“Desafiei todos os valentes”

Entrevista com Mestre Bimba
Originalmente publicado no Diário de Goiânia, em 1973

Mestre Bimba, conte-nos de onde veio, seu nome completo, sua história.

Meu pai chamava-se Luis Pereira Machado, minha mãe Maria Martinha do Bonfim, meu nome é Manoel Reis Machado. Muita gente me pergunta: “Porque Mestre Bimba?” Eu não gosto de dizer… Tem gente que acha que é por causa da luta, mas não é. Porque lá em Salvador, onde eu nasci em 1900, “bimba” também quer dizer pancada. Meu nome é por causa de outra coisa. É por causa de uma aposta. Minha mãe teve vinte e cinco filhos, eu fui o último. Dizem que eu nasci muito gordo. Minha mãe apostou com a parteira que eu era homem e a parteira dizia que era mulher. Então, para saber se eu era homem ou era mulher, como era muito gordo, abriram minhas carnes para ver… e encontraram lá a “bimba”!… (Mestre Bimba reclama do garçom do Hotel Presidente, onde esta entrevista foi feita: “Cadê o tira-gosto. rapaz?”).


Trabalhei em carpintaria, trabalhei também na estiva, isso por volta de 1918. Carregava peso de 120 quilos… Conheci nesta época um mestre de Capoeira de Angola. Essa é a capoeira de Angola, porque existe também a Regional, que eu criei. Ele se chamava Bentinho. Ele era filho de dois africanos, eu sou neto de africanos. A partir desta época, então, eu aprendi a Capoeira de angola e passei a criar a regional.

Como era vista a luta de Capoeira naqueles anos?

Naquela época, quando se falava em Capoeira, falava-se baixo Os que aprendiam capoeira só pensavam em ser bandidos.

Ser valente estava na moda?

Era gostoso. Já pensou o que era, pra essas pessoas, enfiar a peixeira na barriga dos outros, rapaz?… Mas então, tem gente que pensa que Capoeira é luta de queda. De maneira que de 1918 a 1936, eu, Mestre Bimba, desafiei todos os valentes e venci: A luta que mais demorou, durou um minuto e dois segundos. Daí para cá mudei muito de vida. Larguei a estiva, larguei tudo, tomei outro curso de vida.

Qual a diferença fundamental entre a Capoeira Regional e a Capoeira de Angola?

Os capoeiras de Angola, a única coisa de bom que tinham era a coragem. Então, o que aconteceu? Um rapaz de doze, quinze anos, até vinte, quando aprendia a luta, naquele tempo, a tendência era pra comprar um revólver ou uma faca. Então, quer dizer que isto não era um esporte… E quem tirou a Capoeira do Brasil da unha da polícia, eu acho que abaixo de Deus fui eu…

Quer dizer. Mestre Bimba, que a capoeira de Angola era aquele que botava uma navalha na ponta do berimbau?

Muito bem. Falou.

O senhor teve um conhecimento profundo da Capoeira de Angola antes de criar a Regional?

Por dez anos eu ensinei Capoeira de angola. Depois eu passei a ensinar Regional. E peguei a ganhar dinheiro. Mas eu sou um homem pobre. O que eu tenho muito é amizade. Os homens mais ricos da Bahia passaram por minhas mãos. Se eu fosse dizer o nome de todos eles, passava a tarde inteira.


Com tanta gente boa, dando aula até pra Governador (tem governador, não tem?), como é que tudo ocorreu de forma que o senhor tivesse que sair da Bahia, por problema financeiro?


Na Bahia, acontece o seguinte: se o senhor chegar e pedir um auxílio para uma festa, um festejo carnavalesco, para uma qualquer coisa, que pertence à farra, tá bom. Mas se for para curar, para ensinar, para ajudar uma academia a bem do povo, não acha.

Quantos grupos de Capoeira existem na Bahia?

Agora eu não sei nem contar. Primeiro existia só o meu, agora existem uns trinta e oito.

O senhor acha que essa atual invasão de turistas está estragando a Bahia?

Quando eu apresentei espetáculos de folclore na Bahia, sempre fui muito elogiado. Mas agora, atualmente, existe muita falsificação. Seguinte: Capoeira é luta pra homem (e também pra mulher, depende). Mas acontece que pra ganhar dinheiro, até Capoeira do Amor já existe. A mulher fica deitada, vem o sujeito e salta por cima da palma da mão dela; só que aí se desloca sobre o próprio corpo, se agarram, e saem rolando… Bimba não ensinou isso não…

A música que se utiliza na Capoeira, talvez por ser baseada no berimbau, dá a impressão de ser pobre, repetida. Acontece isso, realmente ?

Berimbau tem oito toques. Numa roda, pode-se tocar um toque, ou dois, ou oito… Quer dizer: não é um instrumento que tem o “estoque” que tem o violão e outros instrumentos. Mas dá pra satisfazer… A regra é um berimbau e dois pandeiros.

O Maculelê tem origem própria ou veio da Capoeira?

Não, não tem nada a ver Maculelê com a Capoeira. A lenda do Maculelê vem dos índios que existiam no Brasil. Teve uma tribo que brigou com outra. Então, do lado de uma tribo tem um herói que venceu com dois pedaços de pau. Daí o nome: Maculelê.

Existem algumas variações: Samba-Duro, Samba-de-Roda… Como é que são esses sambas?

Samba-de-Roda só se faz com mulher, com meninas. O Samba-Duro é samba de queda, um samba de batuque – é mais pesado. É um samba de homem, é sambando e derrubando. O Samba-de-Roda, dá licença. É só pras meninas mexerem com as cadeiras.

Nessas tradições todas de música e dança da Bahia, existe uma influência multo grande dos africanos. Há também influências portuguesas e indígenas no folclore baiano?

Além do batuque e desses sambas, o que restou foi um “terno” chamado Rancho Feliz, que não existe mais e que se incorporou ao folclore. Então, tudo isso foi criado pelas “cachoiranas”, mulheres apropriadas para o samba Dessas mulheres pra cá é que se aprendeu o que é Samba-de-Roda.

Mestre, existe uma dança francesa que se desenvolveu por volta de 1650, chamada “Savata”. Tem uma semelhança entre esta dança e a Capoeira, é uma dança e ao mesmo tempo uma luta; como na Capoeira, usam-se os pés e as mãos, apesar de não se utilizarem instrumentos musicais. Esta “Savata” pode ter Influenciado a Capoeira?

Eu acredito que não. Porque a Savata foi criada pelos estrangeiros e a Capoeira pelos brasileiros. Há semelhança, mas não tem nada a ver com a Capoeira. Justamente uma coincidência.

Existe Capoeira hoje em Angola?

Em Angola nunca houve Capoeira. Tem dois escritores do Rio de Janeiro que dizem que a Capoeira veio da África. Mas não. Ela foi criada no Brasil, nas senzalas, nos engenhos, onde os pretos trabalhavam. Então quando eram calçados pelo chamado “Capitão do Mato”, eles se defendiam com pesadas, rasteiras. Em princípio a lenda de Capoeira é essa, que existia em 1918 quando meu pai criou a Dança-de-Batuque e quando eu criei a Capoeira Regional.

Esse assunto aqui é diferente. Tem-se comentado muito, ultimamente, sobre a “deformação” da cidade de Salvador, principalmente em função do turismo e da construção de viadutos, abertura de avenidas, etc. Comenta-se inclusive que alguns casardes pegaram fogo assim que a prefeitura decidiu passar por ali um novo viaduto. O que é que o senhor tem observado sobre este problema?

Francamente, isto não está no meu conhecimento. A única coisa que eu vi acontecer foi justamente o incêndio do Mercado Modelo, que dizem que era tradição da Bahia. Todo ano o governo queria construir obras ali, etcetera e tal, até  que  por  fim  ele acabou pegando fogo.

O que o senhor acha do Caetano Veloso?

Francamente, eu não tenho o que dizer sobre ele. A matéria dele é uma e a minha á outra.

O senhor disse inicialmente que deixou a  Bahia por questões financeiras. Quais as condições reais que está encontrando aqui ?

Aqui em Goiânia, trazido pelo Professor  Osvaldo de Souza, que foi meu aluno e que eu tenho como um filho, eu espero, encostado a ele, ser ajudado por algumas autoridades daqui. Então, gostando da boa terra, para dizer melhor nunca vi mais mulher bonita! Aqui tem umas meninas! Meu Deus, por que é que eu sou velho?! De modo que o meu futuro é aqui em Goiânia. Porque a minha mulher recebeu o cargo de Zeladora… Diz-se por aí: “Mãe-de-Santo” – mas o verdadeiro nome é Zeladora-de-Encantado. Então aqui em Goiânia nunca teve um Candomblé e eu quero criar um. Minha mulher é a maior Zeladora da Bahia. Muitas pessoas desenganadas pelos médicos muitas vezes são salvas no Candomblé. Porque pode ser um problema do espírito. Às vezes a pessoa tem uma vida perseguida, uma incoerência com as coisas, fica aperreando pra levantar, tudo que faz não dá certo… Então com as rezas, com as coisas, ela pode salvar o indivíduo. Se minha mulher é bonita? Minha mulher é bonita demais!… Eu sou preto mas ela é caboclinha.


De modo que o meu futuro aqui em Goiânia é ensinar. Capoeira, Samba-de-Roda, Samba-Duro e Batuque, que não existe mais no Brasil. Essas coisas é que eu quero fazer.

Entrevista com Mestre Pastinha, 1964

Entrevista feita por Helina Rautavaara, na academia do Mestre Pastinha, em 1964.
Transcrição direta do áudio, com alguma tradução do espanhol (a Sra. Helina falava em “portunhol”)
Introdução (1996)
Helina Rautavaara: Em todo caso, todavia estamos durante a minha primeira visita (…) Bahia. Eu começava a encontrar coisas, e claro, me falaram sobre Mestre Pastinha – que ainda àquela época não era cego. Tinha sua academia, dirigia sua academia, às vezes jogava… Eu até tenho uma foto, muito muito ruim porque foi tirada com aquelas máquinas de 10 dólares – mas ele está jogando mesmo. Em sua academia, é claro. Era fundamento angola… o verdadeiro. Angola… E uns dos mais velhos, senão primeiros na Bahia. Claro, a capoeira é uma tradição muito antiga, tem seus heróis durante a escravidão. A escravidão não foi tanto tempo atrás. Eu tenho entrevistas… Entrevista na casa do Waldemar da Liberdade, que também é muito famoso capoeirista. Tenho uma entrevista com um velho – ou foi velha, não me recordo mais – que foi escravo, nasceu escravo. Oh! Então, tantas recordações há na Bahia. Ora, se perderam todas… Me disseram que se perderam, que deixaram perder tudo, tudo, tudo. E a música mesmo… Influenciada por rádio e televisão. Já não existe nada de folclore autóctone, tradicional. Já se mudou, hoje. Então na casa, me chamaram Mestre Pastinha. E claro, Mestre Pastinha, como dirigia sua academia, ele me apresentava a um jovem e eu fui a ele dizendo que queria gravar. E ele me apresentou esse jovem, alto, forte e bonito, que se chamava Raimundo. Preto, preto, preto. Angola! Então depois que me apresentou, ele como um guia, como uma pessoa que me ensinaria e guiaria, e cantaria para mim. Cantando capoeira amarrado, com todos lá. Agora aqui vamos escutar essa gravação. Que verdadeiramente é clássica, muito, muito clássica. Ainda posso … essa musical. Porque Raimundo sabia cantar. Depois comecei a andar com ele pelas festas de largo, e às vezes… Ele tinha um pouco de jeito de africano. Por exemplo, quando estávamos descendo ladeira, ele não andava comigo, andava um pouquinho atrás. E me lembro da polícia vindo me dizer: “Esse sujeito aí está seguindo você”. Vinham me advertir que era perigoso. E eu ficava rindo. “Não, é meu camarada…” Mas como eu disse na outra fita, naquela época, durante minha primeira visita, 1963, 1964, eu não tinha romances, não tinha amores. Então o livro de Jorge Amado foi realmente foi uma novela. Somente depois que voltei da África para a Bahia que eu comecei a andar com DiMola. E estávamos sempre rindo que somente depois eu estava vivendo acontecimentos do livro de Jorge Amado que ele tinha escrito anos antes. Então eu peço aqui, depois eu tenho entrevistas com Mestre Pastinha em outras fitas. Se couberem, eu vou juntá-las aqui. Se não, vai ser em outra fita. Mas essa é a primeira gravação da capoeira de angola, 1964.
Entrevista (1964)
Helina Rautavaara: Eu queria que me contasse um pouco, desde que ano começou como capoeirista ?
Mestre Pastinha: Desde 1910.
HR: E em que ano fundou essa capoeira ?
MP: Em 1941.
HR: Por favor, me explique um pouco mais sobre o que é a capoeira. Eu já sei, mas me explique.
MP: A explicação que eu tenho ? Que é da capoeira ?
HR: É.
MP: Sobre a origem dela ?
HR: Sim, sobre a origem.
MP: A origem é africana.
HR: E onde você aprendeu ?
MP: Aqui na Bahia.
HR: Em que ano ?
MP: Aos 10 anos de idade.
HR: E de quem aprendeu ? E quem lhe ensinou ?
MP: Um africano.
HR: Como ele se chama ?
MP: Se chamava Benedito.
HR: Mestre de angola.
MP: Angola!
HR: E… Diz-se que a capoeira é uma luta, mas que agora está proibida como luta…
MP: Não… Ela não está proibida como luta não. Ela está no íntimo do homem. Na hora que ele encontra um rival, ele então se manisfesta com ela em ato de luta. Agora quando estamos em ato de alegria, ela passa a ser dança.
HR: Na sua academia, há quanto tempo está nesse lugar ? Aqui no Pelourinho ?
MP: No Pelourinho, desde 1952.
HR: O senhor quer me contar algo de sua vida, como capoeirista ? Você foi ao Rio, a São Paulo ?
MP: Rio, São Paulo, Brasília, Porto Alegre…
HR: E para o estrangeiro também ?
MP: Ainda não. Tive uma oportunidade que perdi, que tinha que ir à Argentina. Mas porquê recebi um convite de São Paulo, então ficou revogado. Para eu vir a São Paulo, deixei de ir à Argentina.
HR: Em que idade tem que aprender capoeira ?
MP: Em que ano ?
HR: Em que idade.
MP: Não, ele aprende de qualquer idade. Em qualquer idade pode aprender.
HR: Esses rapazes que estão aqui, são trabalhadores, estudantes.
MP: É… São trabalhadores, operários, estudantes, funcionários, empregados no comércio. Tem de tudo.
HR: E a capoeira é somente um passa-tempo.
MP: É.
HR: Que eu vi ali [inaudível]. A capoeira não dá vida.
MP: Não.
HR: Mas você, o que faz ? Você vive da academia ?
MP: É.
HR: E… Que modificações novas aconteceram aqui ? Como era a capoeira antes ?
MP: Antes ?
HR: Era o mesmo ?
MP: Era a mesma coisa. Era a mesma coisa. Não tem modificação nenhuma. A modificação é a consideração de um homem para outro. Se ele tem a vocação, toma em ato de alegria ou em festa, então nós jogamos ela com mais obediência, com mais técnica. Agora, quando passar o ódio, ela modifica também, vira para luta. Em ato de alegria, é para dança. E no ato do ódio, já sabe como é: é para a violência.
HR: Diga-me uma coisa. Você pessoalmente não sai mais na rua.
MP: Não, não, não…
HR: Mas apresenta a capoeira em Boa Viagem. Em que festas apresenta ? Em Santa Bárbara. Em, em… Conceição…
MP: Em Santo Amaro, Cachoeira.
HR: Boa Viagem…
MP: Boa Viagem. Eu estou em todos os lugares. Onde sou convidado a ir, eu vou.
HR: Sim.
MP: Estamos aqui prontos para atender qualquer finalidade, seja qualquer lugar. Aonde se interessarem por ela, eu também me interesso em ir.
HR: Onde você acha que a tradição de capoeira é mais puro ? Aqui mesmo ?
MP: É…
HR: O que pensa de Mestre Bimba ?
MP: Nada tenho a responder. A finalidade é outra, e eu não posso introduzir uma finalidade… Agora nessa aqui, eu sei responder sobre ela. Agora lá sobre o outro… Sei que ele é um… A respeito do Bimba, eu não posso dar a finalidade. Porque ele tem a finalidade dele. Só quem pode declarar é ele mesmo.
HR: Mas você acha que… Ele disse que representa uma tradição baiana. Você crê que é baiana ?
MP: Ele é baiano também. A tradição é a mesma. De mim para ele, de ele para mim, penso que não há modificação nenhuma.
HR: Você mestre representa mais uma tradição africana, angolense. Ele apresenta outra tradição mais…
MP: Angola! Ele apresentou então em outra modalidade. Sobrenome de regional. Ele apresenta ela com o sobrenome de regional. Mas ele é angoleiro, ele aprendeu angola.
HR: Era, era…
MP: Ele é tão angoleiro quanto eu sou, aí eu não desmereço ele…
HR: E os outros como Waldemar e Caiçara… São discípulos seus ?
MP: Aqui para nós, eu não posso dar a finalidade do outro. Só posso dar a minha. Porquê eu só posso apresentar a minha, não posso apresentar a outra.
HR: Não, não, eu não perguntei isso. Eu perguntei somente como tradição africana.
MP: É a mesma, a tradição é a mesma. Agora eles tem a declaração deles diferente. Eles aprenderam com outro mestre. Eu não posso dizer nada.
HR: Que planos tem para o futuro ? Para modificar, fazê-la maior ?
MP: O futuro dela é esse mesmo. Da evolução do homem. Aí é somente a evolução do homem. Mas ele tem que se manifestar dentro dela mesmo. No mesmo ritmo, não pode sair fora…
HR: Me diga uma coisa… Que significado tem quando eles começam cantando, e saúdam assim. Uma saudação. Tem algum sentido religioso ?
MP: Ela é religiosa. Vem da mesma religião que tem o candomblé. Tem o batuque, o samba. Ela é da mesma parcela. Agora, com a modificação, um pouquinho diferente. O manifesto é um pouquinho diferente. Mas a parcela é a mesma, a religião é a mesma.
HR: Alguém me disse que há uma rivalidade entre candomblé e capoeira…
MP: Não há rivalidade… É unida.
HR: Em algum livro eu li que há uma briga entre elas. Não há ?
MP: O capoeirista é o mesmo feiticeiro. Agora eles abandonam mais uma parte por outra. Nós acompanhamos o fetichismo. Nós acompanhamos o candomblé. Não fosse assim, nós não iríamos na casa de candomblé. Não é ? Mas é da mesma parcela. Agora um que gosta mais de uma finalidade que da outra.
HR: Claro, claro…
MP: Um corre mais por capoeirismo, outro corre mais por fetichismo.
HR: A revista que lhe prometi, vou lhe mandar da Finlândia. Porque aqui não tem… Do Rio eu podia mandar, porque no Rio tem. Podia mandar alguma fotografia de [inaudível].
MP: Pode mandar. Quanto mais, melhor…

Palestra do Dr. Fu Kiau (Salvador, 1997)

O texto abaixo foi gentilmente cedido por Daniel Mattar, treinel da FICA. O texto foi transcrito a partir de fitas K7 contendo a gravação da palestra do Dr. Fu Kiau, realizada em Salvador (1997)

III ENCONTRO INTERNACIONAL DE CAPOEIRA ANGOLA Fundação Internacional de Capoeira Angola – FICA
Palestra do Dr. Fu-Kiau (Lemba Institut – New York/USA) Salvador/Ba, agosto de 1997.
FITA 1 – LADO A
Dr. FU-KIAU: Eu vou falar pra vocês do nascimento do mundo da capoeira na terra Congo. São alguns fatos que nós temos que conhecer antes de começar qualquer coisa. Entre 1500 A.C., essa área particular que chama Angola e Congo foi visitada por fenícios. Essa visita foi a primeira registrada fora do continente africano, então foi a primeira visita conhecida pelos ocidentais. Entre esse período que nós falamos e o século XIII há um silêncio total, não sabemos nada. Depois deste tempo, o século XIII, que o reino do Congo-Angola cresceu. Esse reino era muito poderoso nesse momento particular (nessa época) . Esse reino era tão poderoso que era conhecido… era tão conhecido, que tinham livros escritos sobre esse reino. Vários professores universitários pesquisaram sobre esse reino, na Europa. Um deles chama-se Lopes, de Portugal; um outro chama-se George Balandier, da França, e George Balandier é um dos mais conhecidos dessa época da história do Congo, porque é dentro da pesquisa dele que nós encontramos (buscamos) as informações sobre o reino do Congo. Ele foi o primeiro europeu a reconhecer que o reino do Congo era tão poderoso, reconhecendo a existência de quatro universidades nesse local. Um deles foi conhecido como Instituto Lemba; o segundo conhecido como Instituto Kimpassi; o terceiro conhecido como Instituto Kikumbi, e o quarto, Instituto Welo (ou Uelo). Urna dessas universidades foi feita para o treino de mulheres. É muito importante insistir nesse fato. Por que essa existência de uma universidade prá mulheres? Porque o Congo acredita que a mulher é (ou está) mais perto de Deus. Porque a existência humana é impossível sem a presença da mulher. Esse reino do Congo, como era conhecido na época, é hoje conhecido com três nomes diferentes. O Ocidente descobriu a importância desse reino e não quis que este permanecesse unido, então dividiram esse espaço em três poderes: o sul deste reino foi para Portugal, conhecido hoje como Angola; o centro foi para a Bélgica, hoje conhecido como Zaire, ou República do Congo; o norte do reino foi dado para a França, e é conhecido também como República do Congo. Mais de 40% dos escravos trazidos para as américas vieram desta região particular. É bem infeliz para nós, porque o mercado de escravo destruiu totalmente este reino. Os maiores mestres que existiam nesse reino foram levados. Todos os jovens entre 15 e 25 anos também foram levados, e o pior, quando eles chegaram no Novo Mundo, por causa do tratamento que eles receberam, esses mestres… todos esses mestres que tinham esse conhecimento, tiveram que morrer. Eles morreram durante a travessia do Atlântico; quando chegaram na terra foram submetidos a trabalhos forçados, e os que não queriam se submeter tiveram que lutar. E como eles não tinham armas como os serthores, eles começaram a se organizar de maneira secreta Nessa medida eles começaram a entender os poderes que eles tinham adquirido na África E a mesma capoeira nasceu na América do Sul e no Brasil. Esta mesma prática existiu no norte da América Não conheci pelo mesmo nome. O ensinamento do que nós conhecemos como capoeira foi conhecido por outro nome, mais conhecido pelos seus aspectos de igreja, e se chamava mong. Então são esses dois nomes: capoeira e mong, o que era a capoeira no Congo-Angola Como eu disse mais cedo, Congo-Angola foi a terra da origem da capoeira, e então no caso o Brasil ter conhecido a capoeira não foi errado, não foi mal conduzido. Achou seu camitrho. Temos que entender as crenças e a visão de mundo destes povos. O povo bantu acredita que existem quatro níveis na vida O início de tudo, que nós conhecemos como big bang, é o nível 1, ali embaixo, conhecido como mussoni. Depois do big bang veio o processo de resfriamento, o mundo foi solidificado, e temos o nosso planeta Terra. Esta aí é a etapa 2. É nesta etapa 2 que a vida começa no seu nível mais baixo. E aí vem a etapa 3 onde os animais começam a surgir. É na etapa 4 que os seres humanos surgeim (Anne: eu falei vida no 2, mas eu acredito que seja vida vegetal). Eaí a vida é (se) completa na face da Terra. É nesse esquema que o povo bantu-congo tem como bases os seus ensinamentos, e acreditam que nada na Terra foge dessa base, desse esquema. Biologicamente, nós somos concebidos na etapa 1, nascemos na etapa 2 , amadurecemos na etapa 3 e morremos na etapa 4. E esse processo continua através do Universo. E eles explicam porque a lua é nua para eles. A lua está nua nessa etapa, sem vida nenhuma, porque ela está na etapa 2. Nesse processo nós vamos também descobrir o que é a vida. Todos os ensinamentos seguem o mesmo esquema. O povo bantu, devido o ensinamento nessas quatro partes (etapas), tem um tempo que nós temos que entender a origem da vida, como a vida na Terra é concebida, e o que é o nascimento. O que é também ser maduro e um líder, e o que é morrer. Para os bantu, a morte não é o fim, porque a morte é um processo como qualquer outro processo, e porque é um processo eles veem como música. Nós nascemos sob música e morremos sob música, porque dentro de nós temos uma percussão que é o coração. Então os instrumentos que fazemos fora de nós são iguais, e é por isso que é importante para qualquer pessoa envolvida com capoeira. Para entender o conceito da música dentro da capoeira, esse candidato tem que entender que a música é o seu coração biológico. Vou tentar explicar isso com os slides. Para os bantu, especialmente os congo, viver é um processo emocional, de movimento. Viver é movimentar, e movimentar é aprender. Você avança, você se movimenta para trás, você se movimenta prá esquerda e você se movimenta para a direita, e essas são as quatro direções. Mas, tem mais três. Temos que aprender a se movimentar para cima, temos que movimentar para baixo. São as seis direções. Um candidato à capoeira deve descobrir a sétima direção. E essa direção é muito importante. Temos que entender que dançar e se movimentar é se movimentar dentro de um ovo. O capoeirista se movimentando tenta quebrar essa casca de ovo. O capoeirista (candidato a capoeira) é como um pintinho dentro do ovo, tentando quebrar a casca. Ele tenta bater prá cirna, bater prá esquerda, bater prá direita, bater pra frente, bater pra trás, bater pra baixo, mas a coisa mais importante é bater pra dentro (por dentro). É por isso que o capoeirista quando jogando, não pode perder o centro. É por isso que na vida temos que também ter essa consciência de não perder o centro para ter saúde e riqueza. O Movimento na vida é muito importante, e temos que descobrir o valor da vida Se você prestar atenção aqui, você tem um centro e temos essas direções. E eu falei que se movimentar é aprender. Os movimentos que você faz na capoeira é um movimento, e não é limitado a aula que você está aprendendo (no caso, aprendendo capoeira). É parte da sua própria vida. Você tem que conhecer pessoa fora. Você precisa encontrair (conhecer) as pessoas vivas e as pessoas mortas. Esse conceito não é muito conhecido no Ocidente, e por isso que o Ocidente não entendeu muito bem a cultura africana. Nós aprendemos mais com os mortos do que com os vivos. Isto é muito comum dentro do povo africano. Isto é ilustrado na maneira como os africanos respeitam os mortos. E é verdade também… mas eles não enxergam, não percebem nessa (ordem). Se você for em qualquer livraria, você vai ver mais livros escritos por mortos do que escritos por vivos. E os bantu falam: nós escutamos e aprendemos mais dos mortos. É por isso que os bantu falam: escutem mais os mortos que os vivos, porque os mortos se tornaram pedras, e os vivos são capim. Eles podem ser facilmente pisados, enquanto os mortos, que são pedras, não podem ser destruídos tão facilmente. Então isso aí é muito importante na nossa vida quando descobrimos a…..
Daniel Dawson: Alô. Eu acho que muitos de vocês já viram a apresentação de Dr. Fu-Kiau antes, mas certamente vocês podem ouvir isso novamente. Dr. Fu-Kiau é importante como pesquisador, como estudioso, e como um líder de tradição. Ele tem duas formações: uma formação em sistemas tradicionais africanos, tais como LEMBA, e várias outras. Ele também foi educado da forma ocidental. Ele é um doutor em Educação, e tem vários mestrados. Atualmente é o diretor do serviço de biblioteca numa prisão de Boston (USA), onde ele ensina cursos sobre cultura africana. Ele também foi um dos primeiros africanos a abrir um instituto dedicado à cultura africana, e muitos dos mais importantes estudiosos, como Robert F. Tompson……….aprenderam suas informações vindas dele. Pelo fato do Instituto dele ser dedicado ao registro e a discussão da cultura africana, ele é uma enciclopédia dessa cultura Nós deveríamos nos beneficiar de algum dos conhecimentos dele, hoje. Muito deste conhecimento vem do Instituto Lemba. Lemba foi importante em todas as Américas. É importante também no Candomblé de Angola porque existe um nkisi chamado Lemba; é importante no Haiti porque uma parte do seu vodum é chamado vodum Lcmba; é importante também em Cuba. Então Lemba é uma das instituições mais importantes, e vocês vão poder ter contato com isso, porque não só ele é uma pessoa iniciada em Lemba, mas ele tern um estudo ocidental dedicado a isso, e tem o processo iniciatório. Também serão beneficiados pela tradução de Eneida. Dr. Fu-Kiau.
Dr. FU-KIAU: É um grande prazer prá mim estar aqui. Esta é a segunda vez, segundo dia que eu experencio algo que me faz chorar. A primeira vez eu fui para uma celebração, e nessa particular celebração eu ouvi canções que não eram em português, mas canções que eram na minha língua. E aqui novamente, eu ouvi algumas canções, não em português, não em inglês, nenhuma outra língua européia, mas em minha língua e em iorubá. E uma dessas canções fez o meu coração bater tão rápido. Essa música era KALUUNGA KULUMUKA. Kaluunga é uma palavra chave na religião congo. A palavra significa o oceano; também significa imensidão; significa também a energia maior que existe. É também a palavra que significa Deus. Então pra mim ouvir Kaluunga Kulumuka, todo o meu corpo mudou. Eu vi os céus descendo entre nós. É uma pena que muitos não tenham essa mesma experiência em particular que eu tive. A segunda canção, foi a canção na qual os cantores estavam tentando enviar suas lágrimas como uma chuva, ao contrário do que acontece conosco quando ela vem dos céus. E depois dessas duas canções, eu disse pra mim, dentro de mim: “se eu tiver algum poder de falar aqui, talvez fosse apenas o fato de eu sentar e ouvir mais. Mas porque me foi pedido prá falar, eu tenho que dizer algumas coisas.
O Brasil, na minha experiência é o meu país. Porque, em qualquer outro lugar que eu for agora, eu vejo as pessoas retomando prá casa. Mesmo aqui, as canções, os tambores… da mesma forma que são tocados e cantados de volta na minha casa. Uma terceira canção que eu mencionaria aqui, que foi a canção… e nessa canção tem algumas palavras, na verdade são duas palavras, e essa canção foi NGOMA MALEMBE, que significa: “tambores toquem devagar, não nos acelere, não nos façam andar- rápido. Nós não vamos compreender suas vibrações”. Essas são coisas profundas prá mim.
Eu tenho muito orgulho de ter sido permitido de visitar o Brasil, e eu agradeço a esta senhora chamada SIMBI VALDINA e Mestre Cobrinha. Sem eles eu não poderia estar aqui. Eles são as portas para que eu possa estar aqui. Nós estamos vivendo um tempo diferente agora. Por quatro ou cinco centenas de séculos nós estivemos separados. Nada nos separa agora: nem o oceano, nem a terra, nem inesmo as línguas. Nós somos um, hoje. E pelo fato de termos nós tornado um, nós temos que aprender uns dos outros. Eu vim aprender de vocês, e eu espero que vocês venham aprender de nós. O mundo tornou-se uma única vila (aldeia), uma vila global. E nessa vila, nós teremos as tendas (as barracas) dentro das quais teremos irmãos de sangue, pessoas brancas, pessoas amarelas, pessoas vermelhas e talvez pessoas verdes e amarelas [talvez em referência às cores das bandeirolas verdes e amarelas que decoram o Terreiro Catendê]… a gente ainda não sabe (Risos), porque o universo está se expandindo. Há apenas algumas semanas atrás um homem enviou uma máquina que aterrissou em Marte, e a gente sabe que as máquinas continuarão a ser enviadas para mais outros lugares, e que provavelmente nós encontraremos seres vivos nesses outros planetas. E esses seres também serão aceitos nessa vila global. Nós vamos aprender suas línguas e eles vão aprender as nossas línguas, mas primeiro precisamos encontrar o nosso círculo, a nossa fonte, como a nossa casa Na sua casa você está seguro e você está protegido. Sem o seu próprio centro, sem a sua casa, você não pode está seguro. Você vai estar sempre com medo em qualquer lugar que você esteja. Lá fora, e mesmo dentro do prédio mais bonito. Se você não tem o seu centro dentro desse edifício, você não vai estar seguro. É importante para nós, povo africano, descobrir as nossas próprias raízes. Essas raízes, não necessariamente têm que ser encontradas na África. Existem muitas coisa que estão neste momento faltando na África, da mesma forma que muitas coisas estão faltando no Novo Mundo, pelo lato de que houve um tempo em que muitos Estados na África foram destruídos pelo tráfico de escravos. A maioria dos maiores mestres que existiam realmente naqueles países foram aniquilados. Eles foram capturados e transformados em escravos. Muitos poucos dentre eles chegaram a alcançar o Mundo Novo, e muitos morreram nessa travessia do oceano; e como tal, muitos conhecimentos da África foram tomados, levados da África. É por isso que nós precisamos nos reunir, porque uma parte desse conhecimento var ser encontrado no Mundo Novo [a imagem do caleidoscópio: pedaços que se espalham formando novas configurações se, contudo, perder- o colorido, ou a beleza], e uma outra parte será encontrada no Mundo Antigo, na África. Eu escutei muitas palavras nesse país, que são canções que não existem mais na África hoje, e que nós sabemos que são canções Lemba. E eu sei que são canções Lemba porque eu sou um iniciado Lemba. Quando eu era jovem eu não conhecia essas canções, mas quando eu fui iniciado eu aprendi essas canções. E quando eu cheguei no Mundo Novo, eu encontrei essas mesmas canções, e as palavras chaves mais importantes nos ensinamentos da África, são encontradas aqui também. A minha conversa com vocês vai abarcar muitas coisas, e urna delas será a visão de mundo do bantu; como é que o bantu vê o seu mundo. É muito importante você compreender esse mundo bantu. A palavra bantu foi introduzida no Mundo Novo através de estudos antropológicos, e como tal esta palavra é mal-compreendida. BANTU significa, em primeiro lugar, pessoa. E esse é o plural. O singular disto é MUNIU. Então o bantu, ele não é aperras encontrado na África Eu sou um MUNTU, e vocês todos são bantu. Existe um ditado, quando os homens brancos entraram na África, na área bantu, em todos os lugares ouviam estas palavras: muntu e bantu. Aí o homem branco disse: ah! eles são bantu. E quando os homens bantu descobriram que os homens brancos estavam chamando eles de bantu, eles ficaram surpreendidos e disseram: Bom, se nós somos bantu, então vocês não são bantu. Então nós podemos lhes colocar em qualquer categoria que nós quisermos. Em animais, em árvores, em pássaros, ou até mesmo vocês podem ser uma terra Mesmo assim esse erro foi cometido e a gente não consegue corrigir isso hoje. Mas nós fazemos, precisamos descobrir o centro de nós. E nós podemos ir a qualquer lugar se nós protegemos o nosso centro. Nos tornamos hoje em dia mais doentes porquê estamos perdendo o nosso centro, porquê geralmente as pessoas fora se sentem desprotegidas. Sentem medo quando saem de casa, e protegidas quando estão dentro de casa. Seu poder interior é a chave da sua extensão fora. Nós não podemos ter medo se acaso a capoeira está se expandindo, tão longe, enquanto estiver ligado ao centro.
Mestre Acordeon: Muito obrigado Dr. Fu-Kiau, é uma analogia muito bonita. Acredito que a música é: ai ai Aidê
FIM DO LADO A
FITA 3 : LADO A
* Palestra do Dr. FU-KIAU no Terreiro Catendê. Festa de TEEMPO Salvador, 17/08/97
Macota Valdina Pinto: … é da cultura bantu, e dar à ela o lugar que ela merece , ao lado da cultura iorubá e da cultura ewê-ewê fon. Entre nós, a cultura tem sido deixada, tem sido transmitida através da oralidade, quando nós nos iniciamos num terreiro. E nós aprendemos com os mais velhos, através dos exemplos, através das repetições, através da participação, traços de culturas tradicionais. O jeito como nós fazemos aqui no Brasil, pode estar distante da África tradicional, mas é o que nos liga e o que nos dá identidade africana, é o que nos é passado através da religião. Então, uma língua africana que foi impedida de se falar, o nome, que dá identidade a um ser humano, e que também foi proibido de se ter, nós resgatamos no candomblé. Então, o candomblé é muito mais do que uma religião pra nós. O candomblé é o espaço onde a gente afirma, onde a gente resgata uma identidade que nos foi tirada. Eu acho que é muito mais… não sei se Mutá, mas muito mais nós estamos aqui hoje prá aprender com nganga Fu-Kiau. Pra mim representa minha ancestralidade aqui presente, e eu estou aqui mais para beber as palavras de Fu-Kiau.
FITA 1 : LADO B
Dr. FU-KIAU: Se você encontrar um ainigo que você não viu há dez anos, o que você faz? Dá uni abraço. Essa aí é a chave da vida. Quando nós encontramos amigos forníamos um V(<), para cumprimentá-lo. Isso significa que a pessoa que você vai encontrar também vai formar um V(>). Então as duas juntas formam um diamante ( <> ). Cada um leva a sua energia paia o centro do diamante, e se tornam um. Hoje a América não é mais só. Tampouco a África. Nos tornamos um, porque nós nos encontramos. Ou pela comida que nós comemos; ou então viajando; ou nos livros que lemos da África e da América; ou porque nos encontramos numa festa… nos tornamos Um. Esta forma (formato), na vida, é a chave principal para a vida e para viver. Temos que tentar viver para formarmos esta forma de diamante. Se podemos tentar proteger esta forma na nossa vida, teremos a capacidade para criar, para formar uma família forte, porque isto aqui é a chave de qualquer casamento. Quem entende essa forma vai conhecer a formação da sociedade africana. Dentro dessa forma temos dois “i” (a letra i). Um i é fêmea e o outro i é macho. Esses dois formam um casamento. Esses dois i criam o nascimento para outros i. Quando um i é nascido desses dois i, temos que ter muito cuidado. Não imporia o que aconteceu, não leva a sua briga para esse terceiro i, porque a vida desse terceiro i depende dos dois primeiros. É importante, como estudantes de capoeira para entender verdadeiramente que um capoeirista é um ser humano dentro de um ovo. Temos que saber como se movimentar. Então não teremos que usar um martelo para quebrar a casca, porque você é poderoso. Você pode não saber disso, mas o poder tá dentro de você. Como capoeirista, pode destruir facilmente se usado de maneira errada. Mas, o poder dentro de você, como capoeirista, se usado de maneira apropriada, você pode construir muito mais do que você acha. Precisamos dessa energia hoje para poder construir uma nova aldeia, uma aldeia global, aonde todo mundo vai (boiar), cada um dentro do seu próprio ovo, sem quebrá-lo, por outros … (Inaudível) a menos que nós queiramos. Como eu disse, esta foi uma palestra breve… falei demais? Se for o caso eu paro aqui. Se tiverem alguma pergunta, podemos respondê-la aqui ou fora. Muito obrigado. .APLAUSOS.
Cobrinha: O Daniel vai apresentar o Dr. Fu-Kiau.
Daniel Dawlson: O Dr. Fu-Kiau é um tipo raio de estudioso. Ele nasceu em Manianga, Zaire, hoje República do Congo. É um local muito importante para as tradições do Congo. Dr. Fu-Kiau também tem duas educações. Ele tem o doutorado numa universidade ocidental, mas também ele foi educado nos ensinamentos tradicionais africanos. Ele foi iniciado em três academias diferentes, na África. Um que um dos mais importantes capoeiristas cantou sobre. O nome desse local é Lemba. É um local muito importante na África para o conhecimento tradicional. Muito desse material (ensinamentos) que nós vemos agora vem desse… Lemba. Ensinamento Lemba. Ele foi também um dos primeiros africanos a abrir um instituto na África, em 1963, para coletar informações sobre culturas tradicionais na África. Foi a primeira instituição criada por um africano. Muitos destes estudiosos jovens, aprendem destas instituições…
Cobrinha: Muitos destes estudiosos jovens aprenderam sobre cultura tradicional através deste instituto, desse material coletado.
Daniel Dawlson: Ele escreveu seis livros. Ele é considerado escritor predominante sobre a cultura congo. Obrigado.
DEBATE
Mestre Acordeon: Em primeiro lugar, parabéns Dr. Fu-Kiau, aprendi bastante. Obrigado pela palestra, nós temos sempre que aprender, mas eu gostaria de fazer também alguns comentários. Quero pedir a permissão dele, com todo respeito que faço, não somente por ele, pela palestra dele, como também pelo conhecimento que ele tem. Eu tenho morado nos Estados Unidos por 18 anos, e tenho a oportunidade de intervir de alguma forma como nós apresentamos, nós estudamos alguns desses aspectos que se relaciona com a nossa cultura. No específico da capoeira, durante esse tempo nos Estados Unidos, eu recolhi muitas teses de doutorado, de mestrado… eu tenho examinado por algum tempo, e naturalmente capoeira é importante, porque é uma arte africana em essência, e interessa a muita gente, mas eu tenho dificuldades em alguns aspectos. A capoeira tem uma história longa no Brasil, não somente através da tradição oral como também através de registros escritos. Eu tenho examinado que existe uma tendência, nos Estados Unidos, dessas teses, desses trabalhos destes estudiosos, de se classificar a capoeira dentro de uma perspectiva que não leva em consideração essa trajetória histórica da capoeira no Brasil. A maioria desses trabalhos, dessas pessoas, que escrevem, que falam, que estudam capoeira, não conhecem suficientemente da língua portuguesa para examinar essa literatura que nós temos, nem a nossa história. Então o pessoal se baseia dentro da literatura, em inglês, sobre artes africanas, sobre história africana, sobre rituais africanos. Eu acredito que o estudo desta literatura sobre temas africanos, sobre as artes africanas, filosofia e tudo o mais, é de fundamental importância para nós entendermos a… brasileira, para nós entendermos a nossa herança cultural africana, mas na verdade, estes estudos não explicam… Através de a capoeira se apresentou de forma diferente, e foi uma questão de sobrevivência da capoeira (>>>>) Então eu pergunto: quanto válido é se aplicar o modelo africano que nós levantamos através do estudo, da literatura e do material desta …sobre capoeira que é uma arte essencialmente africana, em termos de elementos foimativos, mas que através do tempo mudou tanto, se apresentou com tanta roupagem, se nós já reconhecemos, já registramos, existe, está na literatura, só que não é disponível para (inaudível). Então eu perguntei pro Dr. Fu-Kiau qual é a validade de se aplicar genérico de uma arte, de forma tão mutável, porquê a meu ver é (me esqueci do termo em português…) um erro metodológico de pesquisas, de trabalhos em termos de estudos antropológicos, em termos de deduções analíticas…
Dr. Fu-Kiau: Sua questão é muito importante. É uma semente viva que você tá jogando aí. É muito difícil responder esta pergunta, só se Makindê estivesse aqui… o que é uma coisa muito difícil… Mas eu vou tentar responder o que pode fazer parte da minha resposta Porque minha resposta não vai ter só uma parte, não vai se resumir em uma parte só. Alguém aqui está com seu filho ou filha aqui? (….) Isto aí é muito importante, isto aí é que é uma das coisas que eu encontrei em toda a minha vida nos Estados Unidos. Na África, nenhum ensinamento vai ocorrer sem a presença das crianças, porque as crianças são nosso futuro.(….) Esta aí é Vera, e Vera é parte de Gabriel. Gabriel não pode ser sem Vera. Ela até que poderia ter tido este filho com um homem que não visse mais. Talvez o pai não fosse nem reconhecer o filho. Mas este homem, não importa aonde ele esteja, este homem tem uma ligação com Gabriel. Ele aceite esta ligação ou não, ele é parte de Gabriel. Como tal, ele é ligado a Vera. Gabriel não será uma semente inteira dentro da comunidade, sem estas duas forças, estes dois V’s, protegendo Gabriel. Eles podem ser separados, mas eles têm as responsabilidades para proteger Gabriel. Este aí é o processo de passar o conhecimento. Temos que reconhecer a fonte, porque todas as fontes são sementes, e todas as sementes podem se tornar árvores. Não importa como são os galhos. Estes galhos têm que ser alimentados pelas raízes do tronco, porque eles são parte desta semente. Essas galhos podem ser grandes e bonitos, e estes podem ser fininhos sem muitas folhas. Mas eles são parte da árvore, fazem parte da árvore. A diversidade é importante na vida humana. Mas não tanto quanto a unidade. É verdade que a capoeira passou por muitas mudanças. Mas todas as capoeiras têm uma semente. E esta semente tem que ser reconhecida. Porque sem ela, capoeira não é. Sabemos, por exemplo, de uma dança conhecida, famosa, no Novo Mundo, o Tango. Todo mundo conhece o tango, sabe o que é, e sabemos que tango é uma palavra africana Tango querendo dizer tanga no singular e matanga no plural. O mundo, por si é uma palavra, e o nome matanga é um segundo funeral. Quando um chefe morre dentro de uma comunidade, a comunidade chama todo mundo, até em comunidades distantes, para fazer um encontro.
FIM DO LADO B
FITA 2 LADO A
Dr. FU-KIAU: Depois que a comunidade souber o que nós devemos, nós coletamos o dinheiro, e pagamos as pessoas, a quem a pessoa está devendo. Quando o balanço está feito, a dança chamada Matanga é aberta, com muitos instrumentos musicais. Quando os escravos chegaram ao Novo Mundo, eles trouxeram esta dança, que ocorria geralmente aos domingos. O Tango não é uma dança no Novo Mundo como ela era no Congo. O Congo não pode reclamar do Tango como ele é hoje em dia. Mas eles reconhecem. Eles foram os doadores do Tango para o Novo Mundo. É importante para o mundo Ocidental saber de onde vem esta palavra Quando nós chegamos no Novo Mundo, nós mudamos os nomes das localidades. Eu fui visitar, há duas semanas atrás, o Grand Canyon, que é um belo lugar nos Estados Unidos. Antes de ir eu perguntei a muitas pessoas educadas, ninguém podia me dar o nome original deste local. Porque nós pisamos este nome. Nós não sabemos o que Grand Canyon era no passado. Nós não sabemos da História que nós estamos pisando, mesmo, quando nós vamos lá no Grand Canyon, porque perdemos o nome deste local. E eu descobri que o noine deste local significa “Fonte do Sal”, porque os índios tinham o costume de ir lá e coletar o sal para as comunidades respectivas. E muito importante pra gente saber de onde nós viemos, para então saber para onde estamos indo. Se nós sabemos que estamos encima (ou debaixo da terra). Nós não vamos destruir a terra Porque nós não prestamos muita atenção aonde nós estamos pisando, então nós destruímos. Nós construímos encima, nós andamos em cima, nós cuspimos em cima, nós fazemos amor em cima, mas ninguém pensa que a terra é mais importante do que qualquer outra coisa que nós temos. Nós a estamos destruindo, porque não temos a consciência do seu valor. Tem uma música que nós estávamos cantando na capoeira, essa música “ia, iê, ia ,iê…”, eu não lembro bem da música, mas é um nome congo, em que yanya (iaiá) quer dizer mãe, porque é a terra. Porque o capoeirista não pode se tornar parte se ele não conhece a terra Porque você pode voar em cima, mas você não pode esquecer que vai volta à terra. O que é a fonte. Não importa o que eu estou dizendo prá vocês que nós todos somos bantu. E cada um dentre vocês é um Muntu. É um ser humano. Então agora eu vou falar um pouquinho agora sobre a visão de mundo do bantu. O bantu acredita que o nosso mundo é um ovo. Um ovo que pode expandir. E nós acreditamos que nessa expansão muitos mundos estão sendo criados. E a Terra, de acordo com o bantu, foi o primeiro planeta a ser feito, e que todos os planetas do Universo, de acordo com o bantu, passam por quatro passos principais. O primeiro passo é chamado de MUSSOME, que literalmente quer dizer imprimir. Imprimir códigos genéticos. Dentro das árvores, dentro das pessoas, dos povos… e depois dessa posição que é chamada de Mussome, é também a posição concebida como Big Bang no Ocidente. Aí vem o processo KULINGUI. Esse processo de resfriamento levou muitos e muitos e muitos anos, até que a terra tornou-se sólida. Aí veio o estágio dois. E este estágio chamado KALA, é o estágio de nascimento da terra. É também nesse estágio que a vida sobre a terra, no seu nível mais inicial, no seu nível mais inferior começou. As plantas começaram a crescer. E aí vem o terceiro estágio, que é vermelho, e esse terceiro estágio, a terra testemunha o nascimento dos animais. E aí vem o quarto estágio, que é LUVEMBA, e que eu conheço muito bem, e que PEMBA é muito conhecido aqui no Brasil. Então PEMBA e LUVEMBA são a mesma palavra. Então é nesse estágio que ocorre o Homem ou o ser humano. Com o nascimento do Homem sobre a terra, nós ternos também a morte, FUÁ, ou LUFUÁ, que é morte. E aí o processo se completa. Esse processo, ele ocorre hoje no universo. Para as pessoas bantu, eles vão dizer que a lua está nua porque…
MUTÁ IME: …Possa pensar que nós temos que nos unir para um novo mundo. Nos prepararmos para um mundo melhor. Eu gostaria de cantar uma canção em comemoração ao término da fala do Dr. Fu-Kiau. Eu repetirei aquela cantiga que o emocionou tanto, e que também significa LEVANTAR, SE ERGUER E CAMINHAR, já que estamos hoje celebrando TEEMPO, MOVIMENTO, CAMINHADA, AÇÃO E PENSAMENTO.
FIM DO LADO B

Mestre Pastinha – É luta, é dança, é capoeira

Entrevista realizada por Roberto Freire e publicada na revista Realidade, em 1967.

Dois homens vão lutar. Estão acocorados um diante do outro, presos ao ritmo de uma estranha música. Atrás deles, um velho toca berimbau e puxa o canto que será repetido pelos outros cinco instrumentistas. Todos os seus versos terminam com a palavra camarada. O nome do velho é mestre Pastinha. A luta vai se travar em sua Academia, no bairro do Pelourinho em Salvador, na Bahia. Um dos músicos retira o berimbau das mãos do mestre, que estende os braços à procura das cabeças dos lutadores. Ele diz um último verso: é a senha para o início da luta. Os dois homens vão lutar capoeira, e se benzem quando a mão do mestre deixa suas cabeças. Surgem os primeiros golpes. Só mestre Pastinha não os vê. mas parece pressentir. Ele está quase cego, mas sabe tudo sobre capoeira, que lutou, invencível, até os 78 de idade. A história da sua vida alcança quase toda a história da capoeira no Brasil. Ele a conta assim:
“Compreende melhor quem vê a luta. Ela parece uma dança, mas não é não. Capoeira é luta, e luta violenta. Pode matar, já matou. Bonita! Na beleza está contida sua violência. Os meninos estão só mostrando, os golpes passam raspando ou são contidos antes de atingir o adversário. Mas mesmo assim ela é bonita.
“Tudo o que eu penso de capoeira um dia escrevi naquele quadro que está na porta da Academia. Em cima, só estas três palavras: Angola, capoeira, mãe. E, embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo em ânsia de liberdade; Seu princípio não tem método; Seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.
“Mas tem muita história sobre o começo da capoeira que ninguém sabe se é verdadeira ou não. A do jogo da zebra é uma. Diz que em Angola, há muito tempo, séculos mesmo, fazia-se uma festa todo ano em homenagem às meninas que ficavam moças. Primeiro elas eram operadas pelos sacerdotes, ficando igual, assim, com as mulheres casadas. Depois enquanto o povo cantava, os homens lutavam do jeito que fazem as zebras, dando marradas e coices. Os vencedores t inham como prêmio escolher as moças mais bonitas entre as operadas. Pode não ser verdade, mas os capoeiristas de hoje bem gostariam que fosse, desde que suas vitórias tivessem prêmio igual…
“Bem, mas de uma coisa ninguém duvida: foram os negros trazidos escravos de Angola que ensinaram capoeira para nós. Pode ser até que fosse bem diferente dessa luta que esses dois homens estão mostrando agora. Me contaram que tem muita coisa escrita provando isso. Acredito. Tudo muda. Mas a que a gente chama de capoeira de Angola, a que aprendi, não deixei mudar aqui na Academia. Essa tem pelo menos 78 anos. E vai passar dos 100, porque meus discípulos zelam por mim. Os olhos deles agora são os meus Eles sabem que devem continuar. Sabem que a lula serve para defender o homem.
“Os negros usavam capoeira para defender sua liberdade. Pode ser até que o nome da luta venha justamente disso. Negro fugia era para o mato. Se algum capitão-do-mato o alcançava, se era um a um, numa clareira, numa capoeira – então, ali, o negro era mais livre para se defender.
“E dizem também que esse jeito de lutar de brincadeira como ainda fazemos hoje, era a maneira do escravo se exercitar, disfarçando de bailarino na frente do feitor. Acho que é até verdade, capoeirista é mesmo muito disfarçado, ladino e malicioso. Contra a força, só isso mesmo. Está certo.
“Mas o que serve para defesa serve também para o ataque. A capoeira é tão agressiva quanto perigosa. Quem não sabe lutar é sempre apanhado desprevenido. Malandros e gente infeliz descobriram nesses golpes um jeito de assaltar os outros, vingar-se de inimigos e enfrentar a Polícia. Foi um tempo triste da capoeira. Eu conheci, eu vi. Nas bandas das docas… Luta violenta, ninguém a pode conter.
“Agora que o ritmo está mais apressado, sinto a agilidade desses dois homens e imagino cada um dos seus golpes acertando em cheio o adversário. Imagino raiva, medo, despeito, desespero, empurrando esses pés… Uma vez vi um capoeirista afugentar uma patrulha inteira. Outra coisa: um lugar escuro, uma mulher, chega um cara querendo coisa – homem querendo mulher está sempre desprevenido – então, de repente, ele recebe um golpe, só um e cai ferida desacordado ou morto. Sim senhor, havia capoeirista malandro que se vestia de mulher para roubar os dão- joãos.
“Eu sei que tudo isso é mancha suja na história da capoeira, mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica? E a faca? E os canhões? E as bombas? O que eu gosto de lembrar sempre é que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravidão. Nas músicas, que ficaram até hoje, se percebe isso. Uma é essa que eles estão cantando e que eu vou cantar junto: “E, valha- me Deus, camarada. / E, água de beber, camarada. / E, que vai fazer, camarada./ E, ele é mandingueiro, camarada. / E, ele é cabeceiro, camarada./ E, faca de ponta, camarada. / E, faca de matar, camarada./ E, o galo cantou, camarada./ E, có-có-ró-có, camarada;/ E, a volta do mundo, camarada./ E, é o que o mundo dá, camarada’.
“Entenda quem quiser, está tudo aí nesses versos o que a gente guardou daqueles tempos. Tem brincadeira também; vou fazer uma pra um desses dois lutadores. Minha voz, mesmo baixa e de longe, eles escutam: ‘E, valha-me Deus./ valha-me Nossa Senhora da Vitória./ Vi esse menino agora / lá no reino da glória. / Menino se eu quisesse, / (ah, ah, ah) tinha lhe botado fora’. Pois capoeira é luta, sim mas é folclore e tradição bonita também. E a gente conservou ela pura, todos fazendo escola, criando academias e ganhando o respeito do povo, dos artistas, dos estudiosos e do governo. Digo a gente, lembrando os grandes capoeiristas do passado. Já estão mortos. Cada nome destes é uma história: Bigode de Seda, Américo Ciência, Bugalho, Amorzinho, Zé Bom Pé, Chico Três Pedaços, Tibirici da Folha Grossa, Doze Homens, Inimigo Sem Tripa, Zé do U, Vitorino Braço Torto, Zé do Saco, Bené do Correio, Sete Mortes, Chico Me Dá. Só pelos apelidos dá para saber como eram, como lutavam. E tinha duas mulheres também: Júlia Fogareira e Maria Homem.
“Toda essa gente praticava a pura capoeira de Angola como eu até hoje e esses meninos que estão aí. Tem grandes capoeiristas vivos que mudaram a forma de lutar, mas continuam sendo grandes mestres. Falo do Mestre Bimba que pratica a capoeira regional, e de Carlos Senna que inventou a capoeira estilizada. Agora que não luto mais, confio em dois contra-mestres meus para a a conservação da capoeira de Angola: João Oliveira dos Santos e João Pereira dos Santos – João Grande e João Pequeno. É o que tem de melhor, na Bahia…
“Estes versos eu fiz para homenagear eles: ‘Eu tenho dois meninos / que se chamam João / um é cobra mansa / e o outro é gavião. / Um joga no ar (ah, ah, ah) / e o outro se enrosca pelo chão’.
“Esses dois aprenderam com a Academia mas eu aprendi com a sorte. Quando tinha uns 10 anos – eu era franzininho – um outro menino mais taludo que eu tomou-se meu rivaL Era só eu sair para a rua – ia na venda fazer compra, por exemplo – e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. ‘Vem cá. meu filho’, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. ‘Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia’. Foi isso o que o velho me disse e eu fui. Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo. Ele costumava dizer ‘Não provoque, menino, vai botando devagarzinho ele sabedor do que você sabe’. Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito. O velho africano chamava-se mestre Benedito, era um grande capoeirista e quando me ensinou o jogo tinha mais idade do que eu hoje.
“Aos 12 anos, em 1902, eu fui para a Escola de Aprendiz de Marinheira Lá ensinei capoeira para os colegas. Todos me chama-vam de 110. Saí da Marinha com 20 anos. Vida dura, difícil. Por causa de coisas de gente moça e pobre, tive algumas vezes a polícia em cima de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu lembrava de Mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava capoeira, então queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso, bati alguma vez em polícia desabusado, mas por defesa de minha moral e do meu corpo.
“Naquele tempo, de 1910 a 1920. o jogo era livre Passei a tomar conta de casa de jogo. Para manter a ordem. Mas. mesmo sendo capoeirista, eu não me  descuidava de um facãozinho de doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia comigo. Jogador profissional daquele tempo andava sempre armado. Assim, quem estava no meio deles sem arma nenhuma bancava o besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não gosto de contar casos de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava sustento. Além do jogo, trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista.
“Foi em 1941 que minha vida mudou. Foi na Ladeira da Pedra, fim da Liberdade, no bairro da Gingibirra. Um ex-aluno meu, de nome Aberré, bom capoeirista, já morto, me convidou para apreciar uma roda de capoeira. Na roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era Amorzinho, um guarda civil. No apertar da mão me ofereceu tomar conta de uma Academia. Eu dei uma negativa, mas os mestres todos insistiram. Confirmavam que eu era o melhor para dirigir a Academia e conservar pelo tempo a capoeira de Angola. Fundei então o Centro Esportivo de Capoeira de Angola, em 1941, e registrei a Academia em 1952. Botei carteira para capoeiristas. Meus meninos são diplomados.
“Saem daqui sabendo tudo. Sabendo que a luta é muito maliciosa e cheia de manhas. Que a gente tem que ter calma. Que não é uma luta atacante, ela espera. Capoeirista bom tem obrigação de chorar no pé do seu agressor. Está chorando, mas os olhos e o espírito estão ativos. Capoeirista não gosta de abraço e aperto de mão. Melhor desconfiar sempre das delicadezas. Capoeirista não dobra uma esquina de peito aberto. Tem de somar dois ou três passos à esquerda ou à direita para observar o inimigo. Não entra pela porta de uma casa onde tem corredor escuro. Ou tem com o que alumiar os esconderijos da sombra ou não entra. Se está na rua e vê que está sendo olhado, disfarça, se volta rasteiro e repara de novo no camarada. Bom, se está olhando ainda, é inimigo e o capoeirista se prepara para o que der e vier.
“Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito, mas no deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um.
“Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo mestre. Ensina pelo som. Dá vibração e ginga no corpo da gente. O conjunto de percussão e com o berimbau não é arranjo moderno, não, é coisa dos princípios. Bom capoeirista, além de jogar, deve saber tocar berimbau e cantar.
“E jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar no chão com o corpo. Quando eu jogo, até pensam que o velho está bêbado, porque fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no chão, nem vai botar.
“Tenho um lema na vida: gosto de entrar sempre por baixo, para ver como é que saio. Não me casei ainda, já tive muitos filhos mas morreram todos. Tenho agora uma camaradinha que está louca para casar comigo. Dessa, não sei se escapo, não. Mas ainda é muito cedo para decidir. Depois, até agora não arrumei recursos para poder casar. Fome dá margem para muita coisa ruim. Se ao menos eu tivesse uma casa para morar, então eu me casava. Porque casa é o que mais mata o pobre, e mata na cabeça, ela come o pirão que os meninos deviam comer. Por isso não caso e o resto deixo à disposição de Jesus. Não fosse Jesus tava na sarjeta hoje, pedindo esmola.
“E tudo isso no Brasil! Brasil que tem pra dar, vender, jogar fora e negar a seus filhos. Mas fica tudo dependendo dos decretos. Saem os decretos e eles vão caducando, caducando, como caducou o grito da Independência.
“Aprendi só o primeiro livro, mas direito. O resto foi a vida que me ensinou. Ensinou a ver. Tem coisas que a gente vê e que os letrados, os professores, os políticos, não escrevem. Gostaria de ter estudado mais, mas quem não tem pão para levar para casa pode ficar lendo dicionário?
“O homem pode falar duas linguagens, mas uma delas é falsa. Não sou católico nem sou de candomblé. Eu creio em Deus, num só. Respeito gente de religião quando há respeito.
“Já viajei bastante pelo Brasil, já fui até na Africa. Em Angola, não, mas quero ir. Só para comparar a capoeira daqui e a de lá. Na hora de elogiar é Pastinha pra cá e pra lá, mas quando é viagem e apoio do governo para a capoeira de Angola, sou esquecido. É sempre assim: o trabalho é do feio para o bonito comer. Eu estou falando assim porque é modo de pensamento. Não é revolta contra a natureza. A natureza não liga para nada.
“Meu livro sobre capoeira de Angola vou vendendo e vou comendo.
“Quem me ajuda mais é Jorge Amado. Jesus lhe dê força e coragem. É muito mal empregado dizer que eu sou amigo de Jorge Amado. Ele é que é meu amigo. Quem precisa de Jorge Amado sou eu.
“Agora só falta dizer uma coisa bonita. O que vai sair na revista eu vou poder ler porque os meninos da Academia estão juntando dinheiro para pagar a operação dos meus olhos. Eles dizem que precisam do que ainda posso ver. Bonito, não?”

Aniversário do Mestre Pastinha

Hoje é o 122o aniversário de Vicente Joaquim Ferreira Pastinha.

Salve o Mestre Pastinha, e o seu legado – os jogadores leais, que sabem parar o pé, que sabem ser falta usar as mãos no outro camarada, e que não são bobos na mandinga.

Aspectos da influência africana no Brasil

por Gilberto Freyre

publicado originalmente na Revista Cultura, 1976

Que o Brasil começou a ser pré-Brasil como projeção humana e cultural da Europa – especificamente de Portugal – é fato inconfundivelmente histórico. Mas não explica por si só nem o aparecimento do Brasil como nova entidade sócio-cultural no mundo que se considere “moderno” – dando extensão sociológica a adjetivo tão impreciso – nem a sua consolidação em sistema nacional de convivência e de cultura.

Essa consolidação se processaria através da confluência de outras presenças ou de outras contribuições, além da européia. Um processo complexo e abrangente. O lastro de cultura e de população ameríndias não pode ser nunca desprezado. Mesmo porque subsiste. Mas a ele se acrescentaria fortemente outra presença não-européia: a negra africana.

A quase imediata, após o descobrimento do Brasil, presença negra africana no mesmo processo daria, paradoxalmente, a um elemento por algum tempo considerado inferior por historiadores e até antropólogos eurocêntricos, categoria, segundo nova e até revolucionária perspectiva, de co-colonizador do europeu ou do português. Daí ser oportuno aplicar-se essa perspectiva — e esse neologismo — à consideração daqueles relacionamentos culturais que, superando os étnicos, vêm resultando numa nação brasileira.

Lembro-me de que, ao referir-me em trabalho já remoto à contribuição cultural de negros da África, como valiosíssima para a formação brasileira, provoquei senão protestos, restrições, da parte daqueles intelectuais brasileiros, então ainda pouco inteirados do sentido antropológico ou sociológico da palavra cultura. Cultura negra? Cultura africana? Não havia. Daí protestos contra a tese da importância — importância que fui dos primeiros a procurar sugerir à base da antropologia mais científica — fora discípulo do antropólogo Franz, Boas, na Universidade de Colúmbia —  da influência de culturas africanas sobre a formação da cultura que viria a definir-se como brasileira. Curioso é terem vindo algumas dessas restrições de intelectuais, depois eminentes homens públicos; e, como tal, entusiastas da causa — pois é hoje uma causa — da aproximação do Brasil das culturas — pois já são tidas tranqüilamente como culturas — negras, da África, sem que isto signifique repudio à predominância de valores culturais europeus na formação brasileira. Pois o que o Brasil pretende é ser não anti-europeu, mas o contrário de sub-europeu, com as presenças não-européias na sua população e na sua cultura, valorizadas como merecem.

Que motivos, além dos somente emocionais e apenas políticos, de momento, temos para uma maior aproximação do Brasil com a África, à base dessas afinidades culturais é assunto que precisa de ser considerado nas suas bases. E a consideração desses fundamentos leva-nos de início à revisão de conceitos de Homem e de Cultura situados que retifiquem os de Homem Abstrato e de Cultura independente de sua ecologia, como se tal cultura fosse, por sua vez, outra abstração.

O conceito de Homem Abstrato está hoje, em grande parte, substituído pelo de Homem situado. O do Homem situado no Trópico é um conceito partido do Brasil e proclamado como válido pelos mestres da Sorbonne. O Homem, que o antropólogo estuda, comporta-se, em grande parte, situacionalmente. As instituições, os estilos de vida, as culturas que o Homem, assim situado, cria, conserva, desenvolve são instituições, estilos e culturas também condicionados, quando autênticos, por situações ou por ecologias. Situações de espaço físico que se projetam sobre situações de espaço sócio-cultural, condicionando, em grande parte, não só o caráter de instituições sociais e de culturas como a sua distribuição do espaço; a posição de umas com relação a outras; a maior ou menor cooperação ou a maior ou menor competição entre elas, instituições e entre grupos culturais. Na verdade — quando autênticos — instituições e grupos sócio-culturais inter-relacionados se apresentam psicoculturais. Compreende-se assim que das jovens nações africanas várias venham desenvolvendo, nas suas formas de existir e de coexistir, os chamados socialismos africanos, em vários pontos essenciais, diferentes dos marxismos ortodoxamente russos ou chineses. Do mesmo modo se compreende que o Brasil venha, há anos, experimentalmente se empenhando em desenvolver sua própria forma política de ser democracia, sem ouvir conselhos nem do The New York Times nem de Le Monde.

As culturas negras da África, juntamente com negros antropologicamente negros, isto é, através deles, quer como indivíduos biológicos, quer, mais do que isso, como pessoas sociais ou sócio-culturais, passaram, desde o século XVI, a fazer sentir sua presença na formação de um tipo miscigenado de homem paranacional e de uma configuração pré-nacional de cultura. Essa presença foi de tal modo ativa, dinâmica, influente, africanizante, que fez dos negros vindos da África para o Brasil, embora escravos, co-colonizadores – repita-se – desta parte da América, ao lado dos europeus, máximos como fundadores de nova cultura, em face de ameríndios aqui menos culturalmente desenvolvidos que aqueles negros africanos, desde o século XVI tão presentes no Brasil.

Biologicamente presentes. Culturalmente presentes. Presentes e marcantes, atuantes, influentes, contribuintes.

Contribuindo, através da mistura física, para a emergência de novos tipos de homens e novas formas de beleza de mulher. E através da mistura cultura para novas combinações culturais, como valores ou traços de origem negra ou de procedência africana colorindo valores e traços de cultura não só indígenas ou ameríndios como vindos criativa germinalmente não só da Europa como de certas áreas culturais da África. Vindos principalmente da Europa ibérica: a mais ativamente colonizadora do Brasil e ela própria já tocada, na Europa, por influências negras ou africanas.

Daí justificar-se aquele neologismo criado por sócio-antropólogo brasileiro: co-colonização. Conceito que corresponderia à caracterização do negro africano, a despeito de sua condição de escravo, como co-colonizador do Brasil com considerável influência aculturativa sobre o ameríndio, menos desenvolvido em sua cultura do que o negro africano. Um negro africano mais atuante no processo de formação biocultural brasileira do que o ameríndio de cultura menos desenvolvida que a dele.

O fato de virem se formando no Brasil uma sociedade e uma cultura nacionais para as quais vêm concorrendo tão incisivamente o europeu e o negro africano, ao lado do ameríndio, não significa uma sociedade e uma cultura fechadas a outras presenças. Há brasileiros das mais diversas procedências étnicas e culturais. Inclusive, há cerca de meio século, a japonesa, cada dia mais presente na composição da população e no desenvolvimento de uma civilização que, sendo euro-afro-ameríndia nas suas bases e nas suas constantes, não se arreceia das contribuições que lhe possam vir de outras fontes de energia humana e de vigor cultural, antes estima tais contribuições e os seus valores. Que assim é que as civilizações já seguras de suas bases e firmes nas suas constantes se engrandecem e se enriquecem; e não fechando-se nessas bases e nessas constantes e recusando outras presenças.

As idéias sobre tropicalismo em geral, e sobre Tropicologia, em particular, que estão partindo do Brasil, acentuam ser o mesmo Brasil parte de uma complexa civilização ecologicamente tropical, espalhada pelo Oriente, pela Africa, pela América, por outras áreas. Uma civilização ao mesmo tempo transnacional e multinacional, tendo por base a ecologia tropical e formada por um conjunto de áreas, todas tropicais ou quase tropicais. E todas marcadas por presenças européias unidas ou apenas justapostas às nativas. Umas e outras viriam, inter-relacionadas, pelas suas comuns condições ecológicas e pelos seus também comuns motivos essenciais de vida, constituindo-se em conjuntos pré-nacionais e depois nacionais, através de processos desenvolvidos num tempo mais que histórico.

Desenvolvidos em espaços tropiais. Em trópicos quer úmidos, quer áridos. Assim viriam se definindo condições sócio-tropicais e motivos predominantemente tropicais de vida e de desenvolvimento social. Estudos de tais situações estão esboçados em vários trabalhos brasileiros, aparecidos recentemente. Pois no Brasil há anos funciona, numa universidade federal, a de Pernambuco, um pioneiro Seminário de Tropicologia, especializado no estudo interdisciplinar de tais problemas. Enquanto o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, pelo seu Departamento de Antropologia e pelo seu Museu Antropológico, é outro centro de estudos socio-tropicais, ao lado do que funciona na Universidade Federal da Bahia.

Os condicionamentos ecologicamente tropicais de  formações sócio-culturais como a do Brasil euro-afro-ameríndio nas suas bases étnico-culturais, incluem, é claro, os que se refletem sobre suas formas de economia ou de governo, ainda em fase, quase todas de experimentação. Tal arrojo experimental não significa, no caso brasileiro, um Brasil anti-europeu e sim um Brasil apercebido de que, em vários aspectos do seu comportamento sócio-cultural, tem que ser extra-europeu. Para o que o advertem há meio século aqueles seus pensadores e cientistas sociais brasileiros, criadores de perspectivas sociológicas e antropológicas que, sem deixarem de ser ecumenicamente científico-sociais, são brasileiras, ecológicas eurotropicais nas suas aplicações ou projeções. E algumas, susceptíveis de ser utilizadas por outras sociedades nacionais em começo de desenvolvimento em espaços tropicais. Espaços onde agora madrugam ou amanhecem várias nações novas, algumas a enfrentarem problemas já enfrentados pelo Brasil euro-afro-ameríndio no seu modo de ser nação situada nos trópicos. No trópico úmido e no trópico árido.

São nações, várias das jovens repúblicas da África e do Oriente, ainda inseguras, e, por isto, por vezes anti-européias em suas atitudes e até fazendo, algumas delas, da negritude ou da amarelitude perigosas místicas racistas. A essas, como a outras nações novas, pode aproveitar a experiência de um Brasil há mais de século independente e há quatro séculos em desenvolvimento, primeiro pré-nacional, depois nacional, como civilização a procura de suas próprias formas de expressão dentro de uma ecologia tropical e sem repúdio aos valores europeus ligados incisivamente à sua base nacional. E já com uma arquitetura, com uma música, com uma pintura, com uma culinária, com um cristianismo, com um estilo de convivência, com uma higiene, com um futebol — futebol mais dionisíaco que britanicamente apolíneo — com um samba, em que se exprime, sob esses vários aspectos, um tipo de civilização novo. Novo, sobretudo, por ser mestiço, senão sempre nos sangues, nas interpenetrações de cultura. Interpenetrações que se afirmam em expressões que Blaise Cendras, o viajadíssimo Cendras, considerou tão significativas, ao destacar a cozinha brasileira como uma das três grandes cozinhas do mundo, as outras duas sendo, segundo ele, a chinesa e a francesa. Ora, a presença negra ou africana na cozinha brasileira é marcante: nos gostos como nos odores.

Sendo especificamente brasileiro, esse novo tipo de civilização é, nas suas características mais amplas, vigorosamente tropical pelo que inclui de valores europeus, quer humanos quer culturais, integrados em ambiente ou em ecologia tropical. Valores europeus desde os começos do Brasil misturados a valores mouros, indianos, ameríndios, africanos. Valores europeus, além dos ibéricos: ingleses, franceses, italianos, alemães, junto com os semitas, judeus, árabes e indianos, também presentes nos começos de civilização tão complexa. Paradoxalmente quase se poderá dizer: tão singularmente plural, além de complexa. Pois a formação do Brasil – singularidade brasileira – tem, desde seus começos, presenças as mais diversas.

A coexistência, nos começos de uma sociedade e, ao mesmo tempo, de uma cultura que viria a caracterizar-se como uma presença

moderna em espaço tropical parece ter predisposto o Brasil a combinar, de forma evidentemente feliz,  presenças aparentemente inconciliáveis ou incompatíveis como a européia e, além da ameríndia, a africana. O mito dessa incompatibilidade o Brasil vem destruindo de maneira irrecusável. Tais presenças, a formação  brasileira vem demonstrando que podem harmonizar-se sem uma das etnias tornar-se absoluta no seu domínio sobre as outras. Diga-se talvez melhor: com as três tendo oportunidades de se fazerem sentir, quer na formação, pela mistura biológica, de um novo tipo a princípio pré-nacional, depois nacional, de homem, quer no desenvolvimento de uma cultura também caracteristicamente nacional, complexa e abrangente no que a certa altura passou a receber, a admitir, a integrar de contribuições culturais vindas de outras procedências, além das básicas, às quais, com o tempo, se acrescentariam sem a elas se sobreporem.

Significativo neologismo antropossociológico brasileiro é, entre outros, metarraça. Significa além-raça. Pretende-se, com a expressão metarraça, definir uma consciência crescentemente típica do brasileiro como homem nacional, que tende a considerar insignificante a condição ou a origem étnica desse homem para só estimar o seu status, além de nacional, ecologicamente tropical e dinamicamente ocidental, de brasileiro. Já há anos os inquéritos oficiais brasileiros não indagam qual a cor ou qual a raça do inquirido: basta saber-se que é brasileiro. Condição – a de brasileiro – que vem sendo crescentemente identificada com a de moreno, embora essa identificação não signifique que todo brasileiro, para ser autêntico, deva ser biologicamente mestiço. O que ele não pode deixar de ser é culturalmente complexo. Moreno por ser negróide, em vários casos. Moreno por ser brunet. Moreno por ser bronzeado pelo sol tropical. Um amorenamento tão procurado pelo brasileiro crescentemente esportivo, ao se expor quase nu ao sol das praias. Procura, essa, tanto da parte de brunets para se amorenarem ainda mais quanto da parte de louros, hoje, no Brasil, como que sob a impressão de serem, como louros não amorenados pelo sol tropical, uns como intrusos na verdadeira natureza ou na verdadeira ecologia do seu país. Que brasileira, hoje, no Brasil, capricha em se conservar, como foi tendência entre suas avós, imune da ação morenizante do sol sobre sua pele de mulher imaculadamente alva? Esse amorenamento estético e ecológico pela ação do sol junta-se à morenidade por efeito da miscigenação cada dia mais extensa e mais generalizada entre os brasileiros. Morenidade mais que valorizada esteticamente, ao mesmo tempo que considerada evidência de integração do moreno, ou do amorenado, na ecologia tropical do Brasil.

O que se passa na área biológica também se está verificando na área sociológica. As evidências de presença de valores ou de influencias africanas nessa área o brasileiro de hoje não as considera desprimorosas para a sua gente.

Note-se, por exemplo, a muita africanização que vem fazendo do catolicismo, no Brasil, um culto repleto de símbolos, ritos, característicos que, sendo oficialmente os romanos, juntam à sua origem européia influências recebidas de crenças e de práticas religiosas do mais puro sabor africano. O culto da Virgem Maria que o diga, com suas assimilações do africano, de Iemanjá. Há, no Brasil, Nossas Senhoras, para os seus devotos, negras como a do Rosário ou pardas escuras como a de Guadalupe; e às quais se fazem promessas através de ex-votos que se constituíram, no Brasil, numa arte rústica de escultura em madeira e em barro, na sua maior parte muito mais africana do que européia no seu modo de ser brasileira. Também essas promessas envolvem, na sua sacralização de cores, significados simbólicos dessas cores que serão, vários deles, mais africanos nas suas implicações do que europeus. Ou do que ortodoxamente cristãos.

O maracatu é uma dança aparentemente recreativa e até carnavalesca que nos seus significados mais íntimos, representa toda uma complexa infiltração africana na religiosidade brasileira. Essas infiltrações se encontram, através dos chamados sincretismos, em não poucos dos cultos de santos que caracterizam o catolicismo praticado no Brasil: o culto de São Jorge, por exemplo. O de Santa Bárbara. O dos Santos Cosme e Damião.

Para os puristas da ortodoxia católica como um conjunto de crenças e ritos que deveriam conservar-se no Brasil rigorosamente fiéis a origens européias, tais infiltrações africanas representam degradação da religião cristã, tão presente na formação brasileira desde os seus começos. Desde aquela Primeira Missa celebrada em plena selva, com indígenas como testemunhas, por um franciscano, logo que o Brasil foi oficialmente descoberto por um almirante português devotamente católico. A verdade, porém, é que para a grande mairoia dos católicos brasileiros, seu catolicismo, com o tempo, se consolidaria, tendo infiltrações místicas e rituais de origem africana, como parte existencialmente válida do seu modo de ser religioso. Ou de ser católico.

Pois tais brasileiros não se consideram menos católicos por seguirem, nas suas práticas religiosas, assimilações de cultos ou de crenças negras ou africanas que vem colorindo, tropicalizando, deseuropeizando seu catolicismo sem que para eles, devotos brasileiros assim penetrados de influências africanas na sua religiosidade cristã, tais infiltrações venham descristianizando ou degradando o seu cristianismo.  As infiltrações africanas na religião, como na culinária, na música, na escultura, na pintura de origem européia, representam não uma degradação desses valores mas um seu enriquecimento. Uma sua harmonização com a ambiência, a natureza, e a ecologia tropicais, de que aquele brasielrio de origem africana, ou de cultura tão africana quanto européia, estaria mais próximo do que o preso a heranças exclusivamente européias tanto de sangue como de cultura. Isto não só quando, atualmente, católico no seu modo de ser religioso como quando adepto de cultos afro-brasileiros, predominantemente africanos nos seus ritos sem deixarem de ser católicos em parte considerável nas suas crenças. Evidências da muita interpenetração cultural que em vários setores vêm ocorrendo no Brasil.

Os exemplos aqui apresentados de influências ou presenças africanas ou negras na biologia e na cultura do brasileiro parecem indicar quanto essas presenças ou essas influências vêm sendo fortes no Brasil. Seria inexato dizer-se que o Brasil é uma África americana, pela preopnderância em grande número de brasileiros de sangues e de heranças culturais africanas. E sendo inexata tal africanidade da gente e da cultura brasileiras, resulta artificial a pretensão de estender-se a esta parte da América a mística de uma negritude rígida que fizesse de numeroso brasileiros simples transplantes de africanos, a espera de reintegração numa espécia de África maternalmente negra que estendesse até a América brasileira direitos de posse. Que estendesse esses direitos maternalmente. Imperialmente.

O que existe de antropológica e sociologicamente válido é uma presença africana no que, no Brasil de hoje, é tanto sociedade como cultura – cultura no seu sentido antropossociológico – impossível de ser subestimada. Impossível de deixar de ser considerada como efeito biossocial do que se admita ter sido uma co-colonização africana desta parte da América, ao lado da européia. Ou da ibérica. Ou da especificamente portuguesa. Quase rival dessa colonização, tais os seus lastros biológicos e culturais, lançados desde o século XVI, para que sobre eles se desenvolvesse, como vem se desenvolvendo, um novo tipo de cultura nacional: a sociedade e a cultura brasileiras.

É evidente que a colonização européia deu a esse novo tipo de sociedade e a esse novo tipo de cultura um instrumento de intercomunicação que só uma nação européia já unificada e já literariamente desenvolvida lhe poderia ter dado: a língua. No caso, a referida língua portuguesa herdeira da nobremente, prestigiosamente, latina.

Mas é também evidente que nenhuma língua européia, das trazidas para os trópicos por europeus, vem se tropicalizando tanto como a portuguesa, no Brasil. Isto pela ação, sobre ela, que não se deve deixar de reconhecer, das línguas indígenas que a paciente erudição dos jesuítas unificou numa língua geral. E essa língua geral, por algum tempo quase tão utilizada, em certas áreas do futuro Brasil, como a própria língua portuguesa.

Mas a tropicalizaçào que a língua portuguesa vem sofrendo no Brasil – tropicalização e, em parte, deseuropeização – vem resultando principalmente de infiltrações africanas. Só secundariamente das ameríndias. E essas infiltrações africanas na língua portuguesa do Brasil vêm se projetando no desenvolvimento de uma língua literária que já não é uma sublíngua literária com relação à consagrada como academicamente castiça pelos puristas portugueses mais intransigentes. Nela cada dia se afirmam com mais desenvoltura extra-acadêmica ritmos novos ao lado de expressões novas. E esses ritmos e essas expressões, quer na sua musicalidade, quer na sua expressividade, marcados pelo que neles são origens africanas até há algum tempo de uso limitado à chamada boca do povo: plebéias; vulgares; “dizeres de negros”; restos de dizeres de escravos; sobejos de senzalas.

Com os brasileirismos em ascensão na língua literária do Brasil, começa a afirmar-se, na literatura brasileira, uma presença africana que  vinha se limitando a aparecer na literatura oral. No folclore. Em sublínguas regionais.

Intensificada a ascensão que aqui se assinala, importará numa maior africanização da língua portuguesa escrita por brasileiros, sem que tal africanização venha a necessariamente importar na substituição da língua essencialmente portuguesa por outra preponderantemente africana. Apenas na maior presença africana numa língua em que os escritores, à proporção que se aprofunda sua identificação com a ecologia tropical, tendem a sentir maior necessidade de recorrerem a vocábulos vindos de línguas tropicais. Vindos de línguas africanas. Isto sem se ter que admitir prejuízo para a língua portuguesa como língua transnacional e não apenas nacional do Brasil ou de Portugal. Pois é lícito admitir-se que venham a tornar a desenvolver-se, no antigo Ultramar Português, línguas literárias estruturalmente portuguesas, grandemente penetradas de tropicalismos. Especialmente de africanismos. E muito particularmente — se tal vier a ocorrer — de brasileirismos cada vez mais presentes na língua portuguesa.

Ao que nos levam as considerações aqui esboçadas em torno da importância da presença negra ou africana na sociedade e na cultura brasileiras e na língua portuguesa do Brasil? Levam-nos a sugerir que tal presença vem resultando na formação, entre os brasileiros, quer de uma gente crescentemente, embora não exclusivamente, morena nos seus característicos cromáticos, quer crescentemente extra-européia, sem prejuízo do essencial de sua europeidade, na sua cultura. A místicas como a de um arianismo segregador ou a de uma negritude também segregadora opõe-se, no Brasil, a tendência para sínteses, quer biológicas através da miscigenação, quer sociológicas, através da interpenetração de culturas, nas quais as presenças não-européias são, em certos setores, já tão marcantes como as européias. O Brasil de hoje tende, cada dia mais, a orgulhar-se da presença africana, ou negra, na biologia e na cultura da sua gente. Tende a reconhecer no negro ou no africano um seu co-colonizador.

Tende, mais, a considerar sua independência, quer política, em particular, ou apenas econômica, quer sócio-cultural, em geral, o resultado menos de uma súbita descolonização que de uma precoce autocolonização: autocoIonização sendo outro neologismo sociológico criado por brasileiro. Tal autocolonização ter-se-ia processado em face de um poder europeu colonizador menos forte ou menos tentacular, nas suas expressões oficiais, que os demais poderes europeus colonizadores. Menos capaz de impor sua vontade e seus cânones à gente colonizada. Mais inclinado a transigir com essa gente, deixando-a sabiamente autocolonizar-se. Deixando o africano agir a seu lado como co-colonizador do Brasil.

Função — a de colonizar — a que ao português já se associara, por vezes superando o europeu puro, o mestiço euro-ameríndio: daí a grande ação bandeirante na formação brasileira. A do negro já ladino, ou abrasileirado, não seria menor, quer ao lado do português, quer, sob vários aspectos, superando-o, dada aquela sua fácil adaptação de nativo do trópico africano ao trópico brasileiro notada pelo inglês Bates. Adaptação que lhe permitiu, em terras palustres do Brasil, uma atividade ou um esforço difícil de ser desenvolvido pelo europeu colonizador, quando puramente europeu. É o que procuro demonstrar ter sucedido no interior mais remoto do Brasil — Mato Grosso — nas páginas em que recordo — em livro publicado em Lisboa e pouco conhecido entre nós, sobre a incorporação ao sistema lusotropical de sociedade e de cultura de tão importante área a ação colonizadora, nesse trecho de ainda áspero território brasileiro, do Governador Luís de Albuquerque de Mello e Cáceres. O qual, para tanto, se serviu grandemente não só de ameríndios como, de modo notável, de negros africanos. Esses negros africanos desempenharam aí função co-colonizadora, tendo realizado trabalhos contínuos e sistemáticos de que os ameríndios, ainda nômades e sem constância nos seus esforços, mostraram-se quase de todo incapazes. Em alguns casos, até negros fugidos — ou quilombolas — revelaram-se co-colonizadores do Brasil, raptando mulheres de tribos indígenas e cristianizando essas mulheres e os filhos afro-ameríndios. E com eles co-colonizando espaços virgens de terras tropicais que se tornariam nacionalmente brasileiras.

Por aí se explicam certos característicos da formação brasileira que a distinguem das de outras populações que de coloniais passaram a nacionais. Que lhe permitiram ser mais criativamente extra-européia quando ainda, sob todos os aspectos oficiais, colônia. Mas que, paradoxalmente, por isto mesmo, nunca deixaram que o brasileiro se extremasse em gente violentamente antieuropéia, por lhe faltarem de todo oportunidades para aquela, desde os séculos coloniais, gradual, porém incessante, autocolonização.

A qual se exprimiu de modo tão veemente na escultura do chamado Aleijadinho: uma escultura ecológica e, no seu estilo, mais extra-européia que passivamente subeuropéia. Com arrojos esteticamente tropicais. Arrojos esteticamente brasileiros.

Brasileiros e africanos negros, têm, neste setor — o estético — especialíssimas afinidades que os situam à parte do comum das relações que prendem latino-americanos – mesmo os das regiões tropicais da América: as mais marcadas pela presença africana — à África negra. Lembremo-nos de que chegou a haver na Nigéria – por exemplo — um estilo brasileiro não só de arquitetura como de decoração com figuras de bichos e de plantas tropicais brasileiras, sem considerarmos os brasileirismos que ali se comunicaram à culinária, às danças, aos folguedos, às devoções religiosas, ao folclore. Esse contágio não foi apenas um episódio no tempo histórico: o abrasileiramento de umas tantas formas de vida e de arte na Nigéria foi profundo. Sobrevive. Vive. Vive em criações em que a espontaneidade africana se tem servido de sugestões brasileiras para se afirmar ou reafirmar de um modo em que as duas forças — a brasileira e a africana — se têm encontrado como fontes da mesma tropical idade além de essencial, existencial. Assunto que o autor deste ensaio tem procurado versar em ensaios e até em livros: no intitulado “Problemas Brasileiros de Antropologia”, por exemplo.

É singularmente significativo da capacidade brasileira de elaborar cultura nacional valorizadora de contribuições de outras procedências além da européia — no caso a africana — o fato de ex-escravos já abrasileirados na sua cultura ou seus descendentes, terem se tornado, de regresso à África, uma presença culturalmente abrasileirante na mesma África, através do reencontro de ex-africanos com uma terra de origem cuja cultura passariam a modificar, a alterar, a abrasileirar, orgulhosos dos seus brasileirismos culturais. Como significativo é o fato de produtos caracteristicamente brasileiros como a mandioca e o caju terem se integrado, graças à mediação não só portuguesa como, em vários casos, à de africanos abrasileirados de volta à África, noutras culturas situadas em áreas tropicais e africanas.

Desses reencontros, têm resultado expressões nigerianas de arte em que ao brasileiro é fácil descobrir alguma coisa que, para ele, não é exótico: é, senão ancestralmente, colateralmente brasileiro. Por outro lado, parece quase certo do artista nigeriano de hoje que, em grande parte da arte brasileira mais autêntica, encontre alguma coisa de familiar, de fraterno, de aparentado com o que, para ele, é arte. Caso talvez único tanto no relacionamento da cultura africana com a já brasileira como no relacionamento da cultura já brasileira com as negras ou africanas.

Em certo artista jovem da Nigéria, de hoje, Jacob Afolabi, críticos estrangeiros têm encontrado parentesco com o espanhol Miró. Amor com amor se paga — poderia dizer-se. Pois não é exato de outro grande da pintura espanhola, Picasso, que desenvolveu sugestões de arte africana, comunicando-as a outros artistas europeus e de outras partes do mundo? Mas não só com os Picassos serão, por sua vez, as afinidades desse e de outros artistas africanos: também com artistas brasileiros a seu modo Picassos pela sua sensibilidade a sugestões africanas ou negras.

A esse propósito é curioso não ter se verificado no Brasil, tão impregnado de influência africana, mas no Uruguai apenas tocado, como aliás a Argentina, dessa influência, a primeira explosão em pintura nacional de país íbero-americano de temas africanos tratados com arte ao mesmo tempo que com amor. Esse pintor — anterior aos Di Cavalcanti, aos Cíceros Dias, a outros brasileiros voltados para assuntos afro-brasileiros, em constraste com a quase relutância do insigne Cândido Portinari — arianismo? — em abordá-los, foi Figari. Um Figari que dificilmente se compreende ter sido, nesse seu pioneirismo, um uruguaio e não um brasileiro. Em compensação, quando Di Cavalcanti se rendeu à magia de temas afro-brasileiros, o fez com o ardor de quem pretendesse recuperar tempos perdidos não só por ele, em particular, como coletivamente, nacionalmente, por toda a pintura brasileira.

A verdade é que, entretanto, os brasileiros, de modo especialíssimo, têm sido sempre uns predispostos à compreensão intuitiva e à assimilação amorosa de valores africanos; e, mais que outros não-africanos, inclinados a ser mediadores, também amorosos e intuitivos, entre o Ocidente lógico (e de que nós próprios não nos sentimos inteiramente parte) e a África e a Ásia antes intuitivas do que lógicas, quer nas suas artes, quer nos seus saberes. A essa afinidade geral, é que, no caso das relações do Brasil com as Áfricas negras e da receptividade brasileira a influências africanas, acrescentam-se outras que, através de uma série de contactos específicos, poderão aprofundar, particularizar, aprimorar a afinidade geral.

A essa altura, observe-se a vantagem que vem sendo para o Brasil a presença, na sua população e na sua cultura, da iletrados e até analfabetos, em parte descendentes de escravos africanos dos velhos dias patriarcais que, como reserva de gente intuitiva, espontânea, telúrica em sua adaptação ao trópico, vêm retardando uma demasiadamente rápida, além de absorvente, europeização e racionalização da gente brasileira, com sacrifício de suas aptidões mágicas. Aptidões mágicas comunicadas a tantos brasileiros e até portugueses de gênio ou talento artístico ou literário — um deles o português Eça de Queirós e, entre os brasileiros, um Sílvio Romero, um José Lins do Rego, um Jorge de Lima — pela “bá” negra já abrasileirada e pessoa íntima da família nas antigas casas-grandes. É ainda tema para estudo específico de um aspecto nada insignificante da influência negra ou africana, no Brasil, o estudo da figura da “bá” de sua influência na criação de meninos brasileiros a vida toda sob essa influência analfabética e neutralizante de convencionalismos lógicos de sua alfabetização ou do seu aburguesamento.

Explica-se pela ação dessas heranças psicoculturais sobre não poucos brasileiros, que artistas negros africanos, como atualmente Afolabi, tenham, para esses brasileiros, mais ainda que semelhanças com Mirós espanhóis, parentesco com os brasileiríssimos Cíceros dos Santos Dias, Emilianos Di Cavalcanti, Lulas Cardoso Ayres. Daí encontrar-se num Adebisi — que deliberadamente revive na sua arte o chamado estilo brasilo-nigeriano — semelhança também com a cerâmica brasileira pintada: a Francisco Brennand, por exemplo. Isto sem nos esquecermos do que vibra de africano — um africano abrasileirado ou pernambucanizado — em pinturas de vários brasileiros, além das já célebres de Di Cavalcanti: um Di Cavalcanti famoso pela glorificação de belezas de mulher brasileiramente negróides. Africanos conhecedores das artes da África, isto é, das formas autenticamente africanas de representação, interpretação e simbolização da figura humana, de animais e de plantas dos trópicos, parecem sentir essa africanidade nesses e noutros artistas brasileiros: quer nos já consagrados, quer em vários dos mais jovens e já notáveis como, dentre os modernos. Adão Pinheiro. Brasileiros, também com algum conhecimento das artes antigas e atuais do seu país, sentem de imediato o que há de brasileiro em artistas africanos da África.

A afinidade entre duas artes — a brasileira e a africana — mostras de desenhos de negros africanos no Brasil só fazem confirmá-la. Já o recordei, aliás, a propósito de uma dessas mostras. São, por isto, exposições em que, ao interesse puramente estético, se junta o psicocultural ou sócio-cultural. Justifica-se assim que um antropólogo cultural, ou um sociólogo, sem pretensão alguma a crítico profissional de arte ou, específico, de pintura, se interesse por tais exposições. O que faz como sapateiro que não sai do seu ofício.

O que é preciso, em casos dessa natureza, é que os críticos, mais especificamente críticos de arte, não se considerem donos absolutos do que se apresente como pintura, escultura ou arquitetura, pretendendo  negar a outros especialistas o direito de comentarern essas artes, sob outros critérios e de outros pontos de vista, de modo a poderem ampliar os apenas estéticos e até aprofundar as implicações dos estéticos. O critério antropológico-cultural é decerto um desses critérios e sob ele é que principalmente deve ser considerada a influência africana sobre o Brasil num setor — o estético — que se comunica com outras áreas psicoculturais.

Recorde-se desse critério que foi sob tal critério que se iniciou, no Brasil, a moderna valorização da presença africana na cultura brasileira, em geral, e em algumas das artes — uma delas, a pintura — em particular, sem nos esquecermos de datar daí a defesa sistemática do exercício dos cultos afro-brasileiros como cultos legitimamente religiosos e não “bruxaria” ou, “feitiçaria” ou “atentado à moral e aos bons costumes”. Defesa de que se tornou lúcido campeão o psiquiatra pioneiramente social Ulysses Pernambucano de Mello, discípulo do brasileiro fidalgamente negro que foi no Rio de Janeiro, o mestre de psiquiatria Juliano Moreira e fundador — Ulysses — de uma Escola Brasileira de Psiquiatria de valor reconhecido e proclamado pela Sorbonne. Se hoje é livre o exercício desses cultos e também o da um tanto sofisticada “umbanda”, deve-se essa liberdade religiosa de interesse para o relacionamento cultural do Brasil com a África ao pioneiríssimo Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife, no histórico Teatro Santa Isabel, em 1934. Dele resultaram dois volumes contendo os significativos estudos então apresentados: “Estudos Afro-Brasileiros” e “Novos Estudos Afro-Brasileiros”. Teve o Congresso do Recife o aplauso do antropólogo Franz Boas, a participação do norte-americano Melville J. Herskovits, o da inglesa Nancy Cunard e foi noticiado em primeira página pelo The New York Times como importante iniciativa brasileira de interesse cultural. Também empolgou sociólogos e antropólogos franceses. Tornou-se grande entusiasta dessa iniciativa recifense, retificadora da africanologia de Nina Rodrigues – para quem o negro africano era biológica e sociologicamente inferior – o professor Roger Bastide, podendo-se atribuir ao seu contacto com africanologistas do Recife seu interesse por assuntos afro-brasileiros, o ter produzido estudos como o que consagrou “a psicologia do cafuné”, mostrando-se senhor de subtilezas afro-brasileiras.

Parte do Congresso Afro-Brasileiro que se reuniu no Recife em 1934 foi uma exposição, sob a direção dopintor Cícero Dias, no Teatro Santa Isabel, não só de trabalhos de arte afro-brasileira como de evidências da semelhança entre várias expressões artísticas brasileiras — na música, na culinária, no traje popular de algumas regiões, nas jóias e adornos pessoais e não apenas na pintura.

Essa exposição organizada — acentue-se — pelo pintor Cícero Dias e por mim teve a colaboração de então estudantes universitários como Clarival Valadares e Mário Gibson Barbosa: o Mário Gibson Barbosa que, como Chanceler do Brasil, se notabilizaria pelo seu empenho em aproximar culturas negras ou africanas da brasileira. Dela — exposição — resultou que se interessassem pela arte africana, como fonte de arte lusotropical -como diríamos hoje — vários artistas brasileiros, então jovens. Um deles, o hoje consagrado Lula Cardoso Ayres. Note-se que data do Congresso Afro-Brasileiro do Recife a mais efetiva retificação da perspectiva da estudo da influência africana no Brasil em que se notabilizara na Bahia o sábio Nina Rodrigues, para quem, entretanto — repita-se — o negro africano, tão presente na formação brasileira, teria sido um inferior biológico. Erro em que também incorreu o insigne Euclides da Cunha. Em que incorreram outros brasileiros ilustres. Note-se mais que, do mesmo Congresso, data o maior pendor de Mestre Emiliano, que dele participou, por assuntos afro-brasileiros em contraste com a quase indiferença por tais assuntos de Cândido Portinari: o Portinari das virgens e anjos sempre nordicamente louros e róseos. O Portinari incapaz de compreender o Cristo negro do “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna: pioneirismo também partido do Recife, algum tempo depois daquele Congresso no qual s influência africana no Brasil foi considerada em vários dos seus aspectos. O Recife à pioneiridade do congresso de 34 acrescenta o fato atualíssimo de vários dos seus artistas mais jovens e mais vibrantemente renovadores serem pintores e escultores que, sensíveis às raízes africanas das artes plásticas brasileiras, vêm exprimindo essa sensibilidade em muitas das suas produções, o mesmo sendo certo das produções de compositores recifenses, de renome hoje nacional, como Capiba e Nelson Ferreira; e dos empenhos de quantos vêm animando no carnaval pernambucano as suas inspirações em grande parte africanas: maracatu, frevo, passo. Ainda o mesmo se pode dizer do que vem ocorrendo, nesses setores, na Bahia e no Rio de Janeiro: este, centro do afro-brasileiríssimo samba.

Ambiente, o dessa sensibilidade de modernos artistas brasileiros às raízes africanas das artes brasileiras de pintura, de escultura, de música — para não falarmos na culinária — favorável a uma “negritude” que viesse separar, no Brasil de hoje, aquele brasileiro que seja descendente, principalmente de negro africano, dos brasileiros de outras origens étnicas e culturais, tornando-o um “negro brasileiro” semelhante ao “negro americano”? Significativamente, de modo algum. Apenas, da parte de uns poucos, retoricamente. Insista-se em que aumenta no brasileiro esta consciência: a de ser um povo, quase todo, moreno — a palavra moreno, para designar nuances de cor escura de pele, tendo hoje, entre os brasileiros, uma elasticidade tal de sentido, que inclui os próprios pretos. Além do que, não são raros — repita-se — os alvos e louros que se deixam queimar pelo sol quente das praias brasileiras para se tornarem, por esse meio, antes ecológico do que biológico, morenos. Daí o também brasileiro conceito de metarraça, ou de além-raça, segundo o qual não interessa ao brasileiro, como tipo nacional de homem, apurar exatidões de origem ou de situação étnica, dado o fato de tais exatidões não afetarem nele sua condição nacional. O que não significa que não se valorizem projeções, quer de tipo físico, quer culturais, africanas ou negras, sobre característicos estéticos de figura física do homem ou, principalmente, da mulher brasileira, ou sobre sua cultura: suas artes, suas preferências de paladar, seus modos de sorrir, de rir, de andar. Pois em todos eles se observam, no Brasil, influências africanas ou negras.

Para um antropólogo ou sociólogo, tais casos são interessantíssimos: ilustram a realidade de não ser a raça nem a cor que fazem, especificamente, de um homem, isto ou aquilo, mas o que há de íntimo nos gostos, nas tendências, nas motivações — inclusive as artísticas — desse indivíduo, seja ele branco ou preto, africano ou europeu de origem. O contrário é também verdadeiro: o caso de Cruz e Sousa que o diga. Foi ele uma vocação para europeu surgida no Brasil, sob a pele de negro. Realizou-se através do “simbolismo” europeu, exaltando névoas, brumas e alvuras de paisagem, como na Nigéria atual, a pintora Georgina, nascida na Europa com vocação africana, está se realizando através de símbolos negro-africanos por ela empregados na sua arte empática.

Note-se que são numerosos os símbolos de origem africana ou negra que se abrasileiraram. Entre eles, a figa. O balangandã. Símbolos com seus sentidos místicos. Ou com atrativos estéticos sobrepostos a tais sentidos.

Também, peças de vestuário de mulher além de — como já foi recordado — adornos: brincos, colares, pulseiras. E ainda preferências por cores que, de litúrgicas ou místicas, vêm passando a estéticas e vêm sendo assimiladas pelos brasileiros e até estilizadas por modistas elegantes: a chinelinha baiana, o turbante, o cabeção picado de rendas, o xale. Notem-se também preferências por cores vindas de ligações dessas cores com motivos religiosos. O caso também de ervas, plantas, frutos, a alguns dos quais certa mística afro-brasileira vem atribuindo virtudes afrodisíacas.

Enquanto ao folclore brasileiro não faltam idealizações ou caracterizações de figuras africanas, das que se incorporaram à sociedade patriarcal brasileira — principal chave para a interpretação do ethos e da formação brasileira — como a “mãe preta”, a “bá”, a mucama, a “baiana”, a “mulata inzoneira”, o “negro velho”, o malungo, o “moleque”, o “crioulo”, o “negrinho do pastoreio”: inspiração, esse negrinho do pastoreio, de uma das obras-primas da literatura brasileira. Como inspirações de obras-primas da literatura foram a “escrava Isaura” (Bernardo Guimarães), “o mulato” (Aluísio de Azevedo), “o bom crioulo” (Isaias Caminha), o “moleque Ricardo” (José Lins do Rego), “o Balduíno” (Jorge Amado), ‘essa negra Fulô” (Jorge de Lima). Isto sem nos esquecermos das já recordadas “mulatas” — por vezes negras das chamadas puras, tão raras há anos no Brasil sempre miscigenado – do pintor Emiliano Di Cavalcanti que, como artista múltiplo, as sentia como artista literário e não somente como artista plástico. Mais de uma vez conversamos sobre o assunto, Di Cavalcanti e eu, devendo ser sempre notado que seu interesse pelos tipos afro-brasileiros de mulher veio de sua participação num congresso afro-brasileiro do Recife, em 1934, quase tão revolucionário da cultura brasileira como a Semana de Arte Moderna de São Paulo.

Da presença africana na música brasileira — presença que se constituiu numa influência tão atuante — já muito se tem dito. Mais do que de qualquer outra influência africana sobre expressões brasileiras de sensibilidade e de arte.

Não se faz sentir apenas sobre a música popular — na qual viriam a se notabilizar, nos nossos dias, o pretíssimo Patrício, Donga e Pixinguinha, – mas sobre a erudita em alguns dos seus mais altos aspectos. Sobre Heiton Villa-Lobos sugestões ou inspirações musicais africanas se projetaram; ao lado daquelas ameríndias por ele tão valorizadas como germinalmente brasileiras, nas suas criações. Menos, talvez, no seu caso, atuaram as sugestões africanas que as inspirações ameríndias, mas de modo algum foram as africanas recusadas por ele, como parece as ter recusado o aliás negróide no sangue, Carlos Gomes, de “O Guarani”. A romantização de origens ameríndias de valores brasileiros se extremou, a certa altura, no Brasil, em prejuízo do reconhecimento de ancestralidades negras ou africanas tanto culturais como biológicas. O que parece ter se verificado em virtude da presença do negro africano ter coincidido, no Brasil, com a sua presença sob a condição socialmente degradante de escravo, formando-se, em torno do ameríndio, o mito de se ter revelado demasiadamente altivo e, nessa atitude, superior ao negro, para conformar-se com a condição servil. A verdade sociológica a esse respeito é a ter o negro africano vindo para o Brasil, como escravo, procedido, em grande parte, e em alguns casos de modo notável, de áreas ou de condições de cultura superiores às dos ameríndios. Mais capazes, portanto, que ameríndios apenas nômades e pouco mais que caçadores ou pescadores, de trabalho contínuo e sistemático na agricultura, como se revelaria o africano sob aquela forma dê mãos e pés” de lavouras ou de agro-indústrias, como a da cana-de-açúcar: lavouras e agroindústrias que sem eles não teriam florescido, permitindo a consolidação sócio-econômica do Brasil. Ainda aqui o negro africano agiu como co-colonizador.

Nem para negritudes nem para branquitudes tem havido, no Brasil, ambientes ou condições. As vocações têm procurado, livremente, entre os brasileiros, meios ideais para se expressarem e sem realizarem conforme suas tendências, dentro de culturas flexíveis e à revelia de etnias rígidas, É por afinidades psicoculturais que o Brasil e a África apresentam semelhanças em várias expressões de cultura que as caracterizam. Isto sem nos esquecermos de que vem favorecendo essas semelhanças, além de experiências históricas, tanto de brasileiros como de africanos — e o mesmo se poderia dizer de goeses e de outros luso-orientais situados em áreas tropicais e como tal merecedores de atenções brasileiras — sua comum ecologia a tropical. São uns e outros, gentes situadas em áreas tropicais hoje sob impactos modernizantes. De modo geral vêm sabendo conciliar, africanos e brasileiros, através de configurações nacionais diversas, a ecologia tropical – sob tantos aspectos condicionante do modo de brasileiros como africanos e orientais tropicais já serem ou estarem se tornando, em suas culturas, além de nacionais, modernos — e a modernização em que se vêm empenhando. é preciso que a modernização não os torne antiecológicos, separando-os das fontes naturais das suas culturas nacionais — inclusive dos seus desenvolvimentos — ou artificializando suas expressões nacionais de cultura em puros arremedos de modernismos triunfantes em áreas econômica e tecnologicamente avançadas e inclinadas a dominarem culturas ainda em desenvolvimento. Nada de se repelirem europeísmos e até ianquismos culturais susceptíveis de ser adaptados a condições não-européias.

Mas nada de se tornarem brasileiros de origens tanto européias como não-européias, em sua culturas, subeuropeus ou subianques. Orientação particularmente válida, também, para as novas nações africanas que porventura encontrem em antecipações brasileiras exemplos a ser aproveitados nas suas novas situações sócio-culturais.

O autor deste ensaio, escrito especialmente para um número de “Cultura”, dedicado à África, embora em alguns trechos se repita — tanto tem escrito sobre o assunto — já foi acusado de negrófilo como de um feio pecado: o de dar relevo, segundo seus acusadores, exagerado, à presença negra na população e na cultura brasileiras. Não lhe parece ter resvalado em tal exagero e sim procurado restituir a justas proporções o que, naquela presença, vinha sendo, por não poucos “arianistas”, ocultado ou diminuído. Isto sob uma como mística arianista, por algum tempo tão proeminente, em alguns meios, no nosso país; e tão empenhada em negar ou diminuir a importância da contribuição negra ou africana para o desenvolvimento do Brasil em novo tipo de sociedade e de cultura, desviado de obsessões subeuropéias. Tanto que eminente sociólogo, talvez, senão dominado, afetado, por essa mística, chegou a anunciar um livro que daria, ao que parece, o Brasil como crescentemente “ariano”, isto é, crescentemente e triunfalmente caucasóide, considerando-se insignificante a presença africana ou negra em sua população ou em sua cultura. Para o que teria que processar-se um tal aumento de europeus brancos na população brasileira e de impactos europeizantes sobre a nossa cultura que os remanescentes de brasileiros de sangue negro se reduziriam a insignificâncias desprezíveis. Além do que, para deixar-se de reconher a influência negra sobre a formação brasileira seria preciso desconhecer a presença em altas expressões brasileiras de inteligência e de saber, de distinção nas artes e nos esportes, de descendentes de negros africanos como os Josés do Patrocínio, os Cruz e Sousa, os Lima Barreto, os Rebouças, os Teodoro Sampaio, os Julianos Moreira, os Pelés, para não falar nos Aleijadinhos, nos Josés Maurício, nos Machado de Assis, nos Cotejipe, nos Nilo Peçanha, nos Tobias Barreto, nos Antônios Torres, nos Dom Silvério.

Estudos no sentido de uma sistemática reabilitação da presença negra no Brasil terão contribuído para que aquele ilustre autor não viesse a publicar tão anticientífico quanto antibrasileiro pronunciamento, impressionado como teria ficado com a revelação, por esses estudos — inclusive os dos antropólogos Roquete Pinto e Fróis da Fonseca — de certas deficiências na sua apologia, talvez mais retórica que antropológica, do arianismo, num país como o nosso.

Intelectualmente honesto, como era, esse mestre brasileiro de ciência social, se ainda vivesse, renunciaria ao seu arianismo quase místico e aceitaria, senão totalmente, em parte, a realidade de ser o Brasil uma sociedade que opõe a fantasias como a arianista — tanto como a da negritude — a consciência de sua morenidade metarracial: uma situação concreta para a qual vêm concorrendo tanto a presença do negro, ao lado da do ameríndio, como a do europeu, na crescente formação de uma complexa população nacional profundamente miscigenada. E tão enriquecida de qualquer coisa como “vigor híbrido” por essa generalizada mistura de sangues como por uma igualmente complexa interpenetração de culturas — entre elas, as de origem africana — a formarem, no espaço brasileiro, novas combinações e estas a se constituírem numa já inconfundível civilização nacionalmente brasileira tanto quanto arrojadamente moderna, situada em trópicos tanto úmidos como áridos.

Cascalho grosso

Pisando cascalho grosso
Vou andando no caminho
Estrada de sol a sol
Eu caço o rumo do ninho
Correndo praia ou ladeira
Mas vejo que a capoeira
Não me deixa ir sozinho

A mão que bate a beriba
Também puxa da navalha
Ando sozinho, sem medo
O meu breve não me falha
Sujeito se diz valentão
Cão que ladra, morde não
É sempre fogo de palha

Abelha amarela e preta

Abelha amarela e preta
É com certeza angoleira
Traz segredo em sua obra
Fabricando mel e cera
Prá quem bulir, tem ferrão
Se não bulir, não tem não
Zum zum zum na capoeira

Besouro preto brilhante
Angoleiro sei que é
Não tem a cor de Pastinha
Mas tem espinho no pé
Parece fraco e é forte
Não teme a dor nem a morte
E voa prá onde quiser

Esperança verde claro
É boa jogando angola
Parece boba, é esperta
Tem miolo na cachola
Parece lenta, é ligeira
Prá mostrar, basta que queira
E é bamba na viola