“E nem me despenteio!” – Madame Satã

Matéria de Paula Lacerda e Sérgio Carrara, publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional #33 – Agosto de 2007

Entre o feminino e o masculino, a elegância e a indecência, Madame Satã ganha a Lapa e faz fama como malandro bom de briga

Nos anos de 1970, o periódico de esquerda “O Pasquim” recuperou a história de um estranho personagem da boemia carioca em duas entrevistas. O interesse do público por sua trajetória foi tamanho que em pouco tempo ele também aparecia em programas de auditório recontando suas aventuras e relembrando o passado com saudade. Quem era esse malandro ?

“Mulata do Balacoché”, “Caranguejo da Praia das Virtudes” e “Jamaci, a rainha da floresta” foram alguns de seus tantos apelidos. Em suas apresentações artísticas, vestia pomposos trajes femininos, ameaçando a moral e os rígidos padrões da época. Homossexual assumido, negro, pobre e capoeirista, respondeu a mais de vinte processos, entre eles, treze por agressões, quatro por resistência à prisão, três por desacato, um por ultraje ao pudor e um por homicídio. Estamos falando de “Madame Satã”, o codinome mais famoso de João Francisco dos Santos, verdadeiro mito da malandragem carioca.

“Eu vim ao mundo junto com o século XX”. Era assim que ele anunciava o ano de seu nascimento, 1900. De infância difícil, foi negociado pela mãe em troca de uma égua quando tinha sete anos. Antes de partir com o menino, o comerciante de nome Laureano prometeu que lhe daria estudo, acordo que obviamente não foi cumprido. Em pouco tempo transformou-se em escravo, fazendo trabalhos pesados sem qualquer remuneração. 

Depois de algum tempo percorrendo cidades do sertão nordestino, João Francisco conheceu uma senhora que lhe ofereceu o mundo: trabalho e hospedagem no Rio de Janeiro! Ele aceita a proposta e parte imediatamente para a capital federal. Chegando à cidade, no ano de 1907, encontra uma rotina de trabalho não muito diferente da anterior. Na pensão, limpava, lavava, cozinhava e não recebia nada em troca, exceto modestos pratos de comida e um colchonete para deitar o corpo no fim do dia. Por isso, João fugiu e foi viver na Lapa, bairro que logo ficaria conhecido como o berço da malandragem.

Ao chegar, o menino encontrou um bairro fixado em torno de uma bela igreja – a Nossa Senhora da Lapa – e margeado por um imponente aqueduto, que em outros tempos levava água aos bairros centrais da cidade. Apesar da reforma urbana e social promovida pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906) − que expulsou as populações mais carentes da parte central da cidade −, a Lapa permaneceu residencial, abrigando famílias de operários, malandros e prostitutas. João Francisco fez sua residência em um dos típicos sobradinhos do bairro.

Durante seus primeiros anos na cidade, ficou conhecido como brigão profissional, sujeito de muitos amigos e também de muitos desafetos. Vivia de pequenos trabalhos avulsos e não levava desaforo para casa nem de policiais. Conhecido por sambistas, prostitutas, políticos, e principalmente pela polícia, foi levado à delegacia algumas dezenas de vezes por sua “conduta anti-social”, que incluía agressões, confusões em bares e ameaças.

Por intermédio de alguns amigos influentes, João realizou um dos seus maiores sonhos: se apresentar como transformista. Dublava músicas e dançava vestindo roupas femininas. O ano era 1928, o local dos shows, a Praça Tiradentes – região conhecida por suas inúmeras casas de espetáculo. Uma vez alcançado esse sonho, o malandro muda sensivelmente sua rotina. Passa a sair dos espetáculos e ir direto para casa, evita brigas e todo tipo de confusões que pudessem atrapalhar seu trabalho artístico. Mas um incidente traz de volta a velha rotina das brigas na figura do guarda Alberto.

O transformista fora jantar em um botequim da Lapa, perto do sobradinho onde morava. Ao pedir seu tradicional bife malpassado, percebeu que o vigilante noturno Alberto, conhecido por sua truculência, estava sentado algumas mesas adiante. Ao avistar João – que nessa época usava os cabelos na altura dos ombros – o guarda, um tanto alcoolizado, imediatamente xingou o malandro.

Mesmo com suas ofensas sendo ignoradas, o guarda insistiu: “Já estamos no carnaval, veado?!”. Passados alguns segundos, percebendo que não haveria briga, Alberto decide partir para a agressão física e atinge João com um soco no rosto. Ainda assim, nosso personagem brigão vai para casa e tenta se controlar. Não consegue. Volta ao bar e atira em Alberto, que morre na hora.

João é preso pela polícia e mandado para o presídio da Ilha Grande em 1928. Mesmo tendo sido absolvido dois anos depois por ter agido em legítima defesa, a prisão marca profundamente a trajetória do malandro. Solto, ele retorna à Lapa, onde passa a fazer a segurança dos bares e cabarés das redondezas em troca de doses de bebida e alguns trocados.  O trabalho como segurança – além de completar a renda que obtinha com pequenos furtos – era também uma forma de fazer-se presente na boemia do bairro.

Seu codinome mais famoso, Madame Satã, surge somente anos depois dessa prisão. Segundo a versão mais conhecida deste episódio, foi no carnaval de 1938, quando João vence um famoso concurso de fantasias promovido pelo bloco carioca “Os caçadores de viados”. A fantasia premiada representava um morcego típico da região natal, no interior de Pernambuco. Utilizando adereços dourados e pretos, fez tanto sucesso que algum tempo depois um policial o identificou como sendo o ganhador do concurso. Sua opinião sobre a indumentária, no entanto, surpreendeu o próprio malandro. Para o policial, ele teria se inspirado no filme “Madam Satan”, do diretor norte-americano Cecil B. De Mille – filme a que João jamais assistiu. Mas o apelido agradou, e todos os codinomes anteriores foram definitivamente abandonados. O nome  “Madame Satã” parecia traduzir com precisão sua personalidade, que fundia elementos contraditórios como o feminino e o masculino, a doçura e a maldade, a elegância e a indecência. E todo malandro precisava de um apelido. Seus contemporâneos eram Meia-noite, Sete-Coroas e Beto Batuqueiro, para citar alguns que ficaram na memória da boemia.

Embora sua fama tenha começado nos anos 1920, foi só por volta de 1940 que Madame Satã passa a ser conhecido e reconhecido como o malandro mais temido da Lapa, o mais brigão, o que jamais teria se esquivado de uma briga com a polícia.  E sua trajetória tortuosa reflete as transformações dos significados da malandragem.

Bem no início do século XX, a idéia de malandro estava vinculada a um tipo de homem mulherengo, vadio, jogador e brigão. O chapéu panamá, o lenço no pescoço, o sapato cara-de-gato e principalmente a navalha compunham seu visual. Nesse momento, o malandro era alguém que perambulava por bares e cabarés, conhecia e respeitava seus pares e não fugia de brigas, onde quer que elas ocorressem – foi esse o lado que marcou Madame Satã.

Já no governo Vargas (1930-1945), percebe-se uma sensível alteração. Com a intensa valorização do trabalho e do trabalhador, a “malandragem” passa a constituir um “mau exemplo” para a população. Surge então a conotação de burla ao trabalho, que, por sua força, ainda pode ser facilmente percebida hoje em dia. Por isso, dizia Moreira da Silva (1902-2000), o criador do samba de breque: “malandro é o gato, que come peixe sem ir à praia”.

Ao longo da década de 1950, quando o samba cede lugar à bossa nova, Copacabana então substitui a Lapa como espaço de boemia e divertimento. São os anos do desenvolvimentismo: os cassinos são fechados, a era dos cabarés entra em decadência, os sobrados da Lapa representam uma estética e um modo de vida ultrapassados. Com todas estas inovações, a figura de Satã também entra em declínio, e o incidente que culminou na morte do sambista Geraldo Pereira marca o começo de seu fim.

A briga com Geraldo seguiu os mesmos moldes daquela que levou o guarda Alberto à morte: ambas ocorreram na Lapa, durante a noite, com a presença marcante do álcool, e começaram com uma ofensa a Satã –, novamente dirigida à sua sexualidade. Fazendo jus à sua fama de brigão, o chamado “Geraldo das Mulheres” declarou, no restaurante A Capela, que adorava “dar porrada em bicha”. Com isso, Madame Satã partiu para cima de Geraldo e o atingiu com um soco de direita – foi o suficiente para que o sambista não recuperasse os sentidos e falecesse minutos depois.

É claro que este episódio contribuiu para aumentar ainda mais a fama de malandro valente. Madame Satã não foi oficialmente acusado de homicídio por causa de um laudo médico que atribuiu a morte de Geraldo a um derrame cerebral. No entanto, a partir deste incidente Madame Satã ficou cada vez mais exposto aos olhos da lei. Não por acaso, nesse mesmo ano sua trajetória na malandragem foi bruscamente interrompida.

Acusado de aplicar o “suadouro” – golpe da época que consistia em roubar os pertences de rapazes enquanto eles se distraíam com alguma prostituta –, Madame Satã retorna ao presídio da Ilha Grande. Desta vez sua estada é mais prolongada, e ele fica preso por mais de dez anos. Em 1965, Satã recupera a liberdade e segue para a Lapa. No entanto, seus comparsas haviam morrido e a malandragem, tal como ele a havia conhecido, não existia mais. O jeito foi voltar para a Ilha Grande, onde passou a criar galinhas, pescar e cozinhar para alguns amigos. 


Procurado pelo Pasquim e depois pela TV, Satã ora recusava a autoria de muitos dos crimes que lhe foram atribuídos, ora criava histórias ainda mais fantásticas sobre “sua pessoa”, como ele mesmo gostava de dizer. A trajetória do boêmio mais famoso do país acabou interrompida definitivamente por um câncer pulmonar em abril de 1976. Morreu em um hospital público, ao lado de uma de suas filhas adotivas.

A recente produção cinematográfica “Madame Satã” (de Karim Aïnouz, 2002) retomou a importância desta personalidade curiosa e conta parte de sua história. Hoje, a presença de Madame Satã é atestada em muitos artigos de jornais, na Internet, e até mesmo por acadêmicos que se debruçam sobre a malandragem ou sobre o bairro da Lapa. Das mais diferentes formas, as histórias do bairro e as do personagem se misturam, e um ajuda a manter o outro vivo na memória carioca.

PAULA LACERDA ATUA NO CENTRO LATINO-AMERICANO EM SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS E É AUTORA DA DISSERTAÇÃO “O DRAMA ENCENADO: ASSASSINATOS DE GAYS E TRAVESTIS NA IMPRENSA CARIOCA” (UERJ,2006).

SÉRGIO CARRARA É PROFESSOR DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ.

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