Mestre Waldemar
Entrevista realizada pelo Programa Nacional da Capoeira, do MEC, em 1990
Aprendi capoeira em 1936 em Piripiri. e me chamo Waldemar Rodrigues da Paixão. Tive quatro mestres. A todos eles eu pedi para ensinar e aprendi. Sempre amei muito esse esporte de Capoeira Angola. Em 1940 eu peguei a ensinar aqui na Pero Vaz. Tive muitos alunos e ainda tenho muitos vivos. Outros estão mortos. O primeiro mestre que foi para o Rio de Janeiro fui eu, no show de Dorival Caymmi. Depois tive um convite para ir cantar capoeira na Rádio Tupy. Fui muito elogiado no Rio de Janeiro, e eles queriam até que eu ficasse morando para ensinar aos mestres de lá. Mas eu amo muito a Bahia e não quis ficar. Aí eu vim continuando ensinando e jogando. Até 1963 eu joguei muita capoeira, tive muito orgulho no meu saber. Hoje eu tô doente e tô velho, tenho 71 anos de idade. Mas nunca perdi pra ninguém em roda de capoeira.
Tenho muitos camaradas, como Itapoan. Aristides, João Pequeno, amigos meus, João Grande e outros mestres. Eles me dão muito valor mas eu não tenho esse valor mais porque estou doente. Mas sou conhecido como o “rei do berimbau”. Ainda fabrico e sei ensinara tocar.
Barulho eu nunca tive com ninguém, porque eu sempre fui respeitado, nunca ninguém me desafiou. Se me desafiava para jogar, mestre que aparecia aqui a minha cabeça é que resolvia. Era problema certo. Tenho orgulho ainda na minha garganta, de gritar minhas ladainhas. Canto amarrado da capoeira angola. Isso eu não achei quem cantasse mais do que eu. Ainda não achei. Se mulher pariu homem, pra cantar não se cria. Eu tirei um disco pra Suassuna mas não saiu como eu tinha vontade que saísse. E eu estimava cantar uma capoeira pra vocês apreciar. Pra vocês verem minha voz. Porque na capoeira em primeiro lugar o toque do berimbau, segundo o canto. É muita coisa e eu me esqueço, porque eu tenho andado por fora de capoeira, não tenho mais prazer pra isso.
Tive quatro mestres: Siri de Mangue, um; Canário Pardo, dois; Talavi, três e Ricardo de Ilha de Maré, quatro. Mas eu pedi a esses homens pra me ensinar para eu poder ficar profissional. Pra eu dizer que sabia, e sei mesmo. Aprendi capoeira. Capoeira eu sei demais. Eu só não aprendi foi fazer menino de duas cabeças.
Primeiramente um bom berimbau tocando. Três berimbaus: um berra-boi, um viola e um gunga. Depois, agora nessa moda nova, apareceu o atabaque, mas eram três pandeiros, três berimbaus e um reco-reco. E o instrumento que acompanha o berimbau, para ajudar o berimbau, o caxixi e tinha o agogô. Depois que colocaram o atabaque em roda de capoeira, mas não tinha isso.
Outra coisa, essa pintura de berimbau quem inventou foi eu. O berimbau era com casca. Os capoeiristas daqui, os mestres, faziam berimbau com casca. O arame era arame de cerca, não era arame de aço. Depois eles queimavam o pneu e tiravam aquele arame enferrujado, quebrava. Eu inventei abrir na raça pra sair cru. Peguei fazer berimbau envernizado. Peguei fazer berimbau em branco, como Tabosa vai levando aí. Depois eu inventei pintar e passei a fazer berimbau pintado. Sou conhecido nisso.
A roda na Liberdade era no ar livre, perto do arvoredo. Eu fazia o ringue na sombra e botava a rapazeada pra jogar. Depois eu fiz um barracão de palha grande, e tudo quanto era capoeirista da Bahia vinha pro meu barracão ali. E fui muito elogiado por Carybé, Mário Cravo, Odorico Tavares, essa gente toda me procurava aqui. Um dia, o primeiro livro sobre mim que saiu foi “Recôncavo brasileiro”, que Carybé escreveu mais Mário Cravo. E aí fui ganhando nome. No Rio de Janeiro eu estava no hotel quando Dorival Caymmi me chamou pra eu cantar na rádio Tupy, pra eu tirar uma cantiga elogiando o Rio. Eu sentado na cama, os meus alunos estavam dormindo, eu estudei e no dia seguinte eu cantei uma ladainha bonita. Fui elogiado bastante. Tem outras coisas, mas eu esqueço…
Zacarias foi meu aluno de 1942. Outros foram José Cabelo Bom, um preto por nome Nagé, que juntaram cinco homens pra matar ele. Tive um aluno que só batia berimbau, mas era bom, apelidado Pernambuco. Tenho dois alunos aí. Estão bons ainda. E o Cabelo Bom é tio daquele menino que eu tô ensinando. Mas ele não quer aprender a jogar não. Só quer bater berimbau.
Nas minhas rodas não tinha barulho porque quando eu chegava, tomando uma cerveja assim, quando eu cantava, a rapazeada vinha tudo render obediência assim. Me respeitavam muito, os meus alunos. E não tinha barulho, porque eu olhava pra eles assim, eles vinham pro pé de mim e ninguém brigava. (…)
O segredo dos valentões era uma camisa curta com a barriga pro lado de fora e a calça com a boca chamada boca de sino, que cobria o bico do sapato. Ali era homem valente. Eles usavam arma, mas chegavam no bar e pediam para guardar. Navalha e facão de dois cortes.
Tinha uns que usavam a navalha na cabeça e jogavam com o chapéu. Comprava um chapéu na loja, e não fazia ziguezague na copa, nada. Da forma que vinha eles usavam. Chapéu era canoado, copa redonda, que era a navalha presa com uma tira de borracha. Eu jogava de chapéu, mas não usava nada. Eu não quis usar essas coisas não. Sempre eu quis ficar fora de zoada, de barulho (…) Então esse valor eu tenho at[e hoje. Todo mundo me aprecia, todo mundo gosta. Chega aqui de ponta a ponta, não tem quem fale de mim, em assunto nenhum. Sei tratar todo mundo bem, não maltrato pessoa nenhuma
Quem terminou de aprontar Traíra fui eu. Ele tirou onze anos e seis meses, ele era assassino. Matou um homem por causa de uma mulher. Quando ele saiu da cadeia veio me procurar. Eu tava com uma roda de capoeira, na ocasião em que Otávio Mangabeira estava se candidatando ao governo da Bahia. Ele aí me tomou por compadre e disse que eu ia acabar de aprontar ele, e aprontei. Jogava demais. Era uma serpente no chão.
Mais do que eu não vi ninguém jogar. Mas vou dizer a você, uns que já morreram: Barbosa, Onça Preta – esse tá no Rio, velho mas tá vivo – Eutíquio, pai de Gato Preto, Daniel jogava capoeira mas não era essa coisa toda. Maré era solteiro, jogava capoeira mas só sabia jogar capoeira, não tocava berimbau, não cantava, não fazia nada. Samuel Querido de Deus era bom mas era solteiro[1] também. Só de jogo. Ficava esperando você pular pra ele dar uma cabeçada. Quando você queria forrar ele não queria mais jogar. Era crocodilo.
Eu morava em Piripiri e um irmão meu, que lá doente também de derrame, apelidado por Homem Mau, mas era Lourival Rodrigues da Paixão, mora em Plataforma, tá vivo, não morreu ainda. Então ele disse: “Meu compadre – eu andava triste porque tinha vindo pra aqui, não conhecia ninguém, aí ele disse – “tem uma capoeira no Estica no Largo do Tanque”. Aí eu vim, fui pra lá com um berimbau bom, e meu irmão falou pra eles deixarem eu tocar e cantar um bocadinho. E o Pastinha estava forte ainda, mas não era mestre de capoeira. Ele era o presidente da capoeira. O mestre da capoeira do finado Pastinha chamava-se Aberrê, era um preto. Quando Aberrê faleceu de repente, de colapso, tava cheio de mestre na capoeira, eu perguntei pra ele um dia: “Pastinha, quem é que você vai tirar pra ser mestre aí?” Ele disse: “Waldemar, aqui não tem mestre. O mestre vai ser todo mundo”. E eu disse que ele tinha que tirar um mestre bom pra botar na capoeira. E eu já tava mestrando capoeira na Liberdade. Sempre ele me convidava pra eu passear lá. Ele disse: “Tem muito mestre, mas eu vou te falar a verdade: o mestre vou ser eu mesmo”. Ele era presidente da capoeira. Prova é que ele não tocava berimbau, não tocava. Ele era pintor de parede. Ele faleceu e deixou alunos melhores do que ele.
Ele era considerado presidente da capoeira. Aí é que ficou João Pequeno, João Grande, eles é que são bom. Pastinha era defeituoso. Você chegava na roda dele, ficava frequentando, e ele dizia que você era aluno dele. Eu nunca tive esse defeito e nem tenho. Quando eu disser “é aluno meu” é por que eu ensinei e posso ensinar e sei..
O presidente da capoeira é que, quando tem uma viagem, ele é que arma aquele grupo. Tem que comprar camisa, ele é que toma a frente pra comprar. É diferente. Ele fazia esses negócios todo. Ele ia pro Rio e São Paulo e ganhava o dinheiro dele. Quando os alunos pediam, ele dizia “você ganhou nada”. “Você não foi calçado, não foi de avião, não dormiu no hotel, não comeu bem, não tá aprendendo?” Não dava nada. E eu, tudo o que eu ganhava eu dividia com meus alunos.
E quando eu estava bebendo cerveja, e saía aquele dinheiro na roda, eu dizia ao juiz que ficava com o apito mudando os pares dos rapazes: “Divida lá com vocês, bebam, façam o que vocês quiserem. Não quero é barulho”. Depois apanhava minha nêga e ia pro cinema.
O finado Traíra é que tomava conta da roda. Eu chegava lá, dava minha ordem e ia tomar minha cerveja. Eu estava feito.
Eu gostava de jogar lento, pra saber o que eu faço. Pelo meu canto você tira. Eu canto pra qualquer menino desse jogar, e ele joga sem defeito. Para os meus alunos eu digo que vou cantar e eles já sabem o que eu quero: São Bento Pequeno. É o primeiro toque meu. Para o outro tocador eu digo: “de cima para baixo”, e ele sabe que é São Bento Grande. Para a viola eu digo: “repique”, e ele bota a viola pra chorar.
Se me agarravam, eu dizia: não me pegue que eu não saou toalha. Não me suje não. Eu jogava com roupa branca, sapato da cor de leite. Calça de linho tremendo. Eu só sujava meus dedos, dava salto, fazia e acontecia. Mas tudo no mundo se acaba, só não o amar a Deus.
E ensinava na roda, mas tinha os dias de treino. Eles estavam jogando e eu fazia sinal pra fazer tesoura, fazia sinal pra chibatear. Fazia sinal pro outro abaixar…
O golpe que eu mais gostava era o rabo de arraia. No jogo, quando a gente vê que vai pegar, a gente recolhe. Olhe, eu dei um rabo de arraia em Caiçara, num aniversário… Tem muitos anos, ele tava com a roda dele e eu levei aminha. Dei um rabo de arraia em Caiçara, se ele não bate com aquela barriga no chão eu arrancava o pescoço dele com o sapato. Meu sapato era um sapato branco, dois dedos de borracha. Dei-lhe um rabo de arria… Todo de couro, sapato forte,bom. E outra, Caiçara onde eu estou ele me respeita. Ele diz que quando eu canto ele se arrepia todo.
O finado Aberrê cantava muito. Eu achei um cantador de capoeira aqui, que agente emendou os bigodes. Ele tinha uma voz como a minha. Até o pessoal dizia que ele parecia comigo, o finado Barboso, do Cabeça. Cantava muito, tocava muito e jogava muito. Um cachoeirano. Era bom mestre.
Quando o sujeito tá jogando pra aleijar o outro, o juiz não deixa, imitante a jogo de bola. O juiz toma conta da roda, muda os pares, quando o sujeito está jogando violento, ele separa, se não obedece ele tira fora da roda. O mestre não se mete naquilo. O mestre é quem está ensinando a turma toda.
[1] Provavelmente, a transcrição da palavra “solteiro” foi erro do entrevistador. O termo usual para descrever capoeiristas que ficam apenas aguardando um vacilo do outro é “sopeiro”
Camarada Teimosia, onde o Mestre Waldemar diz 'solteiro', referindo-se a Samuel Querido de Deus e a Totonho de Maré, creio que o termo por ele utilizado tenha sido na verdade 'sopeiro', já que aqui em Salvador usamos esse termo pejorativo para falar sobre alguém que fica só esperando, por exemplo e nesse caso, o camarada 'dar sopa'. Provavelmente a pessoa que fez a entrevista não sabia desse termo ou não compreendeu o Mestre no momento.
Abraço, camarada!
Obrigado pelo esclarecimento, camarada! Já coloquei uma nota de rodapé no artigo, para esclarecer.
Axé,
T.
Valeu,camarada!
Axé!
Ter esse registro é incrível. Muito obrigado pela transcrição que você fez. Eu achei muito informativo e fiquei muito surpreendido de ler os trechos sobre Pastinha, sobre Traíra, etc.