Entrevista com Nestor Capoeira concedida ao site www.planetcapoeira.com
Tradução: Teimosia
13 de junho de 2002
Na primavera desse ano, Nestor Capoeira visitou Nova York pela primeira vez. Ele veio ministrar um workshop de capoeira de dois dias, e fez uma palestra sobre o que ele julga ser o jogo da capoeira.
Nestor é familiar a muitas pessoas pelo livro “Capoeira – Pequeno Manual do Jogador”, freqüentemente a primeira obra literária sobre capoeira lida. Nestor Capoeira é na verdade autor de quarto livros, dos quais três sobre capoeira e um em formato de romance. Nós descobrimos também que ele recentemente terminou seu PhD, estudando a globalização da capoeira e sua relação com as estruturas nômades de poder. Suas palestras acabaram se tornando discussões iluminadas sobre capoeira.
Nessa entrevista, a primeira parte de uma série de artigos sobre Nestor Capoeira, nós perguntamos a Nestor sobre seu próximo livro, e sobre a globalização do jogo da capoeira. O site Planet Capoeira vai publicar brevemente as transcrições das duas palestras ministradas por ele em sua estadia em Nova York.
Eu passei um bom tempo com Nestor não apenas durante os workshops e palestras, mas também tive a chance de partilhar algumas refeições e umas poucas garrafas de vinho com o estimado mestre. O que eu descobri foi que, ao contrário de muitos dittos “mestres” dos dias atuais, ele aparece como um dos últimos dos malandros de outrora, que abraça o jogo da capoeira não pela técnica brilhante, mas sim com a arte da mandinga. Essa entrevista, conduzida durante uma boa refeição (e não poucas garrafas de vinho) em um bom restaurante italiano em Nova York, traz um pouco das quarto décadas de Nestor na capoeira, e mudou radicalmente o modo como eu penso a respeito do jogo da capoeira. Eu estou honrado em dividir minha experiência com vocês.
PlanetCapoeira: Você pode nos falar um pouco sobre seu novo livro?
Nestor: O Livro “Pequeno Manual do Jogador”, da forma como eu vejo, dá uma visão mais ampla, um plano geral. Para o iniciante ele é muito importante, porquê o livro o situa no contexto geral. Você encontra uma história simplificada, alguma coisa sobre malícia, as “regras” da capoeira, de tal forma que a pessoa compreenda a filosofia por trás disso tudo. Há ainda alguma informação sobre a música, não entrando muito em detalhes mas dizendo algo sobre como os três berimbaus funcionam em conjunto, e vai por aí…
O método básico de aprendizado e o meu modo de ensinar capoeira. É claro, cada professor de capoeira acha que o seu jeito de ensinar é o melhor (risos). Assim é “Pequeno Manual do Jogador”. No segundo livro, “Os fundamentos da malícia”, eu pego algumas partes mais específicas e me aprofundo nelas. Fisicamente, o livro tem 380 páginas ou algo próximo disso. O que eu fiz nele foi entrevistar pessoas que eu admiro muito, como Muniz Sodré. Ele é um baiano que tem um lugar muito importante entre os mais importantes grupos de Candomblé da Bahia, e então ele realmente entende do que fala. Ele estudou com Bimba na década de 50. Mas ele é também um acadêmico, que pratica karate até os dias de hoje e está em muito boa forma. Ele é a cabeça do programa de pós-graduação da Divisão de Comunicação da UFRJ. Ele fala 12 ou 13 idiomas, e têm estudado a mídia por muito tempo.
Então eu perguntei a essas pessoas como ele e como Jair Moura, outro jogador de capoeira que participou do filme com João Grande e João Pequeno na década de 50 e tem alguns livros escritos sobre Bimba e Itapoan… Eu entrevistei esses caras, escrevi um capítulo dedicado a cada um deles, e os questionei: “Sobre o quê vocês querem falar ?”. Um deles, por exemplo, disse que ele queria falar sobre o período entre 1810 e 1830, porquê é muito importante na história da influência cultural africana e da escravidão. Então eu escrevi um capítulo sobre cada um, depois escrevi minhas considerações e pedi a eles que fizessem comentários.
E esses comentários estão no livro também. É um livro que tem a minha contribuição, mas cujo ponto mais forte são os pontos de vistas dessas pessoas, que são especialistas e escolheram falar sobre períodos específicos ou contextos sobre os quais eles têm um conhecimento único. Eu escrevi um pouco mais sobre a malícia, considerações sobre essa parte da capoeira e alguns exercícios relacionados à compreensão da malícia. Eu discuto alguns exercícios que uso no meu treinamento, e que meus filhos usam. Exercícios para quem já tem de 5 a 10 anos de capoeira. Para manter seu jogo afiado. A maioria são floreios para quando se está de cabeça-para-baixo e tesouras, especialmente quando se está no chão e o parceiro de pé tenta tirar vantagem da situação. Ainda, como ir para o chão para atrair o parceiro a atacar, e então tirar vantagem. Esse é meu segundo livro, do qual gosto muito. Dos meus 3 livros sobre capoeira, é o mais completo.
PlanetCapoeira: Você disse que os professores têm sua própria aproximação à capoeira. Seu professor original foi Leopoldina. Como a visão dele afetou seu entendimento do jogo?
Nestor: Eu treinei com Leopoldina apenas por um par de anos e em 1968 eu ingressei no Grupo Senzala. Eu tinha então 22 anos e fiquei de 68 a 1990. Então realmente a maior influência no meu treinamento até 10 ou 12 anos atrás foi o método de ensino usado na Senzala. Esse era uma aproximação que eu construí junto com meus colegas na Senzala, caras da minha idade, e depois pessoas mais novas que deram suas contribuições. O método de Leopoldina era completamente diferente, não era estruturado. Suas aulas eram uma grande diversão. Você desenvolvia muito a criatividade e a improvisação.
Mas o desenvolvimento técnico era mais lento; o que você aprenderia em 3 ou 4 anos, poderia ser feito em 1 ano com a metodologia da Senzala. Mas naqueles 3 ou 4 anos você teria a criatividade e uma grande capacidade de improvisar. Esses métodos que nós criamos, não apenas o que eu chamo de “estilo regional Senzala”, mas também no desenvolvimento da angola, permitem que os estudantes se desenvolvam muito rapidamente, mas após 3 ou 4 anos eles não improvisam mais. No início eles improvisam porque eles erram (risos). Mesmo na angola, eles aprendem de forma metódica – “coloque sua mão dessa forma, sua cabeça dessa forma, esse movimento nós não usamos”, etc.
A angola moderna absorveu, ou foi influenciada pelo que Bimba criou. O que eu tenho tentado fazer desde 1990, quando deixei a Senzala de forma diplomática, é tentar coisas diferentes. Eu não queria usar graduações nem uniformes. Eu não quero ter que “obrigar” os alunos a nada. Não forço obrigações a eles. Eu queria me livrar da idéia de “eu pertenço a esse grupo ou clã”. Queria fazer alguma coisa mais tranqüila, mais relaxada. Mas não estou me referindo ao treinamento.
O treinamento tem que ser forte. Mas as obrigações para com o grupo, essas eu decidi abandonar. Pensei sobre como eu poderia os elementos do ensinamento que Leopoldina usava e que o pessoal da angola usavam durante a década de 60. Eu queria reintroduzir aquele método, mantendo os elementos que eu tive quando aprendi capoeira na rua, como quando aprendi a andar de bicicleta. Não o tipo que você tem em uma aula estruturada, freqüentada 4 vezes por semana… Então eu comecei a pensar que eu tinha que criar exercícios de improvisação, por exemplo, coisas muito simples que pessoas que estão praticando capoeira não fazem por vergonha de serem taxados como bobos. Por exemplo, tente apenas se mover em volta do seu parceiro (parado, de pé) sem soltar golpes, mas sem gingar e outros clichês de “movimentação”.
A mesma coisa no chão. Você anda como um gato, movendo-se em volta da pessoa sem usar negativa, rolê… Coisas simples assim. Isso funcionou muito bem porque você desenvolve um método diferente do que está em voga. Você precisa de 5 ou 10 anos para ter alunos formados por esse método, e então pode ver o resultado do que você fez. E os resultados são meus filhos, Itapuã e Bruno, que em minha opinião não são os melhores jogadores do mundo, é claro, mas são jogadores muito bons. Eles tem essa habilidade com a improvisação. Eles podem ir a rodas de angola, como nós fomos à academia do João Grande recentemente. Jogaram com todo mundo, e têm seu próprio estilo, que não é Angola, mas se adaptam. Porquê seus movimentos são mais livres.
Eu acho que dei um pequeno passo nessa direção, que funcionou. Se meus filhos forem a algum lugar onde as pessoas jogam duro, eles jogam duro também, sem problemas. Não estou dizendo que todo mundo deva fazer isso. Acho que todas as tendências de capoeira existentes, do grupo de capoeira como um clã, da coisa com os angoleiros dizendo que eles são tradicionais, guardando as tradições reais, precisam existir porquê isso mantém as diferentes possibilidades. Para que pessoas com diferentes personalidades possam achar seus próprios espaços, mais próximos aos seus modos de ser. Para mim, eu descobri que depois dos meus 25 anos eu criei o meu próprio espaço particular, da mesma maneira.
PlanetCapoeira: Agora que a capoeira está se tornando um jogo globalizado, o que as outras culturas trazem para a arte? Qual a influência européia? Ou a americana?
Nestor: Isso é uma coisa nova. Há um relacionamento distinto aqui. Todos os diferentes estilos de capoeira foram forjados no mesmo contexto cultural, que a princípio, a Bahia – com a regional e a angola. Então, na década de 60, houve a contribuição de grupos de capoeira do Rio e São Paulo para o cenário. Como a mentalidade é diferente nesses estados, não apenas a forma da arte mudou um pouco, mas a própria arte se tornou mais suja, e as pessoas começaram a dizer “aquele FDP me copiou” !
Todo mundo está jogando quase do mesmo jeito – alguns mais técnicos, outros menos, mas quase do mesmo modo. No estilo regional Senzala, nas acrobacias, na Angola… Mas agora que a capoeira foi para o exterior, eu acredito que os movimentos do jogo e a parte musical não vão ser muito alteradas, mas a contribuição obviamente vai mudar muito. Eu acho, por exemplo, que com os europeus, eu sei o que vai acontecer. Eles valorizam muito a história e cultura – isso vai ser uma coisa importante na capoeira: conhecer a história, a cultura, os livros. Para obter PhD nesses aspectos, por exemplo…
Alguém que esteja na capoeira terá que fazer isso no futuro. O que eu quero dizer é que na década de 60, quando comecei, muitos dos melhores alunos de Bimba não sabiam como tocar o berimbau e os demais instrumentos. Eles não se importavam. É a mesma coisa para muitos dos praticantes de angola naquela época. O berimbau era algo a ser aprendido apenas se você quisesse. Mas no final da década de 70 e dos 90 em diante, para obter uma certa corda ou graduação, você TEM que tocar o berimbau. É agora parte do aprendizado da capoeira saber como tocar os ritmos da angola e da regional.
No futuro, com a cultura européia sendo agregada, você terá que conhecer os livros e a pesquisa sendo feita. As coisas se tornam um pouco mais complicadas (risos). Complicadas não, mais holísticas – uma palavra na moda atualmente… Isso envolve mais coisas do que atualmente. A parte negativa é que esses caras que são acadêmicos, como eu (risos), que têm PhD, vão começar a empurrar as coisas de tal forma que o conhecimento se tornará mais importante que o jogo em si. Como pessoas da angola ou da regional acham que seus estilos são mais importantes que o próprio jogo, quando o jogo é que define a capoeira. Todas essas outras coisas são ilusão – coisas que são construídas sobre o que é realmente importante. Esses são os aspectos positivos e negativos da contribuição européia, a meu ver.
PlanetCapoeira: E os Estados Unidos ? Eu gostaria de saber mais sobre isso…
Nestor: Pelo que tenho visto e ouvido até agora, eu acho que eles vão trazer algo de tecnológico – vídeos, CD-ROMs, livros, tudo comprato pela internet. Isso é algo que tem um lado muito positivo, porquê você vai ser capaz de ouvir, por exemplo, as palavras de João Pequeno, João Grande e Acordeon. Mesmo essa entrevista estará acessível via internet. Isso é uma coisa muito boa. Mas a parte negativa eu acredito que seja a falta de contato pessoa-pessoa. Como você e eu. Nós treinamos juntos, e agora estamos almoçando juntos. Começamos então a não apenas trocar idéias, mas porquê estamos juntos, nós sentimos como a outra pessoa é.
Como a outra pessoa joga o seu jogo da vida, e nós roubamos, se formos espertos, as melhores partes do jogo do outro. Eu acho que isso vai ser um pouco perdido. Quantas pessoas vão ter acesso pessoal a João Grande ? Você tem que ir à sua academia e aprender algo que você não pode aprender através da tecnologia. Você absorve algo, a malícia daquele cara, que foi destilada pelo tempo. Os velhos mestres têm malícia, desenvolvida ao longo de muito tempo, e isso você só pode ver pessoalmente. É a forma como eu vejo. As pessoas sempre dizem “Ah, os bons velhos tempos…” de Bimba, de Pastinha e de outros. Eu acho que se Bimba, Pastinha e todos os mestre antigos, se todos eles pudessem viver agora, eles prefeririam. É claro ! As únicas coisas que nós temos que superar hoje em dia são problemas como solidão e consumismo desenfreado. Há muitas armadilhas na sociedade atual nas quais você pode cair. Mas nos tempos deles, havia armadilhas também. Havia a polícia ! (risos)
PlanetCapoeira: Com o resto do mundo abraçando a capoeira, vão haver mudanças na capoeira no Brasil?
Nestor: Eu acho, como eu disse, que o jogo não será tão afetado. Talvez comecem a surgir músicas em outros idiomas. Eu estou gravando um CD, não de capoeira, mas com instrumentos de capoeira. É cantado em inglês, francês e segue por aí. É chamado “Músicas imorais de amor e danação por um jogador de capoeira decadente” (risos). É um pouco pornográfico às vezes. Como Tom Waits – muito obscuro e depressivo, como “Eu vou colocar um feitiço em você” quando um amante te abandona (risos). Mas de qualquer forma, o que eu acho que vai mudar é a mentalidade e a relação de poder entre grupos e pessoas. Porquê tudo tem relações de poder. Como alguns caras como Michel Foulcault (filósofo francês) dizem, a vida pode ser entendida através das relações de poder.
Eu acho que isso é um pouco restritivo, mas é uma boa aproximação. Na capoeira e no candomblé, algumas pessoas vêem algo de bonito, exótico, primitivo, e acham que as relações de poder são mais simples do que se você estiver numa grande organização multinacional. Ao contrário, algumas vezes é mais complicado, mais poderoso e perigoso porquê na multinacional ou na instituição burocrática há regras, há coisas nas quais você não pode mexer sem se estrepar. Na capoeira, você pode sair e matar alguém e eles dirão “muito bem, ninguém sabe que foi você”, como no submundo, entre as máfias.
Como eu disse outro dia em minha palestra sobre grupos nômades, você quer entender a capoeira ? Assista filmes do Tarantino ou “O poderoso chefão”. Apenas a violência nesses filmes é maior e a arte é menor, mas é o mesmo tipo de coisa – a traição, o não poder confiar. Trata-se de enganar a outra pessoa, que é o ensinamento da capoeira. Então alguém pode pensar que a capoeira é, em padrões ocidentais, uma coisa muito ruim. Não. Eu acho que ela é exatamente muito neutra. Te ensina como ver dentro das coisas. O cidadão comum é muito ingênuo. Eu vivi aqui (nos Estados Unidos) entre 56 e 57. Quando me lembro como adultos relacionados ao poder e governo eram completamente ingênuos…
Mas após o Vietnã, o movimento pelos direitos civis, o americano moderno não é mais tão ingênuo. De qualquer forma, as pessoas que detêm o poder (e não estou falando do governo, mas de pessoas por si mesmas, proprietários, etc), todos conhecem a malícia muito bem. Como manipular as situações, como tirar vantagem. É apenas o indivíduo normal, que não conhece, e acredita e confia cegamente… Há americanos dizendo que se a população soubesse como as salsichas e a política são feitas, eles não dormiriam à noite (risos). É uma frase maravilhosa. É o que a capoeira te dá: a percepção de como as salsichas são feitas (risos). Então com a contribuição da Europa e Estados Unidos, nós saberemos como as salsichas são feitas na Alemanhã e como os hambúrgueres são feitos no McDonalds nos EUA (risos).