguns casardes pegaram fogo assim que a prefeitura decidiu passar por ali um novo viaduto. O que é que o senhor tem observado sobre este problema?

Francamente, isto não está no meu conhecimento. A única coisa que eu vi acontecer foi justamente o incêndio do Mercado Modelo, que dizem que era tradição da Bahia. Todo ano o governo queria construir obras ali, etcetera e tal, até  que  por  fim  ele acabou pegando fogo.

O que o senhor acha do Caetano Veloso?

Francamente, eu não tenho o que dizer sobre ele. A matéria dele é uma e a minha á outra.

O senhor disse inicialmente que deixou a  Bahia por questões financeiras. Quais as condições reais que está encontrando aqui ?

Aqui em Goiânia, trazido pelo Professor  Osvaldo de Souza, que foi meu aluno e que eu tenho como um filho, eu espero, encostado a ele, ser ajudado por algumas autoridades daqui. Então, gostando da boa terra, para dizer melhor nunca vi mais mulher bonita! Aqui tem umas meninas! Meu Deus, por que é que eu sou velho?! De modo que o meu futuro é aqui em Goiânia. Porque a minha mulher recebeu o cargo de Zeladora… Diz-se por aí: “Mãe-de-Santo” – mas o verdadeiro nome é Zeladora-de-Encantado. Então aqui em Goiânia nunca teve um Candomblé e eu quero criar um. Minha mulher é a maior Zeladora da Bahia. Muitas pessoas desenganadas pelos médicos muitas vezes são salvas no Candomblé. Porque pode ser um problema do espírito. Às vezes a pessoa tem uma vida perseguida, uma incoerência com as coisas, fica aperreando pra levantar, tudo que faz não dá certo… Então com as rezas, com as coisas, ela pode salvar o indivíduo. Se minha mulher é bonita? Minha mulher é bonita demais!… Eu sou preto mas ela é caboclinha.


De modo que o meu futuro aqui em Goiânia é ensinar. Capoeira, Samba-de-Roda, Samba-Duro e Batuque, que não existe mais no Brasil. Essas coisas é que eu quero fazer.

Entrevista com Mestre Pastinha, 1964

Entrevista feita por Helina Rautavaara, na academia do Mestre Pastinha, em 1964.
Transcrição direta do áudio, com alguma tradução do espanhol (a Sra. Helina falava em “portunhol”)
Introdução (1996)
Helina Rautavaara: Em todo caso, todavia estamos durante a minha primeira visita (…) Bahia. Eu começava a encontrar coisas, e claro, me falaram sobre Mestre Pastinha – que ainda àquela época não era cego. Tinha sua academia, dirigia sua academia, às vezes jogava… Eu até tenho uma foto, muito muito ruim porque foi tirada com aquelas máquinas de 10 dólares – mas ele está jogando mesmo. Em sua academia, é claro. Era fundamento angola… o verdadeiro. Angola… E uns dos mais velhos, senão primeiros na Bahia. Claro, a capoeira é uma tradição muito antiga, tem seus heróis durante a escravidão. A escravidão não foi tanto tempo atrás. Eu tenho entrevistas… Entrevista na casa do Waldemar da Liberdade, que também é muito famoso capoeirista. Tenho uma entrevista com um velho – ou foi velha, não me recordo mais – que foi escravo, nasceu escravo. Oh! Então, tantas recordações há na Bahia. Ora, se perderam todas… Me disseram que se perderam, que deixaram perder tudo, tudo, tudo. E a música mesmo… Influenciada por rádio e televisão. Já não existe nada de folclore autóctone, tradicional. Já se mudou, hoje. Então na casa, me chamaram Mestre Pastinha. E claro, Mestre Pastinha, como dirigia sua academia, ele me apresentava a um jovem e eu fui a ele dizendo que queria gravar. E ele me apresentou esse jovem, alto, forte e bonito, que se chamava Raimundo. Preto, preto, preto. Angola! Então depois que me apresentou, ele como um guia, como uma pessoa que me ensinaria e guiaria, e cantaria para mim. Cantando capoeira amarrado, com todos lá. Agora aqui vamos escutar essa gravação. Que verdadeiramente é clássica, muito, muito clássica. Ainda posso … essa musical. Porque Raimundo sabia cantar. Depois comecei a andar com ele pelas festas de largo, e às vezes… Ele tinha um pouco de jeito de africano. Por exemplo, quando estávamos descendo ladeira, ele não andava comigo, andava um pouquinho atrás. E me lembro da polícia vindo me dizer: “Esse sujeito aí está seguindo você”. Vinham me advertir que era perigoso. E eu ficava rindo. “Não, é meu camarada…” Mas como eu disse na outra fita, naquela época, durante minha primeira visita, 1963, 1964, eu não tinha romances, não tinha amores. Então o livro de Jorge Amado foi realmente foi uma novela. Somente depois que voltei da África para a Bahia que eu comecei a andar com DiMola. E estávamos sempre rindo que somente depois eu estava vivendo acontecimentos do livro de Jorge Amado que ele tinha escrito anos antes. Então eu peço aqui, depois eu tenho entrevistas com Mestre Pastinha em outras fitas. Se couberem, eu vou juntá-las aqui. Se não, vai ser em outra fita. Mas essa é a primeira gravação da capoeira de angola, 1964.
Entrevista (1964)
Helina Rautavaara: Eu queria que me contasse um pouco, desde que ano começou como capoeirista ?
Mestre Pastinha: Desde 1910.
HR: E em que ano fundou essa capoeira ?
MP: Em 1941.
HR: Por favor, me explique um pouco mais sobre o que é a capoeira. Eu já sei, mas me explique.
MP: A explicação que eu tenho ? Que é da capoeira ?
HR: É.
MP: Sobre a origem dela ?
HR: Sim, sobre a origem.
MP: A origem é africana.
HR: E onde você aprendeu ?
MP: Aqui na Bahia.
HR: Em que ano ?
MP: Aos 10 anos de idade.
HR: E de quem aprendeu ? E quem lhe ensinou ?
MP: Um africano.
HR: Como ele se chama ?
MP: Se chamava Benedito.
HR: Mestre de angola.
MP: Angola!
HR: E… Diz-se que a capoeira é uma luta, mas que agora está proibida como luta…
MP: Não… Ela não está proibida como luta não. Ela está no íntimo do homem. Na hora que ele encontra um rival, ele então se manisfesta com ela em ato de luta. Agora quando estamos em ato de alegria, ela passa a ser dança.
HR: Na sua academia, há quanto tempo está nesse lugar ? Aqui no Pelourinho ?
MP: No Pelourinho, desde 1952.
HR: O senhor quer me contar algo de sua vida, como capoeirista ? Você foi ao Rio, a São Paulo ?
MP: Rio, São Paulo, Brasília, Porto Alegre…
HR: E para o estrangeiro também ?
MP: Ainda não. Tive uma oportunidade que perdi, que tinha que ir à Argentina. Mas porquê recebi um convite de São Paulo, então ficou revogado. Para eu vir a São Paulo, deixei de ir à Argentina.
HR: Em que idade tem que aprender capoeira ?
MP: Em que ano ?
HR: Em que idade.
MP: Não, ele aprende de qualquer idade. Em qualquer idade pode aprender.
HR: Esses rapazes que estão aqui, são trabalhadores, estudantes.
MP: É… São trabalhadores, operários, estudantes, funcionários, empregados no comércio. Tem de tudo.
HR: E a capoeira é somente um passa-tempo.
MP: É.
HR: Que eu vi ali [inaudível]. A capoeira não dá vida.
MP: Não.
HR: Mas você, o que faz ? Você vive da academia ?
MP: É.
HR: E… Que modificações novas aconteceram aqui ? Como era a capoeira antes ?
MP: Antes ?
HR: Era o mesmo ?
MP: Era a mesma coisa. Era a mesma coisa. Não tem modificação nenhuma. A modificação é a consideração de um homem para outro. Se ele tem a vocação, toma em ato de alegria ou em festa, então nós jogamos ela com mais obediência, com mais técnica. Agora, quando passar o ódio, ela modifica também, vira para luta. Em ato de alegria, é para dança. E no ato do ódio, já sabe como é: é para a violência.
HR: Diga-me uma coisa. Você pessoalmente não sai mais na rua.
MP: Não, não, não…
HR: Mas apresenta a capoeira em Boa Viagem. Em que festas apresenta ? Em Santa Bárbara. Em, em… Conceição…
MP: Em Santo Amaro, Cachoeira.
HR: Boa Viagem…
MP: Boa Viagem. Eu estou em todos os lugares. Onde sou convidado a ir, eu vou.
HR: Sim.
MP: Estamos aqui prontos para atender qualquer finalidade, seja qualquer lugar. Aonde se interessarem por ela, eu também me interesso em ir.
HR: Onde você acha que a tradição de capoeira é mais puro ? Aqui mesmo ?
MP: É…
HR: O que pensa de Mestre Bimba ?
MP: Nada tenho a responder. A finalidade é outra, e eu não posso introduzir uma finalidade… Agora nessa aqui, eu sei responder sobre ela. Agora lá sobre o outro… Sei que ele é um… A respeito do Bimba, eu não posso dar a finalidade. Porque ele tem a finalidade dele. Só quem pode declarar é ele mesmo.
HR: Mas você acha que… Ele disse que representa uma tradição baiana. Você crê que é baiana ?
MP: Ele é baiano também. A tradição é a mesma. De mim para ele, de ele para mim, penso que não há modificação nenhuma.
HR: Você mestre representa mais uma tradição africana, angolense. Ele apresenta outra tradição mais…
MP: Angola! Ele apresentou então em outra modalidade. Sobrenome de regional. Ele apresenta ela com o sobrenome de regional. Mas ele é angoleiro, ele aprendeu angola.
HR: Era, era…
MP: Ele é tão angoleiro quanto eu sou, aí eu não desmereço ele…
HR: E os outros como Waldemar e Caiçara… São discípulos seus ?
MP: Aqui para nós, eu não posso dar a finalidade do outro. Só posso dar a minha. Porquê eu só posso apresentar a minha, não posso apresentar a outra.
HR: Não, não, eu não perguntei isso. Eu perguntei somente como tradição africana.
MP: É a mesma, a tradição é a mesma. Agora eles tem a declaração deles diferente. Eles aprenderam com outro mestre. Eu não posso dizer nada.
HR: Que planos tem para o futuro ? Para modificar, fazê-la maior ?
MP: O futuro dela é esse mesmo. Da evolução do homem. Aí é somente a evolução do homem. Mas ele tem que se manifestar dentro dela mesmo. No mesmo ritmo, não pode sair fora…
HR: Me diga uma coisa… Que significado tem quando eles começam cantando, e saúdam assim. Uma saudação. Tem algum sentido religioso ?
MP: Ela é religiosa. Vem da mesma religião que tem o candomblé. Tem o batuque, o samba. Ela é da mesma parcela. Agora, com a modificação, um pouquinho diferente. O manifesto é um pouquinho diferente. Mas a parcela é a mesma, a religião é a mesma.
HR: Alguém me disse que há uma rivalidade entre candomblé e capoeira…
MP: Não há rivalidade… É unida.
HR: Em algum livro eu li que há uma briga entre elas. Não há ?
MP: O capoeirista é o mesmo feiticeiro. Agora eles abandonam mais uma parte por outra. Nós acompanhamos o fetichismo. Nós acompanhamos o candomblé. Não fosse assim, nós não iríamos na casa de candomblé. Não é ? Mas é da mesma parcela. Agora um que gosta mais de uma finalidade que da outra.
HR: Claro, claro…
MP: Um corre mais por capoeirismo, outro corre mais por fetichismo.
HR: A revista que lhe prometi, vou lhe mandar da Finlândia. Porque aqui não tem… Do Rio eu podia mandar, porque no Rio tem. Podia mandar alguma fotografia de [inaudível].
MP: Pode mandar. Quanto mais, melhor…

Palestra do Dr. Fu Kiau (Salvador, 1997)

O texto abaixo foi gentilmente cedido por Daniel Mattar, treinel da FICA. O texto foi transcrito a partir de fitas K7 contendo a gravação da palestra do Dr. Fu Kiau, realizada em Salvador (1997)

III ENCONTRO INTERNACIONAL DE CAPOEIRA ANGOLA Fundação Internacional de Capoeira Angola – FICA
Palestra do Dr. Fu-Kiau (Lemba Institut – New York/USA) Salvador/Ba, agosto de 1997.
FITA 1 – LADO A
Dr. FU-KIAU: Eu vou falar pra vocês do nascimento do mundo da capoeira na terra Congo. São alguns fatos que nós temos que conhecer antes de começar qualquer coisa. Entre 1500 A.C., essa área particular que chama Angola e Congo foi visitada por fenícios. Essa visita foi a primeira registrada fora do continente africano, então foi a primeira visita conhecida pelos ocidentais. Entre esse período que nós falamos e o século XIII há um silêncio total, não sabemos nada. Depois deste tempo, o século XIII, que o reino do Congo-Angola cresceu. Esse reino era muito poderoso nesse momento particular (nessa época) . Esse reino era tão poderoso que era conhecido… era tão conhecido, que tinham livros escritos sobre esse reino. Vários professores universitários pesquisaram sobre esse reino, na Europa. Um deles chama-se Lopes, de Portugal; um outro chama-se George Balandier, da França, e George Balandier é um dos mais conhecidos dessa época da história do Congo, porque é dentro da pesquisa dele que nós encontramos (buscamos) as informações sobre o reino do Congo. Ele foi o primeiro europeu a reconhecer que o reino do Congo era tão poderoso, reconhecendo a existência de quatro universidades nesse local. Um deles foi conhecido como Instituto Lemba; o segundo conhecido como Instituto Kimpassi; o terceiro conhecido como Instituto Kikumbi, e o quarto, Instituto Welo (ou Uelo). Urna dessas universidades foi feita para o treino de mulheres. É muito importante insistir nesse fato. Por que essa existência de uma universidade prá mulheres? Porque o Congo acredita que a mulher é (ou está) mais perto de Deus. Porque a existência humana é impossível sem a presença da mulher. Esse reino do Congo, como era conhecido na época, é hoje conhecido com três nomes diferentes. O Ocidente descobriu a importância desse reino e não quis que este permanecesse unido, então dividiram esse espaço em três poderes: o sul deste reino foi para Portugal, conhecido hoje como Angola; o centro foi para a Bélgica, hoje conhecido como Zaire, ou República do Congo; o norte do reino foi dado para a França, e é conhecido também como República do Congo. Mais de 40% dos escravos trazidos para as américas vieram desta região particular. É bem infeliz para nós, porque o mercado de escravo destruiu totalmente este reino. Os maiores mestres que existiam nesse reino foram levados. Todos os jovens entre 15 e 25 anos também foram levados, e o pior, quando eles chegaram no Novo Mundo, por causa do tratamento que eles receberam, esses mestres… todos esses mestres que tinham esse conhecimento, tiveram que morrer. Eles morreram durante a travessia do Atlântico; quando chegaram na terra foram submetidos a trabalhos forçados, e os que não queriam se submeter tiveram que lutar. E como eles não tinham armas como os serthores, eles começaram a se organizar de maneira secreta Nessa medida eles começaram a entender os poderes que eles tinham adquirido na África E a mesma capoeira nasceu na América do Sul e no Brasil. Esta mesma prática existiu no norte da América Não conheci pelo mesmo nome. O ensinamento do que nós conhecemos como capoeira foi conhecido por outro nome, mais conhecido pelos seus aspectos de igreja, e se chamava mong. Então são esses dois nomes: capoeira e mong, o que era a capoeira no Congo-Angola Como eu disse mais cedo, Congo-Angola foi a terra da origem da capoeira, e então no caso o Brasil ter conhecido a capoeira não foi errado, não foi mal conduzido. Achou seu camitrho. Temos que entender as crenças e a visão de mundo destes povos. O povo bantu acredita que existem quatro níveis na vida O início de tudo, que nós conhecemos como big bang, é o nível 1, ali embaixo, conhecido como mussoni. Depois do big bang veio o processo de resfriamento, o mundo foi solidificado, e temos o nosso planeta Terra. Esta aí é a etapa 2. É nesta etapa 2 que a vida começa no seu nível mais baixo. E aí vem a etapa 3 onde os animais começam a surgir. É na etapa 4 que os seres humanos surgeim (Anne: eu falei vida no 2, mas eu acredito que seja vida vegetal). Eaí a vida é (se) completa na face da Terra. É nesse esquema que o povo bantu-congo tem como bases os seus ensinamentos, e acreditam que nada na Terra foge dessa base, desse esquema. Biologicamente, nós somos concebidos na etapa 1, nascemos na etapa 2 , amadurecemos na etapa 3 e morremos na etapa 4. E esse processo continua através do Universo. E eles explicam porque a lua é nua para eles. A lua está nua nessa etapa, sem vida nenhuma, porque ela está na etapa 2. Nesse processo nós vamos também descobrir o que é a vida. Todos os ensinamentos seguem o mesmo esquema. O povo bantu, devido o ensinamento nessas quatro partes (etapas), tem um tempo que nós temos que entender a origem da vida, como a vida na Terra é concebida, e o que é o nascimento. O que é também ser maduro e um líder, e o que é morrer. Para os bantu, a morte não é o fim, porque a morte é um processo como qualquer outro processo, e porque é um processo eles veem como música. Nós nascemos sob música e morremos sob música, porque dentro de nós temos uma percussão que é o coração. Então os instrumentos que fazemos fora de nós são iguais, e é por isso que é importante para qualquer pessoa envolvida com capoeira. Para entender o conceito da música dentro da capoeira, esse candidato tem que entender que a música é o seu coração biológico. Vou tentar explicar isso com os slides. Para os bantu, especialmente os congo, viver é um processo emocional, de movimento. Viver é movimentar, e movimentar é aprender. Você avança, você se movimenta para trás, você se movimenta prá esquerda e você se movimenta para a direita, e essas são as quatro direções. Mas, tem mais três. Temos que aprender a se movimentar para cima, temos que movimentar para baixo. São as seis direções. Um candidato à capoeira deve descobrir a sétima direção. E essa direção é muito importante. Temos que entender que dançar e se movimentar é se movimentar dentro de um ovo. O capoeirista se movimentando tenta quebrar essa casca de ovo. O capoeirista (candidato a capoeira) é como um pintinho dentro do ovo, tentando quebrar a casca. Ele tenta bater prá cirna, bater prá esquerda, bater prá direita, bater pra frente, bater pra trás, bater pra baixo, mas a coisa mais importante é bater pra dentro (por dentro). É por isso que o capoeirista quando jogando, não pode perder o centro. É por isso que na vida temos que também ter essa consciência de não perder o centro para ter saúde e riqueza. O Movimento na vida é muito importante, e temos que descobrir o valor da vida Se você prestar atenção aqui, você tem um centro e temos essas direções. E eu falei que se movimentar é aprender. Os movimentos que você faz na capoeira é um movimento, e não é limitado a aula que você está aprendendo (no caso, aprendendo capoeira). É parte da sua própria vida. Você tem que conhecer pessoa fora. Você precisa encontrair (conhecer) as pessoas vivas e as pessoas mortas. Esse conceito não é muito conhecido no Ocidente, e por isso que o Ocidente não entendeu muito bem a cultura africana. Nós aprendemos mais com os mortos do que com os vivos. Isto é muito comum dentro do povo africano. Isto é ilustrado na maneira como os africanos respeitam os mortos. E é verdade também… mas eles não enxergam, não percebem nessa (ordem). Se você for em qualquer livraria, você vai ver mais livros escritos por mortos do que escritos por vivos. E os bantu falam: nós escutamos e aprendemos mais dos mortos. É por isso que os bantu falam: escutem mais os mortos que os vivos, porque os mortos se tornaram pedras, e os vivos são capim. Eles podem ser facilmente pisados, enquanto os mortos, que são pedras, não podem ser destruídos tão facilmente. Então isso aí é muito importante na nossa vida quando descobrimos a…..
Daniel Dawson: Alô. Eu acho que muitos de vocês já viram a apresentação de Dr. Fu-Kiau antes, mas certamente vocês podem ouvir isso novamente. Dr. Fu-Kiau é importante como pesquisador, como estudioso, e como um líder de tradição. Ele tem duas formações: uma formação em sistemas tradicionais africanos, tais como LEMBA, e várias outras. Ele também foi educado da forma ocidental. Ele é um doutor em Educação, e tem vários mestrados. Atualmente é o diretor do serviço de biblioteca numa prisão de Boston (USA), onde ele ensina cursos sobre cultura africana. Ele também foi um dos primeiros africanos a abrir um instituto dedicado à cultura africana, e muitos dos mais importantes estudiosos, como Robert F. Tompson……….aprenderam suas informações vindas dele. Pelo fato do Instituto dele ser dedicado ao registro e a discussão da cultura africana, ele é uma enciclopédia dessa cultura Nós deveríamos nos beneficiar de algum dos conhecimentos dele, hoje. Muito deste conhecimento vem do Instituto Lemba. Lemba foi importante em todas as Américas. É importante também no Candomblé de Angola porque existe um nkisi chamado Lemba; é importante no Haiti porque uma parte do seu vodum é chamado vodum Lcmba; é importante também em Cuba. Então Lemba é uma das instituições mais importantes, e vocês vão poder ter contato com isso, porque não só ele é uma pessoa iniciada em Lemba, mas ele tern um estudo ocidental dedicado a isso, e tem o processo iniciatório. Também serão beneficiados pela tradução de Eneida. Dr. Fu-Kiau.
Dr. FU-KIAU: É um grande prazer prá mim estar aqui. Esta é a segunda vez, segundo dia que eu experencio algo que me faz chorar. A primeira vez eu fui para uma celebração, e nessa particular celebração eu ouvi canções que não eram em português, mas canções que eram na minha língua. E aqui novamente, eu ouvi algumas canções, não em português, não em inglês, nenhuma outra língua européia, mas em minha língua e em iorubá. E uma dessas canções fez o meu coração bater tão rápido. Essa música era KALUUNGA KULUMUKA. Kaluunga é uma palavra chave na religião congo. A palavra significa o oceano; também significa imensidão; significa também a energia maior que existe. É também a palavra que significa Deus. Então pra mim ouvir Kaluunga Kulumuka, todo o meu corpo mudou. Eu vi os céus descendo entre nós. É uma pena que muitos não tenham essa mesma experiência em particular que eu tive. A segunda canção, foi a canção na qual os cantores estavam tentando enviar suas lágrimas como uma chuva, ao contrário do que acontece conosco quando ela vem dos céus. E depois dessas duas canções, eu disse pra mim, dentro de mim: “se eu tiver algum poder de falar aqui, talvez fosse apenas o fato de eu sentar e ouvir mais. Mas porque me foi pedido prá falar, eu tenho que dizer algumas coisas.
O Brasil, na minha experiência é o meu país. Porque, em qualquer outro lugar que eu for agora, eu vejo as pessoas retomando prá casa. Mesmo aqui, as canções, os tambores… da mesma forma que são tocados e cantados de volta na minha casa. Uma terceira canção que eu mencionaria aqui, que foi a canção… e nessa canção tem algumas palavras, na verdade são duas palavras, e essa canção foi NGOMA MALEMBE, que significa: “tambores toquem devagar, não nos acelere, não nos façam andar- rápido. Nós não vamos compreender suas vibrações”. Essas são coisas profundas prá mim.
Eu tenho muito orgulho de ter sido permitido de visitar o Brasil, e eu agradeço a esta senhora chamada SIMBI VALDINA e Mestre Cobrinha. Sem eles eu não poderia estar aqui. Eles são as portas para que eu possa estar aqui. Nós estamos vivendo um tempo diferente agora. Por quatro ou cinco centenas de séculos nós estivemos separados. Nada nos separa agora: nem o oceano, nem a terra, nem inesmo as línguas. Nós somos um, hoje. E pelo fato de termos nós tornado um, nós temos que aprender uns dos outros. Eu vim aprender de vocês, e eu espero que vocês venham aprender de nós. O mundo tornou-se uma única vila (aldeia), uma vila global. E nessa vila, nós teremos as tendas (as barracas) dentro das quais teremos irmãos de sangue, pessoas brancas, pessoas amarelas, pessoas vermelhas e talvez pessoas verdes e amarelas [talvez em referência às cores das bandeirolas verdes e amarelas que decoram o Terreiro Catendê]… a gente ainda não sabe (Risos), porque o universo está se expandindo. Há apenas algumas semanas atrás um homem enviou uma máquina que aterrissou em Marte, e a gente sabe que as máquinas continuarão a ser enviadas para mais outros lugares, e que provavelmente nós encontraremos seres vivos nesses outros planetas. E esses seres também serão aceitos nessa vila global. Nós vamos aprender suas línguas e eles vão aprender as nossas línguas, mas primeiro precisamos encontrar o nosso círculo, a nossa fonte, como a nossa casa Na sua casa você está seguro e você está protegido. Sem o seu próprio centro, sem a sua casa, você não pode está seguro. Você vai estar sempre com medo em qualquer lugar que você esteja. Lá fora, e mesmo dentro do prédio mais bonito. Se você não tem o seu centro dentro desse edifício, você não vai estar seguro. É importante para nós, povo africano, descobrir as nossas próprias raízes. Essas raízes, não necessariamente têm que ser encontradas na África. Existem muitas coisa que estão neste momento faltando na África, da mesma forma que muitas coisas estão faltando no Novo Mundo, pelo lato de que houve um tempo em que muitos Estados na África foram destruídos pelo tráfico de escravos. A maioria dos maiores mestres que existiam realmente naqueles países foram aniquilados. Eles foram capturados e transformados em escravos. Muitos poucos dentre eles chegaram a alcançar o Mundo Novo, e muitos morreram nessa travessia do oceano; e como tal, muitos conhecimentos da África foram tomados, levados da África. É por isso que nós precisamos nos reunir, porque uma parte desse conhecimento var ser encontrado no Mundo Novo [a imagem do caleidoscópio: pedaços que se espalham formando novas configurações se, contudo, perder- o colorido, ou a beleza], e uma outra parte será encontrada no Mundo Antigo, na África. Eu escutei muitas palavras nesse país, que são canções que não existem mais na África hoje, e que nós sabemos que são canções Lemba. E eu sei que são canções Lemba porque eu sou um iniciado Lemba. Quando eu era jovem eu não conhecia essas canções, mas quando eu fui iniciado eu aprendi essas canções. E quando eu cheguei no Mundo Novo, eu encontrei essas mesmas canções, e as palavras chaves mais importantes nos ensinamentos da África, são encontradas aqui também. A minha conversa com vocês vai abarcar muitas coisas, e urna delas será a visão de mundo do bantu; como é que o bantu vê o seu mundo. É muito importante você compreender esse mundo bantu. A palavra bantu foi introduzida no Mundo Novo através de estudos antropológicos, e como tal esta palavra é mal-compreendida. BANTU significa, em primeiro lugar, pessoa. E esse é o plural. O singular disto é MUNIU. Então o bantu, ele não é aperras encontrado na África Eu sou um MUNTU, e vocês todos são bantu. Existe um ditado, quando os homens brancos entraram na África, na área bantu, em todos os lugares ouviam estas palavras: muntu e bantu. Aí o homem branco disse: ah! eles são bantu. E quando os homens bantu descobriram que os homens brancos estavam chamando eles de bantu, eles ficaram surpreendidos e disseram: Bom, se nós somos bantu, então vocês não são bantu. Então nós podemos lhes colocar em qualquer categoria que nós quisermos. Em animais, em árvores, em pássaros, ou até mesmo vocês podem ser uma terra Mesmo assim esse erro foi cometido e a gente não consegue corrigir isso hoje. Mas nós fazemos, precisamos descobrir o centro de nós. E nós podemos ir a qualquer lugar se nós protegemos o nosso centro. Nos tornamos hoje em dia mais doentes porquê estamos perdendo o nosso centro, porquê geralmente as pessoas fora se sentem desprotegidas. Sentem medo quando saem de casa, e protegidas quando estão dentro de casa. Seu poder interior é a chave da sua extensão fora. Nós não podemos ter medo se acaso a capoeira está se expandindo, tão longe, enquanto estiver ligado ao centro.
Mestre Acordeon: Muito obrigado Dr. Fu-Kiau, é uma analogia muito bonita. Acredito que a música é: ai ai Aidê
FIM DO LADO A
FITA 3 : LADO A
* Palestra do Dr. FU-KIAU no Terreiro Catendê. Festa de TEEMPO Salvador, 17/08/97
Macota Valdina Pinto: … é da cultura bantu, e dar à ela o lugar que ela merece , ao lado da cultura iorubá e da cultura ewê-ewê fon. Entre nós, a cultura tem sido deixada, tem sido transmitida através da oralidade, quando nós nos iniciamos num terreiro. E nós aprendemos com os mais velhos, através dos exemplos, através das repetições, através da participação, traços de culturas tradicionais. O jeito como nós fazemos aqui no Brasil, pode estar distante da África tradicional, mas é o que nos liga e o que nos dá identidade africana, é o que nos é passado através da religião. Então, uma língua africana que foi impedida de se falar, o nome, que dá identidade a um ser humano, e que também foi proibido de se ter, nós resgatamos no candomblé. Então, o candomblé é muito mais do que uma religião pra nós. O candomblé é o espaço onde a gente afirma, onde a gente resgata uma identidade que nos foi tirada. Eu acho que é muito mais… não sei se Mutá, mas muito mais nós estamos aqui hoje prá aprender com nganga Fu-Kiau. Pra mim representa minha ancestralidade aqui presente, e eu estou aqui mais para beber as palavras de Fu-Kiau.
FITA 1 : LADO B
Dr. FU-KIAU: Se você encontrar um ainigo que você não viu há dez anos, o que você faz? Dá uni abraço. Essa aí é a chave da vida. Quando nós encontramos amigos forníamos um V(<), para cumprimentá-lo. Isso significa que a pessoa que você vai encontrar também vai formar um V(>). Então as duas juntas formam um diamante ( <> ). Cada um leva a sua energia paia o centro do diamante, e se tornam um. Hoje a América não é mais só. Tampouco a África. Nos tornamos um, porque nós nos encontramos. Ou pela comida que nós comemos; ou então viajando; ou nos livros que lemos da África e da América; ou porque nos encontramos numa festa… nos tornamos Um. Esta forma (formato), na vida, é a chave principal para a vida e para viver. Temos que tentar viver para formarmos esta forma de diamante. Se podemos tentar proteger esta forma na nossa vida, teremos a capacidade para criar, para formar uma família forte, porque isto aqui é a chave de qualquer casamento. Quem entende essa forma vai conhecer a formação da sociedade africana. Dentro dessa forma temos dois “i” (a letra i). Um i é fêmea e o outro i é macho. Esses dois formam um casamento. Esses dois i criam o nascimento para outros i. Quando um i é nascido desses dois i, temos que ter muito cuidado. Não imporia o que aconteceu, não leva a sua briga para esse terceiro i, porque a vida desse terceiro i depende dos dois primeiros. É importante, como estudantes de capoeira para entender verdadeiramente que um capoeirista é um ser humano dentro de um ovo. Temos que saber como se movimentar. Então não teremos que usar um martelo para quebrar a casca, porque você é poderoso. Você pode não saber disso, mas o poder tá dentro de você. Como capoeirista, pode destruir facilmente se usado de maneira errada. Mas, o poder dentro de você, como capoeirista, se usado de maneira apropriada, você pode construir muito mais do que você acha. Precisamos dessa energia hoje para poder construir uma nova aldeia, uma aldeia global, aonde todo mundo vai (boiar), cada um dentro do seu próprio ovo, sem quebrá-lo, por outros … (Inaudível) a menos que nós queiramos. Como eu disse, esta foi uma palestra breve… falei demais? Se for o caso eu paro aqui. Se tiverem alguma pergunta, podemos respondê-la aqui ou fora. Muito obrigado. .APLAUSOS.
Cobrinha: O Daniel vai apresentar o Dr. Fu-Kiau.
Daniel Dawlson: O Dr. Fu-Kiau é um tipo raio de estudioso. Ele nasceu em Manianga, Zaire, hoje República do Congo. É um local muito importante para as tradições do Congo. Dr. Fu-Kiau também tem duas educações. Ele tem o doutorado numa universidade ocidental, mas também ele foi educado nos ensinamentos tradicionais africanos. Ele foi iniciado em três academias diferentes, na África. Um que um dos mais importantes capoeiristas cantou sobre. O nome desse local é Lemba. É um local muito importante na África para o conhecimento tradicional. Muito desse material (ensinamentos) que nós vemos agora vem desse… Lemba. Ensinamento Lemba. Ele foi também um dos primeiros africanos a abrir um instituto na África, em 1963, para coletar informações sobre culturas tradicionais na África. Foi a primeira instituição criada por um africano. Muitos destes estudiosos jovens, aprendem destas instituições…
Cobrinha: Muitos destes estudiosos jovens aprenderam sobre cultura tradicional através deste instituto, desse material coletado.
Daniel Dawlson: Ele escreveu seis livros. Ele é considerado escritor predominante sobre a cultura congo. Obrigado.
DEBATE
Mestre Acordeon: Em primeiro lugar, parabéns Dr. Fu-Kiau, aprendi bastante. Obrigado pela palestra, nós temos sempre que aprender, mas eu gostaria de fazer também alguns comentários. Quero pedir a permissão dele, com todo respeito que faço, não somente por ele, pela palestra dele, como também pelo conhecimento que ele tem. Eu tenho morado nos Estados Unidos por 18 anos, e tenho a oportunidade de intervir de alguma forma como nós apresentamos, nós estudamos alguns desses aspectos que se relaciona com a nossa cultura. No específico da capoeira, durante esse tempo nos Estados Unidos, eu recolhi muitas teses de doutorado, de mestrado… eu tenho examinado por algum tempo, e naturalmente capoeira é importante, porque é uma arte africana em essência, e interessa a muita gente, mas eu tenho dificuldades em alguns aspectos. A capoeira tem uma história longa no Brasil, não somente através da tradição oral como também através de registros escritos. Eu tenho examinado que existe uma tendência, nos Estados Unidos, dessas teses, desses trabalhos destes estudiosos, de se classificar a capoeira dentro de uma perspectiva que não leva em consideração essa trajetória histórica da capoeira no Brasil. A maioria desses trabalhos, dessas pessoas, que escrevem, que falam, que estudam capoeira, não conhecem suficientemente da língua portuguesa para examinar essa literatura que nós temos, nem a nossa história. Então o pessoal se baseia dentro da literatura, em inglês, sobre artes africanas, sobre história africana, sobre rituais africanos. Eu acredito que o estudo desta literatura sobre temas africanos, sobre as artes africanas, filosofia e tudo o mais, é de fundamental importância para nós entendermos a… brasileira, para nós entendermos a nossa herança cultural africana, mas na verdade, estes estudos não explicam… Através de a capoeira se apresentou de forma diferente, e foi uma questão de sobrevivência da capoeira (>>>>) Então eu pergunto: quanto válido é se aplicar o modelo africano que nós levantamos através do estudo, da literatura e do material desta …sobre capoeira que é uma arte essencialmente africana, em termos de elementos foimativos, mas que através do tempo mudou tanto, se apresentou com tanta roupagem, se nós já reconhecemos, já registramos, existe, está na literatura, só que não é disponível para (inaudível). Então eu perguntei pro Dr. Fu-Kiau qual é a validade de se aplicar genérico de uma arte, de forma tão mutável, porquê a meu ver é (me esqueci do termo em português…) um erro metodológico de pesquisas, de trabalhos em termos de estudos antropológicos, em termos de deduções analíticas…
Dr. Fu-Kiau: Sua questão é muito importante. É uma semente viva que você tá jogando aí. É muito difícil responder esta pergunta, só se Makindê estivesse aqui… o que é uma coisa muito difícil… Mas eu vou tentar responder o que pode fazer parte da minha resposta Porque minha resposta não vai ter só uma parte, não vai se resumir em uma parte só. Alguém aqui está com seu filho ou filha aqui? (….) Isto aí é muito importante, isto aí é que é uma das coisas que eu encontrei em toda a minha vida nos Estados Unidos. Na África, nenhum ensinamento vai ocorrer sem a presença das crianças, porque as crianças são nosso futuro.(….) Esta aí é Vera, e Vera é parte de Gabriel. Gabriel não pode ser sem Vera. Ela até que poderia ter tido este filho com um homem que não visse mais. Talvez o pai não fosse nem reconhecer o filho. Mas este homem, não importa aonde ele esteja, este homem tem uma ligação com Gabriel. Ele aceite esta ligação ou não, ele é parte de Gabriel. Como tal, ele é ligado a Vera. Gabriel não será uma semente inteira dentro da comunidade, sem estas duas forças, estes dois V’s, protegendo Gabriel. Eles podem ser separados, mas eles têm as responsabilidades para proteger Gabriel. Este aí é o processo de passar o conhecimento. Temos que reconhecer a fonte, porque todas as fontes são sementes, e todas as sementes podem se tornar árvores. Não importa como são os galhos. Estes galhos têm que ser alimentados pelas raízes do tronco, porque eles são parte desta semente. Essas galhos podem ser grandes e bonitos, e estes podem ser fininhos sem muitas folhas. Mas eles são parte da árvore, fazem parte da árvore. A diversidade é importante na vida humana. Mas não tanto quanto a unidade. É verdade que a capoeira passou por muitas mudanças. Mas todas as capoeiras têm uma semente. E esta semente tem que ser reconhecida. Porque sem ela, capoeira não é. Sabemos, por exemplo, de uma dança conhecida, famosa, no Novo Mundo, o Tango. Todo mundo conhece o tango, sabe o que é, e sabemos que tango é uma palavra africana Tango querendo dizer tanga no singular e matanga no plural. O mundo, por si é uma palavra, e o nome matanga é um segundo funeral. Quando um chefe morre dentro de uma comunidade, a comunidade chama todo mundo, até em comunidades distantes, para fazer um encontro.
FIM DO LADO B
FITA 2 LADO A
Dr. FU-KIAU: Depois que a comunidade souber o que nós devemos, nós coletamos o dinheiro, e pagamos as pessoas, a quem a pessoa está devendo. Quando o balanço está feito, a dança chamada Matanga é aberta, com muitos instrumentos musicais. Quando os escravos chegaram ao Novo Mundo, eles trouxeram esta dança, que ocorria geralmente aos domingos. O Tango não é uma dança no Novo Mundo como ela era no Congo. O Congo não pode reclamar do Tango como ele é hoje em dia. Mas eles reconhecem. Eles foram os doadores do Tango para o Novo Mundo. É importante para o mundo Ocidental saber de onde vem esta palavra Quando nós chegamos no Novo Mundo, nós mudamos os nomes das localidades. Eu fui visitar, há duas semanas atrás, o Grand Canyon, que é um belo lugar nos Estados Unidos. Antes de ir eu perguntei a muitas pessoas educadas, ninguém podia me dar o nome original deste local. Porque nós pisamos este nome. Nós não sabemos o que Grand Canyon era no passado. Nós não sabemos da História que nós estamos pisando, mesmo, quando nós vamos lá no Grand Canyon, porque perdemos o nome deste local. E eu descobri que o noine deste local significa “Fonte do Sal”, porque os índios tinham o costume de ir lá e coletar o sal para as comunidades respectivas. E muito importante pra gente saber de onde nós viemos, para então saber para onde estamos indo. Se nós sabemos que estamos encima (ou debaixo da terra). Nós não vamos destruir a terra Porque nós não prestamos muita atenção aonde nós estamos pisando, então nós destruímos. Nós construímos encima, nós andamos em cima, nós cuspimos em cima, nós fazemos amor em cima, mas ninguém pensa que a terra é mais importante do que qualquer outra coisa que nós temos. Nós a estamos destruindo, porque não temos a consciência do seu valor. Tem uma música que nós estávamos cantando na capoeira, essa música “ia, iê, ia ,iê…”, eu não lembro bem da música, mas é um nome congo, em que yanya (iaiá) quer dizer mãe, porque é a terra. Porque o capoeirista não pode se tornar parte se ele não conhece a terra Porque você pode voar em cima, mas você não pode esquecer que vai volta à terra. O que é a fonte. Não importa o que eu estou dizendo prá vocês que nós todos somos bantu. E cada um dentre vocês é um Muntu. É um ser humano. Então agora eu vou falar um pouquinho agora sobre a visão de mundo do bantu. O bantu acredita que o nosso mundo é um ovo. Um ovo que pode expandir. E nós acreditamos que nessa expansão muitos mundos estão sendo criados. E a Terra, de acordo com o bantu, foi o primeiro planeta a ser feito, e que todos os planetas do Universo, de acordo com o bantu, passam por quatro passos principais. O primeiro passo é chamado de MUSSOME, que literalmente quer dizer imprimir. Imprimir códigos genéticos. Dentro das árvores, dentro das pessoas, dos povos… e depois dessa posição que é chamada de Mussome, é também a posição concebida como Big Bang no Ocidente. Aí vem o processo KULINGUI. Esse processo de resfriamento levou muitos e muitos e muitos anos, até que a terra tornou-se sólida. Aí veio o estágio dois. E este estágio chamado KALA, é o estágio de nascimento da terra. É também nesse estágio que a vida sobre a terra, no seu nível mais inicial, no seu nível mais inferior começou. As plantas começaram a crescer. E aí vem o terceiro estágio, que é vermelho, e esse terceiro estágio, a terra testemunha o nascimento dos animais. E aí vem o quarto estágio, que é LUVEMBA, e que eu conheço muito bem, e que PEMBA é muito conhecido aqui no Brasil. Então PEMBA e LUVEMBA são a mesma palavra. Então é nesse estágio que ocorre o Homem ou o ser humano. Com o nascimento do Homem sobre a terra, nós ternos também a morte, FUÁ, ou LUFUÁ, que é morte. E aí o processo se completa. Esse processo, ele ocorre hoje no universo. Para as pessoas bantu, eles vão dizer que a lua está nua porque…
MUTÁ IME: …Possa pensar que nós temos que nos unir para um novo mundo. Nos prepararmos para um mundo melhor. Eu gostaria de cantar uma canção em comemoração ao término da fala do Dr. Fu-Kiau. Eu repetirei aquela cantiga que o emocionou tanto, e que também significa LEVANTAR, SE ERGUER E CAMINHAR, já que estamos hoje celebrando TEEMPO, MOVIMENTO, CAMINHADA, AÇÃO E PENSAMENTO.
FIM DO LADO B

Mestre Pastinha – É luta, é dança, é capoeira

Entrevista realizada por Roberto Freire e publicada na revista Realidade, em 1967.

Dois homens vão lutar. Estão acocorados um diante do outro, presos ao ritmo de uma estranha música. Atrás deles, um velho toca berimbau e puxa o canto que será repetido pelos outros cinco instrumentistas. Todos os seus versos terminam com a palavra camarada. O nome do velho é mestre Pastinha. A luta vai se travar em sua Academia, no bairro do Pelourinho em Salvador, na Bahia. Um dos músicos retira o berimbau das mãos do mestre, que estende os braços à procura das cabeças dos lutadores. Ele diz um último verso: é a senha para o início da luta. Os dois homens vão lutar capoeira, e se benzem quando a mão do mestre deixa suas cabeças. Surgem os primeiros golpes. Só mestre Pastinha não os vê. mas parece pressentir. Ele está quase cego, mas sabe tudo sobre capoeira, que lutou, invencível, até os 78 de idade. A história da sua vida alcança quase toda a história da capoeira no Brasil. Ele a conta assim:
“Compreende melhor quem vê a luta. Ela parece uma dança, mas não é não. Capoeira é luta, e luta violenta. Pode matar, já matou. Bonita! Na beleza está contida sua violência. Os meninos estão só mostrando, os golpes passam raspando ou são contidos antes de atingir o adversário. Mas mesmo assim ela é bonita.
“Tudo o que eu penso de capoeira um dia escrevi naquele quadro que está na porta da Academia. Em cima, só estas três palavras: Angola, capoeira, mãe. E, embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo em ânsia de liberdade; Seu princípio não tem método; Seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.
“Mas tem muita história sobre o começo da capoeira que ninguém sabe se é verdadeira ou não. A do jogo da zebra é uma. Diz que em Angola, há muito tempo, séculos mesmo, fazia-se uma festa todo ano em homenagem às meninas que ficavam moças. Primeiro elas eram operadas pelos sacerdotes, ficando igual, assim, com as mulheres casadas. Depois enquanto o povo cantava, os homens lutavam do jeito que fazem as zebras, dando marradas e coices. Os vencedores t inham como prêmio escolher as moças mais bonitas entre as operadas. Pode não ser verdade, mas os capoeiristas de hoje bem gostariam que fosse, desde que suas vitórias tivessem prêmio igual…
“Bem, mas de uma coisa ninguém duvida: foram os negros trazidos escravos de Angola que ensinaram capoeira para nós. Pode ser até que fosse bem diferente dessa luta que esses dois homens estão mostrando agora. Me contaram que tem muita coisa escrita provando isso. Acredito. Tudo muda. Mas a que a gente chama de capoeira de Angola, a que aprendi, não deixei mudar aqui na Academia. Essa tem pelo menos 78 anos. E vai passar dos 100, porque meus discípulos zelam por mim. Os olhos deles agora são os meus Eles sabem que devem continuar. Sabem que a lula serve para defender o homem.
“Os negros usavam capoeira para defender sua liberdade. Pode ser até que o nome da luta venha justamente disso. Negro fugia era para o mato. Se algum capitão-do-mato o alcançava, se era um a um, numa clareira, numa capoeira – então, ali, o negro era mais livre para se defender.
“E dizem também que esse jeito de lutar de brincadeira como ainda fazemos hoje, era a maneira do escravo se exercitar, disfarçando de bailarino na frente do feitor. Acho que é até verdade, capoeirista é mesmo muito disfarçado, ladino e malicioso. Contra a força, só isso mesmo. Está certo.
“Mas o que serve para defesa serve também para o ataque. A capoeira é tão agressiva quanto perigosa. Quem não sabe lutar é sempre apanhado desprevenido. Malandros e gente infeliz descobriram nesses golpes um jeito de assaltar os outros, vingar-se de inimigos e enfrentar a Polícia. Foi um tempo triste da capoeira. Eu conheci, eu vi. Nas bandas das docas… Luta violenta, ninguém a pode conter.
“Agora que o ritmo está mais apressado, sinto a agilidade desses dois homens e imagino cada um dos seus golpes acertando em cheio o adversário. Imagino raiva, medo, despeito, desespero, empurrando esses pés… Uma vez vi um capoeirista afugentar uma patrulha inteira. Outra coisa: um lugar escuro, uma mulher, chega um cara querendo coisa – homem querendo mulher está sempre desprevenido – então, de repente, ele recebe um golpe, só um e cai ferida desacordado ou morto. Sim senhor, havia capoeirista malandro que se vestia de mulher para roubar os dão- joãos.
“Eu sei que tudo isso é mancha suja na história da capoeira, mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica? E a faca? E os canhões? E as bombas? O que eu gosto de lembrar sempre é que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravidão. Nas músicas, que ficaram até hoje, se percebe isso. Uma é essa que eles estão cantando e que eu vou cantar junto: “E, valha- me Deus, camarada. / E, água de beber, camarada. / E, que vai fazer, camarada./ E, ele é mandingueiro, camarada. / E, ele é cabeceiro, camarada./ E, faca de ponta, camarada. / E, faca de matar, camarada./ E, o galo cantou, camarada./ E, có-có-ró-có, camarada;/ E, a volta do mundo, camarada./ E, é o que o mundo dá, camarada’.
“Entenda quem quiser, está tudo aí nesses versos o que a gente guardou daqueles tempos. Tem brincadeira também; vou fazer uma pra um desses dois lutadores. Minha voz, mesmo baixa e de longe, eles escutam: ‘E, valha-me Deus./ valha-me Nossa Senhora da Vitória./ Vi esse menino agora / lá no reino da glória. / Menino se eu quisesse, / (ah, ah, ah) tinha lhe botado fora’. Pois capoeira é luta, sim mas é folclore e tradição bonita também. E a gente conservou ela pura, todos fazendo escola, criando academias e ganhando o respeito do povo, dos artistas, dos estudiosos e do governo. Digo a gente, lembrando os grandes capoeiristas do passado. Já estão mortos. Cada nome destes é uma história: Bigode de Seda, Américo Ciência, Bugalho, Amorzinho, Zé Bom Pé, Chico Três Pedaços, Tibirici da Folha Grossa, Doze Homens, Inimigo Sem Tripa, Zé do U, Vitorino Braço Torto, Zé do Saco, Bené do Correio, Sete Mortes, Chico Me Dá. Só pelos apelidos dá para saber como eram, como lutavam. E tinha duas mulheres também: Júlia Fogareira e Maria Homem.
“Toda essa gente praticava a pura capoeira de Angola como eu até hoje e esses meninos que estão aí. Tem grandes capoeiristas vivos que mudaram a forma de lutar, mas continuam sendo grandes mestres. Falo do Mestre Bimba que pratica a capoeira regional, e de Carlos Senna que inventou a capoeira estilizada. Agora que não luto mais, confio em dois contra-mestres meus para a a conservação da capoeira de Angola: João Oliveira dos Santos e João Pereira dos Santos – João Grande e João Pequeno. É o que tem de melhor, na Bahia…
“Estes versos eu fiz para homenagear eles: ‘Eu tenho dois meninos / que se chamam João / um é cobra mansa / e o outro é gavião. / Um joga no ar (ah, ah, ah) / e o outro se enrosca pelo chão’.
“Esses dois aprenderam com a Academia mas eu aprendi com a sorte. Quando tinha uns 10 anos – eu era franzininho – um outro menino mais taludo que eu tomou-se meu rivaL Era só eu sair para a rua – ia na venda fazer compra, por exemplo – e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. ‘Vem cá. meu filho’, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. ‘Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia’. Foi isso o que o velho me disse e eu fui. Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo. Ele costumava dizer ‘Não provoque, menino, vai botando devagarzinho ele sabedor do que você sabe’. Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito. O velho africano chamava-se mestre Benedito, era um grande capoeirista e quando me ensinou o jogo tinha mais idade do que eu hoje.
“Aos 12 anos, em 1902, eu fui para a Escola de Aprendiz de Marinheira Lá ensinei capoeira para os colegas. Todos me chama-vam de 110. Saí da Marinha com 20 anos. Vida dura, difícil. Por causa de coisas de gente moça e pobre, tive algumas vezes a polícia em cima de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu lembrava de Mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava capoeira, então queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso, bati alguma vez em polícia desabusado, mas por defesa de minha moral e do meu corpo.
“Naquele tempo, de 1910 a 1920. o jogo era livre Passei a tomar conta de casa de jogo. Para manter a ordem. Mas. mesmo sendo capoeirista, eu não me  descuidava de um facãozinho de doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia comigo. Jogador profissional daquele tempo andava sempre armado. Assim, quem estava no meio deles sem arma nenhuma bancava o besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não gosto de contar casos de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava sustento. Além do jogo, trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista.
“Foi em 1941 que minha vida mudou. Foi na Ladeira da Pedra, fim da Liberdade, no bairro da Gingibirra. Um ex-aluno meu, de nome Aberré, bom capoeirista, já morto, me convidou para apreciar uma roda de capoeira. Na roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era Amorzinho, um guarda civil. No apertar da mão me ofereceu tomar conta de uma Academia. Eu dei uma negativa, mas os mestres todos insistiram. Confirmavam que eu era o melhor para dirigir a Academia e conservar pelo tempo a capoeira de Angola. Fundei então o Centro Esportivo de Capoeira de Angola, em 1941, e registrei a Academia em 1952. Botei carteira para capoeiristas. Meus meninos são diplomados.
“Saem daqui sabendo tudo. Sabendo que a luta é muito maliciosa e cheia de manhas. Que a gente tem que ter calma. Que não é uma luta atacante, ela espera. Capoeirista bom tem obrigação de chorar no pé do seu agressor. Está chorando, mas os olhos e o espírito estão ativos. Capoeirista não gosta de abraço e aperto de mão. Melhor desconfiar sempre das delicadezas. Capoeirista não dobra uma esquina de peito aberto. Tem de somar dois ou três passos à esquerda ou à direita para observar o inimigo. Não entra pela porta de uma casa onde tem corredor escuro. Ou tem com o que alumiar os esconderijos da sombra ou não entra. Se está na rua e vê que está sendo olhado, disfarça, se volta rasteiro e repara de novo no camarada. Bom, se está olhando ainda, é inimigo e o capoeirista se prepara para o que der e vier.
“Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito, mas no deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um.
“Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo mestre. Ensina pelo som. Dá vibração e ginga no corpo da gente. O conjunto de percussão e com o berimbau não é arranjo moderno, não, é coisa dos princípios. Bom capoeirista, além de jogar, deve saber tocar berimbau e cantar.
“E jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar no chão com o corpo. Quando eu jogo, até pensam que o velho está bêbado, porque fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no chão, nem vai botar.
“Tenho um lema na vida: gosto de entrar sempre por baixo, para ver como é que saio. Não me casei ainda, já tive muitos filhos mas morreram todos. Tenho agora uma camaradinha que está louca para casar comigo. Dessa, não sei se escapo, não. Mas ainda é muito cedo para decidir. Depois, até agora não arrumei recursos para poder casar. Fome dá margem para muita coisa ruim. Se ao menos eu tivesse uma casa para morar, então eu me casava. Porque casa é o que mais mata o pobre, e mata na cabeça, ela come o pirão que os meninos deviam comer. Por isso não caso e o resto deixo à disposição de Jesus. Não fosse Jesus tava na sarjeta hoje, pedindo esmola.
“E tudo isso no Brasil! Brasil que tem pra dar, vender, jogar fora e negar a seus filhos. Mas fica tudo dependendo dos decretos. Saem os decretos e eles vão caducando, caducando, como caducou o grito da Independência.
“Aprendi só o primeiro livro, mas direito. O resto foi a vida que me ensinou. Ensinou a ver. Tem coisas que a gente vê e que os letrados, os professores, os políticos, não escrevem. Gostaria de ter estudado mais, mas quem não tem pão para levar para casa pode ficar lendo dicionário?
“O homem pode falar duas linguagens, mas uma delas é falsa. Não sou católico nem sou de candomblé. Eu creio em Deus, num só. Respeito gente de religião quando há respeito.
“Já viajei bastante pelo Brasil, já fui até na Africa. Em Angola, não, mas quero ir. Só para comparar a capoeira daqui e a de lá. Na hora de elogiar é Pastinha pra cá e pra lá, mas quando é viagem e apoio do governo para a capoeira de Angola, sou esquecido. É sempre assim: o trabalho é do feio para o bonito comer. Eu estou falando assim porque é modo de pensamento. Não é revolta contra a natureza. A natureza não liga para nada.
“Meu livro sobre capoeira de Angola vou vendendo e vou comendo.
“Quem me ajuda mais é Jorge Amado. Jesus lhe dê força e coragem. É muito mal empregado dizer que eu sou amigo de Jorge Amado. Ele é que é meu amigo. Quem precisa de Jorge Amado sou eu.
“Agora só falta dizer uma coisa bonita. O que vai sair na revista eu vou poder ler porque os meninos da Academia estão juntando dinheiro para pagar a operação dos meus olhos. Eles dizem que precisam do que ainda posso ver. Bonito, não?”

João Mina quer ver Muleque Bimba na boa capoeiragem

Publicado originalmente no jornal Estado da Bahia, em 15 de março de 1948

A notícia divulgada pelo Diários Associados de que o mais famoso capoeirista baiano, Muleque Bimba, que dirige uma escola dessa briga, tornada nacional, pretende vir ao Rio fazer exibições públicas dos nove cortes que inventou, causou sensação entre os profissionais da defesa pessoal. Existe mesmo urn movimento para que se efetive a vinda de Muleque Bimba, o sexagenário que ensina a muitos moços de sua terra os golpes sinistros da capoeiragem, sabendo-se até que já foi seu aluno o hoje deputado Juracy Magalhães.

Entre nós, João Mina é o mais velho dos três últimos remanescentes da já remota época das batucadas e capoeiragens que até o primeiro quartel deste século pertubaram a ordem e a tranqüilidade públicas. Tem mais de sessenta anos o preto velho e arrasta seus atuais pesados dias ali pelo Estácio.

Está aqui neste seu criado, diz João Mina para o repórter numa tendinha do morro. Um negro que fazia batuque e capoeira no morro da Favela, que é o lugar que nasceu o samba no Rio.

Batuque quem fazia era negro de macumba, negro bom de santo, bom de garganta e, principalmente, bom de perna para tirar outro da roda. Tinha batuque todo dia na favela, com a negrada metendo a perna e jogando parceiro no chão, até a polícia chegar. Aí, então, como num passe de mágica, a batucada virava samba, entrando as mulheres dos batuqueiros na roda. Homem não dançava samba. Samba é nome de filha de santo, mas todo mundo de fora que subia o morro procurando mulher, dizia que ia ver samba e por samba ficou a dança que elas dançavam e que era batuque mais mole e bem remexido. Era coco.

Assim que apolícia saía, o batuque continuava e os batuqueiros entravam duro na capoeiragem. Pobre do moleque que cochichasse quando o batuqueiro cantasse:                                          

Olha a banda                                                                  
Olha a banda                                                                  
Negro da ronda                                                                

Podia contar que ia levar uma banda jogada, quer dizer, uma rápida e violenta pernada que o atirava fora da roda, principalmente se tivesse mulher boa perto dele. Mas se o muleque saísse dessa, o batuqueiro sem perder o ritmo do batuque emendava:

Batuqueiro novo                                                              
Dava um baú
Pra não perder o amô…

A banda jogada passava pra banda de frente e o batuque soltava logo um baú no parceiro, atirando o muleque no chão, pelas costas.

Outro corte ruim de defender, pra batuqueiro novo, era a tiririca, quando o mestre cantava:

Tiririca é faca de cortar                                                       I
Quem não pode não intimida
Deixa quem pode intimar…

Um pé ficava no chão e outro subia virando com força no pé do ouvido do parceiro. Mas a capoeiragem tinha muitos cortes ruins. Tinha o dourado, a encruzilhada, tinha o rabo de arraia….

Sim, João Mina, o fulminante rabo de arraia…

Pois é, meu filho, o rabo de arraia…

Os outros que ouviam, reverentes, a palestra do velho João Mina, fizeram um sinal negativo para o repórter. O homem da tendinha serviu umas doses de cachaça e João Mina continou:

Batuqueiro bom brincava na frente do fandango e caninha verde, no Carnaval, abrindo ala como se faz hoje diretor de corda de escola de samba. Batuqueiro bom brincava de noite na Praça Onze de Junho, que já foi reduto enfezado de gente do morro.

Um dia, os batuqueiros da Favela tiveram uma arrelia. Houve então, uma separação. Os grandes ficaram na Favela e os outros foram para o morro de Santo Antônio. Casaca de Bronze, capoeira de respeito e capanga de político, uma noite, ninguém sabe porque, nem por ordem de quem, botou fogo em tudo quanto era barracão do morro de Santo Antônio e fugiu, fugiu que até hoje não se sabe notícias dele.

A negrada que ficou sem barraco no morro de Santo Antônio foi toda para o morro da Mangueira, os homens fazendo batuque e as mulheres sambando. O lugar onde eles levantaram os barracos ficou sendo chamado o Santantoinho de Mangueira. Depois é que vieram para a Estação, Querosene, Salgueiro. Apareceu o samba mesmo, quando Epitácio Pessoa mandou mudar o mulherio da Glória e da Lapa para a Cidade Nova.                      

Mas por aí, Sampaio Ferraz e Alfredo Pinto tinham dado cabo de muito batuqueiro, de muito moleque de capoeiragem. Isso de escola de samba é coisa nova, coisa boa, de preto, político trabalhador, que não quer mais saber de malandragem, nem de pernada.

João Mina rematou:

Pois é menino, eu tinha vontade de ver esse tal Muleque Bimba, para me lembrar dos velhos cortes do meu tempo… Será que ele briga mesmo?

Descemos o morro e Tancredo Silva, que apesar de moço, é o terceiro dos remanescentes, disse-nos:

Bernardo Sapateiro faltou ao encontro. Ele, que é daquele tempo, ia contar porque João Mina não quis falar do rabo-de-arraia.

Você não sabe ?

Dizem que numa batucada na Praça Onze, num carnaval, João Mina deu um rabo de arraia num sujeito e ele morreu ali mesmo. João Mina foi para a detenção e ficou na sombra uns anos. Quando voltou, trouxe a cuíca e nunca mais quis saber de batucada. Era só cuíca. E a batucada virou samba. Depois, Edgard trouxe o tamborim.

Na rua do Estácio, Tancredo Silva ainda disse:

Olha, menino, João não falou que, quando o batuque enfezava, os batuqueiros cantavam:

É ordem do Rei pra matar.
É ordem do Rei pra matar.

E o rabo de arraia comia solto até morrer o parceiro que estava condenado pela negrada. Essa ordem do Rei entre os batuqueiros vem do tempo em que o Brasil era Reinado, e que a capangada tinha ordem para acabar com os pretos que conspiravam.

Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 6 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Caiçara: Os mestres da Bahia não agradou, [???] de mim. Ah, é. Ele não bota roda de capoeira depois que [???] a mim nem a polícia. Eu boto é cinquenta conto nas pedras de lá, e com outros eu quebro o boné. O meu filho saiu com o outro boné meu, quebro o boné, boto a bengala assim. Aí quando eu chego, aí pode entrar, ficar na roda. Eu tenho uma corda que eu boto, e o pessoal não fica. Nem a polícia acaba. Ave Maria, a roda grande. Ninguém joga dinheiro em roda de capoeira. Ninguém joga. Dinheiro, não. Agora, trabalho, de canto. Tudo é trabalho, antes de vadiar. Vou ali dentro dar uma palavra…

Mestre Matiole: Amanhã vai ter mais oportunidade…

MC: É… Já pode acabar com essa parte de acobracia da capoeira, da capoeira acobracia. Negócio de acobracia não existe.

MM: Não gosta não, mestre ?

MC: Não, acobracia não. Gosto de ver sabe o quê ? É autenticidade. Ciência, destreza, malícia, agilidade. Acobracia…

MM: O senhor fala que a capoeira é uma só…

MC: É, angola ! Autêntica. A capoeira só existe uma, angola é angola. Não brinque que eu meto a bengala em você. Não dê risada não, rapaz. Você é feio e eu sou bonito. Hehehe.
[conversa inaudível]

MC: Entendeu agora o [???] ? Mas nem que fosse mestre de capoeira. Então [???] não ensinaram ele como mestre, vamos apoiar. Mas não que ele fosse mestre.

[Mestre Caiçara cantando]

Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 5 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Caiçara: Bahia… Dos meus cantos, das minhas horas, dos meus trabalhos… Tem que tá contigo. As minhas oração. [???] a minha paz, o meu silêncio. Eu trabalho muito com ebó, faço muito ebó, viu ? Trabalho com Deus, com santo, com o diabo e com Maria Padilha. Hahahaha.


Mestre Matiole: Ô mestre… Falando de religião, esta parte do candomblé… É que a população não entende muito o que é isso… Muitas vezes o cara pensa que está mexendo é com o diabo, mexendo com essas coisas. E justamente também por causa disso que o senhor falou, que o senhor parou porquê tem muita gente ruim mexendo nisso.


MC: É.


MM: Muita falsidade…


MC: Muita falsidade. Mas existe a oportunidade do candomblé autêntico. E existe a oportunidade do candomblé para turista. E existe a oportunidade do candomblé de cachaça, o candomblé de ilusão do povo. Mas o candomblé original, autêntico e histórico do afro-brasileiro, existe. Eu mesmo, dou os dados do senhor. Já um qualquer, [???] numa hora particular… Então eu exprico como é a origem do candomblé, o fundamento do candomblé, os cantos do candomblé, o toque de Exu a Olorum. Em suas encruzilhadas. Olorum é Deus. Os orixás. Os babá e os eguns. Os orixás é Ogum, é Tempo, é Ossaim. Você não pode falar demais dos orixás… Daqui a pouco você vai até abrir uma casa de candomblé. Hahaha.


MM: Quem sou eu, mestre… Ô mestre, o senhor falou para a gente do maculelê…


MC: O maculelê, foi criado pelo… Um moço, ele hoje é falecido. De Santo Amaro, de nome Popó. É a dancinha dos pauzinho. Aquilo não tem fundamento não… É coisa que… Foi criado outro dia. Agora, o candomblé e a capoeira autêntica, não. Porquê é uma coisa…


MM: Mais séria…


MC: É.


MM: Ô mestre, o senhor aceita um refrigerante, ou água ?


MC: Uma aguinha, um pouquinho de água… Não… Um refrigerante.


MM: Um refrigerante.


MC: Você viu a porrada que eu dei ?


MM: Senhor ?


MC: Você viu a porrada que eu dei ?


MM: Aonde ?


MC: Você não viu eu falando não ?


MM: Vi…


MC: Gostou das minhas opiniões ? Por causa que hoje em dia tem mais mestres do que aluno… Fazendo daquilo um comércio ! Que não pode fazer… [???] Fazer alguma coisa com permissão. Mostrar autenticidade. Então você cria. É como você plantar feijão em cima da terra… da pedra. Esse limpar a terra, para poder plantar feijão. Quem é que vai colher com permissão, é você ou ele ?


MM: É ele, né ?


MC: É ele, porquê limpou a terra ! Quem plantou, quer dizer, você não. Você vai bater com a cabeça. É como se dá com os capoeiristas que estão aí [???] gravando a todos. Suspendeu a perna, deu uma meia-lua, é mestre de capoeira. Porra… Não pode ser… Não sabe os fundamentos… Não conhece os toques, não conhece os cantos, a origem da capoeira. Não é porque você suspendeu a perna, você ??? Não, vamos ver lá o que é que é. Então pronto, eu não discordo que você saiba suspender a perna. [???] Aprender a brigar na rua. Tá procurando brigar [???] Não tá procurando criar uma coisa que você pode, amanhã ou depois, se apresentar. Uma coisa original. Uma coisa autêntica, uma coisa que você, quando nasceu, e depois você ouviu falar. E tinha raiz. Então vamos procurar voltar, descobrir a raiz… Daquilo que é nosso.


MM: [???]


MC: Aprendi a [???] Só dentro de casa. Saia para fora de casa para se livrar [???]


MM: [???]


MC: [???] Não dá não, que foi comprado na rua… Dois anos, onze meses e três dias. Uma dormia com a cabeça aqui, outra cá. E eu no meio. Hahahaha.


MM: E dava conta das duas, mestre ?


MC: Hein ?


MM: E dava conta das duas, mestre ? Toda noite ?


MC: Toda noite ! Dava uma cipoada com uma, ia tomar um banho. Daí a pouco, dava uma cipoada com a outra e ia tomar banho. Aí vinha dormir. Hahahaha. De manhã cedo, era um fecha-casa. Hahahaha. A mulher disse que precisava aprender quem era mais inteligente, para derrubar o mastro. Hahahaha.


MM: Mas elas não se pegavam não ?


MC: Não… Era tudo na boa. Procure saber, e se for mentira minha, me chame de cínico ! Procure saber lá na Bahia… Mestre Caiçara morou com duas mulheres. Morava no São Cristóvão, na ladeira do São Cristóvão. Eu era magarefe no Retiro, tinha açougue [???] Era chiquezinha, toda bonitinha. Porra… E as muié brigava, e [???] mestre de capoeira, batia nesses moleque, entrava nas roda, acabava com as roda [???] Hahahaha. Já briguei muito. Procê… Hein ? Beleza…


MM: Já brigou muito, mestre ?


MC: Já briguei muito…


MM: Na roda também ?


MC: Na roda, não… Fora da roda.


MM: Hein ?


MC: Casa de jogo, cabaré… [???] Sou todo baleado. Capoeira eu brigava, acabava com as roda.


MM: Acabava com as rodas ?


MC: Até na casa do… na academia do Mestre Bimba, eu invadi e meti o pau nele por lá. Daí a pouco ele quebrou a minha boca. Eu era abusado como uma porra, chapéu de veludo, a sola no bolso, calça diagonal, sapato [???] branco. E é vem Caiçara, corre ! Até no matadouro onde eu matava boi. Meus colega tinha medo, iam para dentro do mato jogar baralho. Todo mundo melado de sangue, açougueiro.


MM: O senhor mexeu com açougue muitos anos, mestre ?


MC: Hum ?


MM: O senhor mexeu com açougue muitos anos ?


MC: Açougue ? Eu era magarefe, matava boi, tinha açougue, aquela coisa toda. [???] como uma pinóia.


MM: [???], mestre ?


MC: Eu era…


MM: Dava marretada ?


MC: Era… Matava com… Tinha uma machadinha desse tamanho. Batia aqui, ele caia. Tinha dia que eu tava zangado, matava o boi, sangrava e bebia o sangue. Alucinado. É… Eu era malvado como uma porra. [???] não foi… Tem alguns deles por aí, não é só na Bahia.
MM: Mestre, alunos do senhor… O senhor teve algum assim, bom ?
MC: Ah, tem um bocado… Tanto aqui como no exterior… É. Esses mestres de São Paulo, tudo respeita meus aluno… que tenho em São Paulo. Até hoje eu tenho um lá, chamado Silvestre.


MM: Silvestre é aluno do senhor ?


MC: É. Que eles tudo respeita. Tinha Nego Dimola, tinha o Gajé, essa turma toda, o Paulo Limão, cê lembra ? Ah, veio mais o Moraes, aqui no Rio… o finado… Zeca. Zeca Dez Conto. Ah, sim… Tinha Sina, tinha Waldemar, tinha aquele menino chamado.. Acaçá, neguinho Acaçá.

Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 4 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Matiole: Ô mestre, o senhor falou que a cobra mordeu o senhor e ela morreu, né ?


Mestre Caiçara: É, se morder, morre. Por causa do veneno. Cobra mordeu Caiçara e morreu, cobra mordeu Caiçara e morreu. Aí diz “Ai ai, aidê ! Joga bonito que eu quero aprender”, quando tu tá querendo dizer que eles são burros. Tu diz assim: diz “Ai ai, aidê ! Joga bonito que eu quero aprender”. Tá dizendo que ele é burro, né ?… [???] Tô aqui esses dias, agoniado.


MM: De saudade…


MC: Ih…


MM: O senhor tem muito neto ?


MC: Filho… Trinta filhos.


MM: E os netos ?


MC: Vinte e dois.


MM: Vinte e dois netos…


MC: E doze bisnetos.


MM: Doze bisnetos…


MC: [???] Eu tenho uma filha [???] Ela não tem comido mesmo. Eu como assim mas… meu pensamento é nela.


MM: Dois anos…


MC: É. Quando… De manhã cedo eu acordo, eu tenho uns passarinhos. Tenho um pássaro-preto, tenho um [???] bicudo, curió, tenho cardeal, tenho cabocolinho, tenho chorão, tenho um papagaio, tenho um papa-capim, tenho um… um pracinha, tenho um azulão. Mas quando chega de manhã que eu acordo para poder… Para [???], eu acordo, ela acorda e fica assim… Tem dois anos ! “Papai, papai, papai”


MM: Dois anos ela tem ?


MC: É. “Papai!”, e me toma a bênção. Eu aí que posso limpar os passarinhos. Aí pronto. Dali, ninguém, ela nem que ponha o [???] dela, fazer xixi, e aí “Papai, xixi!”. Aí fica mostrando assim a máquina, e aí [???]. E eu limpando os passarinhos. Não gosto nem de falar…


MM: Passarinho então, o senhor gosta de passarinhos, mestre.


MC: Gosto… Sou louco por passarinho.


MM: Mestre, e na música da capoeira, o senhor tem músicas do senhor mesmo ?


MC: É.


MM: O senhor tem músicas que o senhor…


MC: Todas que eu canto, é minha.


MM: Todas, do senhor. Aquele disco, por exemplo, que nós conhecemos, da academia…


MC: É. É todas nossa.


MM: É “Unidos…” Como é o nome do disco, mesmo ?


MC: É… Academia de Capoeira Angola São Jorge dos Irmãos Unidos do Mestre Caiçara. Agora mesmo eu vou gravar outro disco, depois do carnaval.


MM: Músicas do senhor, né ?


MC: É.


MM: O senhor mesmo faz as letras…


MM: Então aquelas músicas, grande parte é do senhor.

MC: É. Não ! Grande, não ! Todas ! Até a que a mulher canta, eu que mandei ela cantar. Porquê sempre tem que botar mulher no meio… Eu tava limpo, sem dinheiro, ela me botou na gravadora lá em São Paulo. É… Aquela gravação da “Mangueira”… “Alô, Bahia…”

MM: Os discos… Zé Maria pinta muito na casa dele, ao som daquele disco do senhor…

MC: É. MM: Mestre, e as mulheres ? Fala para a gente das mulheres.

MC: Ah, mulher… Para que coisa melhor de que mulher ? Só duas. Eu gosto tanto de mulher, que eu gosto da vida. Que a vida é fêmea. Hahaha. Para que melhor que mulher ? Só duas ! Tem um sambinha que eu fiz que diz assim: “Emburané, emburaná, imbigada batida, jatobá ! Imbigada batida, só no imbigo, homem com homem, mulher comigo ! Botão de ceroula que faz o [???], no bulir das cadeiras, que mata nós !” Ele gosta… Hahaha. Ê menino relaxado, vem com o mestre. Hahaha.

MM: Ê, mestre… Bom demais !

MC: Para mim, eu vou para a Bahia…

Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 3 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Matiole: O senhor viveu em Salvador, na capital, assim a vida inteira ?
Mestre Caiçara: Não, eu viajei muito… Eu tive [???] Pernambuco.
MM: Mas, sempre capital ?
MC: Hein ?
MM: Sempre capital ?
MC: Capital. E numa cidade do interior de Pernambuco, chamada Goiana. A terra do gaiamun. Sou registrado na capital, na Federação de Cultos Afro-Brasileiros. Eu falo ketu, jêje, congo, caboclo, [???], umbanda e quimbanda do [???], da cabeça aos pés. Eu lhe xingo, e lhe trato bem. Lhe xingo do [???], trato dentro do [???], do [???].
MM: … a sombra. Fica do lado de cá, por causa da luz… E se o senhor ficar feio naquele quadro ali, mestre ? Se o senhor ficar feio naquele quadro ali, como é que vai ficar ?
MC: Feio ? Não sou feio, sou bonito !
MM: Mas e se ele botar o senhor…
MC: Mas eu sou bonito, de nascença ! Mamãe dizia: “Vizinha, vizinha, olha como o meu filho é lindo !” Qual a mãe que acha seu filho feio ? Hahahaha.
MM: É isso, mestre…
MC: Eu sou bonito ! Eu sou distraído… Quando [???] universidade, principalmente as crianças. Mas eu [???] de qualquer juventude. Eu olho o carinho, a paz que seja [???]. Agora, eu quero que você seja aquilo que você é. Não seja falsidade. Seja realista, não seja falsista comigo. Já dizia [???]: “Não me importa eu seja mais alto que esse prédio”. Não. Me diga… Sabe que vai morrer agora, mas diga. Olha como eu sou todo baleado…
MM: Isso é bala, mestre ?
MC: Olha aí… Olha aqui, bala.
MM: Ih… O que é isso ?
MC: [???] de facão, [???] de facão. Ó os cacete. Ó os cacete. Tem mais na perna. Olha. Faca. [???]. Minhas brigas, sabe por que ?
MM: Isso que eu queria saber…
MC: Porque, eu encontrava o senhor ali, não lhe conheço. Mas tem dois, três lhe agredindo, eu ia lá. Não quero saber quem o senhor é. Sabia que aquilo era covardia, dois ou três lhe agredindo. Quando eu compreendia que o senhor não [???] que ele, compreendia que o senhor era… Na verdade o senhor era, até era superior a mim, sabia mais brigar de que eu. Mas eu não acreditava, não queria saber, queria lhe defender. Aí aqueles que tava, três ou dois, achava que eu tava no fígado, achava que era mais homem que eu, e aí o pau quebrava. Se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come. Eu quero ver eu deitando no bicho. Hahahaha. Pois é. E há muito tempo você vê que um galo de briga, faz que vai, faz, quando você corre… Hahahaha. E outros ficam dentro de casa… Hahaha… [???]. O médico botou uma ponte, o cabra disse “sangre aqui”.
MM: O sangue ?
MC: É, eu tenho sangue de [???], que de vez em quando eu mando uma enfermeira meter a seringa de 40. E tirar duas seringa. Cheia. Chega no sanitário, tsss. Meu sangue é muito quente, caiu aí, talha. Não sei o que é exame de fezes, de urina, de cabeça, [???]. Bebo, só bebo uísque puro. Quer ver minha comida, oito e meia da manhã ? É a feijoada. [???]. O grande é um abacaxi. Um caneco deste tamanho de limonada. Um prato assim de salada de tomate. Um prato de feijão. Mocotó [???]. Hahahaha.
MM: Saúde, né mestre ?
MC: É ! Deus me deu um tesouro: foi a saúde. É a melhor coisa que tem. Três coisas no mundo: Deus, saúde e amigos. É a melhor coisa do mundo. Eu espero o senhor um dia, na Bahia, para a gente…
MM: Vou sim…
MC: É, você diz assim: “Vou na casa do véio, vou tomar uma [???] com o véio”. A rapaziada hoje em dia tá acabada. Cheia de tosse, muita tosse, não pode ter essa… O senhor que é médico… Olha aí, ó.
MM: Não tem trem melhor…
MC: Nada, mas eu também [???] não… Ele trabalha, disse “trinta e três”. Eu não digo, eu digo “mil e três”. Hahaha.
MM: Isso, mestre.
MC: É ?
MM: Graças a Deus.
MC: Graças a Deus, é. O meu remédio, de vez em quando, o senhor que é médico, tem que tomar. Para a sua saúde.
MM: Qual é o remédio ?
MC: De vez em quando, sumo de mastruz com leite, de manhã cedo.
MM: Sumo de ?
MC: Do mastruz. Conhece mastruz não ?
MM: Não… O que é mastruz, mestre ?
MC: É um mato. Ele serve para… Conhece ? Aquilo é bom até para verme. O que estiver dentro, sai. [???].
MM: Sumo de mastruz com leite…
MC: Com leite ! Não todo dia, porque é muito forte. Até verme que você tiver, por mais perigosa que seja, você bota ela prá fora. E dá uma fome…

“Ou Mato ou Morro”: Capoeira como Weltanschauung

Entrevista com Eduardo de Andrade Veiga – Entrevista realizada em São Paulo, em 20-10-99, por Luiz Jean Lauand. Eduardo Veiga, batizado por Bimba com o nome de guerra Duquinha, é capoeirista da velha guarda e foi discípulo de Mestre Bimba. É ainda professor aposentado da Univ. Federal da Bahia. Atuou também – aplicando a “filosofia da educação da capoeira” – como professor no Centro de Treinamento de Professores Anísio Teixeira (do Governo da Bahia). 

“Ou mato ou morro: ou me escondo no mato, ou fujo para o morro…”

Luiz Jean: Poucos capoeiras refletem sobre sua arte e poucos intelectuais conhecem “por dentro” a capoeira. Nessa sua situação privilegiada – você foi assistente de Mestre Bimba e, por outro lado, vice-reitor de universidade – poderia falar-nos de como começou nessa arte e da capoeira como visão-de-mundo?

Eduardo Veiga: Antes de mais nada, quero deixar registrado que este meu depoimento tem o caráter de uma homenagem a meu professor (de capoeira e, portanto, de vida), o grande Mestre Bimba, cujo centenário de nascimento se celebra no dia 23-11-99. Comecei a jogar capoeira (quero observar, desde já, que capoeira “se joga”: não é “arte marcial” de iniciativa agressiva; depois voltaremos a falar disso) ainda bastante jovem, em meados da década de 40, “vestindo farda” do Colégio dos Maristas de Salvador, e ingressei na capoeira como atividade complementar de minha formação pessoal. Escolher Mestre Bimba era seguir um caminho natural de excelência: Bimba já estava consagrado como grande capoeirista.

Por estranho que pareça, a Academia de Mestre Bimba ficava na “Laranjeiras”, na época, a conhecida rua do meretrício. Só andar nesta rua já significava aprender: para chegar à Academia, era necessária a disposição de enfrentar eventuais problemas: a calçada era estreita, só uma pessoa podia passar e não raramente algum “valentão” – dos da zona – podia provocar… De modo que nós íamos pelo meio da rua. Assim, a própria localização da Academia – já servia para ir ensinando duas lições, muito úteis para a mentalidade do capoeira: evitar o confronto desnecessário (no caso, evitar o passeio estreito) e evitar expor-se inutilmente ao perigo (passar perto das portas, de onde poderia surgir agressão de surpresa).

O ritual de ensino de Mestre Bimba começava por uma rigorosa seleção de quem entrava e de quem podia prosseguir na escola: tanto em termos de capacidade física como em termos de comportamento em relação aos colegas e ao mestre. Daí a escola ter um Regulamento – uma espécie de “código interno” – orientando a conduta dos discípulos. Nesse regulamento (talvez o primeiro código escrito de aprendizagem de comportamento da capoeira: um “código” seria impensável, por exemplo na capoeira de angola, extremamente fluída e espontânea…), encontravam-se normas como por exemplo: a de guardar silêncio durante a prática e observar atentamente o jogo dos companheiros.

Mestre Bimba era também um educador muito sensível às fases de progresso dos alunos, sabendo extrair o potencial e avaliar as possibilidades de cada um. A sentença que cunhei – um tanto jocosamente – “Ou mato ou morro” (no sentido de “Ou me escondo no mato, ou fujo para o morro…”) – indica em sua formulação literal a temerária atitude de coragem irresponsável; já a jocosa interpretação poderia ser mal-entendida como pura e simples covardia. Na verdade, a capoeira não é nem uma coisa nem outra. A capoeira surge como objetivação, como consubstanciação da mentalidade do escravo, submetido a uma situação de desesperada injustiça e sem ter a quem recorrer ante o arbítrio de seus dominadores.

Que defesa cabe em uma tal situação? Como sobreviver? Assim, desenvolveu-se entre os escravos – de modo mais ou menos inconsciente, mas profundamente racional – uma técnica, uma arte, um jogo, um jeito (ou talvez o único jeito) de ser e viver (ou sobreviver…). Isto corresponde a duas situações historicamente vivenciadas: a de enfrentamento direto dos desesperados escravos com o poderoso sistema dos senhores (“mato ou morro” no sentido literal) e o esquivar-se a qualquer confronto (esconder-se no mato), buscando o mato como espaço sobre o qual é possível uma forma de vida independente: os quilombos (é interessante observar que já os holandeses surpreendiam-se com a familiaridade, a facilidade, a desenvoltura com que os escravos transitavam pelos matos e morros…). Essa atitude é a base da capoeira. Subtrair-se ou, ao menos, procurar minimizar os horrores da escravidão, em busca de uma vida livre e digna (na medida do possível, evitando o desigual enfrentamento). Assim se compreendem certas “regras” (naturalmente, não escritas…) da capoeira em sua forma originária (a que deu origem a grandes mestres como Bimba), como por exemplo:

  • Prontidão em observar o adversário e o ambiente. Como não se trata de iniciativa de agressão, mas de esquivar-se de um possível dano, é pela atenta observação que se vê a real dimensão do perigo e as rotas de fuga. Por exemplo, o capoeirista deve observar se o potencial agressor (e para o escravo – desde o “boçal”, recém-desembarcado dos navios negreiros, ou o “ladino” ou “crioulo”, já aclimatados – qualquer branco é um potencial agressor…) está de paletó aberto ou fechado (se aberto, há a possibilidade de ele sacar rapidamente uma arma…).
  • Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo… Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal…
  • Enquanto não mata, a pancada é suportável. Em todo caso, sempre há uma expectativa e, na primeira oportunidade real, o capoeirista aplica o seu golpe (daí a necessidade da rapidez e do reflexo, inclusive a partir de situação de imobilidade). Em outra formulação jocosa: na primeira oportunidade não é que ele dá o troco, ele “fica com tudo”…

Naturalmente, há diversos níveis de “capoeirismo”, adaptados aos diversos graus de “encurralamento” social… Em qualquer caso, essa malícia para a luta, essa arte enquanto técnica, encontra uma representação simbólica no jogo entre amigos, que brincam capoeira (agora transformada em arte mesmo), entre ritmos, danças e cantos:

“Água de beber.

É Água de beber camarada…”

A estética substitui a violência e, também nesse sentido, pode-se falar de uma educação pela capoeira, independe de qualquer propósito de defesa ou ataque. Sobrevive a capoeira mesmo fora de um contexto de escravidão: ela, por assim dizer, ganha vida própria e emancipa-se das desumanas situações que lhe deram origem.

Por outro lado, muitos aspectos das relações de trabalho nacional (e, como se sabe, também do sincretismo religioso ou do futebol etc. etc.) são afins à mentalidade que estamos descrevendo. Não se trata só da escravidão formal; num caso extremo, “pratica capoeira”, hoje, um trabalhador mal pago que faz “corpo mole” e conscientemente busca esforçar-se o mínimo possível (guardando, naturalmente, na presença do chefe, as formas externas de prontidão, solicitude, integração na firma etc. etc.). Um boy é encarregado de entregar uma correspondência urgente num endereço que requer uma hora de percurso. Ele acata solicitamente a ordem, sai com presteza e, mal virada a primeira esquina, já começa a treinar malabarismo, girando – com arte e maestria – a pasta na ponta do indicador direito; penteia-se ante as vitrines das lojas; no primeiro fliperama, desenvolve outras habilidades etc. Quando, após três ou quatro horas, retorna, queixa-se de dor de cabeça (o trânsito infernal, manifestações de greve…) e pede à secretária o reembolso do (pretenso) táxi que teve que tomar (“como o chefe falou que era urgente…”).

Neste, e em tantos outros aspectos, a capoeira – totalmente incorporada à mentalidade nacional – é uma importante clave de interpretação do Brasil. Não se trata de “malandragem” ou preguiça, mas de um fenômeno complexo que inclui uma escravidão que persiste disfarçadamente: por que o escravo vai empenhar-se em algo que – de nenhum modo – lhe pertence ou beneficia? E não esqueçamos que “escravo” é um conceito relativo: só cessa de haver escravo, quando cessa de haver feitor… É nessa linha que se encontra o agudo pensamento de autores como Anande das Areias e Nestor Capoeira.

É evidente que a capoeira traduz realidades muito distintas das veiculadas por artes marciais, digamos, como o jiu-jit-su, caratê ou de ninjas & cia. O Brasil é diferente; o brasileiro procura não chocar de frente: ele pode te destruir, mas sempre com ares de vítima ou de quem não quer nada…

Evidentemente, toda essa mentalidade de que estamos falando pode degenerar em uma grave situação de caos – como aconteceu no final do século passado com as “maltas” capoeirísticas do Rio de Janeiro ou como acontece hoje com alguns políticos brasileiros… Daí o valor de Mestre Bimba que, como líder carismático, procurou racionalizar um código de honra e criar uma elite de capoeira: praticar a arte do escravo com a alma do príncipe! Quem não se dedicasse seriamente ao estudo ou ao trabalho, estava excluído da academia. Aliás, diga-se de passagem, muitos escravos negros provinham de famílias nobres africanas e, alguns, com nível cultural muito superior ao de seus senhores.

LJ: Que outros aspectos destacaria das práticas da capoeira? E da capoeira como meio de educação?

EV: Um aspecto importante na minha formação – eu, na época era muito moço – foi o de preparação para as dificuldades da vida. Para quem teve a feliz oportunidade de ser “puxado” (que significa, em linguagem de capoeira, “ensinado” – e vocês, professores de filosofia da educação, podem explorar as ricas sugestões desse termo -; um ensino em que o professor vai se adequando à capacidade do discípulo, como quem “puxa” para fazer aflorar o jogo próprio de cada um…) por mestre Decânio, certamente se lembra de como ele, logo que iniciava o treino, procurava alertar com um ligeiro e repentino tapa sem machucar, porém suficiente para deixar em desconforto ou furioso quem o recebesse. Ora, na aula seguinte e nas mais outras ou tantas quantas necessárias, o Decânio repetia esse gesto… Era um estímulo meio amargo, entretanto, em duas ou três vezes – ou um pouco mais – o remédio atingia o efeito desejado. E Decânio já procurava outro para dar o seu remédio pouco convencional e amargo. Nós, aprendizes, nos conscientizávamos de que quem não observa bem, literalmente “leva tapa na cara”. Ele nos ensinava a ficar atento às possibilidades de agressão do adversário.

Outra lembrança “pedagógica”. Menos drásticos, porém mais excitantes eram os treinos para a prontidão que mestre Bimba usava. Ele portava um apito. Na situação de treino, dois alunos deveriam enfrentar-se: um dos oponentes se armava antes da luta, porém só podia usar a arma ao ouvir o apito. O sinal era também válido para o outro: ao som do apito, poderia reagir. Como é óbvio, somente Mestre Bimba sabia o momento em que iria ocorrer o sinal. Fazia-o em função da aprendizagem. Isso porque, durante a luta há momentos oportunos (e outros que não o são) para se puxar uma arma. O mesmo se pode dizer em relação a tomá-la, podendo chegar ao ponto, de mesmo sendo capoeirista, o outro tomar-lhe a arma, antecipando-se ao gesto de sacar. Obviamente, só após a ordem de ação autorizada pelo apito. Nessa situação, a capoeira funciona também como metáfora da vida: há o momento certo de agir para acometer ou defender.

Uma terceira situação corresponde ao treinamento de dois iniciantes, que com o tempo vão aumentando gradualmente a precisão, velocidade e graça nas seqüências de golpes. Os alunos mais adiantados percebiam que os formados quando os “puxavam” com mais velocidade tinham o cuidado de não atingi-los, parando o golpe a poucos centímetros do ponto de impacto. Este gesto possibilitava ao aluno dar prosseguimento à seqüência de golpes e contragolpes. Por isso as solas ou pontas das “basqueteiras (kedis) pretas” de Aquiles Gadelha eram muito conhecidas dos alunos. Elas deram muitos sustos, pois a cada momento estavam em frente do peito ou do rosto perplexo dos aprendizes. Era o resultado das “bençãos” (pontapé frontal) e “martelos” (de lado) ou “armadas soltas estancadas” (golpe giratório). Não é este o papel de todo verdadeiro professor e educador que – auxilia o aluno, mostrando-lhe as dificuldades e o modo de superá-las, sem massacrá-lo, porém fazendo-o suar bastante? É nesse clima de solidariedade e confiança, ao som do berimbau, que se canta de verdade:

“Água de beber.

É Água de beber camarada…”

Nem sempre é apropriado estancar um golpe. Numa “armada solta”, caso se encolha a perna no meio do caminho para não machucar o adversário, pode não ser uma boa alternativa. A percepção deve estar concentrada também no esboço de defesa que o aluno faz… E para isso o tempo é muito curto para se decidir o que fazer. No caso de se aplicar rasteira nas mãos durante os “aus” (rotação descendente substituindo o apoio dos pés pelas mãos) sucessivos, o procedimento correto de quem aplica a rasteira é de fazê-la com muita velocidade, porque caso contrário não encontrará o que puxar. Porém se encontra a mão apoiada, é para fazer o arrasto com muito vigor. Isto facilita o “rolê” (giro) de defesa do oponente. Este treino só é feito no curso de especialização. Em função do exposto “capoeirar” é saber aplicar golpes:

  1. “em câmara lenta”, suave e graciosamente;
  2. desferir golpes com alta velocidade a partir de uma situação de repouso;
  3. modificar a trajetória de um golpe ou estancá-lo em vista da percepção de algo “novo” após ter desfechado o golpe de defesa ou ataque;
  4. durante o jogo da capoeira, o que se observa é uma “seqüência” de golpes desferidos em velocidades desde o lento quase imperceptível até aqueles em que a vista, talvez não acompanhe. O meio ambiente dos golpes é a ginga: e o ritmo e a velocidade seguem o compasso da orquestra, muitas vezes composta de um só berimbau dolente.
  5. a ginga é tão importante que ela aparece sozinha no item 5 do Regulamento de Bimba e o “gingado” é conteúdo programático da primeira lição. O gingado é como uma rampa de lançamento para se disparar uma violenta cabeçada ou se defender dando um “au” com rolê saindo-se do raio de ação do oponente, que procura, mas não sabe mais onde, encontrar o adversário. Gingando, o capoeira determina as distâncias mais convenientes, inclusive para “amarrar o jogo” do adversário. Por mais que se descreva o gingado, sempre existe o inesperado no adversário: ele esconde manhas ou pode até não significar nada. Tanto simula e dissimula como esconde ou gera golpes ou defesas. É no gingado que os floreios e as negaças se harmonizam. Quando bem feitos, o adversário procura e nada encontra ou encontra sem esperar o que não procura… É malícia pura.
  6. emprega-se a expressão “jogar capoeira” à semelhança de “manejar com destreza, jogar com armas”. Então o capoeira é aquele que é destro no manejo de armas, a semelhança do jogo de florete ou espada. Somente que as suas armas por excelência são os dedos, as mãos abertas ou fechadas de frente ou lateral ou em “cutila”, os pés, as articulações ligeiramente dobradas e a cabeça também são usadas. Sem dúvida, aprende-se também a usar armas simples e convencionais ou improvisadas;
  7. joga-se também no sentido de brincar. É aprender brincando – é demonstrar que se sabe de forma alegre. Por isso o capoeirista não machuca quando joga em situação de aprendizagem ou demonstração. Conserva um sorriso as vezes até matreiro de quem com facilidade saiu-se de uma situação difícil ardilada. Pode também representar um pouco de zombaria face ao outro que nem se apercebeu claramente do que aconteceu, ou melhor, do que poderia ter acontecido….

Todos esses ensinamentos estão centradas no modelo de ser e de aprender de Mestre Bimba (sem demérito de outros grandes mestres), que inquestionavelmente é um referencial firme para tema.

Eu, em minha vida pessoal e também como professor (e professor de professores) sempre me remeto à capoeira como metáfora da vida: viver é capoeirar. E há também uma mentalidade de capoeira, mesmo quando você não é o oprimido. Uma vez, há muitos anos, um ladrão invadiu minha casa: eu e minha mulher acordamos com o sujeito ameaçando-nos com uma barra de ferro. Nem sei como, de um pulo já estava ao lado dele que, assustado, fugiu. Eu fui atrás, com muito furor, mas só até a porta: daí em diante, “persegui-o” um pouco, mas não para alcançá-lo (isso é capoeira pura), era só para estimulá-lo a fugir: rápido e para longe. Como consegui dar aquele pulo? Não sei! Inconscientemente, eu tinha me programado (capoeira é observação e antecipação) para, numa situação dessas, “virar um bicho” (um ladrão, por definição, não teme tanto a um homem, mas não há homem que não tema um bicho…)

Resumindo, eu diria que a capoeira, sim representa uma visão de mundo, marcada por um conjunto de atitudes de defesa em situação de forte desigualdade: seja o oponente um feitor; um governo (há empresas que praticam contra o governo a capoeira fiscal…); um professor, pai ou sargento opressor; um seqüestrador (li recentemente no Estadão as indicações da polícia para o caso de você ser seqüestrado e era um “manual de capoeira”: indicavam por exemplo, não encarar, não discutir, dormir só quando o seqüestrador estiver acordado e vice-versa; etc.); ou mesmo o mundo como um todo, sempre ameaçador à fragilidade humana. Por isso, encontram-se traços de capoeira em qualquer cultura em que haja situações de opressão. A capoeira não se baseia na agressão positiva nem na mera resignação passiva; é a defesa racional levada ao limite do possível, na inaparência de jogo, ginga e lúdico.