Em riba do espinhaço vaqueiro era rei

Em riba do espinhaço vaqueiro era rei
Dentro do cangaço ele era doutor
Do gibão, do punhal, da peixeira, o senhor
Fuzil papo-amarelo, madeira de lei
Acaba com a festa gritando “cheguei”
Ele rasga de faca quem queira tretar
Com o gado que é sua função levar
Pras bandas depois das fazendas do leste
Não perde uma rês, esse cabra da peste
Tocando a boiada prá beira do mar

E vem Samuel, de Deus o Querido

E vem Samuel, de Deus o Querido
Desce da jangada, entra na função
No meio da roda, chamada de mão
Em volta o coro, que canta florido
Um olho no céu, ele faz seu pedido
O outro no cabra na roda a gingar
Pede proteção ao santo prá jogar
Com esse caboclo que está sua frente
Não teme general, soldado ou tenente
Lá na capoeira na beira do mar

Caboclo danado que entra na roda

Caboclo danado que entra na roda
Que pula e que gira, tem parte com o cão
Que faz pirueta no pé e na mão
Com chapéu quebrado e com roupa da moda
Tem gente que gosta e tem quem discorda
Do jeito que o homem chega pra jogar
Do balanço mexido que seu corpo dá
Do riso, da graça, do ar de canalha
Do lenço de seda, do fio da navalha
Lá na capoeira na beira do mar

João Mina quer ver Muleque Bimba na boa capoeiragem

Publicado originalmente no jornal Estado da Bahia, em 15 de março de 1948

A notícia divulgada pelo Diários Associados de que o mais famoso capoeirista baiano, Muleque Bimba, que dirige uma escola dessa briga, tornada nacional, pretende vir ao Rio fazer exibições públicas dos nove cortes que inventou, causou sensação entre os profissionais da defesa pessoal. Existe mesmo urn movimento para que se efetive a vinda de Muleque Bimba, o sexagenário que ensina a muitos moços de sua terra os golpes sinistros da capoeiragem, sabendo-se até que já foi seu aluno o hoje deputado Juracy Magalhães.

Entre nós, João Mina é o mais velho dos três últimos remanescentes da já remota época das batucadas e capoeiragens que até o primeiro quartel deste século pertubaram a ordem e a tranqüilidade públicas. Tem mais de sessenta anos o preto velho e arrasta seus atuais pesados dias ali pelo Estácio.

Está aqui neste seu criado, diz João Mina para o repórter numa tendinha do morro. Um negro que fazia batuque e capoeira no morro da Favela, que é o lugar que nasceu o samba no Rio.

Batuque quem fazia era negro de macumba, negro bom de santo, bom de garganta e, principalmente, bom de perna para tirar outro da roda. Tinha batuque todo dia na favela, com a negrada metendo a perna e jogando parceiro no chão, até a polícia chegar. Aí, então, como num passe de mágica, a batucada virava samba, entrando as mulheres dos batuqueiros na roda. Homem não dançava samba. Samba é nome de filha de santo, mas todo mundo de fora que subia o morro procurando mulher, dizia que ia ver samba e por samba ficou a dança que elas dançavam e que era batuque mais mole e bem remexido. Era coco.

Assim que apolícia saía, o batuque continuava e os batuqueiros entravam duro na capoeiragem. Pobre do moleque que cochichasse quando o batuqueiro cantasse:                                          

Olha a banda                                                                  
Olha a banda                                                                  
Negro da ronda                                                                

Podia contar que ia levar uma banda jogada, quer dizer, uma rápida e violenta pernada que o atirava fora da roda, principalmente se tivesse mulher boa perto dele. Mas se o muleque saísse dessa, o batuqueiro sem perder o ritmo do batuque emendava:

Batuqueiro novo                                                              
Dava um baú
Pra não perder o amô…

A banda jogada passava pra banda de frente e o batuque soltava logo um baú no parceiro, atirando o muleque no chão, pelas costas.

Outro corte ruim de defender, pra batuqueiro novo, era a tiririca, quando o mestre cantava:

Tiririca é faca de cortar                                                       I
Quem não pode não intimida
Deixa quem pode intimar…

Um pé ficava no chão e outro subia virando com força no pé do ouvido do parceiro. Mas a capoeiragem tinha muitos cortes ruins. Tinha o dourado, a encruzilhada, tinha o rabo de arraia….

Sim, João Mina, o fulminante rabo de arraia…

Pois é, meu filho, o rabo de arraia…

Os outros que ouviam, reverentes, a palestra do velho João Mina, fizeram um sinal negativo para o repórter. O homem da tendinha serviu umas doses de cachaça e João Mina continou:

Batuqueiro bom brincava na frente do fandango e caninha verde, no Carnaval, abrindo ala como se faz hoje diretor de corda de escola de samba. Batuqueiro bom brincava de noite na Praça Onze de Junho, que já foi reduto enfezado de gente do morro.

Um dia, os batuqueiros da Favela tiveram uma arrelia. Houve então, uma separação. Os grandes ficaram na Favela e os outros foram para o morro de Santo Antônio. Casaca de Bronze, capoeira de respeito e capanga de político, uma noite, ninguém sabe porque, nem por ordem de quem, botou fogo em tudo quanto era barracão do morro de Santo Antônio e fugiu, fugiu que até hoje não se sabe notícias dele.

A negrada que ficou sem barraco no morro de Santo Antônio foi toda para o morro da Mangueira, os homens fazendo batuque e as mulheres sambando. O lugar onde eles levantaram os barracos ficou sendo chamado o Santantoinho de Mangueira. Depois é que vieram para a Estação, Querosene, Salgueiro. Apareceu o samba mesmo, quando Epitácio Pessoa mandou mudar o mulherio da Glória e da Lapa para a Cidade Nova.                      

Mas por aí, Sampaio Ferraz e Alfredo Pinto tinham dado cabo de muito batuqueiro, de muito moleque de capoeiragem. Isso de escola de samba é coisa nova, coisa boa, de preto, político trabalhador, que não quer mais saber de malandragem, nem de pernada.

João Mina rematou:

Pois é menino, eu tinha vontade de ver esse tal Muleque Bimba, para me lembrar dos velhos cortes do meu tempo… Será que ele briga mesmo?

Descemos o morro e Tancredo Silva, que apesar de moço, é o terceiro dos remanescentes, disse-nos:

Bernardo Sapateiro faltou ao encontro. Ele, que é daquele tempo, ia contar porque João Mina não quis falar do rabo-de-arraia.

Você não sabe ?

Dizem que numa batucada na Praça Onze, num carnaval, João Mina deu um rabo de arraia num sujeito e ele morreu ali mesmo. João Mina foi para a detenção e ficou na sombra uns anos. Quando voltou, trouxe a cuíca e nunca mais quis saber de batucada. Era só cuíca. E a batucada virou samba. Depois, Edgard trouxe o tamborim.

Na rua do Estácio, Tancredo Silva ainda disse:

Olha, menino, João não falou que, quando o batuque enfezava, os batuqueiros cantavam:

É ordem do Rei pra matar.
É ordem do Rei pra matar.

E o rabo de arraia comia solto até morrer o parceiro que estava condenado pela negrada. Essa ordem do Rei entre os batuqueiros vem do tempo em que o Brasil era Reinado, e que a capangada tinha ordem para acabar com os pretos que conspiravam.

Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 6 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Caiçara: Os mestres da Bahia não agradou, [???] de mim. Ah, é. Ele não bota roda de capoeira depois que [???] a mim nem a polícia. Eu boto é cinquenta conto nas pedras de lá, e com outros eu quebro o boné. O meu filho saiu com o outro boné meu, quebro o boné, boto a bengala assim. Aí quando eu chego, aí pode entrar, ficar na roda. Eu tenho uma corda que eu boto, e o pessoal não fica. Nem a polícia acaba. Ave Maria, a roda grande. Ninguém joga dinheiro em roda de capoeira. Ninguém joga. Dinheiro, não. Agora, trabalho, de canto. Tudo é trabalho, antes de vadiar. Vou ali dentro dar uma palavra…

Mestre Matiole: Amanhã vai ter mais oportunidade…

MC: É… Já pode acabar com essa parte de acobracia da capoeira, da capoeira acobracia. Negócio de acobracia não existe.

MM: Não gosta não, mestre ?

MC: Não, acobracia não. Gosto de ver sabe o quê ? É autenticidade. Ciência, destreza, malícia, agilidade. Acobracia…

MM: O senhor fala que a capoeira é uma só…

MC: É, angola ! Autêntica. A capoeira só existe uma, angola é angola. Não brinque que eu meto a bengala em você. Não dê risada não, rapaz. Você é feio e eu sou bonito. Hehehe.
[conversa inaudível]

MC: Entendeu agora o [???] ? Mas nem que fosse mestre de capoeira. Então [???] não ensinaram ele como mestre, vamos apoiar. Mas não que ele fosse mestre.

[Mestre Caiçara cantando]

A Capoeira e o Navio de Teseu

Conta uma lenda grega que após derrotar o Minotauro, monstro com corpo de homem e cabeça de boi, o herói Teseu saiu da ilha de Creta em um navio, levando os jovens atenienses que teriam sido devorados pela fera.
Segundo o historiador grego Plutarco, “o navio com que Teseu e os jovens de Atenas retornaram de Creta tinha trinta remos, e foi preservado pelos atenienses até o tempo de Demétrio de Falero, porque eles removiam as partes velhas que apodreciam e colocavam partes novas, de forma que o navio se tornou motivo de discussão entre os filósofos a respeito de coisas que crescem: alguns dizendo que o navio era o mesmo e outros dizendo que não era.”
A mesma questão se traduziu em diversos outros momentos da história da humanidade:
Segundo Heráclito, é impossível que um homem entre duas vezes em um mesmo rio – porquê o rio nunca é o mesmo, está sempre mudando.
Platão descreveu uma situação em que hipoteticamente, ele e Sócrates começaram a trocar partes de suas carruagens. A cada dia, Platão pegava uma parte de sua carruagem, e substituía por uma parte da carruagem de Sócrates. Sócrates fazia o mesmo com a sua. Em dado momento, todas as peças da carruagem de Platão estavam na carruagem de Sócrates, e vice-versa. Eles trocaram de carruagem, ou não ? Se sim, a partir de que ponto a troca aconteceu ?
Locke falou sobre a meia que tem um furo. A meia é remendada com um pedaço de tecido. Mais adiante, aparece outro furo, que é remendado com outro pedaço. Ao longo do tempo, todo o material do qual é feito a meia, é trocado por pedaços de outros tecidos. Ainda é a mesma meia ?
Também fala-se sobre o machado de George Washington. A ferramenta teve o cabo substituído três vezes, e a lâmina duas – e ainda assim, era o machado de George Washington…
E a capoeira ? Cada mestre, cada praticante, acrescenta um pouco de si à capoeira ? Ele troca um nome de um golpe ? Ele canta uma música um pouco diferente ? Ele tem uma crença um pouco diferente da do seu mestre, e a passa para a próxima geração ? Isso pode ser considerado “trocar as tábuas do navio” ? Não que essa parte da capoeira estivesse podre, mas um novo conhecimento foi agregado, uma nova versão da tábua…
De acordo com o sistema filosófico de Aristóteles e seus sequidores, há quatro causas ou razões que descrevem uma coisa; estas causas podem ser analisadas para conseguir uma solução ao paradoxo.
A causa formal diz respeito à forma da coisa, enquanto a causa material se refere à matéria da qual a coisa é feita. O “o que é isso” de uma coisa, segundo Aristóteles, é sua causa formal. Então o Navio de Teseu é o mesmo navio, porque sua causa formal não mudou, ainda que que o material usado para construí-lo tenha variado ao longo do tempo.
Da mesma maneira, para o paradoxo de Heráclito, um rio tem a mesma causa formal, apesar de a causa material (a água do rio) mudar com o tempo, e consequentemente mudar para a pessoa que entra no rio.
Outra das causas de Aristóteles é a causa final, entendida como o propósito da coisa. Todas as “versões” do navio de Teseu teriam o mesmo significado mítico (de terem transportado Teseu) e político (de convencerem os atenienses de que Teseu existiu realmente), ainda que que a sua causa material mudasse com o tempo.
A causa eficiente é dada por como e por quem uma coisa é feita. Por exemplo, como os artesãos fabricam e montam alguma coisa. No caso do navio de Teseu, os trabalhadores que construíram o navio pela primeira vez, poderiam ter usado as mesmas ferramentas e técnicas para trocar todas as tábuas do navio, e ele ainda seria o mesmo.
Há outras abordagens ao problema, mas eu gostaria de tomar a aristotélica para derivar o meu raciocínio.
Sobre a causa formal da capoeira – a forma da arte é corporificada por nós, jogadores. Mas cada jogador é único, e manifesta a capoeira de um jeito só seu. Quando um mestre ensina a alguém a gingar, ele usa o seu jeito de gingar, e o aluno desenvolve o jeito dele. Por mais que vejamos gente “gingando igualzinho”, “jogando igualzinho”, e digamos que existem “robôs” e “clones” na capoeira, na prática nenhum jogador joga igual a outro. Vai haver sempre um trejeito diferente, algo que ele aprendeu com fulano, outro algo que aprendeu com beltrano, e quando tudo isso é cozido junto, sai um jogo só dele.
Pois bem, se aprendermos de ver, de treinar, e principalmente de jogar, não estamos trocando as tábuas da nossa capoeira ? Quem viu o vídeo do Mestre Pastinha jogando, percebe que o jogo dele era só dele – e nenhum dos alunos joga sequer parecido. Para onde foi esse jogo ? Hoje em dia, nas rodas, vê-se muito o “pula sela” ou “pula carniça”: o jogador salta por cima do outro, como na brincadeira infantil de mesmo nome. O movimento não era comum até alguns anos atrás, mas a tábua foi trocada.
Sobre a causa material, a capoeira é “feita” de pessoas. E cada pessoa é mutável, passageira. As nossas opiniões variam de dia para dia, de hora para hora – não somos feitos de pedra. Pessoas morrem, e outras pessoas assumem seus lugares no navio da capoeira – alguns são tábua de proa, outros são tábua de popa, alguns são remos. Mas todos são substituídos com o tempo.
Sobre a causa final, e provavelmente a que mais mudou e muda. A capoeira foi arma de libertação de um sistema escravagista explícito. Foi mecanismo de ascenção social para os capangas de políticos. Foi massa de manobra da monarquia contra a república. Foi demonstração de virilidade e valentia. Foi ferramenta para a definição do Estado Novo por Getúlio Vargas. Foi definidora do alicerce do movimento de resistência da cultura negra. Foi embaixadora do Brasil para o mundo. Foi âncora para tirar pessoas do crime. Foi academizada. Foi alvo de repressão. Foi utilizada para educação de portadores de necessidades especiais. Foi instrumento de reintegração de idosos. Foi ? Na média, pode-se dizer que ainda é, para muitas das características listadas.
Sobre a causa eficiente, talvez seja a mais complexa de se definir nesse contexto – e ao mesmo tempo a mais simples. A capoeira não é estática, como manifestação cultural alguma o é. Ela não está pronta, encontra-se em constante construção. Por mais que se conceba uma capoeira cristalizada, cujos movimentos e/ou seqüências são conhecidos, se analisarmos friamente, tudo o que o corpo consegue fazer, num contexto de jogo/roda, pode ser visto como capoeira.
Todo capoeirista é um dos artesãos que construiu e constrói a capoeira diariamente. O que se chama de “tradição”, também muda diariamente – às vezes devagar, às vezes depressa. O conhecimento transmitido oralmente tende a crescer, se estender: mesmo que lendas antigas não desapareçam, novas lendas surgem. Capoeiristas viram lendas, pequenas lendas que seja, ao vencerem essa ou aquela demanda. E a história deles é mais uma tábua no navio – sequer substitui uma tábua velha, ela é simplesmente mais uma tábua.
O navio da capoeira teve (e tem) suas tábuas trocadas e re-trocadas conforme convém a alguns, ou ao período histórico. Ou mesmo involuntariamente…. Ela é ainda o mesmo navio ?
Para encerrar, um trecho do livro “Last chance to see”, de Douglas Adams:
Eu me lembro de uma vez, no Japão, ter ido visitar o Templo do Pavilhão Dourado em Kyoto, e ficar surpreso em como ele tinha resistido bem à passagem do tempo desde que fora construído no século XIV. Me disseram que ele não tinha resistido bem de jeito nenhum, e que tinha de fato sido queimado até o chão duas vezes só neste século.

– Então este não é o prédio original ? – Perguntei ao meu guia japonês.
– Sim, claro que é – ele insistiu, surpreso com a minha pergunta
– Mas ele não foi queimado até o chão ?
– Sim
– Duas vezes
– Muitas vezes
– E reconstruído
– Claro que sim. Ele tinha sido queimado.
– Então como pode ser o mesmo prédio ?
– Ele é sempre o mesmo prédio.

Eu tive que admitir para mim mesmo que esse era de fato um ponto de vista perfeitamente racional – apenas partia de uma premissa inesperada. A idéia do prédio, a intenção dele, seu projeto, todos são imutáveis e são a essência do prédio. A intenção dos construtores originais é que sobrevive. A madeira da qual o projeto é construído apodrece e é trocada quando necessário. Ficar preocupado demais com os materiais originais, que são meras lembranças sentimentais do passado, é falhar em ver o prédio vivo em si mesmo.
Axé,
T.