Nu samba da Conceição

Nu samba da Conceição (Teimosia)

Nu samba da Conceição
Chegô gente prá sambá
Tocadô chegô primêro
Par’a festa perpará

I limpô o chão com sá
I butô água-di-chêro
Par’a festa perpará
Tocadô chegô primêro

Cantadô chegô dispois
Carregano seu gogó
Gargarejô cum limão
Pru cantu saí meió

Afinan’a cantoria
Um-doi-trêi i trêi-um-dois
Carregano seu gogó
Cantadô chegô dispois

Sambadô chegô na hora
Feiz u samba cumeçá
Trouxe sola di pé grossa
Cumeçô sapatiá

Tambor fala

O tambor fala pelas minhas palmas
quando o braço desce, o som sobe
quando a mão dói, a alma salta
o tambor solta seu grito, que é também meu
couro que esteve esticado sobre carne
agora esticado sobre madeira
alma de árvore, esqueleto de aço
a cada tapa, uma resposta
o suor do braço é lágrima no couro
e o rufo do oco é grito do homem
tambor é para se falar com as mãos…

A iún’é mandinguêra

A iún’é mandinguêra (adaptado do domínio público)

A iún’é mandinguêra
Quano tá nu bebedô
Foi sabida, foi ligêra
Mai capuêra matô

Adeu pássaru cantô

Bem-ti-vi cantô sereno
Pomba si jogô nu á
Jão-di-Barru cum tristeza
Lá na mata deu siná

Papagai’é faladô
Maritac’é faladêra
Piriquit’é mintiroso
A jandai’é fofoquêra

Todos pássu cum sodade
Da iúna mandinguêra

“Meu Deus, querem afeminar a capoeira”

Mestre Canjiquinha

Publicada originalmente em Diários de Notícias de Salvador, em 6 de novembro de 1970. 
Entrevista de Cristina Cardoso.

Seu nome – Washington Bruno da Silva – lembra Presidência de República, mas de política ele não manja nada. Seu fraco é a capoeira, do qual é bamba como ninguém. Washington é Canjiquinha, capoeira internacional, bom como Aberrê, ágil como Maria Doze Homens – um verdadeiro patrimônio do folclore nacional.
Para ele a capoeira está morrendo. Virou apenas dança para turista ver. E ainda existe quem a considere agressiva:
– Meu Deus, querem afeminar a luta dos homens.
Dos 45 anos de vida de Canjiquinha, 33 foram dedicados à capoeira. Ele não apenas luta capoeira, mas luta por ela. Acredita que os mestres hoje em dia são poucos. Queixa-se também da falta de divulgação da capoeira que, em seu modo de entender, deveria ser transformado no esporte nacional.
– Ele aqui nasceu, é nosso, mistura do negro com o índio, resultado das lutas dos negros contra os senhores brancos.
Mestre Canjiquinha é o capoeira mais divulgado no exterior, participante que foi de muitos filmes da Bahia para o mundo, ou feito em regime de co-produção. Barravento, de Gláuber Rocha, onde contracenou com Luísa Maranhão; Os bandeirantes, co-produção franco-brasileira. Estrada do Amor, feito com os alemães e o mais recente Capitães de Areia no papel de Samuel Querido de Deus, outro capoeira de renome no passado. Até no Pagador de Promessas trabalhou mas gosta mesmo é de lutar, dançar a capoeira ou dar os toques no berimbau para a grande luta.
– Minha comadre – diz Canjiquinha com sua fala agitada, nervosa de filho de Iansã – já viajei por quase todo o Brasil, ensinei capoeira até para a Força Aérea. Estive em Brasílía – Teresina – São Luís do Maranhão – Recie – Porto Alegre e Maceió, díversas vezes no Rio de Janeiro e São Paulo. Agora ia pela primeiravez pessoalmente ao exterior, para a Semana da Bahia na Pensylvania, com “Viva a Bahia”, mas deu bronca, os gringos só deram 1000 dólares para a viagem, quatro milhões contados, para 20 pessoas viajarem. Tudo veio por água abaixo.
E emocionado: “lindos mesmos são os golpes: rabo de arraia – meia lua de frente – meia lua de costas -armada – chapéu de couro -escorão – benção – vingativa – chibata ae tantos outros. E os toques que dou no meu berimbau, todos eles: São Bento Grande -São Bento Pequeno – Ave Maria – Cavalaria – Amazonas e Santa Maria., e os que eu mesmo criei: Samango, Muzenza, e Samba de Angola. É minha própria vida que eu vejo na minha Academia que fundei em 1954. Mas a capoeira está doente, gente, pode até morrrer. É apenas folclore, bonitinha e arrumadinha para agradar aos turistas. A capoeira, gente, não é mais aquela.
Mestre Canjiquinha tem o maior elenco de conjunto folclórico da Bahia – 36 pessoas no Conjunto Aberrê, que tem seus atabaques pintados de branco e azul, as cores do saudoso Mestre Aberrê, de quem Canjiquinha afirma: “não é por ter sido meu professor, mas foi um dos maiores, juntamente com Pedro Paulo Barroquinha, Curió, Cassiano Balão, Totonho Maré, ainda vivo, morando no Corta Braço, na Liberdade, Sete Mola, Espinho Remoso e tantos outros. Mas mulher as únicas mesmo foram Maria Doze Homens que numa briga da Saúde até o antigo Cinema Olímpia, bateu em doze marmanjos, e Maria Palmeirão, 1,90 de altura, mulher de dar e receber navalhada, seca como o diabo que lutava como homem”.
Mestre Canjiquinha é o capoeira querido, que se apresentou para o Presidente Médici em sua visita a Salvador, e lhe ofereceu o berimbau, símbolo da capoeira baiana que luta pelo folclore baiano quando ameaçado como na época de “Lapinha”. Foi ele que, pelo nosso folclore, comprou briga com Baden Powell, discutiu com Flávio Cavalcanti e ainda está disposto a brigar mais.
– Minha comadre, acrescenta, não é por falar mal, mas o Baden fez uma boa. Lapinha é folclore baiano que ele aprendeu comigo. Pensou que tinha me esquecido e disse que a música era dele. Que falta de caráter. Gosto de brigar pelos meus direitos de nosso folclore e pelo que acredito. Já fui goleiro do Ipiranga em 1951, mas o folclore e a capoeira são meu amor.
– Sou angoleiro e faço capoeira, estive no Simpósio de Capoeira em 1969 em São Pauto, no Campo dos Afonsos, e lá a gente discutiu e dividiu a luta em angoleiro, regional e estilizada, mas tudo vem de Angola, dos negros que de roupa branca sempre impecável eram chamados de arruaceiros, malandros e nunca desistiam, dos negros das lutas de matar ou morrer. Hoje a gente é funcionário, faz capoeira nas horas vagas, tem de se adaptar aos tempo. A capoeira está doente, gente, pode até morrer.

“Desafiei todos os valentes”

Entrevista com Mestre Bimba
Originalmente publicado no Diário de Goiânia, em 1973

Mestre Bimba, conte-nos de onde veio, seu nome completo, sua história.

Meu pai chamava-se Luis Pereira Machado, minha mãe Maria Martinha do Bonfim, meu nome é Manoel Reis Machado. Muita gente me pergunta: “Porque Mestre Bimba?” Eu não gosto de dizer… Tem gente que acha que é por causa da luta, mas não é. Porque lá em Salvador, onde eu nasci em 1900, “bimba” também quer dizer pancada. Meu nome é por causa de outra coisa. É por causa de uma aposta. Minha mãe teve vinte e cinco filhos, eu fui o último. Dizem que eu nasci muito gordo. Minha mãe apostou com a parteira que eu era homem e a parteira dizia que era mulher. Então, para saber se eu era homem ou era mulher, como era muito gordo, abriram minhas carnes para ver… e encontraram lá a “bimba”!… (Mestre Bimba reclama do garçom do Hotel Presidente, onde esta entrevista foi feita: “Cadê o tira-gosto. rapaz?”).


Trabalhei em carpintaria, trabalhei também na estiva, isso por volta de 1918. Carregava peso de 120 quilos… Conheci nesta época um mestre de Capoeira de Angola. Essa é a capoeira de Angola, porque existe também a Regional, que eu criei. Ele se chamava Bentinho. Ele era filho de dois africanos, eu sou neto de africanos. A partir desta época, então, eu aprendi a Capoeira de angola e passei a criar a regional.

Como era vista a luta de Capoeira naqueles anos?

Naquela época, quando se falava em Capoeira, falava-se baixo Os que aprendiam capoeira só pensavam em ser bandidos.

Ser valente estava na moda?

Era gostoso. Já pensou o que era, pra essas pessoas, enfiar a peixeira na barriga dos outros, rapaz?… Mas então, tem gente que pensa que Capoeira é luta de queda. De maneira que de 1918 a 1936, eu, Mestre Bimba, desafiei todos os valentes e venci: A luta que mais demorou, durou um minuto e dois segundos. Daí para cá mudei muito de vida. Larguei a estiva, larguei tudo, tomei outro curso de vida.

Qual a diferença fundamental entre a Capoeira Regional e a Capoeira de Angola?

Os capoeiras de Angola, a única coisa de bom que tinham era a coragem. Então, o que aconteceu? Um rapaz de doze, quinze anos, até vinte, quando aprendia a luta, naquele tempo, a tendência era pra comprar um revólver ou uma faca. Então, quer dizer que isto não era um esporte… E quem tirou a Capoeira do Brasil da unha da polícia, eu acho que abaixo de Deus fui eu…

Quer dizer. Mestre Bimba, que a capoeira de Angola era aquele que botava uma navalha na ponta do berimbau?

Muito bem. Falou.

O senhor teve um conhecimento profundo da Capoeira de Angola antes de criar a Regional?

Por dez anos eu ensinei Capoeira de angola. Depois eu passei a ensinar Regional. E peguei a ganhar dinheiro. Mas eu sou um homem pobre. O que eu tenho muito é amizade. Os homens mais ricos da Bahia passaram por minhas mãos. Se eu fosse dizer o nome de todos eles, passava a tarde inteira.


Com tanta gente boa, dando aula até pra Governador (tem governador, não tem?), como é que tudo ocorreu de forma que o senhor tivesse que sair da Bahia, por problema financeiro?


Na Bahia, acontece o seguinte: se o senhor chegar e pedir um auxílio para uma festa, um festejo carnavalesco, para uma qualquer coisa, que pertence à farra, tá bom. Mas se for para curar, para ensinar, para ajudar uma academia a bem do povo, não acha.

Quantos grupos de Capoeira existem na Bahia?

Agora eu não sei nem contar. Primeiro existia só o meu, agora existem uns trinta e oito.

O senhor acha que essa atual invasão de turistas está estragando a Bahia?

Quando eu apresentei espetáculos de folclore na Bahia, sempre fui muito elogiado. Mas agora, atualmente, existe muita falsificação. Seguinte: Capoeira é luta pra homem (e também pra mulher, depende). Mas acontece que pra ganhar dinheiro, até Capoeira do Amor já existe. A mulher fica deitada, vem o sujeito e salta por cima da palma da mão dela; só que aí se desloca sobre o próprio corpo, se agarram, e saem rolando… Bimba não ensinou isso não…

A música que se utiliza na Capoeira, talvez por ser baseada no berimbau, dá a impressão de ser pobre, repetida. Acontece isso, realmente ?

Berimbau tem oito toques. Numa roda, pode-se tocar um toque, ou dois, ou oito… Quer dizer: não é um instrumento que tem o “estoque” que tem o violão e outros instrumentos. Mas dá pra satisfazer… A regra é um berimbau e dois pandeiros.

O Maculelê tem origem própria ou veio da Capoeira?

Não, não tem nada a ver Maculelê com a Capoeira. A lenda do Maculelê vem dos índios que existiam no Brasil. Teve uma tribo que brigou com outra. Então, do lado de uma tribo tem um herói que venceu com dois pedaços de pau. Daí o nome: Maculelê.

Existem algumas variações: Samba-Duro, Samba-de-Roda… Como é que são esses sambas?

Samba-de-Roda só se faz com mulher, com meninas. O Samba-Duro é samba de queda, um samba de batuque – é mais pesado. É um samba de homem, é sambando e derrubando. O Samba-de-Roda, dá licença. É só pras meninas mexerem com as cadeiras.

Nessas tradições todas de música e dança da Bahia, existe uma influência multo grande dos africanos. Há também influências portuguesas e indígenas no folclore baiano?

Além do batuque e desses sambas, o que restou foi um “terno” chamado Rancho Feliz, que não existe mais e que se incorporou ao folclore. Então, tudo isso foi criado pelas “cachoiranas”, mulheres apropriadas para o samba Dessas mulheres pra cá é que se aprendeu o que é Samba-de-Roda.

Mestre, existe uma dança francesa que se desenvolveu por volta de 1650, chamada “Savata”. Tem uma semelhança entre esta dança e a Capoeira, é uma dança e ao mesmo tempo uma luta; como na Capoeira, usam-se os pés e as mãos, apesar de não se utilizarem instrumentos musicais. Esta “Savata” pode ter Influenciado a Capoeira?

Eu acredito que não. Porque a Savata foi criada pelos estrangeiros e a Capoeira pelos brasileiros. Há semelhança, mas não tem nada a ver com a Capoeira. Justamente uma coincidência.

Existe Capoeira hoje em Angola?

Em Angola nunca houve Capoeira. Tem dois escritores do Rio de Janeiro que dizem que a Capoeira veio da África. Mas não. Ela foi criada no Brasil, nas senzalas, nos engenhos, onde os pretos trabalhavam. Então quando eram calçados pelo chamado “Capitão do Mato”, eles se defendiam com pesadas, rasteiras. Em princípio a lenda de Capoeira é essa, que existia em 1918 quando meu pai criou a Dança-de-Batuque e quando eu criei a Capoeira Regional.

Esse assunto aqui é diferente. Tem-se comentado muito, ultimamente, sobre a “deformação” da cidade de Salvador, principalmente em função do turismo e da construção de viadutos, abertura de avenidas, etc. Comenta-se inclusive que alguns casardes pegaram fogo assim que a prefeitura decidiu passar por ali um novo viaduto. O que é que o senhor tem observado sobre este problema?

Francamente, isto não está no meu conhecimento. A única coisa que eu vi acontecer foi justamente o incêndio do Mercado Modelo, que dizem que era tradição da Bahia. Todo ano o governo queria construir obras ali, etcetera e tal, até  que  por  fim  ele acabou pegando fogo.

O que o senhor acha do Caetano Veloso?

Francamente, eu não tenho o que dizer sobre ele. A matéria dele é uma e a minha á outra.

O senhor disse inicialmente que deixou a  Bahia por questões financeiras. Quais as condições reais que está encontrando aqui ?

Aqui em Goiânia, trazido pelo Professor  Osvaldo de Souza, que foi meu aluno e que eu tenho como um filho, eu espero, encostado a ele, ser ajudado por algumas autoridades daqui. Então, gostando da boa terra, para dizer melhor nunca vi mais mulher bonita! Aqui tem umas meninas! Meu Deus, por que é que eu sou velho?! De modo que o meu futuro é aqui em Goiânia. Porque a minha mulher recebeu o cargo de Zeladora… Diz-se por aí: “Mãe-de-Santo” – mas o verdadeiro nome é Zeladora-de-Encantado. Então aqui em Goiânia nunca teve um Candomblé e eu quero criar um. Minha mulher é a maior Zeladora da Bahia. Muitas pessoas desenganadas pelos médicos muitas vezes são salvas no Candomblé. Porque pode ser um problema do espírito. Às vezes a pessoa tem uma vida perseguida, uma incoerência com as coisas, fica aperreando pra levantar, tudo que faz não dá certo… Então com as rezas, com as coisas, ela pode salvar o indivíduo. Se minha mulher é bonita? Minha mulher é bonita demais!… Eu sou preto mas ela é caboclinha.


De modo que o meu futuro aqui em Goiânia é ensinar. Capoeira, Samba-de-Roda, Samba-Duro e Batuque, que não existe mais no Brasil. Essas coisas é que eu quero fazer.

Entrevista com Mestre Pastinha, 1964

Entrevista feita por Helina Rautavaara, na academia do Mestre Pastinha, em 1964.
Transcrição direta do áudio, com alguma tradução do espanhol (a Sra. Helina falava em “portunhol”)
Introdução (1996)
Helina Rautavaara: Em todo caso, todavia estamos durante a minha primeira visita (…) Bahia. Eu começava a encontrar coisas, e claro, me falaram sobre Mestre Pastinha – que ainda àquela época não era cego. Tinha sua academia, dirigia sua academia, às vezes jogava… Eu até tenho uma foto, muito muito ruim porque foi tirada com aquelas máquinas de 10 dólares – mas ele está jogando mesmo. Em sua academia, é claro. Era fundamento angola… o verdadeiro. Angola… E uns dos mais velhos, senão primeiros na Bahia. Claro, a capoeira é uma tradição muito antiga, tem seus heróis durante a escravidão. A escravidão não foi tanto tempo atrás. Eu tenho entrevistas… Entrevista na casa do Waldemar da Liberdade, que também é muito famoso capoeirista. Tenho uma entrevista com um velho – ou foi velha, não me recordo mais – que foi escravo, nasceu escravo. Oh! Então, tantas recordações há na Bahia. Ora, se perderam todas… Me disseram que se perderam, que deixaram perder tudo, tudo, tudo. E a música mesmo… Influenciada por rádio e televisão. Já não existe nada de folclore autóctone, tradicional. Já se mudou, hoje. Então na casa, me chamaram Mestre Pastinha. E claro, Mestre Pastinha, como dirigia sua academia, ele me apresentava a um jovem e eu fui a ele dizendo que queria gravar. E ele me apresentou esse jovem, alto, forte e bonito, que se chamava Raimundo. Preto, preto, preto. Angola! Então depois que me apresentou, ele como um guia, como uma pessoa que me ensinaria e guiaria, e cantaria para mim. Cantando capoeira amarrado, com todos lá. Agora aqui vamos escutar essa gravação. Que verdadeiramente é clássica, muito, muito clássica. Ainda posso … essa musical. Porque Raimundo sabia cantar. Depois comecei a andar com ele pelas festas de largo, e às vezes… Ele tinha um pouco de jeito de africano. Por exemplo, quando estávamos descendo ladeira, ele não andava comigo, andava um pouquinho atrás. E me lembro da polícia vindo me dizer: “Esse sujeito aí está seguindo você”. Vinham me advertir que era perigoso. E eu ficava rindo. “Não, é meu camarada…” Mas como eu disse na outra fita, naquela época, durante minha primeira visita, 1963, 1964, eu não tinha romances, não tinha amores. Então o livro de Jorge Amado foi realmente foi uma novela. Somente depois que voltei da África para a Bahia que eu comecei a andar com DiMola. E estávamos sempre rindo que somente depois eu estava vivendo acontecimentos do livro de Jorge Amado que ele tinha escrito anos antes. Então eu peço aqui, depois eu tenho entrevistas com Mestre Pastinha em outras fitas. Se couberem, eu vou juntá-las aqui. Se não, vai ser em outra fita. Mas essa é a primeira gravação da capoeira de angola, 1964.
Entrevista (1964)
Helina Rautavaara: Eu queria que me contasse um pouco, desde que ano começou como capoeirista ?
Mestre Pastinha: Desde 1910.
HR: E em que ano fundou essa capoeira ?
MP: Em 1941.
HR: Por favor, me explique um pouco mais sobre o que é a capoeira. Eu já sei, mas me explique.
MP: A explicação que eu tenho ? Que é da capoeira ?
HR: É.
MP: Sobre a origem dela ?
HR: Sim, sobre a origem.
MP: A origem é africana.
HR: E onde você aprendeu ?
MP: Aqui na Bahia.
HR: Em que ano ?
MP: Aos 10 anos de idade.
HR: E de quem aprendeu ? E quem lhe ensinou ?
MP: Um africano.
HR: Como ele se chama ?
MP: Se chamava Benedito.
HR: Mestre de angola.
MP: Angola!
HR: E… Diz-se que a capoeira é uma luta, mas que agora está proibida como luta…
MP: Não… Ela não está proibida como luta não. Ela está no íntimo do homem. Na hora que ele encontra um rival, ele então se manisfesta com ela em ato de luta. Agora quando estamos em ato de alegria, ela passa a ser dança.
HR: Na sua academia, há quanto tempo está nesse lugar ? Aqui no Pelourinho ?
MP: No Pelourinho, desde 1952.
HR: O senhor quer me contar algo de sua vida, como capoeirista ? Você foi ao Rio, a São Paulo ?
MP: Rio, São Paulo, Brasília, Porto Alegre…
HR: E para o estrangeiro também ?
MP: Ainda não. Tive uma oportunidade que perdi, que tinha que ir à Argentina. Mas porquê recebi um convite de São Paulo, então ficou revogado. Para eu vir a São Paulo, deixei de ir à Argentina.
HR: Em que idade tem que aprender capoeira ?
MP: Em que ano ?
HR: Em que idade.
MP: Não, ele aprende de qualquer idade. Em qualquer idade pode aprender.
HR: Esses rapazes que estão aqui, são trabalhadores, estudantes.
MP: É… São trabalhadores, operários, estudantes, funcionários, empregados no comércio. Tem de tudo.
HR: E a capoeira é somente um passa-tempo.
MP: É.
HR: Que eu vi ali [inaudível]. A capoeira não dá vida.
MP: Não.
HR: Mas você, o que faz ? Você vive da academia ?
MP: É.
HR: E… Que modificações novas aconteceram aqui ? Como era a capoeira antes ?
MP: Antes ?
HR: Era o mesmo ?
MP: Era a mesma coisa. Era a mesma coisa. Não tem modificação nenhuma. A modificação é a consideração de um homem para outro. Se ele tem a vocação, toma em ato de alegria ou em festa, então nós jogamos ela com mais obediência, com mais técnica. Agora, quando passar o ódio, ela modifica também, vira para luta. Em ato de alegria, é para dança. E no ato do ódio, já sabe como é: é para a violência.
HR: Diga-me uma coisa. Você pessoalmente não sai mais na rua.
MP: Não, não, não…
HR: Mas apresenta a capoeira em Boa Viagem. Em que festas apresenta ? Em Santa Bárbara. Em, em… Conceição…
MP: Em Santo Amaro, Cachoeira.
HR: Boa Viagem…
MP: Boa Viagem. Eu estou em todos os lugares. Onde sou convidado a ir, eu vou.
HR: Sim.
MP: Estamos aqui prontos para atender qualquer finalidade, seja qualquer lugar. Aonde se interessarem por ela, eu também me interesso em ir.
HR: Onde você acha que a tradição de capoeira é mais puro ? Aqui mesmo ?
MP: É…
HR: O que pensa de Mestre Bimba ?
MP: Nada tenho a responder. A finalidade é outra, e eu não posso introduzir uma finalidade… Agora nessa aqui, eu sei responder sobre ela. Agora lá sobre o outro… Sei que ele é um… A respeito do Bimba, eu não posso dar a finalidade. Porque ele tem a finalidade dele. Só quem pode declarar é ele mesmo.
HR: Mas você acha que… Ele disse que representa uma tradição baiana. Você crê que é baiana ?
MP: Ele é baiano também. A tradição é a mesma. De mim para ele, de ele para mim, penso que não há modificação nenhuma.
HR: Você mestre representa mais uma tradição africana, angolense. Ele apresenta outra tradição mais…
MP: Angola! Ele apresentou então em outra modalidade. Sobrenome de regional. Ele apresenta ela com o sobrenome de regional. Mas ele é angoleiro, ele aprendeu angola.
HR: Era, era…
MP: Ele é tão angoleiro quanto eu sou, aí eu não desmereço ele…
HR: E os outros como Waldemar e Caiçara… São discípulos seus ?
MP: Aqui para nós, eu não posso dar a finalidade do outro. Só posso dar a minha. Porquê eu só posso apresentar a minha, não posso apresentar a outra.
HR: Não, não, eu não perguntei isso. Eu perguntei somente como tradição africana.
MP: É a mesma, a tradição é a mesma. Agora eles tem a declaração deles diferente. Eles aprenderam com outro mestre. Eu não posso dizer nada.
HR: Que planos tem para o futuro ? Para modificar, fazê-la maior ?
MP: O futuro dela é esse mesmo. Da evolução do homem. Aí é somente a evolução do homem. Mas ele tem que se manifestar dentro dela mesmo. No mesmo ritmo, não pode sair fora…
HR: Me diga uma coisa… Que significado tem quando eles começam cantando, e saúdam assim. Uma saudação. Tem algum sentido religioso ?
MP: Ela é religiosa. Vem da mesma religião que tem o candomblé. Tem o batuque, o samba. Ela é da mesma parcela. Agora, com a modificação, um pouquinho diferente. O manifesto é um pouquinho diferente. Mas a parcela é a mesma, a religião é a mesma.
HR: Alguém me disse que há uma rivalidade entre candomblé e capoeira…
MP: Não há rivalidade… É unida.
HR: Em algum livro eu li que há uma briga entre elas. Não há ?
MP: O capoeirista é o mesmo feiticeiro. Agora eles abandonam mais uma parte por outra. Nós acompanhamos o fetichismo. Nós acompanhamos o candomblé. Não fosse assim, nós não iríamos na casa de candomblé. Não é ? Mas é da mesma parcela. Agora um que gosta mais de uma finalidade que da outra.
HR: Claro, claro…
MP: Um corre mais por capoeirismo, outro corre mais por fetichismo.
HR: A revista que lhe prometi, vou lhe mandar da Finlândia. Porque aqui não tem… Do Rio eu podia mandar, porque no Rio tem. Podia mandar alguma fotografia de [inaudível].
MP: Pode mandar. Quanto mais, melhor…

Palestra do Dr. Fu Kiau (Salvador, 1997)

O texto abaixo foi gentilmente cedido por Daniel Mattar, treinel da FICA. O texto foi transcrito a partir de fitas K7 contendo a gravação da palestra do Dr. Fu Kiau, realizada em Salvador (1997)

III ENCONTRO INTERNACIONAL DE CAPOEIRA ANGOLA Fundação Internacional de Capoeira Angola – FICA
Palestra do Dr. Fu-Kiau (Lemba Institut – New York/USA) Salvador/Ba, agosto de 1997.
FITA 1 – LADO A
Dr. FU-KIAU: Eu vou falar pra vocês do nascimento do mundo da capoeira na terra Congo. São alguns fatos que nós temos que conhecer antes de começar qualquer coisa. Entre 1500 A.C., essa área particular que chama Angola e Congo foi visitada por fenícios. Essa visita foi a primeira registrada fora do continente africano, então foi a primeira visita conhecida pelos ocidentais. Entre esse período que nós falamos e o século XIII há um silêncio total, não sabemos nada. Depois deste tempo, o século XIII, que o reino do Congo-Angola cresceu. Esse reino era muito poderoso nesse momento particular (nessa época) . Esse reino era tão poderoso que era conhecido… era tão conhecido, que tinham livros escritos sobre esse reino. Vários professores universitários pesquisaram sobre esse reino, na Europa. Um deles chama-se Lopes, de Portugal; um outro chama-se George Balandier, da França, e George Balandier é um dos mais conhecidos dessa época da história do Congo, porque é dentro da pesquisa dele que nós encontramos (buscamos) as informações sobre o reino do Congo. Ele foi o primeiro europeu a reconhecer que o reino do Congo era tão poderoso, reconhecendo a existência de quatro universidades nesse local. Um deles foi conhecido como Instituto Lemba; o segundo conhecido como Instituto Kimpassi; o terceiro conhecido como Instituto Kikumbi, e o quarto, Instituto Welo (ou Uelo). Urna dessas universidades foi feita para o treino de mulheres. É muito importante insistir nesse fato. Por que essa existência de uma universidade prá mulheres? Porque o Congo acredita que a mulher é (ou está) mais perto de Deus. Porque a existência humana é impossível sem a presença da mulher. Esse reino do Congo, como era conhecido na época, é hoje conhecido com três nomes diferentes. O Ocidente descobriu a importância desse reino e não quis que este permanecesse unido, então dividiram esse espaço em três poderes: o sul deste reino foi para Portugal, conhecido hoje como Angola; o centro foi para a Bélgica, hoje conhecido como Zaire, ou República do Congo; o norte do reino foi dado para a França, e é conhecido também como República do Congo. Mais de 40% dos escravos trazidos para as américas vieram desta região particular. É bem infeliz para nós, porque o mercado de escravo destruiu totalmente este reino. Os maiores mestres que existiam nesse reino foram levados. Todos os jovens entre 15 e 25 anos também foram levados, e o pior, quando eles chegaram no Novo Mundo, por causa do tratamento que eles receberam, esses mestres… todos esses mestres que tinham esse conhecimento, tiveram que morrer. Eles morreram durante a travessia do Atlântico; quando chegaram na terra foram submetidos a trabalhos forçados, e os que não queriam se submeter tiveram que lutar. E como eles não tinham armas como os serthores, eles começaram a se organizar de maneira secreta Nessa medida eles começaram a entender os poderes que eles tinham adquirido na África E a mesma capoeira nasceu na América do Sul e no Brasil. Esta mesma prática existiu no norte da América Não conheci pelo mesmo nome. O ensinamento do que nós conhecemos como capoeira foi conhecido por outro nome, mais conhecido pelos seus aspectos de igreja, e se chamava mong. Então são esses dois nomes: capoeira e mong, o que era a capoeira no Congo-Angola Como eu disse mais cedo, Congo-Angola foi a terra da origem da capoeira, e então no caso o Brasil ter conhecido a capoeira não foi errado, não foi mal conduzido. Achou seu camitrho. Temos que entender as crenças e a visão de mundo destes povos. O povo bantu acredita que existem quatro níveis na vida O início de tudo, que nós conhecemos como big bang, é o nível 1, ali embaixo, conhecido como mussoni. Depois do big bang veio o processo de resfriamento, o mundo foi solidificado, e temos o nosso planeta Terra. Esta aí é a etapa 2. É nesta etapa 2 que a vida começa no seu nível mais baixo. E aí vem a etapa 3 onde os animais começam a surgir. É na etapa 4 que os seres humanos surgeim (Anne: eu falei vida no 2, mas eu acredito que seja vida vegetal). Eaí a vida é (se) completa na face da Terra. É nesse esquema que o povo bantu-congo tem como bases os seus ensinamentos, e acreditam que nada na Terra foge dessa base, desse esquema. Biologicamente, nós somos concebidos na etapa 1, nascemos na etapa 2 , amadurecemos na etapa 3 e morremos na etapa 4. E esse processo continua através do Universo. E eles explicam porque a lua é nua para eles. A lua está nua nessa etapa, sem vida nenhuma, porque ela está na etapa 2. Nesse processo nós vamos também descobrir o que é a vida. Todos os ensinamentos seguem o mesmo esquema. O povo bantu, devido o ensinamento nessas quatro partes (etapas), tem um tempo que nós temos que entender a origem da vida, como a vida na Terra é concebida, e o que é o nascimento. O que é também ser maduro e um líder, e o que é morrer. Para os bantu, a morte não é o fim, porque a morte é um processo como qualquer outro processo, e porque é um processo eles veem como música. Nós nascemos sob música e morremos sob música, porque dentro de nós temos uma percussão que é o coração. Então os instrumentos que fazemos fora de nós são iguais, e é por isso que é importante para qualquer pessoa envolvida com capoeira. Para entender o conceito da música dentro da capoeira, esse candidato tem que entender que a música é o seu coração biológico. Vou tentar explicar isso com os slides. Para os bantu, especialmente os congo, viver é um processo emocional, de movimento. Viver é movimentar, e movimentar é aprender. Você avança, você se movimenta para trás, você se movimenta prá esquerda e você se movimenta para a direita, e essas são as quatro direções. Mas, tem mais três. Temos que aprender a se movimentar para cima, temos que movimentar para baixo. São as seis direções. Um candidato à capoeira deve descobrir a sétima direção. E essa direção é muito importante. Temos que entender que dançar e se movimentar é se movimentar dentro de um ovo. O capoeirista se movimentando tenta quebrar essa casca de ovo. O capoeirista (candidato a capoeira) é como um pintinho dentro do ovo, tentando quebrar a casca. Ele tenta bater prá cirna, bater prá esquerda, bater prá direita, bater pra frente, bater pra trás, bater pra baixo, mas a coisa mais importante é bater pra dentro (por dentro). É por isso que o capoeirista quando jogando, não pode perder o centro. É por isso que na vida temos que também ter essa consciência de não perder o centro para ter saúde e riqueza. O Movimento na vida é muito importante, e temos que descobrir o valor da vida Se você prestar atenção aqui, você tem um centro e temos essas direções. E eu falei que se movimentar é aprender. Os movimentos que você faz na capoeira é um movimento, e não é limitado a aula que você está aprendendo (no caso, aprendendo capoeira). É parte da sua própria vida. Você tem que conhecer pessoa fora. Você precisa encontrair (conhecer) as pessoas vivas e as pessoas mortas. Esse conceito não é muito conhecido no Ocidente, e por isso que o Ocidente não entendeu muito bem a cultura africana. Nós aprendemos mais com os mortos do que com os vivos. Isto é muito comum dentro do povo africano. Isto é ilustrado na maneira como os africanos respeitam os mortos. E é verdade também… mas eles não enxergam, não percebem nessa (ordem). Se você for em qualquer livraria, você vai ver mais livros escritos por mortos do que escritos por vivos. E os bantu falam: nós escutamos e aprendemos mais dos mortos. É por isso que os bantu falam: escutem mais os mortos que os vivos, porque os mortos se tornaram pedras, e os vivos são capim. Eles podem ser facilmente pisados, enquanto os mortos, que são pedras, não podem ser destruídos tão facilmente. Então isso aí é muito importante na nossa vida quando descobrimos a…..
Daniel Dawson: Alô. Eu acho que muitos de vocês já viram a apresentação de Dr. Fu-Kiau antes, mas certamente vocês podem ouvir isso novamente. Dr. Fu-Kiau é importante como pesquisador, como estudioso, e como um líder de tradição. Ele tem duas formações: uma formação em sistemas tradicionais africanos, tais como LEMBA, e várias outras. Ele também foi educado da forma ocidental. Ele é um doutor em Educação, e tem vários mestrados. Atualmente é o diretor do serviço de biblioteca numa prisão de Boston (USA), onde ele ensina cursos sobre cultura africana. Ele também foi um dos primeiros africanos a abrir um instituto dedicado à cultura africana, e muitos dos mais importantes estudiosos, como Robert F. Tompson……….aprenderam suas informações vindas dele. Pelo fato do Instituto dele ser dedicado ao registro e a discussão da cultura africana, ele é uma enciclopédia dessa cultura Nós deveríamos nos beneficiar de algum dos conhecimentos dele, hoje. Muito deste conhecimento vem do Instituto Lemba. Lemba foi importante em todas as Américas. É importante também no Candomblé de Angola porque existe um nkisi chamado Lemba; é importante no Haiti porque uma parte do seu vodum é chamado vodum Lcmba; é importante também em Cuba. Então Lemba é uma das instituições mais importantes, e vocês vão poder ter contato com isso, porque não só ele é uma pessoa iniciada em Lemba, mas ele tern um estudo ocidental dedicado a isso, e tem o processo iniciatório. Também serão beneficiados pela tradução de Eneida. Dr. Fu-Kiau.
Dr. FU-KIAU: É um grande prazer prá mim estar aqui. Esta é a segunda vez, segundo dia que eu experencio algo que me faz chorar. A primeira vez eu fui para uma celebração, e nessa particular celebração eu ouvi canções que não eram em português, mas canções que eram na minha língua. E aqui novamente, eu ouvi algumas canções, não em português, não em inglês, nenhuma outra língua européia, mas em minha língua e em iorubá. E uma dessas canções fez o meu coração bater tão rápido. Essa música era KALUUNGA KULUMUKA. Kaluunga é uma palavra chave na religião congo. A palavra significa o oceano; também significa imensidão; significa também a energia maior que existe. É também a palavra que significa Deus. Então pra mim ouvir Kaluunga Kulumuka, todo o meu corpo mudou. Eu vi os céus descendo entre nós. É uma pena que muitos não tenham essa mesma experiência em particular que eu tive. A segunda canção, foi a canção na qual os cantores estavam tentando enviar suas lágrimas como uma chuva, ao contrário do que acontece conosco quando ela vem dos céus. E depois dessas duas canções, eu disse pra mim, dentro de mim: “se eu tiver algum poder de falar aqui, talvez fosse apenas o fato de eu sentar e ouvir mais. Mas porque me foi pedido prá falar, eu tenho que dizer algumas coisas.
O Brasil, na minha experiência é o meu país. Porque, em qualquer outro lugar que eu for agora, eu vejo as pessoas retomando prá casa. Mesmo aqui, as canções, os tambores… da mesma forma que são tocados e cantados de volta na minha casa. Uma terceira canção que eu mencionaria aqui, que foi a canção… e nessa canção tem algumas palavras, na verdade são duas palavras, e essa canção foi NGOMA MALEMBE, que significa: “tambores toquem devagar, não nos acelere, não nos façam andar- rápido. Nós não vamos compreender suas vibrações”. Essas são coisas profundas prá mim.
Eu tenho muito orgulho de ter sido permitido de visitar o Brasil, e eu agradeço a esta senhora chamada SIMBI VALDINA e Mestre Cobrinha. Sem eles eu não poderia estar aqui. Eles são as portas para que eu possa estar aqui. Nós estamos vivendo um tempo diferente agora. Por quatro ou cinco centenas de séculos nós estivemos separados. Nada nos separa agora: nem o oceano, nem a terra, nem inesmo as línguas. Nós somos um, hoje. E pelo fato de termos nós tornado um, nós temos que aprender uns dos outros. Eu vim aprender de vocês, e eu espero que vocês venham aprender de nós. O mundo tornou-se uma única vila (aldeia), uma vila global. E nessa vila, nós teremos as tendas (as barracas) dentro das quais teremos irmãos de sangue, pessoas brancas, pessoas amarelas, pessoas vermelhas e talvez pessoas verdes e amarelas [talvez em referência às cores das bandeirolas verdes e amarelas que decoram o Terreiro Catendê]… a gente ainda não sabe (Risos), porque o universo está se expandindo. Há apenas algumas semanas atrás um homem enviou uma máquina que aterrissou em Marte, e a gente sabe que as máquinas continuarão a ser enviadas para mais outros lugares, e que provavelmente nós encontraremos seres vivos nesses outros planetas. E esses seres também serão aceitos nessa vila global. Nós vamos aprender suas línguas e eles vão aprender as nossas línguas, mas primeiro precisamos encontrar o nosso círculo, a nossa fonte, como a nossa casa Na sua casa você está seguro e você está protegido. Sem o seu próprio centro, sem a sua casa, você não pode está seguro. Você vai estar sempre com medo em qualquer lugar que você esteja. Lá fora, e mesmo dentro do prédio mais bonito. Se você não tem o seu centro dentro desse edifício, você não vai estar seguro. É importante para nós, povo africano, descobrir as nossas próprias raízes. Essas raízes, não necessariamente têm que ser encontradas na África. Existem muitas coisa que estão neste momento faltando na África, da mesma forma que muitas coisas estão faltando no Novo Mundo, pelo lato de que houve um tempo em que muitos Estados na África foram destruídos pelo tráfico de escravos. A maioria dos maiores mestres que existiam realmente naqueles países foram aniquilados. Eles foram capturados e transformados em escravos. Muitos poucos dentre eles chegaram a alcançar o Mundo Novo, e muitos morreram nessa travessia do oceano; e como tal, muitos conhecimentos da África foram tomados, levados da África. É por isso que nós precisamos nos reunir, porque uma parte desse conhecimento var ser encontrado no Mundo Novo [a imagem do caleidoscópio: pedaços que se espalham formando novas configurações se, contudo, perder- o colorido, ou a beleza], e uma outra parte será encontrada no Mundo Antigo, na África. Eu escutei muitas palavras nesse país, que são canções que não existem mais na África hoje, e que nós sabemos que são canções Lemba. E eu sei que são canções Lemba porque eu sou um iniciado Lemba. Quando eu era jovem eu não conhecia essas canções, mas quando eu fui iniciado eu aprendi essas canções. E quando eu cheguei no Mundo Novo, eu encontrei essas mesmas canções, e as palavras chaves mais importantes nos ensinamentos da África, são encontradas aqui também. A minha conversa com vocês vai abarcar muitas coisas, e urna delas será a visão de mundo do bantu; como é que o bantu vê o seu mundo. É muito importante você compreender esse mundo bantu. A palavra bantu foi introduzida no Mundo Novo através de estudos antropológicos, e como tal esta palavra é mal-compreendida. BANTU significa, em primeiro lugar, pessoa. E esse é o plural. O singular disto é MUNIU. Então o bantu, ele não é aperras encontrado na África Eu sou um MUNTU, e vocês todos são bantu. Existe um ditado, quando os homens brancos entraram na África, na área bantu, em todos os lugares ouviam estas palavras: muntu e bantu. Aí o homem branco disse: ah! eles são bantu. E quando os homens bantu descobriram que os homens brancos estavam chamando eles de bantu, eles ficaram surpreendidos e disseram: Bom, se nós somos bantu, então vocês não são bantu. Então nós podemos lhes colocar em qualquer categoria que nós quisermos. Em animais, em árvores, em pássaros, ou até mesmo vocês podem ser uma terra Mesmo assim esse erro foi cometido e a gente não consegue corrigir isso hoje. Mas nós fazemos, precisamos descobrir o centro de nós. E nós podemos ir a qualquer lugar se nós protegemos o nosso centro. Nos tornamos hoje em dia mais doentes porquê estamos perdendo o nosso centro, porquê geralmente as pessoas fora se sentem desprotegidas. Sentem medo quando saem de casa, e protegidas quando estão dentro de casa. Seu poder interior é a chave da sua extensão fora. Nós não podemos ter medo se acaso a capoeira está se expandindo, tão longe, enquanto estiver ligado ao centro.
Mestre Acordeon: Muito obrigado Dr. Fu-Kiau, é uma analogia muito bonita. Acredito que a música é: ai ai Aidê
FIM DO LADO A
FITA 3 : LADO A
* Palestra do Dr. FU-KIAU no Terreiro Catendê. Festa de TEEMPO Salvador, 17/08/97
Macota Valdina Pinto: … é da cultura bantu, e dar à ela o lugar que ela merece , ao lado da cultura iorubá e da cultura ewê-ewê fon. Entre nós, a cultura tem sido deixada, tem sido transmitida através da oralidade, quando nós nos iniciamos num terreiro. E nós aprendemos com os mais velhos, através dos exemplos, através das repetições, através da participação, traços de culturas tradicionais. O jeito como nós fazemos aqui no Brasil, pode estar distante da África tradicional, mas é o que nos liga e o que nos dá identidade africana, é o que nos é passado através da religião. Então, uma língua africana que foi impedida de se falar, o nome, que dá identidade a um ser humano, e que também foi proibido de se ter, nós resgatamos no candomblé. Então, o candomblé é muito mais do que uma religião pra nós. O candomblé é o espaço onde a gente afirma, onde a gente resgata uma identidade que nos foi tirada. Eu acho que é muito mais… não sei se Mutá, mas muito mais nós estamos aqui hoje prá aprender com nganga Fu-Kiau. Pra mim representa minha ancestralidade aqui presente, e eu estou aqui mais para beber as palavras de Fu-Kiau.
FITA 1 : LADO B
Dr. FU-KIAU: Se você encontrar um ainigo que você não viu há dez anos, o que você faz? Dá uni abraço. Essa aí é a chave da vida. Quando nós encontramos amigos forníamos um V(<), para cumprimentá-lo. Isso significa que a pessoa que você vai encontrar também vai formar um V(>). Então as duas juntas formam um diamante ( <> ). Cada um leva a sua energia paia o centro do diamante, e se tornam um. Hoje a América não é mais só. Tampouco a África. Nos tornamos um, porque nós nos encontramos. Ou pela comida que nós comemos; ou então viajando; ou nos livros que lemos da África e da América; ou porque nos encontramos numa festa… nos tornamos Um. Esta forma (formato), na vida, é a chave principal para a vida e para viver. Temos que tentar viver para formarmos esta forma de diamante. Se podemos tentar proteger esta forma na nossa vida, teremos a capacidade para criar, para formar uma família forte, porque isto aqui é a chave de qualquer casamento. Quem entende essa forma vai conhecer a formação da sociedade africana. Dentro dessa forma temos dois “i” (a letra i). Um i é fêmea e o outro i é macho. Esses dois formam um casamento. Esses dois i criam o nascimento para outros i. Quando um i é nascido desses dois i, temos que ter muito cuidado. Não imporia o que aconteceu, não leva a sua briga para esse terceiro i, porque a vida desse terceiro i depende dos dois primeiros. É importante, como estudantes de capoeira para entender verdadeiramente que um capoeirista é um ser humano dentro de um ovo. Temos que saber como se movimentar. Então não teremos que usar um martelo para quebrar a casca, porque você é poderoso. Você pode não saber disso, mas o poder tá dentro de você. Como capoeirista, pode destruir facilmente se usado de maneira errada. Mas, o poder dentro de você, como capoeirista, se usado de maneira apropriada, você pode construir muito mais do que você acha. Precisamos dessa energia hoje para poder construir uma nova aldeia, uma aldeia global, aonde todo mundo vai (boiar), cada um dentro do seu próprio ovo, sem quebrá-lo, por outros … (Inaudível) a menos que nós queiramos. Como eu disse, esta foi uma palestra breve… falei demais? Se for o caso eu paro aqui. Se tiverem alguma pergunta, podemos respondê-la aqui ou fora. Muito obrigado. .APLAUSOS.
Cobrinha: O Daniel vai apresentar o Dr. Fu-Kiau.
Daniel Dawlson: O Dr. Fu-Kiau é um tipo raio de estudioso. Ele nasceu em Manianga, Zaire, hoje República do Congo. É um local muito importante para as tradições do Congo. Dr. Fu-Kiau também tem duas educações. Ele tem o doutorado numa universidade ocidental, mas também ele foi educado nos ensinamentos tradicionais africanos. Ele foi iniciado em três academias diferentes, na África. Um que um dos mais importantes capoeiristas cantou sobre. O nome desse local é Lemba. É um local muito importante na África para o conhecimento tradicional. Muito desse material (ensinamentos) que nós vemos agora vem desse… Lemba. Ensinamento Lemba. Ele foi também um dos primeiros africanos a abrir um instituto na África, em 1963, para coletar informações sobre culturas tradicionais na África. Foi a primeira instituição criada por um africano. Muitos destes estudiosos jovens, aprendem destas instituições…
Cobrinha: Muitos destes estudiosos jovens aprenderam sobre cultura tradicional através deste instituto, desse material coletado.
Daniel Dawlson: Ele escreveu seis livros. Ele é considerado escritor predominante sobre a cultura congo. Obrigado.
DEBATE
Mestre Acordeon: Em primeiro lugar, parabéns Dr. Fu-Kiau, aprendi bastante. Obrigado pela palestra, nós temos sempre que aprender, mas eu gostaria de fazer também alguns comentários. Quero pedir a permissão dele, com todo respeito que faço, não somente por ele, pela palestra dele, como também pelo conhecimento que ele tem. Eu tenho morado nos Estados Unidos por 18 anos, e tenho a oportunidade de intervir de alguma forma como nós apresentamos, nós estudamos alguns desses aspectos que se relaciona com a nossa cultura. No específico da capoeira, durante esse tempo nos Estados Unidos, eu recolhi muitas teses de doutorado, de mestrado… eu tenho examinado por algum tempo, e naturalmente capoeira é importante, porque é uma arte africana em essência, e interessa a muita gente, mas eu tenho dificuldades em alguns aspectos. A capoeira tem uma história longa no Brasil, não somente através da tradição oral como também através de registros escritos. Eu tenho examinado que existe uma tendência, nos Estados Unidos, dessas teses, desses trabalhos destes estudiosos, de se classificar a capoeira dentro de uma perspectiva que não leva em consideração essa trajetória histórica da capoeira no Brasil. A maioria desses trabalhos, dessas pessoas, que escrevem, que falam, que estudam capoeira, não conhecem suficientemente da língua portuguesa para examinar essa literatura que nós temos, nem a nossa história. Então o pessoal se baseia dentro da literatura, em inglês, sobre artes africanas, sobre história africana, sobre rituais africanos. Eu acredito que o estudo desta literatura sobre temas africanos, sobre as artes africanas, filosofia e tudo o mais, é de fundamental importância para nós entendermos a… brasileira, para nós entendermos a nossa herança cultural africana, mas na verdade, estes estudos não explicam… Através de a capoeira se apresentou de forma diferente, e foi uma questão de sobrevivência da capoeira (>>>>) Então eu pergunto: quanto válido é se aplicar o modelo africano que nós levantamos através do estudo, da literatura e do material desta …sobre capoeira que é uma arte essencialmente africana, em termos de elementos foimativos, mas que através do tempo mudou tanto, se apresentou com tanta roupagem, se nós já reconhecemos, já registramos, existe, está na literatura, só que não é disponível para (inaudível). Então eu perguntei pro Dr. Fu-Kiau qual é a validade de se aplicar genérico de uma arte, de forma tão mutável, porquê a meu ver é (me esqueci do termo em português…) um erro metodológico de pesquisas, de trabalhos em termos de estudos antropológicos, em termos de deduções analíticas…
Dr. Fu-Kiau: Sua questão é muito importante. É uma semente viva que você tá jogando aí. É muito difícil responder esta pergunta, só se Makindê estivesse aqui… o que é uma coisa muito difícil… Mas eu vou tentar responder o que pode fazer parte da minha resposta Porque minha resposta não vai ter só uma parte, não vai se resumir em uma parte só. Alguém aqui está com seu filho ou filha aqui? (….) Isto aí é muito importante, isto aí é que é uma das coisas que eu encontrei em toda a minha vida nos Estados Unidos. Na África, nenhum ensinamento vai ocorrer sem a presença das crianças, porque as crianças são nosso futuro.(….) Esta aí é Vera, e Vera é parte de Gabriel. Gabriel não pode ser sem Vera. Ela até que poderia ter tido este filho com um homem que não visse mais. Talvez o pai não fosse nem reconhecer o filho. Mas este homem, não importa aonde ele esteja, este homem tem uma ligação com Gabriel. Ele aceite esta ligação ou não, ele é parte de Gabriel. Como tal, ele é ligado a Vera. Gabriel não será uma semente inteira dentro da comunidade, sem estas duas forças, estes dois V’s, protegendo Gabriel. Eles podem ser separados, mas eles têm as responsabilidades para proteger Gabriel. Este aí é o processo de passar o conhecimento. Temos que reconhecer a fonte, porque todas as fontes são sementes, e todas as sementes podem se tornar árvores. Não importa como são os galhos. Estes galhos têm que ser alimentados pelas raízes do tronco, porque eles são parte desta semente. Essas galhos podem ser grandes e bonitos, e estes podem ser fininhos sem muitas folhas. Mas eles são parte da árvore, fazem parte da árvore. A diversidade é importante na vida humana. Mas não tanto quanto a unidade. É verdade que a capoeira passou por muitas mudanças. Mas todas as capoeiras têm uma semente. E esta semente tem que ser reconhecida. Porque sem ela, capoeira não é. Sabemos, por exemplo, de uma dança conhecida, famosa, no Novo Mundo, o Tango. Todo mundo conhece o tango, sabe o que é, e sabemos que tango é uma palavra africana Tango querendo dizer tanga no singular e matanga no plural. O mundo, por si é uma palavra, e o nome matanga é um segundo funeral. Quando um chefe morre dentro de uma comunidade, a comunidade chama todo mundo, até em comunidades distantes, para fazer um encontro.
FIM DO LADO B
FITA 2 LADO A
Dr. FU-KIAU: Depois que a comunidade souber o que nós devemos, nós coletamos o dinheiro, e pagamos as pessoas, a quem a pessoa está devendo. Quando o balanço está feito, a dança chamada Matanga é aberta, com muitos instrumentos musicais. Quando os escravos chegaram ao Novo Mundo, eles trouxeram esta dança, que ocorria geralmente aos domingos. O Tango não é uma dança no Novo Mundo como ela era no Congo. O Congo não pode reclamar do Tango como ele é hoje em dia. Mas eles reconhecem. Eles foram os doadores do Tango para o Novo Mundo. É importante para o mundo Ocidental saber de onde vem esta palavra Quando nós chegamos no Novo Mundo, nós mudamos os nomes das localidades. Eu fui visitar, há duas semanas atrás, o Grand Canyon, que é um belo lugar nos Estados Unidos. Antes de ir eu perguntei a muitas pessoas educadas, ninguém podia me dar o nome original deste local. Porque nós pisamos este nome. Nós não sabemos o que Grand Canyon era no passado. Nós não sabemos da História que nós estamos pisando, mesmo, quando nós vamos lá no Grand Canyon, porque perdemos o nome deste local. E eu descobri que o noine deste local significa “Fonte do Sal”, porque os índios tinham o costume de ir lá e coletar o sal para as comunidades respectivas. E muito importante pra gente saber de onde nós viemos, para então saber para onde estamos indo. Se nós sabemos que estamos encima (ou debaixo da terra). Nós não vamos destruir a terra Porque nós não prestamos muita atenção aonde nós estamos pisando, então nós destruímos. Nós construímos encima, nós andamos em cima, nós cuspimos em cima, nós fazemos amor em cima, mas ninguém pensa que a terra é mais importante do que qualquer outra coisa que nós temos. Nós a estamos destruindo, porque não temos a consciência do seu valor. Tem uma música que nós estávamos cantando na capoeira, essa música “ia, iê, ia ,iê…”, eu não lembro bem da música, mas é um nome congo, em que yanya (iaiá) quer dizer mãe, porque é a terra. Porque o capoeirista não pode se tornar parte se ele não conhece a terra Porque você pode voar em cima, mas você não pode esquecer que vai volta à terra. O que é a fonte. Não importa o que eu estou dizendo prá vocês que nós todos somos bantu. E cada um dentre vocês é um Muntu. É um ser humano. Então agora eu vou falar um pouquinho agora sobre a visão de mundo do bantu. O bantu acredita que o nosso mundo é um ovo. Um ovo que pode expandir. E nós acreditamos que nessa expansão muitos mundos estão sendo criados. E a Terra, de acordo com o bantu, foi o primeiro planeta a ser feito, e que todos os planetas do Universo, de acordo com o bantu, passam por quatro passos principais. O primeiro passo é chamado de MUSSOME, que literalmente quer dizer imprimir. Imprimir códigos genéticos. Dentro das árvores, dentro das pessoas, dos povos… e depois dessa posição que é chamada de Mussome, é também a posição concebida como Big Bang no Ocidente. Aí vem o processo KULINGUI. Esse processo de resfriamento levou muitos e muitos e muitos anos, até que a terra tornou-se sólida. Aí veio o estágio dois. E este estágio chamado KALA, é o estágio de nascimento da terra. É também nesse estágio que a vida sobre a terra, no seu nível mais inicial, no seu nível mais inferior começou. As plantas começaram a crescer. E aí vem o terceiro estágio, que é vermelho, e esse terceiro estágio, a terra testemunha o nascimento dos animais. E aí vem o quarto estágio, que é LUVEMBA, e que eu conheço muito bem, e que PEMBA é muito conhecido aqui no Brasil. Então PEMBA e LUVEMBA são a mesma palavra. Então é nesse estágio que ocorre o Homem ou o ser humano. Com o nascimento do Homem sobre a terra, nós ternos também a morte, FUÁ, ou LUFUÁ, que é morte. E aí o processo se completa. Esse processo, ele ocorre hoje no universo. Para as pessoas bantu, eles vão dizer que a lua está nua porque…
MUTÁ IME: …Possa pensar que nós temos que nos unir para um novo mundo. Nos prepararmos para um mundo melhor. Eu gostaria de cantar uma canção em comemoração ao término da fala do Dr. Fu-Kiau. Eu repetirei aquela cantiga que o emocionou tanto, e que também significa LEVANTAR, SE ERGUER E CAMINHAR, já que estamos hoje celebrando TEEMPO, MOVIMENTO, CAMINHADA, AÇÃO E PENSAMENTO.
FIM DO LADO B

Mestre Pastinha – É luta, é dança, é capoeira

Entrevista realizada por Roberto Freire e publicada na revista Realidade, em 1967.

Dois homens vão lutar. Estão acocorados um diante do outro, presos ao ritmo de uma estranha música. Atrás deles, um velho toca berimbau e puxa o canto que será repetido pelos outros cinco instrumentistas. Todos os seus versos terminam com a palavra camarada. O nome do velho é mestre Pastinha. A luta vai se travar em sua Academia, no bairro do Pelourinho em Salvador, na Bahia. Um dos músicos retira o berimbau das mãos do mestre, que estende os braços à procura das cabeças dos lutadores. Ele diz um último verso: é a senha para o início da luta. Os dois homens vão lutar capoeira, e se benzem quando a mão do mestre deixa suas cabeças. Surgem os primeiros golpes. Só mestre Pastinha não os vê. mas parece pressentir. Ele está quase cego, mas sabe tudo sobre capoeira, que lutou, invencível, até os 78 de idade. A história da sua vida alcança quase toda a história da capoeira no Brasil. Ele a conta assim:
“Compreende melhor quem vê a luta. Ela parece uma dança, mas não é não. Capoeira é luta, e luta violenta. Pode matar, já matou. Bonita! Na beleza está contida sua violência. Os meninos estão só mostrando, os golpes passam raspando ou são contidos antes de atingir o adversário. Mas mesmo assim ela é bonita.
“Tudo o que eu penso de capoeira um dia escrevi naquele quadro que está na porta da Academia. Em cima, só estas três palavras: Angola, capoeira, mãe. E, embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo em ânsia de liberdade; Seu princípio não tem método; Seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.
“Mas tem muita história sobre o começo da capoeira que ninguém sabe se é verdadeira ou não. A do jogo da zebra é uma. Diz que em Angola, há muito tempo, séculos mesmo, fazia-se uma festa todo ano em homenagem às meninas que ficavam moças. Primeiro elas eram operadas pelos sacerdotes, ficando igual, assim, com as mulheres casadas. Depois enquanto o povo cantava, os homens lutavam do jeito que fazem as zebras, dando marradas e coices. Os vencedores t inham como prêmio escolher as moças mais bonitas entre as operadas. Pode não ser verdade, mas os capoeiristas de hoje bem gostariam que fosse, desde que suas vitórias tivessem prêmio igual…
“Bem, mas de uma coisa ninguém duvida: foram os negros trazidos escravos de Angola que ensinaram capoeira para nós. Pode ser até que fosse bem diferente dessa luta que esses dois homens estão mostrando agora. Me contaram que tem muita coisa escrita provando isso. Acredito. Tudo muda. Mas a que a gente chama de capoeira de Angola, a que aprendi, não deixei mudar aqui na Academia. Essa tem pelo menos 78 anos. E vai passar dos 100, porque meus discípulos zelam por mim. Os olhos deles agora são os meus Eles sabem que devem continuar. Sabem que a lula serve para defender o homem.
“Os negros usavam capoeira para defender sua liberdade. Pode ser até que o nome da luta venha justamente disso. Negro fugia era para o mato. Se algum capitão-do-mato o alcançava, se era um a um, numa clareira, numa capoeira – então, ali, o negro era mais livre para se defender.
“E dizem também que esse jeito de lutar de brincadeira como ainda fazemos hoje, era a maneira do escravo se exercitar, disfarçando de bailarino na frente do feitor. Acho que é até verdade, capoeirista é mesmo muito disfarçado, ladino e malicioso. Contra a força, só isso mesmo. Está certo.
“Mas o que serve para defesa serve também para o ataque. A capoeira é tão agressiva quanto perigosa. Quem não sabe lutar é sempre apanhado desprevenido. Malandros e gente infeliz descobriram nesses golpes um jeito de assaltar os outros, vingar-se de inimigos e enfrentar a Polícia. Foi um tempo triste da capoeira. Eu conheci, eu vi. Nas bandas das docas… Luta violenta, ninguém a pode conter.
“Agora que o ritmo está mais apressado, sinto a agilidade desses dois homens e imagino cada um dos seus golpes acertando em cheio o adversário. Imagino raiva, medo, despeito, desespero, empurrando esses pés… Uma vez vi um capoeirista afugentar uma patrulha inteira. Outra coisa: um lugar escuro, uma mulher, chega um cara querendo coisa – homem querendo mulher está sempre desprevenido – então, de repente, ele recebe um golpe, só um e cai ferida desacordado ou morto. Sim senhor, havia capoeirista malandro que se vestia de mulher para roubar os dão- joãos.
“Eu sei que tudo isso é mancha suja na história da capoeira, mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica? E a faca? E os canhões? E as bombas? O que eu gosto de lembrar sempre é que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravidão. Nas músicas, que ficaram até hoje, se percebe isso. Uma é essa que eles estão cantando e que eu vou cantar junto: “E, valha- me Deus, camarada. / E, água de beber, camarada. / E, que vai fazer, camarada./ E, ele é mandingueiro, camarada. / E, ele é cabeceiro, camarada./ E, faca de ponta, camarada. / E, faca de matar, camarada./ E, o galo cantou, camarada./ E, có-có-ró-có, camarada;/ E, a volta do mundo, camarada./ E, é o que o mundo dá, camarada’.
“Entenda quem quiser, está tudo aí nesses versos o que a gente guardou daqueles tempos. Tem brincadeira também; vou fazer uma pra um desses dois lutadores. Minha voz, mesmo baixa e de longe, eles escutam: ‘E, valha-me Deus./ valha-me Nossa Senhora da Vitória./ Vi esse menino agora / lá no reino da glória. / Menino se eu quisesse, / (ah, ah, ah) tinha lhe botado fora’. Pois capoeira é luta, sim mas é folclore e tradição bonita também. E a gente conservou ela pura, todos fazendo escola, criando academias e ganhando o respeito do povo, dos artistas, dos estudiosos e do governo. Digo a gente, lembrando os grandes capoeiristas do passado. Já estão mortos. Cada nome destes é uma história: Bigode de Seda, Américo Ciência, Bugalho, Amorzinho, Zé Bom Pé, Chico Três Pedaços, Tibirici da Folha Grossa, Doze Homens, Inimigo Sem Tripa, Zé do U, Vitorino Braço Torto, Zé do Saco, Bené do Correio, Sete Mortes, Chico Me Dá. Só pelos apelidos dá para saber como eram, como lutavam. E tinha duas mulheres também: Júlia Fogareira e Maria Homem.
“Toda essa gente praticava a pura capoeira de Angola como eu até hoje e esses meninos que estão aí. Tem grandes capoeiristas vivos que mudaram a forma de lutar, mas continuam sendo grandes mestres. Falo do Mestre Bimba que pratica a capoeira regional, e de Carlos Senna que inventou a capoeira estilizada. Agora que não luto mais, confio em dois contra-mestres meus para a a conservação da capoeira de Angola: João Oliveira dos Santos e João Pereira dos Santos – João Grande e João Pequeno. É o que tem de melhor, na Bahia…
“Estes versos eu fiz para homenagear eles: ‘Eu tenho dois meninos / que se chamam João / um é cobra mansa / e o outro é gavião. / Um joga no ar (ah, ah, ah) / e o outro se enrosca pelo chão’.
“Esses dois aprenderam com a Academia mas eu aprendi com a sorte. Quando tinha uns 10 anos – eu era franzininho – um outro menino mais taludo que eu tomou-se meu rivaL Era só eu sair para a rua – ia na venda fazer compra, por exemplo – e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. ‘Vem cá. meu filho’, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. ‘Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia’. Foi isso o que o velho me disse e eu fui. Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo. Ele costumava dizer ‘Não provoque, menino, vai botando devagarzinho ele sabedor do que você sabe’. Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito. O velho africano chamava-se mestre Benedito, era um grande capoeirista e quando me ensinou o jogo tinha mais idade do que eu hoje.
“Aos 12 anos, em 1902, eu fui para a Escola de Aprendiz de Marinheira Lá ensinei capoeira para os colegas. Todos me chama-vam de 110. Saí da Marinha com 20 anos. Vida dura, difícil. Por causa de coisas de gente moça e pobre, tive algumas vezes a polícia em cima de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu lembrava de Mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava capoeira, então queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso, bati alguma vez em polícia desabusado, mas por defesa de minha moral e do meu corpo.
“Naquele tempo, de 1910 a 1920. o jogo era livre Passei a tomar conta de casa de jogo. Para manter a ordem. Mas. mesmo sendo capoeirista, eu não me  descuidava de um facãozinho de doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia comigo. Jogador profissional daquele tempo andava sempre armado. Assim, quem estava no meio deles sem arma nenhuma bancava o besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não gosto de contar casos de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava sustento. Além do jogo, trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista.
“Foi em 1941 que minha vida mudou. Foi na Ladeira da Pedra, fim da Liberdade, no bairro da Gingibirra. Um ex-aluno meu, de nome Aberré, bom capoeirista, já morto, me convidou para apreciar uma roda de capoeira. Na roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era Amorzinho, um guarda civil. No apertar da mão me ofereceu tomar conta de uma Academia. Eu dei uma negativa, mas os mestres todos insistiram. Confirmavam que eu era o melhor para dirigir a Academia e conservar pelo tempo a capoeira de Angola. Fundei então o Centro Esportivo de Capoeira de Angola, em 1941, e registrei a Academia em 1952. Botei carteira para capoeiristas. Meus meninos são diplomados.
“Saem daqui sabendo tudo. Sabendo que a luta é muito maliciosa e cheia de manhas. Que a gente tem que ter calma. Que não é uma luta atacante, ela espera. Capoeirista bom tem obrigação de chorar no pé do seu agressor. Está chorando, mas os olhos e o espírito estão ativos. Capoeirista não gosta de abraço e aperto de mão. Melhor desconfiar sempre das delicadezas. Capoeirista não dobra uma esquina de peito aberto. Tem de somar dois ou três passos à esquerda ou à direita para observar o inimigo. Não entra pela porta de uma casa onde tem corredor escuro. Ou tem com o que alumiar os esconderijos da sombra ou não entra. Se está na rua e vê que está sendo olhado, disfarça, se volta rasteiro e repara de novo no camarada. Bom, se está olhando ainda, é inimigo e o capoeirista se prepara para o que der e vier.
“Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito, mas no deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um.
“Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo mestre. Ensina pelo som. Dá vibração e ginga no corpo da gente. O conjunto de percussão e com o berimbau não é arranjo moderno, não, é coisa dos princípios. Bom capoeirista, além de jogar, deve saber tocar berimbau e cantar.
“E jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar no chão com o corpo. Quando eu jogo, até pensam que o velho está bêbado, porque fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no chão, nem vai botar.
“Tenho um lema na vida: gosto de entrar sempre por baixo, para ver como é que saio. Não me casei ainda, já tive muitos filhos mas morreram todos. Tenho agora uma camaradinha que está louca para casar comigo. Dessa, não sei se escapo, não. Mas ainda é muito cedo para decidir. Depois, até agora não arrumei recursos para poder casar. Fome dá margem para muita coisa ruim. Se ao menos eu tivesse uma casa para morar, então eu me casava. Porque casa é o que mais mata o pobre, e mata na cabeça, ela come o pirão que os meninos deviam comer. Por isso não caso e o resto deixo à disposição de Jesus. Não fosse Jesus tava na sarjeta hoje, pedindo esmola.
“E tudo isso no Brasil! Brasil que tem pra dar, vender, jogar fora e negar a seus filhos. Mas fica tudo dependendo dos decretos. Saem os decretos e eles vão caducando, caducando, como caducou o grito da Independência.
“Aprendi só o primeiro livro, mas direito. O resto foi a vida que me ensinou. Ensinou a ver. Tem coisas que a gente vê e que os letrados, os professores, os políticos, não escrevem. Gostaria de ter estudado mais, mas quem não tem pão para levar para casa pode ficar lendo dicionário?
“O homem pode falar duas linguagens, mas uma delas é falsa. Não sou católico nem sou de candomblé. Eu creio em Deus, num só. Respeito gente de religião quando há respeito.
“Já viajei bastante pelo Brasil, já fui até na Africa. Em Angola, não, mas quero ir. Só para comparar a capoeira daqui e a de lá. Na hora de elogiar é Pastinha pra cá e pra lá, mas quando é viagem e apoio do governo para a capoeira de Angola, sou esquecido. É sempre assim: o trabalho é do feio para o bonito comer. Eu estou falando assim porque é modo de pensamento. Não é revolta contra a natureza. A natureza não liga para nada.
“Meu livro sobre capoeira de Angola vou vendendo e vou comendo.
“Quem me ajuda mais é Jorge Amado. Jesus lhe dê força e coragem. É muito mal empregado dizer que eu sou amigo de Jorge Amado. Ele é que é meu amigo. Quem precisa de Jorge Amado sou eu.
“Agora só falta dizer uma coisa bonita. O que vai sair na revista eu vou poder ler porque os meninos da Academia estão juntando dinheiro para pagar a operação dos meus olhos. Eles dizem que precisam do que ainda posso ver. Bonito, não?”

Aniversário do Mestre Pastinha

Hoje é o 122o aniversário de Vicente Joaquim Ferreira Pastinha.

Salve o Mestre Pastinha, e o seu legado – os jogadores leais, que sabem parar o pé, que sabem ser falta usar as mãos no outro camarada, e que não são bobos na mandinga.