Em 2006, escrevi um artigo chamado “Menino, quem foi teu mestre“, para o PortalCapoeira, celebrando o aniversário do Mestre Decanio.
Hoje, recebi a notícia do falecimento do mestre… E fiquei matutando sobre o quanto essa perda representou para mim, e para a capoeira como um todo. Decanio era um capoeirista. Decanio foi aluno de Bimba. Decanio ajudou a criar a Capoeira Regional. Decanio era um pensador. Decanio era médico. Decanio era poeta. Decanio foi mergulhador. Decanio era velejador. Decanio era acupunturista e massoterapeuta. Decanio foi militar. Decanio deu porrada em ACM, quando os dois eram crianças (palavras dele!). Decanio era judoca e pugilista. Decanio era escritor. Decanio era um partidário confesso do trabalho pelo próximo, sempre distribuindo bens materiais ou apenas conhecimento, em troca do prazer de distribuir.
Lembro-me perfeitamente de, durante uma conversa na qual eu insistia que “a capoeira estava se perdendo, que alguém tinha que fazer alguma coisa”, ele me cortar asperamente dizendo “Teimosia, você é um grandíssimo chato. Faça bem a sua parte, e deixe os outros fazerem a deles. O tempo separa o joio do trigo”. A força dessa fala foi um divisor de águas na minha vida – um conceito tão simples, mas ainda assim tão difícil de perceber sozinho. A intolerância mora na ponta do dedo que eu aponto para os outros, e quando o meu dedo aponta para alguém, três dos meus dedos apontam para mim mesmo – faça o teste, se tem dúvida…
Decanio era um baú inesgotável de informação. Do alto dos seus mais de 80 anos, viu a capoeira regional e a angola tomarem o formato que tem hoje. Viu a capoeira contemporânea chegar. Viu o advento dos uniformes se estabilizar, viu as cordas e cordéis serem criados. E mais do que ver, escreveu e falou sobre tudo isso. Tiveram origem nas conversas com ele, voluntária ou involuntariamente, os questionamentos que eu faço à tradição: coisas que para mim eram “antigas”, para ele eram modernidade…
Os anos dourados da capoeira, que na minha opinião foram as décadas de 40 e 50 (quando Waldemar, Bimba, Pastinha, Canjiquinha e Cobrinha Verde estavam firmes na ativa), para Decanio foram o dia-a-dia. Ele viu, viveu e falou sobre momentos com os quais eu só posso sonhar: o passado que vejo nas fotos em preto-e-branco de Verger (seu grande amigo), para ele era cheio das cores de Carybé (também seu grande amigo).
Mas agora, Decanio se foi. O nome fica na história, e o legado é enorme – tire bastante tempo para ler, se quiser consumir tudo o que o mestre produziu. E lembre-se que as “regras de conduta” da Regional, foram Cisnando e ele que modelaram junto com o Mestre Bimba. E que os primeiros uniformes da Regional, camisas brancas listradas de azul, foram também idéia de Cisnando e Decanio. E que as primeiras apresentações de samba-de-roda do Mestre Bimba e das Tijubinas abertas ao público aconteceram num Simpósio de Medicina, a convite de Decanio. E que os Manuscritos de Pastinha só foram digitalizados e posteriormente entregues ao Forte da Capoeira por iniciativa dele. E que o “transe capoeirano” é um tratado físico e metafísico sobre o comportamento de capoeristas na função. E que as Gravações de Bimba e Cabecinha só chegaram a tanta gente por intermédio dele. A lista é interminável.
Decanio se foi, e para nós que aqui estamos, fica a pergunta: o que estamos fazendo para preservar a vida e a memória dos nossos mestres ? Os últimos tempos tem sido difíceis para a capoeira: Leopoldina, Arthur Emídio, Peixinho, Nacional, Bigodinho, João Pequeno, Tigrê, Negão Zumba… e Decanio. Mais ou menos conhecidos, todos deixaram sua marca na história – mas sem sombra de dúvida, muito do conhecimento se foi com eles…
Mas não quero sentir tristeza ao falar do mestre. Quero a alegria; o mesmo riso solto que ele tinha; o mesmo olhar enviesado, tirando onda com a sua cara sem você nem perceber; quero lembrar os causos de valentia, os olhos brilhando com a lembrança da brabeza de outrora; quero lembrar do sorvete de maracujá tomado na Barra, e depois lembrar da volta de ônibus de Salvador para Paripe; quero lembrar do jogo feliz que ele fez com Boinha durante a Zumbimba e depois lembrar da cervejinha gelada e da conversa animada nas tardes quentes, na Vivenda Yemanjá…
Descanse em paz, Deco!
Axé,
Teimosia
Pois é…
Mais um se foi:
Um dos grandes!
Assim como outros tantos citados por ti
Ou esquecidos… aqui e ali…
Afastados da memória por ausência de registro,
De reconhecimento por parte dos que chegam,
Dos que agora estão
– na vadiação.
Fica o exemplo dele…
Façamos a nossa parte então
– coisa que você tem feito bem…
Teimosamente ou não.
"amanhã (hoje) é dia santo…"
Axé!
Rogerão Boca-ruiva