Como a América vai transformar a Capoeira

Contra-Mestre Pererê, para o site PlanetCapoeira.com em 30 de janeiro de 2001
Tradução: Teimosia
Eu tenho pensado bastante desde que escrevi meu último artigo para o Planet Capoeira, e descobri a necessidade de explorar aIgumas das questões que eu mesmo levantei da última vez. Tenho estado imerso na comunidade da capoeira por alguns anos, e tive muitas discussões tanto com brasileiros quanto com americanos sobre como a capoeira tem sido oferecida para e aceita pelos americanos. Uma das considerações primárias é que a razão original pela qual existe tanta capoeira fora do Brasil é porquê ela oferece para o instrutor um retorno financeiro que não seria possível em solo brasileiro. Como um capoeirista americano me disse uma vez: “Para os brasileiros, capoeira é igual a dolar e aponta o norte do mapa”. 
Alguns podem se iludir pensando que a capoeira está sendo ensinada por motivos mais altruísticos ou por razões estéticas, e ainda que esses aspectos tenham certo papel, você estaria errado em pensar que essas são as razões pelas quais a capoeira tem sido ensinada na América do Norte por brasileiros. Eu tive o infortúnio de ser o assistente de um instrutor brasileiro que lutou por anos para se estabelecer com a capoeira aqui nos EUA (ele atualmente retornou ao Brasil). Como seu assistente, testemunhei conflitos sérios que surgiram quando outros mestres ou instrutores começaram a se estabelecer no “seu” território e esquemas para conseguir centenas de alunos e construir uma academia enorme. A situação persistiu e persistiu, e eu soube diversas vezes de questões e problemas similares, da boca de outros mestres na região em que vivo. Também recebi muita informação de vários estudantes de outros grupos com os quais estive em contato durante os anos. 
A única vez que eu ouvi essas pessoas (mestres e instrutores brasileiros) falarem sobre arte, tradição e respeito e responsabilidade era quando elas estavam ensinando a seus alunos como se comportarem. Muito mais freqüentes eram as discussões políticas mesquinhas e planos para conseguir mais dinheiro. Eu estou convicto de que muitos mestres e instrutores brasileiros na América do Norte tiveram e têm uma influência positiva e maravilhosa nas vidas de muitas pessoas aqui. Entretanto, quero reafirmar que para acreditar que esta é a razão primária pela qual estes professores estão aqui dividindo sua cultura e arte, em primeiro lugar uma pessoa tem que ser muito ingênua.
Eu acredito piamente que a capoeira de ambos os estilos, tradicional e contemporânea (ou derivações de ambos) está aqui para ficar. Por quê ? Porquê os americanos amam a capoeira. Eles gostam de jogar, e gostam de ver. Você já pode vê-la em filmes, em revistas sobre saúde, em videoclipes, em videogames, em clubes de dança, em performances de rua, em torneios de artes marciais. Você pode encontrar garotos nas praças do centro de Seattle jogando capoeira tanto quanto dançando break, e eu sei que eles nunca tiveram uma aula com um instrutor de capoeira. Eles “pegaram” no ar, da TV, de assistir um amigo ou seus irmãos mais velhos que visitaram São Francisco e que estudaram capoeira cinco anos atrás e ainda sabem alguns movimentos. A maioria desses tipos de capoeira é claramente pouco sofisticada, da perspectiva de um capoeirista “legítimo”. É um intercâmbio de chutes de artes marciais e esquivas derivadas de jogos infantis como “queimada” que, apesar de rudimentar, nunca havia sido feito antes. 
Freqüentemente essas atividades são acompanhadas de música hip-hop num aparelho estéreo. O que está faltando é contexto, e contexto é feito do entusiasmo dos participantes. Eles não sentem a cultura afro-brasileira e a história que os mestres da capoeira prezam e mantêm nem sentem falta da conexão com ela. Um de meus estudantes mais antigos recentemente visitou uma zona rural no México e presenciou um pouco de capoeira. Ele disse que foi uma das coisas mais bizarras que já viu, mas era considerada “capoeira verdadeira” pelos mexicanos que estavam praticando, mesmo que nenhum deles tivesse conhecimento do que era um berimbau e muitas outras coisas consideradas importantes e tradicionais na capoeira. Acredito que isso é um sinal muito claro: se os mestres brasileiros falham em passar tudo de sua arte para seus estudantes estrangeiros e não formam pessoas de nível elevado na capoeira (em uma tentativa de manter o controle sobre a) isso não vai deter esses gringos de forma alguma. Esses não-brasileiros vão simplesmente criar por si mesmos o que não entendem ou não sabem. Vão tomar a capoeira para si, e já é muito tarde para controlar a situação. 
A única coisa que os brasileiros podem fazer agora é colocar a si mesmos em uma posição de “resguardo”, um lugar de apoio e esperançosamente, de influência para o cenário da comunidade norte-americana de capoeira. Se os brasileiros que estão na vanguarda da comunidade norte-americana de capoeira falharem em fazer isso, continuando a trazer jovens instrutores brasileiros (e a adicioná-los ao sistema de associações de capoeira norte-americanas controladas por brasileiros) ao invés de criarem uma nova geração de instrutores a partir dos seus próprios alunos gringos, eles vão efetivamente perder o controle de sua amada arte aqui nos EUA e nos demais lugares. Apesar de que estou certo de que eles vão continuar a prosperar, negócios como de costume. 
Se esses mestres e instrutores brasileiros ficam com raiva da sucessão de eventos que está logo ali no horizonte, eles não têm ninguém a não ser a si mesmos para culpar. Eles deviam ter questionado seus próprios motivos para virem aqui como instrutores profissionais de capoeira, em primeiro lugar. Se você oferece algo a outros e espera manter o controle sobre como eles usam, bem, isso é pura tolice e possivelmente má-fé. A reação que tenho visto freqüentemente de diversos mestres brasileiros (o que de maneira alguma se aplica a todos) quando confrontados com a idéia de não-brasileiros tendo seus próprios grupos e escolas é explodir em explicações sobre falhas individuais e/ou falar em chutar os rabos deles (muito profissional…). Parece haver muito poucos mestres brasileiros com visão e discernimento para no mínimo modificar suas agendas e tratar dessa questão, como é claramente necessário.
Essa ocorrência de quebra do monopólio aconteceu com outras artes aqui na América do Norte. Um bom exemplo é o que aconteceu com o Aikidô. Os mestres japoneses nos EUA agressivamente controlaram o estabelecimento na América do Norte por anos, até que a estrutura do poder “virou de cabeça para baixo” (isso parece ser uma metáfora muito comum nessa arte, o que é compartilhado com a capoeira). Um grupo de aikidokas (praticantes de aikidô) americanos com anos de experiência sentiu que estava sendo negado a eles o acesso às graduações mais altas e então, como é freqüentemente o caso de rebeldes e revolucionários, eles coletivamente se desligaram e começaram a sua própria organização de Aikidô. Em poucos anos, sua organização se tornou tão grande que efetivamente tirou dos japoneses o monopólio do aikidô nos EUA, e através de seus próprios esforços, criou um elo direto com a principal organização de aikidô no Japão. 
As várias organizações japonesas e americanas agora coexistem, e a situação se amenizou bastante. Há histórias similares sobre praticamente todas as artes marciais que entraram nos EUA. Uma vez que você compartilha uma forma de arte com outra cultura em larga escala, é difícil e possivelmente errado esperar manter controle completo sobre como a arte é absorvida pela nova cultura. Novas formas e idéias vão surgir, quer você queira ou não. Eu percebo que isso é considerado blasfêmia, e que muitos dos estudantes mais antigos que são completamente dedicados a seus mestres vão chiar com as minhas palavras, achando que minhas idéias são repreensíveis. Entretanto, esse fato não está em suas mãos também, e eles têm ainda menos a dizer sobre isso do que seus mestres. São todos aqueles estudantes que se sentiram barrados, explorados, abandonados e então pularam fora, ou aqueles que não tiveram contato com instrutores qualificados, é que vão causar a eventual revolução em todos os estilos de capoeira num futuro próximo. Nesse momento exato, essas pessoas facilmente ultrapassam em número os estudantes que treinam com um instrutor nos EUA. 
Eles podem ser muito dedicados ou ser relaxados, mas coletivamente têm muito poder e influência. Há também um interesse crescente vindo dos praticantes de vários outros sistemas de artes marciais para incluir desde um “chute de capoeira” em seus métodos até a inclusão da capoeira como um sub-sistema inteiro em sua arte marcial. Artes marciais nos EUA representam um grande negócio. Uma das minhas linhas de trabalho é como instrutor para a Escola Internacional de Dublês, organização baseada nos EUA. Estou em contato constante com uma gama de instrutores de artes marciais “bem-sucedidos” em todo o país. Muitos desses instrutores tem centenas, se não milhares de estudantes nessas organizações enormes, e mantêm conexões através da indústria de saúde e entretenimento. Como eu sou um dos poucos contatos com a capoeira que eles têm, recebo comentários freqüentes de como a capoeira tem se tornado popular aos seus olhos. 
Tenho sido convidado por organizações de artes marciais e de combate simulado em todo o continente para fazer demonstrações em seus eventos e ministrar workshops como instrutor de capoeira. Como um dublê, me sugerem constantemente que eu envie meu currículo devido às minhas habilidades como capoeirista. A indústria do entretenimento está acordando para o fato de que a capoeira é extremamente rentável, e esse reconhecimento certamente vai causar um impacto extenso e imprevisível na arte. Capoeira é muito atraente, e mesmo em sua forma mais modesta ela fascina o observador. Ela vende. Olha lá!
O Contra-Mestre Pererê (Eric Johnson) é graduado pelo Mestre Nô, e mantém em Seattle uma filial do Grupo de Capoeira Angola Palmares.

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