Carybé – retratando o Brasil

Carybé não era nem argentino nem italiano. Era um homem de muitas cores, absorvendo todas elas, assim como o faz o preto na escala cromática. Pintava negros, índios e brancos.Quando partiu para outra viagem, disseram que foi fazer arte no céu. É provável que um dia desses, ao acordarmos e olharmos para as nuvens, encontremos nelas grandes baianas com seus tabuleiros ou negros jogando capoeira. Pode ser também que todo o céu se transforme numa imensa aquarela ou que o arco-íris mude de cor. Para quem veio de longe mostrar ao povo da Bahia a beleza desta terra, nada é impossível. Nem mesmo ser Obá de Xangô. E em se tratando de tão alto posto na hierarquia dos orixás, nada mais adequado que despedir-se saudando seu orixá-regente: KAWÓ-KABIYÈSILÉ!!!

Biografia

Hector Júlio Parude Bernabó – Carybé – nasceu dia 9 de fevereiro de 1911, em Lanús, Provincia de Buenos Aires. Aos 6 meses muda-se para Itália com seus pais Constantina e Eneas e seus quatro irmãos, onde permanece até os oito anos. Em 1919, veio de navio para o Rio de Janeiro e instalou-se no bairro de Bomsucesso. Em 1927, inicia seus estudos na Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro, a qual abandonou no segundo ano e voltou para Argentina, em 1929, para trabalhar no jornal “Notícias Gráficas”, em Buenos Aires. Entre 1935 e 1936, trabalhou com Júlio Cortazar no jornal “El Diário”. Em 1937 mudou-se para o jornal “Prégon” que o mandou para Salvador com um projeto ambicioso: fazer uma reportagem com Lampião. Só que ele teve que se contentar em desenhar as cabeças do “rei do cangaço” e seus capangas, já então decapitadas. O jornal, porém, fechou durante sua estada em Salvador e durante um ano Carybé viajou de ita (navio) por várias cidades do litoral norte chegando até Belém; depois voltou para o Rio de Janeiro e, de lá, para Buenos Aires.

Sua família morava no Rio e ele já tinha no currículo trabalhos em publicidade para jornais de lá, de São Paulo e de Buenos Aires, além de ter pintado muitos cartazes de rua. Já se considerava um “branco suspeito”, como dizia. Ouvira dizer que sua família (mãe gaúcha, pai italiano) havia uma tia preta que até fumava cachimbo. Sua morenização parecia uma fatalidade.

Em 1939, realizou sua primeira exposição coletiva com o artista Clemente Moreau, no Museu Municipal de Belas Artes de Buenos Aires e ilustrou o livro “Macumba, Relatos de la Tierra Verde”, de Bernardo Kordan. Em 1940, faz ilustrações para o livro “Macunaíma”, de Mário de Andrade, e o traduz para o espanhol juntamente com Raul Brie. Em 1941, desenha o “Almanaque Esso”, cujo pagamento lhe permite fazer uma longa viagem para Montevidéu, Corumbá, Cuiabá, visitando os garimpos de Pochoréu, Lageado e Cassununga, Uberaba, Pirapora, Juazeiro da Bahia, até Salvador onde passa alguns meses.
De lá, visitou o Norte o Nordeste passando por Juazeiro do Norte, Fortaleza, Belém, Manaus e depois até a Bolívia para então retornar a Buenos Aires.

Em 1943, realizou sua primeira exposição individual na Galeria Nordiska em Buenos Aires. Em 1950, a convite do Secretário da Educação, veio para a Bahia para trabalhar e passou a residir em Salvador. Durante sua carreira, Carybé participou de mais duzentas exposições individuais e coletivas em museus e galerias de arte da Europa, Estados Unidos, Canadá, África, Brasil, Japão, China e diversos países da América do Sul e Central, ilustrou dezenas de livros, e realizou murais para instituições como, entre outras, o Memorial da América Latina, American Airlines no Aeroporto Kennedy de Nova York e Banco da Bahia.

Com uma carta do escritor Rubem Braga ao então secretário de Educação da Bahia, Anísio Teixeira, em 1950, Carybé arrumou o emprego que pediu a Deus: desenhar cenas baianas. “Foi a sopa no mel. Nunca mais fui embora. A Bahia tem tudo que um pintor procura: luz, água e mar aberto. A gente vê o corpo humano funcionando”.

Quando morreu do coração, no dia 1 de Outubro de 1997, durante uma sessão num terreiro de candomblé, em Salvador, ele já era tão baiano quanto um outro estrangeiro, o etnólogo francês Pierre Verger, havia sido em vida. O artista plástico sofria de uma insuficiência respiratória crônica que provocou a parada cardíaca, a qual o matou.

Obra

Retratista fiel das tradições, crenças e costumes do povo baiano, Carybé projetou em sua arte os fundamentos da nação brasileira, na qual se misturam o negro, o índio e o branco. Desprezava a mitificação de seu trabalho, dizendo que “rabiscar papel e pintar telas não são atos de criação”. Resumidamente, contentava-se em afirmar: “Eu copio a vida”.

Desenhista brilhante, Carybé pertence à mais depurada crônica visual da Bahia, que tanto pode ser vista nos desenhos que criou para os livros de Jorge Amado quanto na vasta galeria de tipos de deuses do candomblé. Amante da vida, foi tocador de pandeiro, bom dançarino e contador de histórias. Seu maior orgulho foi ser Obá de Xangô.

Certamente, por isso, que as cenas da religião afro ocupam boa parte da produção deixada por ele. Dono de uma vasta obra, na qual se estimam cerca de 5.000 trabalhos, entre pinturas, desenhos, esculturas e esboços, com poucos golpes de pincel, ele era capaz de resumir a forma de baianas prostradas de joelhos com magníficos círculos coloridos.

Suas obras fazem parte do acervo das mais respeitáveis instituições, como o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque; Fundação Gulbenkian, de Lisboa; Museus de Arte Moderna da Bahia e São Paulo e Fundação Raymundo de Castro Maya, no Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, os trabalhos de Carybé não pararam de se valorizar e ele passou a viver só de arte. “Um quadro meu vale 10.000 dólares”, orgulhava-se ele, no começo de 1997, embora alguns possam chegar a até 30.000. Para ele, não tinha muita importância. “A economia é a peste negra. Nada sei sobre ela”, dizia.

Das muitas atividades que desempenhou no Brasil, algumas gostava de citar como curriculares, a exemplo de pandeirista do Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda, e ilustrador das obras de Jorge Amado, do qual era fraternal amigo desde que passou a morar na Bahia. Foi parceiro de Paulo Vanzolini, autor de capas de livros de Gabriel García Marquéz, ilustrador de inúmeras obras e autor do mural do Memorial da América Latina, em São Paulo. No decorrer da vida, o artista mingau foi muito pouco premiado – primeiro lugar em desenho numa bienal de São Paulo e por duas vezes sala especial em outras bienais. Gostava de pintar, mas não de ficar expondo, “emoldurar quadros, fazer catálogos, dar entrevistas, essas coisas aborrecidas”.

Para ele, a única coisa insuportável na vida era ficar parado, esperando um estalo de criatividade. “Inspiração é besteira”, dizia.

Candomblé

Adotando a natureza típica da terra, o pintor integrou-se suavemente ao candomblé, a religião dos negros iorubás, fazendo-se filho de Oxóssi e presidente do Conselho dos Obás no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, da Mãe Stella.

Acima de tudo, no entanto, tinha o título de Obá de Xangô, o posto mais alto dado pelo candomblé, seu maior orgulho. “Sou amoroso e devoto da religiosidade afro-brasileira, de seus deuses modestos e humanos, que hoje se defrontam com estes deuses contemporâneos, terríveis e vorazes, que são a tecnologia e a ciência”, dizia.

Segundo o amigo, o escritor Jorge Amado, Carybé foi como um observador de dentro, envolvido com a religião, que ele se dispôs a retratar. “Outros podem reunir dados frios e secos, violentar o segredo com as máquinas fotográficas e, com os gravadores e fazer em torno dele maior ou menor sensasionalismo, a serviço dos racismos diversos, mas apenas Carybé e ninguém mais poderia preservar os valores da religião da Bahia”. Nancy, sua esposa durante 50 anos, costumava contar que o marido era um homem de tanta fé que jamais levava papel ou lápis para as cerimônias.

Achava falta de respeito. Guardava tudo de cabeça e desenvolveu uma memória visual fora do comum.

Temas de Candomblé

Jornal do Commercio – Recife, 03 de outubro de 1997

Temas de Candomblé
por CARYBÉ

(Apresentação do livro homônimo, com 27 desenhos de Carybé. Editado pela Coleção Recôncavo, da Livaria Turista, de Salvador, Bahia, em 1951, com tiragem de 1500 exemplares autografados pelo autor.)

“Depois do meio-dia começa. A sombra escala trabalhosamente muralhas de fortes e conventos, barrancos, ladeiras e buracos, ganha terreno às pressas e antes que o vintém do sol acabe de se deitar detrás de Itaparica ela já moureja nos fundos, verdes e doces vales da Bahia.

Os fifós vão abrindo quadros familiares na escurama. Jantares servidos, retratos de casamento, máquinas de coser e gente, muita gente, fazendo coisas, representando a vida nos pequenos teatros das janelas e portas iluminadas. Já a sombra vitoriosa comeu o verde das bananeiras, as ribanceiras vermelhas, os pés de jaca, os coqueiros, a gente. Só ternos brancos e vestidos mal-assombrados sobem e descem as ladeiras sem gente dentro, ou cachorros silenciosos como que voando na noite e, detrás do samba do alto falante do armazém, o baticúm dos atabaques rola-rum, rumpí, lé, rum-rumpilé, rum, rumpí, lé.

Subiu um foguete de três estalos e muitas cores. Oxóssi já está farejando caça debaixo dos cajueiros e das cajás. Não são árvores da terra dele não mas já acostumou. Passa o bonde saudando também com faíscas verdes e estrondo de ferralha. Rum, rumpí, lé, estoura outro foguete. Outro orixá desceu. “Atotô, meu pai Omolú, me livre deste reumatismo que amarra meu pé. Sou ganhador, meu pai!” E Omolú, dono das pestes e da bexiga, murmura, detrás das palhas que lhe cobrem o rosto, o remédio. Seiva de folhas e raízes ou água de sereno e sucos vegetais e o pé de tio Artur volta a suportar balaios imensos, camas, malas, tudo…

A cidade gorda, farta de cacau e fumo está debruçada sobre o mar, fingindo não saber de nada, tomando a fresca, vendo a lua se escamando na maré de enchente. E se fosse outra noite, se fosse uma noite de trovoada, por uma boca tiraria ladainhas a Santa Bárbara e pela outra cantaria para Iansã, bonita como o que, enfrentando os coriscos com seu alfange na mão. Dançando ao som dos pipocos; que não tem medo de relâmpago, nem de egúns do outro mundo. Ela dança levando na cabeça o fogo que roubou a Xangô enquanto a chuva derrete o barro vermelho que vira sangue vale abaixo até ir tingir o começo do mar.

Rum, rumpí, lé.

Exú fazendo coisa. Entrando nos sobradões do Pelourinho e saindo no “baton” de “rouge” da mocinha da Barra, rindo de suas estrepolias, gozando nós todos, apressando os fins-de-mês. Mas não é mau, não: um galo, pinga e um pouco de farofa e fica sensibilizado, desfaz qualquer perversidade e chega a ficar com pena do que fez.

Rum, rumpí, lé e agogô de som agudo, e muito perfume, e espelhos, e pentes bonitos, e sedas, jóias e o que há de bom para Oxúm que mora no Dique.

Qualquer morador do Tororó ou da Usina já a viu sobre as águas verdes. As lavadeiras lhe cantam de cócoras, esfregando a sujeira dos outros, refletidas de cabeça para baixo dentro dágua que nem figuras de baralho. Muitas delas são suas filhas, e não há quem duvide vendo-as subir majestosas debaixo de trouxas enormes, o vestido molhado grudando no corpo, as ancas de cabaça moendo safras inteiras de samba. Ela escolhe as mais bonitas, as mais dengosas para descer aos terreiros.

Orayeyêo! Uma roxa e outra cor de formiga, duas oxúns passam, nada quer dizer o vestido de chita desbotada nem a bacia na cabeça. Não estão vendo? São deusas. Deusas da água. Da água verde do dique do Tororó.

Vitorina, Raimunda, Chica, fritam acarajé, vendem bolos, fato, cocada, mingau e são deusas também. Rum, rumpí, lé. E os Orixás descem, de dia ou de noite, tanto faz. Vem Ogúm o guerreiro; Oxalá, velho, imaculado, cajado acabando em pássaro, na mão trêmula; Iemanjá tangendo espumas, cheirando a mar; Obaluaê transformando a febre e as convulsões em danças terríveis, belas no mistério da palha roxa que lhe cobre a figura.

Há muita confusão aqui, senhor! Os sinos badalam nas torres cor de osso, São Lázaro come pipocas, há anjos de madeira com asas de arara e oxês escuros empapados de azeite. Incenso, mirra, ouro e munguzá; ouro nas farofas e nas enlouquecidas naves barrocas, mirra e incenso não faltam, estão no ar transparente, nas brisas que vêm de tão longe, no aromado passar de uma creoula.

E há paz nos largos pátios de azulejo, paz na sombra vertical dos arvoredos encantados, na água das quartinhas, na luz imensa da Bahia, luz a prumo que soca de sombra fresca os velhos portões de pedra, luz do meio-dia, a hora do Cão.”

Morre Carybé

Jornal do Commercio – Recife, 03 de outubro de 1997

Bahia não tem mais a leveza de Carybé
Agência Estado

SALVADOR – O artísta plástico argentino Hector Bernabó, o Carybé, de 86 anos, radicado na Bahia desde a década de 30, foi sepultado às 11h30 de ontem no cemitério Jardim da Saudade. Cerca de 150 pessoas acompanharam a cerimônia marcada pela emoção. O escritor Jorge Amado, amigo íntimo de Carybé, passou meia hora no velório mas não ficou para o sepultamento por recomendação médica. Ele sentiu-se mal na noite de qarta-feira, quando participava de uma reunião no terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, situado no bairro de São Gonçalo do Retiro na periferia de Salvador. Foi levado para o Hospital Roberto Santos onde morreu de ataque do coração.

Carybé, que na Bahia significa um mingau dado a mulher parida, era amigo de farra de alguns “baianos fundamentais” como o escritor Jorge Amado, o etnólogo Pierre Verger e o pintor Calazans Neto. Embora fosse considerado um dos artistas mais talentosos de sua geração, nunca se preocupou em ganhar dinheiro com seus quadros, através dos quais retratava a Bahia, seus personagens e os orixás.

Ele ilustrou livros de Guimarãs Rosa (entre os quais Grande Sertão: Veredas) Jorge Amado e seu último grande trabalho foi o conjunto de gravuras que serviu de base para as novas vinhetas da TVE da Bahia, lançadas no ano passado. Foi a primeira vez que ele trabalhou com a televisão e confessou-se maravilhado com o resultado. “Misturaram meus desenhos colocaram na maquína e eles saíram andando, dançando, pulando”, disse na época dando sua interpretação particular para a animação obtida pelo computador.

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