Gentil do Orocongo

Gentil e seu instrumento raro: satisfação por ser reconhecido depois de 40 anos de dedicação ao orocongo.

Gentil do Orocongo – Compondo o som do choro humano

por Julia Berutti

Florianópolis ­ Um instrumento raro, vindo da África, incorpora a musicalidade da Ilha de Santa Catarina e participa do Encontro com a Dança e a Músicas Brasileiras, hoje e amanhã, no teatro do Sesc Ipiranga, em São Paulo. Gentil Camilo Nascimento Filho, 58 anos, o Gentil do Orocongo, apresenta-se no espetáculo “Orocongo, Rabeca e Violino”, junto com Antônio Nóbrega, idealizador do evento, José Eduardo Gramani (conhecido pesquisador da rabeca), Mestre Paixão e Siba. O Encontro com a Dança e a Música se estende até 1º de agosto.

“É uma satisfação a gente persistir por 40 anos num instrumento meio esquecido e de repente ser reconhecido”, diz Gentil. Ontem, na véspera de sua partida, ele se dizia “eufórico”, mas parecia tranqüilo frente à primeira viagem de avião e ao fato de ser o único representante de Santa Catarina num evento que reúne músicos de todo o País. Ficou visivelmente preocupado somente quando soube que voltaria na segunda-feira: “Quem vai ficar no meu lugar na escola?” Atualmente, Gentil trabalha como vigia em uma escola básica estadual da comunidade de Mont Serrat, no Morro do Antão.

Natural de Siderópolis, zona mineira do Sul do Estado, Gentil veio ainda criança para Florianópolis, onde se instalou com a família na comunidade de Mont Serrat. Na Capital, ele dedicou-se à pesca e apaixonou-se pelo som que vinha da casa vizinha, onde morava Raimundo, filho de um cabo-verdiano (do arquipélago africano de língua portuguesa). Era o orocongo. Gentil, que nunca estudou música, aprendeu com Raimundo a tocar de ouvido e a fazer o próprio instrumento. Recentemente, fabricou um orocongo a partir do repenique a pedido da escola de samba Copa Lord.

Gentil tira todo o tipo de música do orocongo. Seu repertório valoriza as canções locais ­ “Rancho de Amor à Ilha”, de Zininho, e “Vou Botar Meu Boi na Rua”, do Engenho ­, passa por “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, e vai até as origens com as modinhas que aprendeu com o vizinho: “Ah, ah! Fruta do conde/ castanha do Pará/ a fruta que eu mais gostava/ que nesta terra não há”. Hoje, é um dos únicos conhecedores do instrumento.

Na década de 80, Gentil foi “descoberto” por Alan Cardoso, irmão do artista plástico Max Moura, que participava do grupo Pandorga, de Valdir Agostinho. O som plangente do instrumento abre a faixa-título do disco “Vou Botar Meu Boi na Rua”, do grupo Engenho. O redescobrimento e o convite para participar do encontro em São Paulo veio com o professor e pesquisador Paulo Dias. Em Florianópolis, Dias gravou cenas de Gentil tocando orocongo para um projeto do CD-ROM “Vozes do Brasil”, da editora Ática. O público catarinense vai ter oportunidade de ver Gentil do Orocongo na programação inaugural do Espaço Cultural Embratel, no tributo a Cruz e Sousa, terça-feira, a partir das 19h30.

O INSTRUMENTO

O som do orocongo assemelha-se ao choro humano. Na forma, parece um violino rústico. Com apenas uma corda, tocado por um arco e apoiado na altura do diafragma, o orocongo é confeccionado com a casca de coco ou com o fruto do porongo (também conhecido regionalmente por catuto). O braço é de madeira. Originalmente, a corda do arco era feita de crina de cavalo, e a do instrumento, de tripa. O músico Marcelo Muniz, um dos fundadores do grupo Engenho e diretor de Música da Fundação Catarinense de Cultura, afirma que o orocongo se propagou pela África junto com a religião islâmica, mas não deu origem a nenhum instrumento moderno por ser muito sensível: rico em microtons sem sons intermediários.

“Há similares na China”, diz Muniz. Motivado pela curiosidade pessoal, o músico pesquisa o instrumento desde que conheceu Gentil Nascimento, há 18 anos. Ele conhece pelo menos mais duas variações da denominação do orocongo: urucungo, no Nordeste (em iorubá significa “existe nele um buraco” e é o nome antigo do berimbau), e até aricongo, em Florianópolis. Segundo Muniz, é muito difícil precisar a difusão do orocongo no Brasil. “Deve ter outros casos isolados como o de seu Gentil.”

Como toda história que se difunde oralmente, a chegada do orocongo a Florianópolis tem aura de lenda. Lembrado somente como “Cabo Verde”, o antepassado do professor de Gentil teria chegado junto com um baiano de jangada na Barra da Lagoa, praia do Leste da Ilha, no final do século passado. Os náufragos resolveram morar na Ilha, e Cabo Verde foi cuidar da barragem que existia no Morro da Lagoa da Conceição. Diz a lenda que vivia com três mulheres e teve 36 filhos. Com o colega de naufrágio e o avô do artista Valdir Agostinho (seu Zé), Cabo Verde formou um trio que animava as festas da época: ele no orocongo; o baiano no pandeiro; e seu Zé no violão de doze cordas.

Orocongo, goje, ko

Navegando um bocadinho à procura de atabaques palongo, eu esbarrei no goje – um tipo de violino (ou viola de cabaça) bem parecido com o orocongo
Palongo
Yusufu Olatunji tocando goje
Goje
Lendo um pouquinho sobre o goje na Wiki, vi que um dos nomes para o instrumento é n’ko – e aí fiz uma ponte: quando assisti “Raízes“, uma das coisas que me deixou encucado foi que os descendentes do Kunta Kinte sabiam algumas palavras de mandinka. Uma delas era “ko”, que significa… “violino” 🙂
Na época, achei estranho a palavra para descrever o instrumento ocidental – nunca tinha parado para pensar que havia um violino mandingo… Volta do mundo.

Sobre a capoeira olímpica

Acho que a maior dificuldade de se implantar uma “capoeira olímpica” está na determinação de um vencedor – algo que todo esporte preconiza: um jogo tem que ter um ganhador e um perdedor, e uma maneira objetiva de contar pontos para decidir quem é quem. 
Entre os esportes reconhecidos pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) estão várias lutas: judô, taekwondo e greco-romana (já são olímpicas), karate, sumô e wushu (são reconhecidas, mas ainda não são olímpicas).
Eu me pergunto o que os mestres do taekwondo se perguntaram quando viram sua arte passar a “contar pontos”. Mas por outro lado, o taekwondo é uma arte de combate explícito – até onde eu sei, não existe um “jogo” de taekwondo. Então o pulo de luta para esporte fica “fácil”.
Particularmente, eu acho que a capoeira não tem nada a ganhar sendo olímpica. “Reconhecimento”, o judô e o karate já tinham, muito antes de serem “olimpizados”. A capoeira tem que ser reconhecida pelo que ela é: expressão cultural de um povo (o brasileiro), de raiz negra, capaz de criar cidadania e auto-respeito em qualquer outro lugar do mundo em que seja bem ensinada.
Por outro lado, acho que a capoeira tem a perder sendo olímpica: na metodização do ensino, que pode até acelerar o aprendizado, mas que tolhe a espontaneidade; na introdução de regras explícitas do que pode e do que não pode; na figura dos mestres velhos que certamente serão postos para escanteio com mais uma vitória da educação física acadêmica sobre a cultura popular. 
Acho que o capoeirista olímpico tem a perder, pessoalmente. A mandinga não se formata, não se regra, não se mede com nenhuma régua ou balança. O jogo de capoeira não tem sempre um vencedor – às vezes tem dois, às vezes não tem nenhum. E todo mundo que está em volta sabe quem é quem, mesmo sem ter juiz para contar pontos…
No final das contas, acho que é cada macaco no seu galho: acredito até que a capoeira olímpica possa existir, mas perderá sua raiz, deixará de ser a capoeira que admiro. Ela que fique lá no seu tatame, tablado, ringue, arena, octágono, sei lá como vai se chamar. Eu prefiro ficar nas ruas, praças e terreiros, esquentando o chão batido, o cimento ou o asfalto.

“Continuaremos lutando para que a capoeira seja adotada como nossa representante cultural”

Mestre Sena

Publicado originalmente no jornal APM, em outubro de 1984
P: Como é que nasceu esta sua paixão pela Capoeira?
R: A minha paixão pela Capoeira foi à primeira vista, quando em 1949. com apenas dezessete anos de idade, fui levado pelo grande capoeirista Adib Andraus a presenciar uma demonstração do Mestríssimo Mestre Bimba, na Sociedade Israelita, no Desterro.
P: O fato de seu filho ter implantado uma Escola de Capoeira na Argentina significa que a sua família acompanha o seu devotado trabalho à causa da Capoeira?
R: Que a nossa família acompanha a capoeira, não há dúvida, em razão de que eu, diuturamente, há três décadas, me ocupo quase que exclusivamente da Capoeira, para que ela exista em estado significante. Mas o fato de o meu filho Yoji ter instalado uma escola na Argentina não contou com o nosso beneplácito em razão de o mesmo não ter seguido convictamente o nosso trabalho quando entre nós morava. A iniciativa dele, guardando as devidas proporções, foi mais ou menos parecida com a de todos aqueles que vêm ensinando a nossa Arte Marcial fora do Brasil, por razões de sobrevivência.
P: Há muita gente se intitulando “Mestre de Capoeira” por aí. Inclusive, em Rio, São Paulo, Brasília e até nos Estados Unidos há aqueles que se propalam “mestres”, embora realizem um trabalho passível de questionamentos, até mesmo um desserviço à Capoeira. Como você se sente, com o título de “Mestre” que ostenta?
R: Em primeiro lugar, queremos declarar que a palavra “mestre”, na área da Capoeira, perdeu o seu verdadeiro significado. Eram considerados “Mestres”, nas rodas empíricas de Capoeira, aqueles que assim eram aclamados por decisão do meio onde militavam. E essa aclamação vinha geralmente da postura Moral e Brava que os mesmos assumiam e demonstravam perante os demais. O exemplo maior desta postura foi Manuel dos Reis Machado, o Bimba.
Hoje qualquer tocador de berimbau ou pseudo-instrutor, sem tradição na roda, e sem nenhuma contribuição ao equilíbrio ou progresso da Capoeira, se intitula “Mestre”. Destacam-se no cenário do Brasil, e na Bahia, aqueles que preservam a Arte Marcial Brasileira, enriquecendo-a com uma mentalização cívica e filosófica genuína.

Não podemos deixar de citar os Mestres Canjiquinha, Gato, Caiçara, ]oão Pequeno, Bigodinho, João Grande, Atenilo, Clarindo e o Grande Mestre Waldemar da Liberdade, que criou uma real orquestra de berimbau. Fora desses mestres, há muitos impostores, que se servem da Capoeira, ao invés de servi-la. A quem interessar possa, para evitar o desgaste e a apropriação indébita do título de “Mestre”, fizemos editar um manual no ano de 1980 no qual sugerimos um conjunto de parâmetros que, mediante um balizamento pré-estabelecido, possibilite aos que o mereçam, o honroso dignificante título.
P: Que papel desempenhou Mestre Bimba em sua vida?
R: O Mestríssimo Mestre Bimba desempenhou um grande papel na formação de minha personalidade, principalmente pelos ensinamentos que adquiri com o mestre na aplicação da Capoeira como filosofia de vida. Infelizmente, até hoje, Mestre Bimba só foi analisado sob o aspecto belicoso que foi, sem dúvida, uma parte primorosa de sua vida capoeirístíca. É necessário, contudo, que se faça uma ligação maior entre Mestre Bimba e a Capoeira como um todo, pelo muito que se enriqueceram mutuamente e ofereceram ou vêm oferecendo à cultura popular. E esta é uma dívida que cabe a nós resgatar.
P: Nota-se que você é muito mais Mestre Bimba que Mestre Pastinha. Inclusive acha você que mestre Pastinha foi usado por determinados intelectuais baianos de renome. Como situar na história da capoeira baiana essas duas figuras de proa?
R: Mestre Bimba é para a capoeira o que foi Pelé para o futebol, Jesse Owens para o atletismo, Cassius Clay para o boxe. Todos eles se negaram a fazer concessões que descaracterizassem os seus ofícios, embora fossem profundos estilistas e inovadores. Mestre Bimba foi um revolucionário da capoeira, que pode ser considerada como tendo vivido três momentos históricos fundamentais: o da Escravatura, o da República e o de Mestre Bimba. Pode-se comparar afigura de Mestre Bimba à altivez do João Cândido, ao denodo de Martin Luther King, à persistência de Gandhi, à renúncia e idealismo de Rondon. Dois fatos confirmam esta personalidade extraordinária do Mestre Bimba; o primeiro fato foi a negativa dada ao convite feito para que integrasse a Guarda Pessoal do Presidente Vargas, quando a isto o convidaram em pleno Palácio da Aclamação. Ao invés de buscar a glória, preferiu a sua independência, altivez, de que tanto se orgulhava. O segundo foi a sua ida-protesto para Goiânia, recusando-se a regressar à Bahia mesmo estando à beira da indigência. Mestre Bimba não se acomodou, foi um Martinho Lutero da Capoeira. Já o Mestre Pastinha praticou uma Capoeira de alta qualidade técnica, até a idade provecta, mas foi um conservador astuto, e que agradava àqueles que tencionavam folclorizar a Capoeira. A estes Mestre Bimba não deu vez, com receio, inclusive, de ser manipulado.
P: Afinal, por que os dois nomes de “Capoeira Regional” e “Capoeira de Angola”? Tratam-se da mesma capoeira, ou há diferenças básicas?
R: Embora até mesmo muitos envolvidos com a Capoeira não o saibam, o nome de Capoeira Regional nasceu antes do nome “Capoeira de Angola”. O nome Regional foi dado por Mestre Bimba que, no seu raciocínio, entendeu que, tendo ele dado uma dinâmica nova, como a criação de um método de ensino, a formatura de alunos, o uso de um traje para eventos comemorativos, a criação de novos movimentos, tirando a Capoeira das ruas e das esquinas para as salas, deveria caracterizar o seu trabalho como “Capoeira Regional Baiana”. Já o Mestre Pastinha, contrapondo-se a Mestre Bimba na adjetivação, batizou a Capoeira com o nome de “Capoeira de Angola”. E aí foi que muita gente se enganou, pensando que em Angola existe Capoeira. O que não é verdade.
P: Vamos então esclarecer esta dúvida. Há muito professor ensinando por aí que a Capoeira nasceu na Africa. E há autores famosos que espalham esta versão. Afinal, a Capoeira é originária da Africa ou da Bahia?
R: Muitos se equivocam ao dar à Capoeira, como terra de origem, a África. O certo é dizermos que a Capoeira foi criada por africanos mas já em solo brasileiro, no período colonial. Tudo criado em termos de defesa pessoal, já que sofriam variadas perseguições. Sem dúvida que os escravos trouxeram de sua terra um sistema de movimentação corpórea – batuque – que ofereceria as bases de adestramento e possibilidades físicas. A partir desse dado cultural, aperfeiçoado na imitação dos animais encontrados em nossas matas (macaco, onça. raposa e aranha), e aguçado pelo instinto de defesa, sobrevivência e resistência ante as capturas, o negro fez brotar a Capoeira.
P: Nota-se a ascensão de artes marciais alienígenas como judô,  karatê e outras, em detrimento da Capoeira, um esporte e luta genuinamente baiano e brasileiro. Qual a sua posição diante deste fato?
R: Não se trata de ascensão das Artes Marciais alienígenas. O que ocorre é uma submissão de nossa parte à qualidade que acompanha esses esportes, diante de nossos filhos, em termos de apresentação, de infra-estrutura. Elas já vem organizadas em todos os sentidos, enquanto a nossa Capoeira não se agiganta. Há muitos achando que se já existem métodos de defesa pessoal (mesmo não nos favorecendo plenamente, por atender a um homem de outra cultura) devemos alienar-nos e a ela nos adaptarmos. A nossa humilde posição é a que venho assumindo há três décadas em todo o Brasil, lutando para apresentar a nossa Capoeira metodizada, ordenada, treinada espartanamente, como acontece com as Artes Marciais alienígenas. Em um confronto com essas Artes a Capoeira se revela, em termos de Defesa Física, profundamente rica, com recursos inigualáveis.
P: Já que estamos tratando desse assunto, qual a diferença básica entre a Capoeira t as artes marciais mais difundidas no Brasil?
R: Filosoficamente, na sua ação física, a Capoeira coincide com o Judô, pois ambos têm como fator básico de uso, ação e sustentação, o deslocamento do centro de gravidade do elemento humano. No aspecto de aplicaçâo o Judô leva vantagem pois a ação de desequilíbrio deste é realizada através do sistema de alavanca. Os capoeiristas devem, por sua vez, recorrer à inteligência, pois em nossa ação desequilibrante falta um ponto de apoio. E se tenta o desequilíbrio por meio do gingado e da manha, para em frações de segundo aplicar-se o golpe decisivo. Os judokas trazem como frase símbolo “ceder para poder vencer”, enquanto os capoeirístas aceitam como máxima “recuar para poder derrotar”. O Karatê tem em comum com a Capoeira o deslocamento corpóreo, máxime se o karateka é baiano ou carioca. Mas enquanto a Capoeira e o Judô são artes de derrubar, o Karatê é a arte de quebrar. Enquanto, tal qual o taikendô, de origem coreana, a Capoeira atua em círculo, o karatê ataca e defende em linha. Mas o taikendô é também uma arte de quebrar, diferençando-se da Capoeira e do Judô.
P: A multiplicação de escolas de Capoeira não só na Bahia como em outros estados (São Paulo, Rio, Goiás), e até mesmo nos Estados Unidos, não o deixa satisfeito?
R: Isto só nos deixa tristes, pois essas escolas estão proliferando sem compromissos maiores com a verdadeira Capoeira. Cada professor levanta uma bandeira pessoal na forma de praticar e interpretar a Capoeira. Quase todos eles fazem concessões que prejudicam a imagem da Capoeira como força representativa da cultura e história brasileira. Anticivicamente a maioria desses professores reduz a Capoeira, mercantilizantemente, ao nível de folclore. E com o transplante da Capoeira para os “mui amigos” norte-americanos, estamos na iminência de a Capoeira vir a perder a sua nacionalidade. Pois caso a Capoeira agrade, como dizem que está agradando por lá, logo aparecerão grandes empresas ou fundações que se encarregarão de formalizar a Capoeira, sem considerações maiores com o seu dinâmico e criativo processo histórico-cultural. A título de exemplo, vejamos o que eles conseguiram fazer com o futebol, de repente o Cosmos estava cobrando uma fortuna para jogar no país tricampeão do mundo…
P: O que você acha do ensino da Capoeira, atualmente, no Brasil? Uma revista de grande circulação nacional mostrou professores de capoeira vestidos com roupas balofas e coloridas, como se estivéssemos no Caribe. Nota-se uma grande desinformação da genuína Capoeira em fotos de golpes inexistentes e na emissão de conceitos errôneos a respeito da Capoeira. Isto não preocupa o Mestre Sena?
R: A nossa grande luta, sem fronteiras, é justamente no sentido de tentar evitar a agressão cultural que a Capoeira vem sofrendo. Quanto à revista a que você se refere (inclusive um semanário de grande circulação nacional), endereçamos à mesma uma correspondência protestando contra o absurdo apresentado. Como discípulo do Mestríssimo Mestre Bimba, aprendi a não fazer concessão alguma em prejuízo da Capoeira. E é ridículo o uso de uma outra roupa, hoje, na Capoeira, que não o Abadá. No entanto, as roupas balofas, as camisas de meia e os Jeans têm sido usados largamente por muitos que se dizem corifeus da Capoeira.
P: Como explicar a prevalência do Sudeste brasileiro no que toca à Capoeira? Rio e São Paulo continuam dando as cartas até mesmo em termos de um assunto que eles assimilaram às vezes de forma grotesca e acomodatícia?
R: É isto aí. Assimilaram a Capoeira e usam-na de forma grotesca, acomodatícia e de forma desonesta, tanto histórica como culturalmente. E tomam parte nesse processo Federações e Confederações que através de pelegos esportivos, sem qualquer interesse pelo bem pátrio, por vaidade e mercantilização, terminam por usar a Capoeira de forma espúria.
P: Qual o seu papel na oficialização da Capoeira corno esporte pela Confederação Nacional de Desportos (cnd)?
R: De tanto insistirmos, através dos mais diversos expedientes, junto a diversos segmentos do governo, vimos os nossos esforços coroados de êxito: através do mEc, o cnd resolveu considerar a realidade da capoeira, sancionando-a como esporte. Mas como não poderia deixar de ocorrer, aconteceu a infelicidade de o seu processo ser endereçado à Federação Baiana de Pugilismo, à qual a Capoeira foi agregada. E aí faltou competência para a interpretação devida do parecer do relator, o general Jair Jordão Ramos. Parecer este formulado em 1973. O parecer frisava a necessidade de se constituir um grupo de trabalho que viesse dar a forma e o conteúdo ao novo e oficializado esporte. E por isso até hoje a Federação Baiana de Pugilismo se põe a promover competições oficiais com regulamentos de Escolas de Samba, Maracatu e Bumba-Meu-Boi.
P: Como está o Senavox e quais os seus plano para que as suas idéias consigam ser melhor escutadas em defesa da capoeira?
R: O Senavox, instituição por nós fundada em 25 de outubro de 1955, tem como finalidade precípua e exclusiva a defesa da Capoeira como esporte-luta do povo brasileiro. Uma idéia nossa já foi escutada, a sua oficialização teórica como esporre, em parecer do ministro Jair Jordão Ramos. Editamos também um anteprojeto normativo, que enviamos a várias entidades esportivas, culturais e sociais na esperança de que possa, o mais breve possível, ser discutido. 

Este ano ainda, ou no início do próximo, esperamos poder editar dois trabalhos com os quais queremos esclarecer à opinião pública e alertar às autoridades de que a Capoeira encerra em si uma profunda relevância quanto à sua prática e desenvolvimento, um aliado inestimável no amálgama das características de um povo culturalmente rico, inteligente, criativo, forte e destemido. Os nomes desses trabalhos são “Achismo” e “Defesa”. O primeiro explica a posição ambígua em que se colocam os militantes de nossa Arte Marcial perante a verdade. O segundo é uma série de protestos e esclarecimentos endereçados especialmente a órgãos de comunicação do sudeste, pelo (ato de virem colocando erroneamente a Capoeira perante os olhares ávidos de nossos jovens, o que é um desperdício cívico Temos também prontos mais 11 trabalhos, dos quais dois são técnicos, e que esperamos editar em dezembro do próximo ano, ao completarmos 30 anos fechados de uma guerra que não é só minha mas de todo brasileiro que teima em não fazer concessões no que se refere à sua realidade cultural.
P: Não acha você que a criação dessas entidades que visam preservar a Capoeira como elemento forte na cultura nacional é uma utopia? Poderão dar frutos sem uma mudança radical na política do esporte baiano e até nacional?
R: A única entidade que conhecemos com essa finalidade chama-se Centro de Pesquisa, Estudos e Instrução da Capoeira Senavox. E não a consideramos uma utopia. Além de confiarmos em uma mudança na política esportiva brasileira, confiamos que o nosso trabalho de semeadura produzirá os frutos esperados. Além do mais é minha filosofia de vida lutar com unhas e dentes por aquilo que considero justo e verdadeiro.
P: Quais os seus trunfos para que a sua voz se torne mais audível?
R: A transformação dos nossos trabalhos em livros e a sua viabilidade em os editarmos para que sirvam de subsídios aos órgãos de governo, principalmente nos setores de Educação e Cultura, é uma nossa meta. Continuaremos lutando para que a Capoeira seja adotada como nossa representante cultural, da mesma forma que as Artes Marciais do Oriente representam os seus países de origem.

A sua capoeira é você

“A sua capoeira é você, não existe nada fora de você na capoeira. Durante o jogo, você exterioriza só os seus reflexos, seus apetites, sua personalidade integral – desprovida da maioria dos preconceitos. Essa ambiguidade da capoeira permite a quebra de todos os bloqueios, porque deixa de existir toda a super-estrutura social, cultural, educacional que nos impede de nos manifestarmos. Todos os complexos, e a pessoa fica livre; livre como um anjo, livre como o vento. E como o vento, ela é a expressão da verdade.”

Angelo Augusto Decanio Filho

“Mais do que eu nunca vi ninguém jogar”

Mestre Waldemar

Entrevista realizada pelo Programa Nacional da Capoeira, do MEC, em 1990
Aprendi capoeira em 1936 em Piripiri. e me chamo Waldemar Rodrigues da Paixão. Tive quatro mestres. A todos eles eu pedi para ensinar e aprendi. Sempre amei muito esse esporte de Capoeira Angola. Em 1940 eu peguei a ensinar aqui na Pero Vaz. Tive muitos alunos e ainda tenho muitos vivos. Outros estão mortos. O primeiro mestre que foi para o Rio de Janeiro fui eu, no show de Dorival Caymmi. Depois tive um convite para ir cantar capoeira na Rádio Tupy. Fui muito elogiado no Rio de Janeiro, e eles queriam até que eu ficasse morando para ensinar aos mestres de lá. Mas eu amo muito a Bahia e não quis ficar. Aí eu vim continuando ensinando e jogando. Até 1963 eu joguei muita capoeira, tive muito orgulho no meu saber. Hoje eu tô doente e tô velho, tenho 71 anos de idade. Mas nunca perdi pra ninguém em roda de capoeira.
Tenho muitos camaradas, como Itapoan. Aristides, João Pequeno, amigos meus, João Grande e outros mestres. Eles me dão muito valor mas eu não tenho esse valor mais porque estou doente. Mas sou conhecido como o “rei do berimbau”. Ainda fabrico e sei ensinara tocar.
Barulho eu nunca tive com ninguém, porque eu sempre fui respeitado, nunca ninguém me desafiou. Se me desafiava para jogar, mestre que aparecia aqui a minha cabeça é que resolvia. Era problema certo. Tenho orgulho ainda na minha garganta, de gritar minhas ladainhas. Canto amarrado da capoeira angola. Isso eu não achei quem cantasse mais do que eu. Ainda não achei. Se mulher pariu homem, pra cantar não se cria. Eu tirei um disco pra Suassuna mas não saiu como eu tinha vontade que saísse. E eu estimava cantar uma capoeira pra vocês apreciar. Pra vocês verem minha voz. Porque na capoeira em primeiro lugar o toque do berimbau, segundo o canto. É muita coisa e eu me esqueço, porque eu tenho andado por fora de capoeira, não tenho mais prazer pra isso.
Tive quatro mestres: Siri de Mangue, um; Canário Pardo, dois; Talavi, três e Ricardo de Ilha de Maré, quatro. Mas eu pedi a esses homens pra me ensinar para eu poder ficar profissional. Pra eu dizer que sabia, e sei mesmo. Aprendi capoeira. Capoeira eu sei demais. Eu só não aprendi foi fazer menino de duas cabeças.
Primeiramente um bom berimbau tocando. Três berimbaus: um berra-boi, um viola e um gunga. Depois, agora nessa moda nova, apareceu o atabaque, mas eram três pandeiros, três berimbaus e um reco-reco. E o instrumento que acompanha o berimbau, para ajudar o berimbau, o caxixi e tinha o agogô. Depois que colocaram o atabaque em roda de capoeira, mas não tinha isso.
Outra coisa, essa pintura de berimbau quem inventou foi eu. O berimbau era com casca. Os capoeiristas daqui, os mestres, faziam berimbau com casca. O arame era arame de cerca, não era arame de aço. Depois eles queimavam o pneu e tiravam aquele arame enferrujado, quebrava. Eu inventei abrir na raça pra sair cru. Peguei fazer berimbau envernizado. Peguei fazer berimbau em branco, como Tabosa vai levando aí. Depois eu inventei pintar e passei a fazer berimbau pintado. Sou conhecido nisso.
A roda na Liberdade era no ar livre, perto do arvoredo. Eu fazia o ringue na sombra e botava a rapazeada pra jogar. Depois eu fiz um barracão de palha grande, e tudo quanto era capoeirista da Bahia vinha pro meu barracão ali. E fui muito elogiado por Carybé, Mário Cravo, Odorico Tavares, essa gente toda me procurava aqui. Um dia, o primeiro livro sobre mim que saiu foi “Recôncavo brasileiro”, que Carybé escreveu mais Mário Cravo. E aí fui ganhando nome. No Rio de Janeiro eu estava no hotel quando Dorival Caymmi me chamou pra eu cantar na rádio Tupy, pra eu tirar uma cantiga elogiando o Rio. Eu sentado na cama, os meus alunos estavam dormindo, eu estudei e no dia seguinte eu cantei uma ladainha bonita. Fui elogiado bastante. Tem outras coisas, mas eu esqueço…
Zacarias foi meu aluno de 1942. Outros foram José Cabelo Bom, um preto por nome Nagé, que juntaram cinco homens pra matar ele. Tive um aluno que só batia berimbau, mas era bom, apelidado Pernambuco. Tenho dois alunos aí. Estão bons ainda. E o Cabelo Bom é tio daquele menino que eu tô ensinando. Mas ele não quer aprender a jogar não. Só quer bater berimbau.
Nas minhas rodas não tinha barulho porque quando eu chegava, tomando uma cerveja assim, quando eu cantava, a rapazeada vinha tudo render obediência assim. Me respeitavam muito, os meus alunos. E não tinha barulho, porque eu olhava pra eles assim, eles vinham pro pé de mim e ninguém brigava. (…)
O segredo dos valentões era uma camisa curta com a barriga pro lado de fora e a calça com a boca chamada boca de sino, que cobria o bico do sapato. Ali era homem valente. Eles usavam arma, mas chegavam no bar e pediam para guardar. Navalha e facão de dois cortes.
Tinha uns que usavam a navalha na cabeça e jogavam com o chapéu. Comprava um chapéu na loja, e não fazia ziguezague na copa, nada. Da forma que vinha eles usavam. Chapéu era canoado, copa redonda, que era a navalha presa com uma tira de borracha. Eu jogava de chapéu, mas não usava nada. Eu não quis usar essas coisas não. Sempre eu quis ficar fora de zoada, de barulho (…) Então esse valor eu tenho at[e hoje. Todo mundo me aprecia, todo mundo gosta. Chega aqui de ponta a ponta, não tem quem fale de mim, em assunto nenhum. Sei tratar todo mundo bem, não maltrato pessoa nenhuma
Quem terminou de aprontar Traíra fui eu. Ele tirou onze anos e seis meses, ele era assassino. Matou um homem por causa de uma mulher. Quando ele saiu da cadeia veio me procurar. Eu tava com uma roda de capoeira, na ocasião em que Otávio Mangabeira estava se candidatando ao governo da Bahia. Ele aí me tomou por compadre e disse que eu ia acabar de aprontar ele, e aprontei. Jogava demais. Era uma serpente no chão.
Mais do que eu não vi ninguém jogar. Mas vou dizer a você, uns que já morreram: Barbosa, Onça Preta – esse tá no Rio, velho mas tá vivo – Eutíquio, pai de Gato Preto, Daniel jogava capoeira mas não era essa coisa toda. Maré era solteiro, jogava capoeira mas só sabia jogar capoeira, não tocava berimbau, não cantava, não fazia nada. Samuel Querido de Deus era bom mas era solteiro[1] também. Só de jogo. Ficava esperando você pular pra ele dar uma cabeçada. Quando você queria forrar ele não queria mais jogar. Era crocodilo.
Eu morava em Piripiri e um irmão meu, que lá doente também de derrame, apelidado por Homem Mau, mas era Lourival Rodrigues da Paixão, mora em Plataforma, tá vivo, não morreu ainda. Então ele disse: “Meu compadre – eu andava triste porque tinha vindo pra aqui,  não conhecia ninguém, aí ele disse – “tem uma capoeira no Estica no Largo do Tanque”. Aí eu vim, fui pra lá com um berimbau bom, e meu irmão falou pra eles deixarem eu tocar e cantar um bocadinho. E o Pastinha estava forte ainda, mas não era mestre de capoeira. Ele era o presidente da capoeira. O mestre da capoeira do finado Pastinha chamava-se Aberrê, era um preto. Quando Aberrê faleceu de repente, de colapso, tava cheio de mestre na capoeira, eu perguntei pra ele um dia: “Pastinha, quem é que você vai tirar pra ser mestre aí?” Ele disse: “Waldemar, aqui não tem mestre. O mestre vai ser todo mundo”. E eu disse que ele tinha que tirar um mestre bom pra botar na capoeira. E eu já tava mestrando capoeira na Liberdade. Sempre ele me convidava pra eu passear lá. Ele disse: “Tem muito mestre, mas eu vou te falar a verdade: o mestre vou ser eu mesmo”. Ele era presidente da capoeira. Prova é que ele não tocava berimbau, não tocava. Ele era pintor de parede. Ele faleceu e deixou alunos melhores do que ele.
Ele era considerado presidente da capoeira. Aí é que ficou João Pequeno, João Grande, eles é que são bom. Pastinha era defeituoso. Você chegava na roda dele, ficava frequentando, e ele dizia que você era aluno dele. Eu nunca tive esse defeito e nem tenho. Quando eu disser “é aluno meu” é por que eu ensinei e posso ensinar e sei..
O presidente da capoeira é que, quando tem uma viagem, ele é que arma aquele grupo. Tem que comprar camisa, ele é que toma a frente pra comprar. É diferente. Ele fazia esses negócios todo. Ele ia pro Rio e São Paulo e ganhava o dinheiro dele. Quando os alunos pediam, ele dizia “você ganhou nada”. “Você não foi calçado, não foi de avião, não dormiu no hotel, não comeu bem, não tá aprendendo?” Não dava nada. E eu, tudo o que eu ganhava eu dividia com meus alunos.
E quando eu estava bebendo cerveja, e saía aquele dinheiro na roda, eu dizia ao juiz que ficava com o apito mudando os pares dos rapazes: “Divida lá com vocês, bebam, façam o que vocês quiserem. Não quero é barulho”. Depois apanhava minha nêga e ia pro cinema.
O finado Traíra é que tomava conta da roda. Eu chegava lá, dava minha ordem e ia tomar minha cerveja. Eu estava feito.
Eu gostava de jogar lento, pra saber o que eu faço. Pelo meu canto você tira. Eu canto pra qualquer menino desse jogar, e ele joga sem defeito. Para os meus alunos eu digo que vou cantar e eles já sabem o que eu quero: São Bento Pequeno. É o primeiro toque meu. Para o outro tocador eu digo: “de cima para baixo”, e ele sabe que é São Bento Grande. Para a viola eu digo: “repique”, e ele bota a viola pra chorar.
Se me agarravam, eu dizia: não me pegue que eu não saou toalha. Não me suje não. Eu jogava com roupa branca, sapato da cor de leite. Calça de linho tremendo. Eu só sujava meus dedos, dava salto, fazia e acontecia. Mas tudo no mundo se acaba, só não o amar a Deus.
E ensinava na roda, mas tinha os dias de treino. Eles estavam jogando e eu fazia sinal pra fazer tesoura, fazia sinal pra chibatear. Fazia sinal pro outro abaixar…
O golpe que eu mais gostava era o rabo de arraia. No jogo, quando a gente vê que vai pegar, a gente recolhe. Olhe, eu dei um rabo de arraia em Caiçara, num aniversário… Tem muitos anos, ele tava com a roda dele e eu levei aminha. Dei um rabo de arraia em Caiçara, se ele não bate com aquela barriga no chão eu arrancava o pescoço dele com o sapato. Meu sapato era um sapato branco, dois dedos de borracha. Dei-lhe um rabo de arria… Todo de couro, sapato forte,bom. E outra, Caiçara onde eu estou ele me respeita. Ele diz que quando eu canto ele se arrepia todo.
O finado Aberrê cantava muito. Eu achei um cantador de capoeira aqui, que agente emendou os bigodes. Ele tinha uma voz como a minha. Até o pessoal dizia que ele parecia comigo, o finado Barboso, do Cabeça. Cantava muito, tocava muito e jogava muito. Um cachoeirano. Era bom mestre. 
Quando o sujeito tá jogando pra aleijar o outro, o juiz não deixa, imitante a jogo de bola. O juiz toma conta da roda, muda os pares, quando o sujeito está jogando violento, ele separa, se não obedece ele tira fora da roda. O mestre não se mete naquilo. O mestre é quem está ensinando a turma toda.

[1] Provavelmente, a transcrição da palavra “solteiro” foi erro do entrevistador. O termo usual para descrever capoeiristas que ficam apenas aguardando um vacilo do outro é “sopeiro”

História da Donzela Teodora

(cordel por Leandro Gomes de Barros)

Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela

Houve no reino de Túnis
Um grande negociante
Era natural da Hungria
E negociava ambulante
Uma alma pura e constante

Andando um dia na praça
Numa porta pôde ver
Uma donzela cristã
Para ali se vender
O mercador vendo aquilo
Não pôde mais se conter

Tinha feição de fidalga
Era uma espanhola bela
Ele perguntou ao mouro
Quanto queria por ela
Entraram então em negócio
Negociaram a donzela

O húngaro conheceu nela
Formato de fidalguia
Mandou educá-la bem
Na melhor casa que havia
Em pouco tempo ela soube
O que ninguém mais sabia

Mandou ensinar primeiro
Música e filosofia
Ela sem mestre aprendeu
Metafísica e astrologia
Descrever com distinção
História e anatomia

Ela que já era um ente
Nascida por excelência
Como quem tivesse vindo
Das entranhas da ciência
Tinha por pai o saber
E por mãe a inteligência

Em pouco tempo ela tinha
Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria
Um igual conhecimento
Cantava música e tocava
A qualquer um instrumento

Estudou e conhecia
As sete artes liberais
Conhecia a natureza
De todos os vegetais
Descrevia muito bem
A castra dos animais

Descrevia os doze signos
De que é composto o ano
Da cabeça até os pés
Conhecia o corpo humano
E dava definição
De tudo do oceano

Admirou todo mundo
O saber desta donzela
Tudo que era ciência
Podia se encontrar nela
O professor que ensinou-a
Depois aprendeu com ela

Mas como tudo no mundo
É mutável e inconstante
Esse rico mercador
Negociava ambulante
E toda sua fortuna
Perdeu no mar num instante

Atrás do bem vem o mal
Atrás da honra a torpeza
Quando ele saiu de casa
Levava grande riqueza
Voltou trazendo somente
Uma extrema pobreza

Só via em torno de si
O vil manto da marzela
Em casa só lhe restava
A mulher e a donzela
Então chamou Teodora
E pediu o parecer dela

Disse ele: minha filha
Bem vês minha natureza
E sabes que o oceano
Espoliou minha riqueza
Espero que teus conselhos
Me tirem desta pobreza

Ela quando ouviu aquilo
Sentiu no peito uma dor
E lhe disse, tenha fé
Em Deus nosso salvador
Vou estudar um remédio
Que salvará o senhor

E disse: meu senhor saia
Procure um amigo seu
É bom ir logo na casa
Do mouro que me vendeu
Chegue lá converse com ele
E conte o que lhe sucedeu

O que ele oferecer-lhe
De muito bom grado aceite
E veja se ele lhe vende
Vestidos que me endireite
Compre a ele todas as jóias
Que uma donzela se enfeite

Se o mouro vender-lhe tudo
Com que possa me compor
Vossa mercê vai daqui
Vender-me ao rei Almançor
É esse o único meio
Que salvará o senhor

El-rei lhe perguntará
Por quanto vai me vender
Por dez mil dobras de ouro
Meu senhor há de dizer
Quando ele admirar-se
Veja o que vai responder

Dizendo alto senhor
Não fique admirado
Eu vendo-a com precisão
Não peço preço alterado
Dobrada esta quantia
Tenho com ela gastado

É esse o único meio
Para a sua salvação
Se o mouro vende-lhe tudo
Descanse seu coração
Daqui para o fim da vida
Não terá mais precisão

O mercador seguiu tudo
Quando a donzela ditava
Chegou ao mouro e contou-lhe
O desespero em que estava
Então o mouro vendeu-lhe
Tudo quanto precisava

Roupa, objetos e jóias
Para enfeitar a donzela
As roupas vinha que só
Sendo cortada pra ela
Ela quando vestiu tudo
Parecia ficar mais bela

O mercador aprontou-se
E seguiu com brevidade
Falou ao guarda da corte
Com muita amabilidade
Para deixá-lo falar
Com a real majestade

Então subiu um vassalo
Deu parte ao rei Almoçor
O rei chegou a escada
Perguntou ao mercador:
— Amigo qual o negócio
Que tem comigo o senhor?

Então disse o mercador
Sem grande humildade:
— Senhor venho a vossa alteza
Com grande necessidade
Ver se vendo esta donzela
A vossa real majestade

O rei olhou a donzela
E disse dentro de si:
Foi a mulher mais formosa
Que neste mundo já vi
Trinta ou quarenta minutos
O rei presenciou ela ali

Perguntou ao mercador:
Por quanto vendes a donzela?
Por 10 mil dobras de outro
É o que peço por ela
E não estou pedindo caro
Visto a habilidade dela.

Disse o rei ao mercador:
— Senhor, estou surpreendido
Dez mil dobras de ouro
É preço desconhecido
Ou tu não queres vendê-la
Ou estás fora do sentido

Disse o mercador: El rei
Não é caro esta donzela
Dobrado a esta quantia
Gastei para educar ela
Excede a todos os sábios
A sabedoria dela

O rei mandou logo chamar
Um grande sábio que havia
O instrutor da cidade
Em física e astronomia
Em matemática e retórica
História e filosofia

Esse veio e perguntou-lhe
— Donzela estás preparada
Para responder-me tudo
Sem titubiar em nada?
Se não estiver seja franca
Se não sai envergonhada

Então ela respondeu-lhe
— Mestre pode perguntar
Eu lhe responderei tudo
Sem cousa alguma faltar
Farei debaixo da lei
Tudo que o senhor mandar

O sábio ali preparou-se
Para entrar em discussão
Ela com muita vergonha
Ela não teve alteração
Pediu licença a El-rei
E ficou de prontidão

— Diz-me donzela o que Deus
Sob o céu primeiro fez
Respondeu o sol e a lua
E a lua por sua vez
É por uma obrigação
Cheia e nova todo mês

— Além do sol e a lua
Doze signos foram feitos
Formando a constelação
Sendo ao sol todos sujeitos
Desiguais na natureza
Com diversos preconceitos

Como se chama esses signos?
Perguntou o emissário
A donzela respondeu:
— Capricórnio e Aquário
Tauro, Câncer, Libra, Virgo
Pisces, Escórpio e Sagitário

— Existem outros três signos
Áries, Léo e Geminis
No signo Léo quem nascer
Será um homem feliz
Inclinado a viajar
Por fora de seu país

O sábio disse: Donzela
É necessário dizer
Que condições tem o homem
Que em cada signo nascer
Por influência o signo
De que forma pode ser?

Disse ela o signo Aquário
Reina o mês de janeiro
O homem que nascer nele
Tem o crescimento varqueiro
Será amante das mulheres
Ventaroso e lisonjeiro

Pisces reina em fevereiro
Quem nesse signo nascer
É muito gentil de corpo
Muito guloso em comer
Risonho, gosta de viagem
Não faz o que prometer

Em março governa Áries
Neste signo nascerão
Homens nem ricos nem pobres
Por nada se zangarão
Neles se notam um defeito
Falando sós andarão

Em abril governa Tauro
Um signo bem conhecido
O homem que nascer nele
Será muito presumido
Altivo de coração
Será rico e atrevido

Geminis governa em maio
Sua qualidade é quente
O homem que nascer nele
Será fraco e diligente
Para os palácios e cortes
Se inclina constantemente

Em julho governa Câncer
Sua qualidade é fria
O homem que nascer nele
É forte e tem energia
É gentil e tem muita força
E sempre tem alegria

Em julho governa Léo
Por um leão figurado
O homem que nascer nele
É lutador e honrado
Altivo de coração
Inteligente e letrado

Em agosto reina Virgo
Vem da terra a natureza
O homem que nascer nele
Tem princípio tem riqueza
Depois se descuidará
Por isso cai em pobreza

Em setembro reina Libra
A Vênus assinalado
O homem que nascer nele
Será um pouco inclinado
A viajar pelo mar
É lutador e honrado

O que nascer em outubro
Será homem falador
Inclinado aos maus costumes
Teimoso e namorador
Pouco jeito nos negócios
Falso grave e enganador

Então o mês de novembro
Sagitário é o reinante
O homem que nascer nele
Será cínico e inconstante
Desobediente aos pais
Intratável assim por diante

Em dezembro é Capricórnio
Tem a natureza de terra
O homem que nascer nele
Será inclinado a guerra
Gosta de falar sozinho
E por qualquer coisa espera

O sábio ali levantou-se
Disse ao rei esta donzela
Não há sábio aqui no mundo
Que tenha a ciência dela
E com isso vossa alteza
Que estou vencido por ela

O rei ali ordenou
Que fosse o sábio segundo
Foi um matemático e clínico
Um gênio grande e fecundo
E conhecido por um
Dos sábios maior do mundo

Chegou o segundo sábio
Que inda estava orelhudo
E disse: Donzela eu tenho
Dezoito anos de estudo
Não sou o que tu venceste
Conheço um pouco de tudo

A donzela respondeu
Com licença de el-rei
Tudo que me perguntares
Aqui te responderei
Com brevidade e acerto
Tudo vos explicarei

Perguntou o sábio a ela:
Em nosso corpo domina
Qualquer um dos doze signos
Que a donzela descrimina
Terá alguma influência
Os signos com a medicina?

Então a donzela disse:
Descrito mestre direi
Sabe que os signos são doze
Como eu já expliquei
Compactam com a química
Quer saber? Explicarei

Áries domina a cabeça
Uma parte melindrosa
Para quem nascer em março
A sangria é perigosa
A pessoa que sangrar-se
Deve ficar receosa

Libra domina as espáduas
Câncer domina os peitos
Para os que são deste signo
Purgantes tem maus efeitos
E as sangrias também
Não serão de bons proveitos

Tauro domina o pescoço
Léo domina o coração
Capricórnio influi nos olhos
Escórpio a organização
Geminis domina os braços
e influi na musculação

Virgo domina o ventre
E Aquário nas canelas
Para os que são desses signos
Purgas e sangrias são belas
Então Sagitário e Pisces
Ambos têm igual tabelas

O sábio dentro de si
Disse meio admirado
Onde esta discutir
Ninguém pode ser letrado
Esta só vindo a propósito
De planeta adiantado

O sábio disse: Donzela
Eu quero se tu puderes
Isto é, eu creio que podes
Não dirás se não quiseres
O peso, idade e conduta
Que têm todas as mulheres

Disse a donzela: A mulher
É sempre a arca do bem
Porém só quem a criou
Sabe o peso que ela tem
Isso é uma coisa ignota
Disso não sabe ninguém

Que me dizes das donzelas
De vinte anos de idade?
Respondeu: Sendo formosa
Parece uma divindade
Principalmente ao homem
Que lhe tiver amizade

As de trinta e quarenta
Que dizes tu que elas são?
Disse ela: Uma dessas
É de muita consideração
— Das de 50 o que dizer?
— Só prestam para oração

— Que dizes das de 70?
— Deviam estar num castelo
Rezando por quem morreu
Lamentando o tempo belo
O que dizes das de 80?
— Só prestam para o cutelo

Então classificas as velhas
Tudo de mal a pior?
E nos defeitos de tantas
Não se encontra um menor
Disse ela: Deus me livre
De ser vizinho da melhor

Donzela o sábio lhe disse
Sei que és caprichosa
Entre todas as pessoas
És a mais estudiosa
Diga que sinais precisam
Para a mulher ser formosa

Então a donzela disse:
Para a mulher ser formosa
Terá dezoito sinais
Não tendo é defeituosa
A obra por seu defeito
Deixa de ser melindrosa

Há de ter três partes negras
De cores bem reluzentes
Sobrancelhas, olhos, cabelos
De cores negras e ardentes
Branco o lacrimal dos olhos
Ter branca a face e os dentes

Será comprida em três partes
A que tiver formosura
Compridos os dedos das mãos
O pescoço e a cintura
Rosada cútis e gengivas
Lábios cor de rosa pura

Terá três partes pequenas
O nariz, boca e pé
Larga a cadeira e ombro
Ninguém dirá que não é
Cujos sinais teve-se todos
Uma virgem em Nazaré

O sábio quando ouviu isto
Ficou tão surpreendido
E disse: El-rei Almançor
Confesso que estou vencido
E quem argumenta com ela
Se considera vencido

El-rei mandou que outro sábio
Entrasse em discussão
Então escolheram um
Dos de maior instrução
A quem chamavam na Grécia
Professor da criação

Abraão de Trabador
Veio argumentar com ela
E disse logo ao entrar:
Previne-te bem, donzela
Dizendo dentro si
Eu hoje hei de zombar dela

Então a donzela disse:
Senhor mestre estarei disposta
De todas suas perguntas
O senhor terá resposta
Se tem confiança em si
Vamos fazer uma aposta?

Minha aposta é a seguinte
De nós o que for vencido
Ficará aqui na corte
Publicamente despido
Ficando completamente
Como quando foi nascido

O sábio disse que sim
Mandaram o termo lavrar
E a donzela pediu
Ao rei para assinar
Para a parte que perdesse
Depois não se recusar

Lavraram o termo e foi
Às mãos do rei Almoçor
Pra fazer válido o trato
E ficar por fiador
Obrigando quem perdesse
Dar as roupas ao vencedor

O sábio aí perguntou:
Qual é a coisa mais aguda?
Disse ela: é a língua
Duma mulher linguaruda
Que corta todos os nomes
E o corte nunca muda

Donzela qual é a coisa
Mais doce do que mel?
— O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel

O sábio disse: Donzela
Conheces os animais?
Quero agora que descrevas
Alguns irracionais
Me diga qual é o bicho
Que possui oito sinais

Mestre, isto é gafanhoto
Vive embaixo dos outeiros
Tem pescoço como vaca
Esporas de cavaleiros
Tem olhos como marel
Um pássaro dos estrangeiros

Focinho como de vaca
Tem pés como de cegonha
Tem cauda como de víbora
Uma serpente medonha
E é infeliz o vivente
Que a boca dela se oponha

Tem peito como cavalos
E não ofende a ninguém
Tem asas como de águia
A que voa muito além
São antes oito sinais
Que o gafanhoto tem

Perguntou o sábio a ela:
— Que homem foi que viveu
Porém nunca foi menino
Existiu mas não nasceu
A mãe dele ficou virgem
Até que o neto morreu

— Este homem foi Adão
Que da terra se gerou
Foi feito já homem grande
Não nasceu, Deus o formou
A terra foi a mãe dele
E nela se sepultou

Foi feita mas não nascida
Essa nobre criatura
A terra foi a mãe dele
Serviu-lhe de sepultura
Para Abel o neto dele
Fez-se a primeira abertura

— Donzela qual é a coisa
Que pode ser mais ligeira?
Respondeu: O pensamento
Que voa de tal maneira
Que vai ao cabo do mundo
Num segundo que se queira

O sábio fitou-a e disse:
— Donzela diga-me agora
Qual o prazer de um dia
Qual prazer duma hora?
— Dum negócio que se ganha
Dum passeio que se queira

A donzela respondeu
Com a maior rapidez
Disse: um homem viajando
E se bom negócio fez
É um dos grande prazeres
Que verá por sua vez

Donzela o que é vida?
Disse ela: Um mar de torpeza
O que pode assemelhar-se
À vela que está acesa
Às vezes está tão formosa
E se apaga de surpresa

Donzela por quantas formas
Mente a pessoa afinal?
Respondeu: Mente por três
Tendo como essencial
Exaltar a quem quer bem
E pôr taxa em quem quer mal

Donzela que é velhice?
Respondeu com brevidade:
É vestidura de dores
É a mãe da mocidade
E o que mais aborrecemos?
Respondeu: É a idade

Donzela qual é a coisa
Que quem tem muito ainda quer?
Disse ela: É o dinheiro
Que o homem e a mulher
Não se farta de ganhar
Tenha a soma que tiver

Qual é a coisa que o homem
Possui e não pode ver?
Disse ela: O coração
Que aberto tem que nascer
Ver a raiz dos seus olhos
Não há quem possa obter

Donzela qual foi o homem
Que por dois ventres passou?
Disse a donzela: Foi Jonas
Que uma baleia o tragou
Conservou-o dentro três dias
E depois o vomitou

O sábio disse: Donzela
Qual o homem mais de bem?
Disse ela: É aquele
Que menos defeitos tem
Quem terá menos defeitos?
— Isso não sabe ninguém

— Donzela qual é a coisa
Que não se pode saber?
O pensamento do homem
Se ele não quer dizer
Por mais que a mulher procure
Não poderá obter

— Donzela o que é a noite
Cheia de tantos horrores?
Disse ela: É descanso
Dos homens trabalhadores
É capa dos assassinos
Que encobre os malfeitores

— Onde a primeira cidade
Do mundo foi construída?
— A cidade de Ninive
A primeira conhecida
Que depois de certo tempo
Foi pela Grécia abatida

Perguntou: Qual o guerreiro
Que teve a antigüidade?
Respondeu: Foi Alexandre
Assombro da humanidade
Guerreou vinte e dois anos
E morreu na flor da idade

Donzela falaste bem
Do maior conquistador
Diga dos homens qual foi
O maior sentenciador?
— Pilatos que deu sentença
a Cristo Nosso Senhor

De todos os patriarcas
qual seria o mais valente?
— O patriarca Jacó
Que lutou heroicamente
Com os anjos mensageiros
Do monarca onipotente

— Qual foi a primeira nau
Que foi para o estaleiro
— Foi a Arca de Noé
A que no mar foi primeiro
Onde escapou um casal
De tudo no mundo inteiro

— O que corta mais
Que a navalha afiada?
É a língua da pessoa
Depois de estar irada
Corta com mais rapidez
Que qualquer lâmina amolada

— Qual é o maior prazer
Com que se ocupa a história?
Respondeu: Quando um guerreiro
No campo ganha vitória
Sabei que não pode haver
Tanto prazer tanta glória

O sábio disse: Donzela
Tens falado muito bem
Me diga que condições
O homem no mundo tem?
Disse a donzela: tem todas
Para o mal e para o bem

É manso como a ovelha
E feroz como o leão
Seboso como o suíno
É limpo como o pavão
É falso como a serpente
É tão leal como o cão

É fraco como o coelho
Arrogante como o gelo
Airoso como o furão
Forçoso como o cavalo
E mais te digo que o homem
Ninguém pode decifrá-lo

É calado como peixe
Fala como papagaio
É lerdo como preguiça
É veloz igual ao raio
É sábio quando ouviu isto
Quase que dar-lhe um desmaio

Então inventou um meio
Para ver se a pegaria
Perguntou: O sol da noite
Terá luz quente ou fria?
A donzela respondeu
Que à noite sol não havia

Com a presença do sol
É que se conhece o dia
Se de noite houvesse sol
A noite não existia
E sem o sereno dela
Todo vivente morreria

Sem água, sem ar, sem luz
A terra não tinha nada
Não tinha os seres que tem
Seria desabitada
A própria vegetação
Não podia ser criada

Os reinos da natureza
Cada um possui um gênio
É necessário o azoto
Precisa o oxigênio
Para a infusão disso tudo
O carbono e o hidrogênio

O dia Deus fez bem claro
A noite fez bem escura
Se de noite houvesse sol
Estava o homem à altura
De notar esse defeito
E censurar a natura

O sábio baixou a vista
E ouviu tudo calado
Nada teve a dizer
Pois já estava esgotado
E tinha plena certeza
Que ficava injuriado

Disse ao público: Senhores
A donzela me venceu
Não sei com qual professor
Esta mulher aprendeu
Aí a donzela disse:
Então o mestre perdeu?

Ele vendo que estava
Esgotado e sem recursos
Ficou trêmulo e muito pálido
Fugiu-lho até os pulsos
Prostou-se aos pés de El-rei
Se sufocando em soluços

E disse: Senhor, confesso
A vossa real majestade
Que vejo nesta donzela
A maior capacidade
Ela merece ter prêmio
Pois tem grande habilidade

A donzela levantou-se
Foi ao soberano rei
Então beijando-lhe a mão
Disse: Vos suplicarei
Mande o sábio entregar-me
Tudo que dele ganhei

O rei ali ordenou
Que o sábio se despojasse
De todas as vestes que tinha
E à donzela as entregasse
O jeito que tinha ali
Era ele envergonhar-se

O sábio pôs-se a despir-se
Como quem estava doente
Fraque, colete e camisa
Ficando ali indecente
E pediu para ficar
Com a ceroula somente

Depois sufocado em pranto
Prostrado disse à donzela:
Resta-me apenas a ceroula
Não posso me despir dela
A donzela perguntou-lhe:
O senhor nasceu com ela?

O trato foi o seguinte
De nós quem fosse vencido
Perante a todos da corte
Havia de ficar despido
Como quando veio ao mundo
Na hora que foi nascido

El-rei foi o fiador
Nosso ajuste foi exato
O senhor tem que despir-se
E dar-lhe fato por fato
Ficando com a ceroula
Não teve efeito o contrato

E não quis dar a ceroula
O rei mandou que ele desse
Ou pagaria à donzela
O tanto que ela quisesse
Tanto que indenizasse-a
Embora que não pudesse

Donzela quanto queres
Perguntou o sábio enfim
A donzela ali fitou-o
E lhe respondeu assim:
A metade do dinheiro
Que meu senhor quer por mim

O rei ali conhecendo
O direito da donzela
Vendo que toda razão
Só podia caber nela
Disse ao sábio: Mande ver
O dinheiro e pague a ela

Cinco mil dobras de ouro
A donzela recebeu
O sábio também ali
Nem mais satisfação deu
Aquele foi um exemplo
Que a donzela lhe vendeu

O rei então disse à ela:
Donzela podes pedir
Dou-te a palavra de honra
Farei-te o que exigir
De tudo que pertencer-me
Poderás tu te servir

Ela beijou-lhe a mão
Lhe disse peço que dê-me
A quantia do dinheiro
Que meu senhor quer vender-me
Deixando eu voltar com ela
Para assim satisfazer-me

O rei julgou que a donzela
Pedisse para ficar
Tanto que se arrependeu
De tudo lhe franquear
Mas a palavra de rei
Não pode se revogar

Mandou dar-lhe o dinheiro
Discutiu também com ela
Mas ciente de tudo
Quanto podia haver nela
E disse vinte mil dobras
Não pagam esta donzela

Voltou ela e o senhor
À sua antiga morada
Por uma guarda de honra
Voltou ela acompanhada
O senhor dela trazendo
Uma fortuna avaliada

Ficaram todos os sábios
Daquilo impressionados
Pois uma donzela escrava
Vencer três homens letrados
Professores de ciências
Doutores habilitados

Abraão de Trabador
Com todos não discutia
Já tinha vencido muitos
Em música e filosofia
Em história natural
Matemática e astronomia

Ele descrevia a fundo
Os reinos da natureza
Era engenheiro perito
De tudo tinha a certeza
Descrevia o oceano
Da flor d’água a profundeza.

Tanto quando ele entrou
Que fitou bem a donzela
Calculou dentro de si
A força que havia nela
Confiando em sua força
Por isso apostou com ela

Caro leitor escrevi
Tudo que no livro sabei
Só fiz rimar a história
Nada aqui acrescentei
Na história grande dela
Muitas coisas consultei

Mamãi, lá vem o homi

Mamãi, lá vem o homi
Qui tem cabelo na venta
Diz qu’é fio do capeta
Cum eli ninguém aguenta
Mamãi, lá vem o homi
Dizeno que m’arrebenta
Qui tamém foi batizado
Cum sá gross’i água benta
Mamãi, lá vem o homi
Ô meu fio, dêxa vim
Eu num devo nad’ao homi
Nem o homi dev’a mim
U meu pai sempri dizia
Meu fio, num tenha medo
Vá dizê ao valentão
Qui valente morre cedo
Si ocê quisé a prova
Cimitér’é cá du lado
Gente boa tem alguns
Di valente, tá lotado

Camaradinho…

Na vorta c’o mundo deu, na vorta c’o mundo dá
Viaja pelo mundo, tem históra pá contá
Na vorta c’o mundo deu, na vorta c’o mundo dá
Todo dia dá uma vorta, nunca para di rodá

João Pequeno de Pastinha

Capoeira leal, capoeira pegada, capoeira justa, capoeira de dentro, capoeira de baixo, capoeira de fora, capoeira de cima, capoeira traiçoeira, capoeira brincada, capoeira jogada, capoeira lutada, capoeira escorregada, capoeira caída, capoeira mandingada, capoeira levantada, capoeira pulada, capoeira sambada, capoeira sacolejada, capoeira bambolejada.
Tem capoeira para todo corpo, e todo corpo tem sua capoeira. Mestre João Pequeno foi doutor no papel, mas antes, bem antes de ser doutor no papel, foi doutor na mandinga. Conheceu a arte querendo ser valentão, e achou o grande sentido da arte em ter seu golpe freado, manejado – porquê segundo ele mesmo, “o capoeirista para bater não precisa acertar”. O golpe vai até onde for preciso, e quem está em volta sabe quando entrou e quando não entrou. Mestre de mestres, formador de homens, professor no sentido mais estrito possível – um sujeito raro e doce, no nosso mundo tão corrido, imediatista e superficial. Conheci o Mestre João Pequeno em um momento ligeiro, em 2003. Poucos minutos de conversa antes da roda em sua academia, e outros poucos dentro do carro do Mestre Decanio, enquanto o levávamos do Forte Santo Antônio à sua residência. Calado e observador, deixa a marca de seu trabalho na história. João Pequeno, de pequeno só teve o nome… Deixou esse mundo, mas o que deixou nesse mundo foi maior. Gigantesco João Pequeno, Enorme João Pequeno, Imenso João Pequeno!

Quando eu aqui cheguei
A todos eu vim louvar
Vim louvar a Deus,
primeiro morador desse lugar
Agora eu tô cantando
Cantando e dando louvor
Vou louvando a Jesus Cristo
Ao pai que nos criou
Vou cantando e vou louvando
Porque nos abençoou
Abençoe essa cidade
Com todos os seus moradores
E na roda de capoeira
Abençoe os jogadores,

Camaradinho!

Camugerê, vosmecê como vai ?
Camugerê!
Como vai vosmecê ?
Camugerê!

Vai o homem, fica o nome.

Canoa virô nu má

Canoa virô nu má (Teimosia)

Canoa virô nu má, canoa virô nu má
Canoeiro s’afogô
Pêxe qui tava pegado
Cortô a rede, soltô
Canoeiro foi nu fundo
Água vêi’a li matá
Quein and’incima das água
Tein c’aprendê a nadá

Camaradinho…

Piriquitin qui vein di Holanda, xibamba
Bamba, bamba-ê
Pu cima du meu reinado, xibamba
Bamba, bamba-ê
Quanu pensu qui’stô in pé, ‘stô sentado
Bamba, bamba-ê
Nu colo da namorada, xibamba
Bamba, bamba-ê