História da Donzela Teodora

(cordel por Leandro Gomes de Barros)

Eis a real descrição
Da história da donzela
Dos sábios que ela venceu
E a aposta ganha por ela
Tirado tudo direito
Da história grande dela

Houve no reino de Túnis
Um grande negociante
Era natural da Hungria
E negociava ambulante
Uma alma pura e constante

Andando um dia na praça
Numa porta pôde ver
Uma donzela cristã
Para ali se vender
O mercador vendo aquilo
Não pôde mais se conter

Tinha feição de fidalga
Era uma espanhola bela
Ele perguntou ao mouro
Quanto queria por ela
Entraram então em negócio
Negociaram a donzela

O húngaro conheceu nela
Formato de fidalguia
Mandou educá-la bem
Na melhor casa que havia
Em pouco tempo ela soube
O que ninguém mais sabia

Mandou ensinar primeiro
Música e filosofia
Ela sem mestre aprendeu
Metafísica e astrologia
Descrever com distinção
História e anatomia

Ela que já era um ente
Nascida por excelência
Como quem tivesse vindo
Das entranhas da ciência
Tinha por pai o saber
E por mãe a inteligência

Em pouco tempo ela tinha
Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria
Um igual conhecimento
Cantava música e tocava
A qualquer um instrumento

Estudou e conhecia
As sete artes liberais
Conhecia a natureza
De todos os vegetais
Descrevia muito bem
A castra dos animais

Descrevia os doze signos
De que é composto o ano
Da cabeça até os pés
Conhecia o corpo humano
E dava definição
De tudo do oceano

Admirou todo mundo
O saber desta donzela
Tudo que era ciência
Podia se encontrar nela
O professor que ensinou-a
Depois aprendeu com ela

Mas como tudo no mundo
É mutável e inconstante
Esse rico mercador
Negociava ambulante
E toda sua fortuna
Perdeu no mar num instante

Atrás do bem vem o mal
Atrás da honra a torpeza
Quando ele saiu de casa
Levava grande riqueza
Voltou trazendo somente
Uma extrema pobreza

Só via em torno de si
O vil manto da marzela
Em casa só lhe restava
A mulher e a donzela
Então chamou Teodora
E pediu o parecer dela

Disse ele: minha filha
Bem vês minha natureza
E sabes que o oceano
Espoliou minha riqueza
Espero que teus conselhos
Me tirem desta pobreza

Ela quando ouviu aquilo
Sentiu no peito uma dor
E lhe disse, tenha fé
Em Deus nosso salvador
Vou estudar um remédio
Que salvará o senhor

E disse: meu senhor saia
Procure um amigo seu
É bom ir logo na casa
Do mouro que me vendeu
Chegue lá converse com ele
E conte o que lhe sucedeu

O que ele oferecer-lhe
De muito bom grado aceite
E veja se ele lhe vende
Vestidos que me endireite
Compre a ele todas as jóias
Que uma donzela se enfeite

Se o mouro vender-lhe tudo
Com que possa me compor
Vossa mercê vai daqui
Vender-me ao rei Almançor
É esse o único meio
Que salvará o senhor

El-rei lhe perguntará
Por quanto vai me vender
Por dez mil dobras de ouro
Meu senhor há de dizer
Quando ele admirar-se
Veja o que vai responder

Dizendo alto senhor
Não fique admirado
Eu vendo-a com precisão
Não peço preço alterado
Dobrada esta quantia
Tenho com ela gastado

É esse o único meio
Para a sua salvação
Se o mouro vende-lhe tudo
Descanse seu coração
Daqui para o fim da vida
Não terá mais precisão

O mercador seguiu tudo
Quando a donzela ditava
Chegou ao mouro e contou-lhe
O desespero em que estava
Então o mouro vendeu-lhe
Tudo quanto precisava

Roupa, objetos e jóias
Para enfeitar a donzela
As roupas vinha que só
Sendo cortada pra ela
Ela quando vestiu tudo
Parecia ficar mais bela

O mercador aprontou-se
E seguiu com brevidade
Falou ao guarda da corte
Com muita amabilidade
Para deixá-lo falar
Com a real majestade

Então subiu um vassalo
Deu parte ao rei Almoçor
O rei chegou a escada
Perguntou ao mercador:
— Amigo qual o negócio
Que tem comigo o senhor?

Então disse o mercador
Sem grande humildade:
— Senhor venho a vossa alteza
Com grande necessidade
Ver se vendo esta donzela
A vossa real majestade

O rei olhou a donzela
E disse dentro de si:
Foi a mulher mais formosa
Que neste mundo já vi
Trinta ou quarenta minutos
O rei presenciou ela ali

Perguntou ao mercador:
Por quanto vendes a donzela?
Por 10 mil dobras de outro
É o que peço por ela
E não estou pedindo caro
Visto a habilidade dela.

Disse o rei ao mercador:
— Senhor, estou surpreendido
Dez mil dobras de ouro
É preço desconhecido
Ou tu não queres vendê-la
Ou estás fora do sentido

Disse o mercador: El rei
Não é caro esta donzela
Dobrado a esta quantia
Gastei para educar ela
Excede a todos os sábios
A sabedoria dela

O rei mandou logo chamar
Um grande sábio que havia
O instrutor da cidade
Em física e astronomia
Em matemática e retórica
História e filosofia

Esse veio e perguntou-lhe
— Donzela estás preparada
Para responder-me tudo
Sem titubiar em nada?
Se não estiver seja franca
Se não sai envergonhada

Então ela respondeu-lhe
— Mestre pode perguntar
Eu lhe responderei tudo
Sem cousa alguma faltar
Farei debaixo da lei
Tudo que o senhor mandar

O sábio ali preparou-se
Para entrar em discussão
Ela com muita vergonha
Ela não teve alteração
Pediu licença a El-rei
E ficou de prontidão

— Diz-me donzela o que Deus
Sob o céu primeiro fez
Respondeu o sol e a lua
E a lua por sua vez
É por uma obrigação
Cheia e nova todo mês

— Além do sol e a lua
Doze signos foram feitos
Formando a constelação
Sendo ao sol todos sujeitos
Desiguais na natureza
Com diversos preconceitos

Como se chama esses signos?
Perguntou o emissário
A donzela respondeu:
— Capricórnio e Aquário
Tauro, Câncer, Libra, Virgo
Pisces, Escórpio e Sagitário

— Existem outros três signos
Áries, Léo e Geminis
No signo Léo quem nascer
Será um homem feliz
Inclinado a viajar
Por fora de seu país

O sábio disse: Donzela
É necessário dizer
Que condições tem o homem
Que em cada signo nascer
Por influência o signo
De que forma pode ser?

Disse ela o signo Aquário
Reina o mês de janeiro
O homem que nascer nele
Tem o crescimento varqueiro
Será amante das mulheres
Ventaroso e lisonjeiro

Pisces reina em fevereiro
Quem nesse signo nascer
É muito gentil de corpo
Muito guloso em comer
Risonho, gosta de viagem
Não faz o que prometer

Em março governa Áries
Neste signo nascerão
Homens nem ricos nem pobres
Por nada se zangarão
Neles se notam um defeito
Falando sós andarão

Em abril governa Tauro
Um signo bem conhecido
O homem que nascer nele
Será muito presumido
Altivo de coração
Será rico e atrevido

Geminis governa em maio
Sua qualidade é quente
O homem que nascer nele
Será fraco e diligente
Para os palácios e cortes
Se inclina constantemente

Em julho governa Câncer
Sua qualidade é fria
O homem que nascer nele
É forte e tem energia
É gentil e tem muita força
E sempre tem alegria

Em julho governa Léo
Por um leão figurado
O homem que nascer nele
É lutador e honrado
Altivo de coração
Inteligente e letrado

Em agosto reina Virgo
Vem da terra a natureza
O homem que nascer nele
Tem princípio tem riqueza
Depois se descuidará
Por isso cai em pobreza

Em setembro reina Libra
A Vênus assinalado
O homem que nascer nele
Será um pouco inclinado
A viajar pelo mar
É lutador e honrado

O que nascer em outubro
Será homem falador
Inclinado aos maus costumes
Teimoso e namorador
Pouco jeito nos negócios
Falso grave e enganador

Então o mês de novembro
Sagitário é o reinante
O homem que nascer nele
Será cínico e inconstante
Desobediente aos pais
Intratável assim por diante

Em dezembro é Capricórnio
Tem a natureza de terra
O homem que nascer nele
Será inclinado a guerra
Gosta de falar sozinho
E por qualquer coisa espera

O sábio ali levantou-se
Disse ao rei esta donzela
Não há sábio aqui no mundo
Que tenha a ciência dela
E com isso vossa alteza
Que estou vencido por ela

O rei ali ordenou
Que fosse o sábio segundo
Foi um matemático e clínico
Um gênio grande e fecundo
E conhecido por um
Dos sábios maior do mundo

Chegou o segundo sábio
Que inda estava orelhudo
E disse: Donzela eu tenho
Dezoito anos de estudo
Não sou o que tu venceste
Conheço um pouco de tudo

A donzela respondeu
Com licença de el-rei
Tudo que me perguntares
Aqui te responderei
Com brevidade e acerto
Tudo vos explicarei

Perguntou o sábio a ela:
Em nosso corpo domina
Qualquer um dos doze signos
Que a donzela descrimina
Terá alguma influência
Os signos com a medicina?

Então a donzela disse:
Descrito mestre direi
Sabe que os signos são doze
Como eu já expliquei
Compactam com a química
Quer saber? Explicarei

Áries domina a cabeça
Uma parte melindrosa
Para quem nascer em março
A sangria é perigosa
A pessoa que sangrar-se
Deve ficar receosa

Libra domina as espáduas
Câncer domina os peitos
Para os que são deste signo
Purgantes tem maus efeitos
E as sangrias também
Não serão de bons proveitos

Tauro domina o pescoço
Léo domina o coração
Capricórnio influi nos olhos
Escórpio a organização
Geminis domina os braços
e influi na musculação

Virgo domina o ventre
E Aquário nas canelas
Para os que são desses signos
Purgas e sangrias são belas
Então Sagitário e Pisces
Ambos têm igual tabelas

O sábio dentro de si
Disse meio admirado
Onde esta discutir
Ninguém pode ser letrado
Esta só vindo a propósito
De planeta adiantado

O sábio disse: Donzela
Eu quero se tu puderes
Isto é, eu creio que podes
Não dirás se não quiseres
O peso, idade e conduta
Que têm todas as mulheres

Disse a donzela: A mulher
É sempre a arca do bem
Porém só quem a criou
Sabe o peso que ela tem
Isso é uma coisa ignota
Disso não sabe ninguém

Que me dizes das donzelas
De vinte anos de idade?
Respondeu: Sendo formosa
Parece uma divindade
Principalmente ao homem
Que lhe tiver amizade

As de trinta e quarenta
Que dizes tu que elas são?
Disse ela: Uma dessas
É de muita consideração
— Das de 50 o que dizer?
— Só prestam para oração

— Que dizes das de 70?
— Deviam estar num castelo
Rezando por quem morreu
Lamentando o tempo belo
O que dizes das de 80?
— Só prestam para o cutelo

Então classificas as velhas
Tudo de mal a pior?
E nos defeitos de tantas
Não se encontra um menor
Disse ela: Deus me livre
De ser vizinho da melhor

Donzela o sábio lhe disse
Sei que és caprichosa
Entre todas as pessoas
És a mais estudiosa
Diga que sinais precisam
Para a mulher ser formosa

Então a donzela disse:
Para a mulher ser formosa
Terá dezoito sinais
Não tendo é defeituosa
A obra por seu defeito
Deixa de ser melindrosa

Há de ter três partes negras
De cores bem reluzentes
Sobrancelhas, olhos, cabelos
De cores negras e ardentes
Branco o lacrimal dos olhos
Ter branca a face e os dentes

Será comprida em três partes
A que tiver formosura
Compridos os dedos das mãos
O pescoço e a cintura
Rosada cútis e gengivas
Lábios cor de rosa pura

Terá três partes pequenas
O nariz, boca e pé
Larga a cadeira e ombro
Ninguém dirá que não é
Cujos sinais teve-se todos
Uma virgem em Nazaré

O sábio quando ouviu isto
Ficou tão surpreendido
E disse: El-rei Almançor
Confesso que estou vencido
E quem argumenta com ela
Se considera vencido

El-rei mandou que outro sábio
Entrasse em discussão
Então escolheram um
Dos de maior instrução
A quem chamavam na Grécia
Professor da criação

Abraão de Trabador
Veio argumentar com ela
E disse logo ao entrar:
Previne-te bem, donzela
Dizendo dentro si
Eu hoje hei de zombar dela

Então a donzela disse:
Senhor mestre estarei disposta
De todas suas perguntas
O senhor terá resposta
Se tem confiança em si
Vamos fazer uma aposta?

Minha aposta é a seguinte
De nós o que for vencido
Ficará aqui na corte
Publicamente despido
Ficando completamente
Como quando foi nascido

O sábio disse que sim
Mandaram o termo lavrar
E a donzela pediu
Ao rei para assinar
Para a parte que perdesse
Depois não se recusar

Lavraram o termo e foi
Às mãos do rei Almoçor
Pra fazer válido o trato
E ficar por fiador
Obrigando quem perdesse
Dar as roupas ao vencedor

O sábio aí perguntou:
Qual é a coisa mais aguda?
Disse ela: é a língua
Duma mulher linguaruda
Que corta todos os nomes
E o corte nunca muda

Donzela qual é a coisa
Mais doce do que mel?
— O amor do pai a um filho
Ou dama esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel

O sábio disse: Donzela
Conheces os animais?
Quero agora que descrevas
Alguns irracionais
Me diga qual é o bicho
Que possui oito sinais

Mestre, isto é gafanhoto
Vive embaixo dos outeiros
Tem pescoço como vaca
Esporas de cavaleiros
Tem olhos como marel
Um pássaro dos estrangeiros

Focinho como de vaca
Tem pés como de cegonha
Tem cauda como de víbora
Uma serpente medonha
E é infeliz o vivente
Que a boca dela se oponha

Tem peito como cavalos
E não ofende a ninguém
Tem asas como de águia
A que voa muito além
São antes oito sinais
Que o gafanhoto tem

Perguntou o sábio a ela:
— Que homem foi que viveu
Porém nunca foi menino
Existiu mas não nasceu
A mãe dele ficou virgem
Até que o neto morreu

— Este homem foi Adão
Que da terra se gerou
Foi feito já homem grande
Não nasceu, Deus o formou
A terra foi a mãe dele
E nela se sepultou

Foi feita mas não nascida
Essa nobre criatura
A terra foi a mãe dele
Serviu-lhe de sepultura
Para Abel o neto dele
Fez-se a primeira abertura

— Donzela qual é a coisa
Que pode ser mais ligeira?
Respondeu: O pensamento
Que voa de tal maneira
Que vai ao cabo do mundo
Num segundo que se queira

O sábio fitou-a e disse:
— Donzela diga-me agora
Qual o prazer de um dia
Qual prazer duma hora?
— Dum negócio que se ganha
Dum passeio que se queira

A donzela respondeu
Com a maior rapidez
Disse: um homem viajando
E se bom negócio fez
É um dos grande prazeres
Que verá por sua vez

Donzela o que é vida?
Disse ela: Um mar de torpeza
O que pode assemelhar-se
À vela que está acesa
Às vezes está tão formosa
E se apaga de surpresa

Donzela por quantas formas
Mente a pessoa afinal?
Respondeu: Mente por três
Tendo como essencial
Exaltar a quem quer bem
E pôr taxa em quem quer mal

Donzela que é velhice?
Respondeu com brevidade:
É vestidura de dores
É a mãe da mocidade
E o que mais aborrecemos?
Respondeu: É a idade

Donzela qual é a coisa
Que quem tem muito ainda quer?
Disse ela: É o dinheiro
Que o homem e a mulher
Não se farta de ganhar
Tenha a soma que tiver

Qual é a coisa que o homem
Possui e não pode ver?
Disse ela: O coração
Que aberto tem que nascer
Ver a raiz dos seus olhos
Não há quem possa obter

Donzela qual foi o homem
Que por dois ventres passou?
Disse a donzela: Foi Jonas
Que uma baleia o tragou
Conservou-o dentro três dias
E depois o vomitou

O sábio disse: Donzela
Qual o homem mais de bem?
Disse ela: É aquele
Que menos defeitos tem
Quem terá menos defeitos?
— Isso não sabe ninguém

— Donzela qual é a coisa
Que não se pode saber?
O pensamento do homem
Se ele não quer dizer
Por mais que a mulher procure
Não poderá obter

— Donzela o que é a noite
Cheia de tantos horrores?
Disse ela: É descanso
Dos homens trabalhadores
É capa dos assassinos
Que encobre os malfeitores

— Onde a primeira cidade
Do mundo foi construída?
— A cidade de Ninive
A primeira conhecida
Que depois de certo tempo
Foi pela Grécia abatida

Perguntou: Qual o guerreiro
Que teve a antigüidade?
Respondeu: Foi Alexandre
Assombro da humanidade
Guerreou vinte e dois anos
E morreu na flor da idade

Donzela falaste bem
Do maior conquistador
Diga dos homens qual foi
O maior sentenciador?
— Pilatos que deu sentença
a Cristo Nosso Senhor

De todos os patriarcas
qual seria o mais valente?
— O patriarca Jacó
Que lutou heroicamente
Com os anjos mensageiros
Do monarca onipotente

— Qual foi a primeira nau
Que foi para o estaleiro
— Foi a Arca de Noé
A que no mar foi primeiro
Onde escapou um casal
De tudo no mundo inteiro

— O que corta mais
Que a navalha afiada?
É a língua da pessoa
Depois de estar irada
Corta com mais rapidez
Que qualquer lâmina amolada

— Qual é o maior prazer
Com que se ocupa a história?
Respondeu: Quando um guerreiro
No campo ganha vitória
Sabei que não pode haver
Tanto prazer tanta glória

O sábio disse: Donzela
Tens falado muito bem
Me diga que condições
O homem no mundo tem?
Disse a donzela: tem todas
Para o mal e para o bem

É manso como a ovelha
E feroz como o leão
Seboso como o suíno
É limpo como o pavão
É falso como a serpente
É tão leal como o cão

É fraco como o coelho
Arrogante como o gelo
Airoso como o furão
Forçoso como o cavalo
E mais te digo que o homem
Ninguém pode decifrá-lo

É calado como peixe
Fala como papagaio
É lerdo como preguiça
É veloz igual ao raio
É sábio quando ouviu isto
Quase que dar-lhe um desmaio

Então inventou um meio
Para ver se a pegaria
Perguntou: O sol da noite
Terá luz quente ou fria?
A donzela respondeu
Que à noite sol não havia

Com a presença do sol
É que se conhece o dia
Se de noite houvesse sol
A noite não existia
E sem o sereno dela
Todo vivente morreria

Sem água, sem ar, sem luz
A terra não tinha nada
Não tinha os seres que tem
Seria desabitada
A própria vegetação
Não podia ser criada

Os reinos da natureza
Cada um possui um gênio
É necessário o azoto
Precisa o oxigênio
Para a infusão disso tudo
O carbono e o hidrogênio

O dia Deus fez bem claro
A noite fez bem escura
Se de noite houvesse sol
Estava o homem à altura
De notar esse defeito
E censurar a natura

O sábio baixou a vista
E ouviu tudo calado
Nada teve a dizer
Pois já estava esgotado
E tinha plena certeza
Que ficava injuriado

Disse ao público: Senhores
A donzela me venceu
Não sei com qual professor
Esta mulher aprendeu
Aí a donzela disse:
Então o mestre perdeu?

Ele vendo que estava
Esgotado e sem recursos
Ficou trêmulo e muito pálido
Fugiu-lho até os pulsos
Prostou-se aos pés de El-rei
Se sufocando em soluços

E disse: Senhor, confesso
A vossa real majestade
Que vejo nesta donzela
A maior capacidade
Ela merece ter prêmio
Pois tem grande habilidade

A donzela levantou-se
Foi ao soberano rei
Então beijando-lhe a mão
Disse: Vos suplicarei
Mande o sábio entregar-me
Tudo que dele ganhei

O rei ali ordenou
Que o sábio se despojasse
De todas as vestes que tinha
E à donzela as entregasse
O jeito que tinha ali
Era ele envergonhar-se

O sábio pôs-se a despir-se
Como quem estava doente
Fraque, colete e camisa
Ficando ali indecente
E pediu para ficar
Com a ceroula somente

Depois sufocado em pranto
Prostrado disse à donzela:
Resta-me apenas a ceroula
Não posso me despir dela
A donzela perguntou-lhe:
O senhor nasceu com ela?

O trato foi o seguinte
De nós quem fosse vencido
Perante a todos da corte
Havia de ficar despido
Como quando veio ao mundo
Na hora que foi nascido

El-rei foi o fiador
Nosso ajuste foi exato
O senhor tem que despir-se
E dar-lhe fato por fato
Ficando com a ceroula
Não teve efeito o contrato

E não quis dar a ceroula
O rei mandou que ele desse
Ou pagaria à donzela
O tanto que ela quisesse
Tanto que indenizasse-a
Embora que não pudesse

Donzela quanto queres
Perguntou o sábio enfim
A donzela ali fitou-o
E lhe respondeu assim:
A metade do dinheiro
Que meu senhor quer por mim

O rei ali conhecendo
O direito da donzela
Vendo que toda razão
Só podia caber nela
Disse ao sábio: Mande ver
O dinheiro e pague a ela

Cinco mil dobras de ouro
A donzela recebeu
O sábio também ali
Nem mais satisfação deu
Aquele foi um exemplo
Que a donzela lhe vendeu

O rei então disse à ela:
Donzela podes pedir
Dou-te a palavra de honra
Farei-te o que exigir
De tudo que pertencer-me
Poderás tu te servir

Ela beijou-lhe a mão
Lhe disse peço que dê-me
A quantia do dinheiro
Que meu senhor quer vender-me
Deixando eu voltar com ela
Para assim satisfazer-me

O rei julgou que a donzela
Pedisse para ficar
Tanto que se arrependeu
De tudo lhe franquear
Mas a palavra de rei
Não pode se revogar

Mandou dar-lhe o dinheiro
Discutiu também com ela
Mas ciente de tudo
Quanto podia haver nela
E disse vinte mil dobras
Não pagam esta donzela

Voltou ela e o senhor
À sua antiga morada
Por uma guarda de honra
Voltou ela acompanhada
O senhor dela trazendo
Uma fortuna avaliada

Ficaram todos os sábios
Daquilo impressionados
Pois uma donzela escrava
Vencer três homens letrados
Professores de ciências
Doutores habilitados

Abraão de Trabador
Com todos não discutia
Já tinha vencido muitos
Em música e filosofia
Em história natural
Matemática e astronomia

Ele descrevia a fundo
Os reinos da natureza
Era engenheiro perito
De tudo tinha a certeza
Descrevia o oceano
Da flor d’água a profundeza.

Tanto quando ele entrou
Que fitou bem a donzela
Calculou dentro de si
A força que havia nela
Confiando em sua força
Por isso apostou com ela

Caro leitor escrevi
Tudo que no livro sabei
Só fiz rimar a história
Nada aqui acrescentei
Na história grande dela
Muitas coisas consultei

Mamãi, lá vem o homi

Mamãi, lá vem o homi
Qui tem cabelo na venta
Diz qu’é fio do capeta
Cum eli ninguém aguenta
Mamãi, lá vem o homi
Dizeno que m’arrebenta
Qui tamém foi batizado
Cum sá gross’i água benta
Mamãi, lá vem o homi
Ô meu fio, dêxa vim
Eu num devo nad’ao homi
Nem o homi dev’a mim
U meu pai sempri dizia
Meu fio, num tenha medo
Vá dizê ao valentão
Qui valente morre cedo
Si ocê quisé a prova
Cimitér’é cá du lado
Gente boa tem alguns
Di valente, tá lotado

Camaradinho…

Na vorta c’o mundo deu, na vorta c’o mundo dá
Viaja pelo mundo, tem históra pá contá
Na vorta c’o mundo deu, na vorta c’o mundo dá
Todo dia dá uma vorta, nunca para di rodá

Canoa virô nu má

Canoa virô nu má (Teimosia)

Canoa virô nu má, canoa virô nu má
Canoeiro s’afogô
Pêxe qui tava pegado
Cortô a rede, soltô
Canoeiro foi nu fundo
Água vêi’a li matá
Quein and’incima das água
Tein c’aprendê a nadá

Camaradinho…

Piriquitin qui vein di Holanda, xibamba
Bamba, bamba-ê
Pu cima du meu reinado, xibamba
Bamba, bamba-ê
Quanu pensu qui’stô in pé, ‘stô sentado
Bamba, bamba-ê
Nu colo da namorada, xibamba
Bamba, bamba-ê

Moleques do Morro

Moleques do Morro do Boréu
Santa Marta, Pavão, cais da Bahia
Nunca que frequentaram academia
Já nasceram jogando capoeira
Aprenderam a gingar na ladeira
Atravessando a rua, a esquiva
E fugindo da vida, a negativa
O martelo cruzado e a rasteira
O macaco por pura brincadeira
E o aú nem se fala, que é bobagem
Já cresceram vivendo a malandragem
Se não fossem malandros, nem cresciam
E o toque do berimbau que ouviam
Era dentro do peito que tocava
Era a voz de Zumbi que então gritava
“Corre livre, moleque
Não se entregue.”
Que filho de Zumbi já nasce livre
Ele luta com força e valentia
Até que se possa dizer, um dia
Somos livres, irmãos de toda raça
Berimbau vai tocar em plena praça
E o povo vai jogar a noite inteira
Meu povo!
O povo vai brincar a noite inteira
Meu povo!
O povo vai lutar a noite inteira
Meu povo!
Na beira do mar e na ladeira
Meu povo!
No meio da praça e na ribeira

(Mestre Toni Vargas)

Pá brigá cum capuêra

Pá brigá cum capuêra (Teimosia)

Pá muntá nu burro brabo
Tem qui cunfiá na’spora
Tem qui tê jôgu di perna
Ô burro ti bota fora

Pá pegá cob’assanhada
Tem qui cunfiá na mão
Tem qui tê s’a ligereza
Coba num perdôa não

Pá brigá cum capuêra
Tem qui tê seu patuá
Dá um nó, iscond’a ponta
Qu’é p’ele num disatá

Nu samba da Conceição

Nu samba da Conceição (Teimosia)

Nu samba da Conceição
Chegô gente prá sambá
Tocadô chegô primêro
Par’a festa perpará

I limpô o chão com sá
I butô água-di-chêro
Par’a festa perpará
Tocadô chegô primêro

Cantadô chegô dispois
Carregano seu gogó
Gargarejô cum limão
Pru cantu saí meió

Afinan’a cantoria
Um-doi-trêi i trêi-um-dois
Carregano seu gogó
Cantadô chegô dispois

Sambadô chegô na hora
Feiz u samba cumeçá
Trouxe sola di pé grossa
Cumeçô sapatiá

A iún’é mandinguêra

A iún’é mandinguêra (adaptado do domínio público)

A iún’é mandinguêra
Quano tá nu bebedô
Foi sabida, foi ligêra
Mai capuêra matô

Adeu pássaru cantô

Bem-ti-vi cantô sereno
Pomba si jogô nu á
Jão-di-Barru cum tristeza
Lá na mata deu siná

Papagai’é faladô
Maritac’é faladêra
Piriquit’é mintiroso
A jandai’é fofoquêra

Todos pássu cum sodade
Da iúna mandinguêra

O ABC de Pedro Cem

Vou narrar agora um fato
Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu,
Fortuna que como aquela,
Ainda não apareceu.

Pedro Cem era o mais rico,
Que nasceu em Portugal,
Sua fama enchia o mundo
Seu nome anda em geral,
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real.

Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar,
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar,
Cem lanchas e cem barcaças,
Tudo isto a navegar.

Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias,
Cem depósitos de fazendas
Cem moinhos e cem padarias
E tinha dentro do mar,
Cem currais de pescarias.

Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais que havia,
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia,
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia.

Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados,
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados,
Ocupava mensalmente,
Dezesseis mil empregados.

Diz a história aonde eu li
O todo desse passado,
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado
Não olhava para um pobre,
Nem falava com criado.

Uma noite teve um sonho
Um rapaz o avisava
Que aquele orgulho dele
Era quem o castigava
Aquela grande fortuna
Assim como veio voltava.

Ele acordou agitado
Pelo sonho que tinha tido,
Que rapaz seria aquele?
Que lhe tinha aparecido.
Depois pensou, oral sonho,
E devaneio do sentido.

Um dia, no meio da praça
Ele a uma moça encontrou,
Essa vinha quase nua,
Aos pés se ajoelhou
Dizendo: senhor? olhai!
O estado em que estou.

Ele torceu para um lado
E disse: minha senhora?
Olhe sua posição!
E veja o que faz agora
Reconheça seu lugar,
Levante-se e vá embora.

Oh! senhor por esse sol
Que de tão alto flutua,
Lembrai-vos que tenho fome
Estou aqui quase nua,
Sou obrigada a passar,
Nesse estado em plena rua.

Ele repleto de orgulho
Não deu ouvido, saiu,
A pobre ergue-se chorando
Chegou adiante caiu,
Vinha passando uma dama
Que com o manto a cobriu.

Era a marquesa de Évora
Uma alma lapidada,
Tirando o seu rico manto
Cobriu essa desgraçada,
Ali conheceu que a pobre,
Foi pela fome prostrada.

Levante-se minha filha
E pegando-lhe pela mão,
Dizendo a criada a ela:
Vá ali comprar um pão
Que a essa pobre infeliz,
Falta alimentação.

Entregando-lhe uma bolsa
Com quarenta e dois mil réis.
Apenas tirou dali
Um diploma e uns papéis
Não consentindo que a moça
Se ajoelhasse aos seus pés:

E com aquela quantia
Ela comprou um tear,
Tinha mais duas irmãs
Foram as três trabalhar
Dali em diante mais nunca,
Faltou-lhe com que passar.

Vamos agora tratar
Pedro Cem como ficou
E o nervoso que sentiu
Uma noite que sonhou
Que um homem lhe apareceu
E disse Ume bem quem eu sou.

Que tens feito do dinheiro
Que tomaste emprestado?
Meu senhor mandou saber
Em que o tens empregado?
E por qual razão cumpriu
As ordens que ele tem dado?

Ele perguntou no sonho
Mas que dinheiro eu tomei,
Até aos próprios monarcas
Dinheiro muito emprestei,
O vulto zombando dele,
Disse: quem tu és eu sei.

Que capital tinhas tu
Quando chegastes ao mundo?
Chegastes nu e descalço
Como o bicho mais imundo
Hoje queres ser tão nobre,
Sendo um simples vagabundo.

E metendo a mão no bolso
Tirou dele uma mochila,
Dizendo é esta a fortuna
Que tu hás de possuí-la,
Farás dela profissão,
Pedindo de vila em vila.

Pedro Cem sonhando disse:
Ave agoureira te some
Tua presença me perturba
Tua frase me consome
De qual mundo tu viestes?
Diz-me por favor teu nome.

Meu nome, disse-lhe o vulto
Es indigno de saber,
Meu grande superior
Proibiu-me de dizer
Apenas faço o serviço
Que ele me manda fazer.

Despertando Pedro Cem
Daquilo contrariado,
Ter dois sonhos quase iguais
Ficou impressionado,
Resolveu contrafazer,
E ficar reconcentrado.

Pensou em tirar por ano
Daquela grande riqueza
Sessenta contos de réis
E dar de esmola à pobreza
Depois refletindo, disse:
Não me dá maior franqueza.

Porque ainda mesmo Deus
Querendo me castigar,
Não afundará num dia
Meus cem navios no mar,
As cem fazendas de gado,
Custarão a se acabar.

As cem fábricas de tecidos
Que tenho funcionando,
Os parreirais de uvas
Que estão todos safregando,
Cem botes que tenho no porto
Todo dia trabalhando.

Cem armazéns de fazendas
As cem alfaiatarias,
As cem fundições de ferro
Cem currais de pescarias
Os cem moinhos, cem padarias.

E as centenas de contos
Nos bancos depositados,
E tudo isso em poder
De homens acreditados
Ainda Deus querendo isso
Seus planos eram errados.

Pedro Cem naquela hora
Estava impressionado,
Quando aproximou-se dele
O seu primo criado,
E disse aí tem um homem,
Diz vos trazer um recado.

Manda que entre a pessoa
Ele ao criado ordenou:
Era um marinheiro velho
Chegando ali o saudou,
Que novas traz, meu amigo?
Pedro Cem lhe perguntou.

Disse o velho marinheiro:
Venho-vos, participar,
Que dez navios dos vossos
Ontem afundaram no mar
Morreram as tripulações,
Só eu me pude salvar.

Que navios foram esses?
Perguntou-lhe Pedro Cem,
Respondeu o marinheiro:
Foi “Tejo” e “Jerusalém”
E “Douro” e “Penafiel”
Os outros eu não sei bem.

Aquele inda estava ali
Outro portador bateu,
O empregado das vacas
Contou o que sucedeu;
Incendiaram os cercados
E todo o gado morreu.

Pedro Cem nada dizia
Ficando silencioso,
Apenas disse: na terra
Não há homem venturoso,
Quem se julga mais feliz
E pior que cão leproso.

Chegou outro portador
O empregado da vinha,
Disse o depósito estourou
Vazou o vinho que tinha
Pedro Cem disse: meu Deus!…
Que sorte triste esta minha.

Saiu aquele entrou outro
Era um coronel norueguês,
Disse nos mares do norte
Andava um pirata inglês,
Noventa navios vossos
Tomou ele de uma vez.

Meu Deus!… Meu Deus!… que fiz eu
Exclamava Pedro Cem
Não há homem nesse mundo
Que possa dizer vou bem,
Quando menos ele espera
A negra desgraça vem.

Dos cem navios que tinha
Alguns foram afundados
E outros pelos piratas
Nos mares foram tomados
Acrescentou a pessoa:
Vinham todos carregados.

Ali mesmo veio o mestre
Da barca “Flor do Mundo”
Esse fitou Pedro Cem
Com silêncio profundo
Depois disse: senhor marquês?
Dez barcaças foram ao fundo.

Quatro vinham carregadas
Com bacalhau e azeite,
Duas vinham da Suécia
Com queijo, manteiga e leite,
De todas as mercadorias
Não tem uma que se aproveite.

Quatro das dez que afundaram
Traziam pérola e metal,
Só da Ilha da Madeira
Vinha um milhão em coral
Topázio, rubi, brilhante,
Ouro, esmeralda e cristal.

Pedro Cem baixou a vista
Nada pôde refletir,
Exclamou que faço eu?
Devo deixar de existir,
Mas matando-me não vejo,
Isso até onde pode ir.

Chegou o moço de campo
Tremendo e muito assustado
E disse: senhor marquês
Venho aqui horrorizado
Deu murrinha nas ovelhas
E mal triste em todo gado.

Naquele momento entrou
Um rapaz auxiliar,
Esse puxando um papel
Disse: venho procurar,
Tudo quanto se perdeu
Na barca “Ares de Mar”.

Pedro Cem perguntou quanto
Tirou o moço uns papéis
Que se lia entre brilhantes
Pulseiras, colares, anéis,
Um milhão e quatrocentos
E vinte contos de réis.

Entrou outro auxiliar
Disse eu quero pagamento,
Por tudo que se perdeu
No navio “Chave do Vento”
Que vinha da América do Norte
Com grande carregamento.

Chegou um tabelião
Dá licença sr. Marquês
Venho lhe participar
Que o grande Banco Francês,
Dois Alemães, três Suíços,
Quebraram todos de vez.

Lá se foi minha fortuna
Exclamava Pedro Cem,
Ontem fui milionário
Hoje não tenho um vintém
Só mesmo na campa fria,
Eu hoje estaria bem.

Dando balanço nos bens
Que até desesperam.
Tudo quanto possuía
Não dava para pagar
Nem pela décima parte
Os prejuízos do mar.

Exclamava: oh! Pedro Cem
Que será de ti agora!
No pouco que me restava
A justiça fez penhora,
Pedro Cem de agora em diante
Vai errar de mundo afora.

Carpir esta sorte dura
Que a desventura me deu,
Talvez muitas vezes vendo
Aquilo que já foi meu.
Em lugar que não se saiba
Quem neste mundo fui eu.

Ali no terraço mesmo
Forrando o chão se deitou
As onze e meia da noite
O sono conciliou
No sono sonhando viu,
O rapaz que lhe falou.

Aquele perguntou, Pedro
Como te foste de empresa,
Já estás conhecendo agora
Quanto é grande a natureza?
Conheceste que teu orgulho
Foi quem te fez a surpresa?

Metendo a mão na algibeira
Dali um quadro tirou
Onde havia dois retratos
Que a Pedro Cem os mostrou
Conheces esses retratos?
O rapaz lhe perguntou.

Via-se naquele quadro
Uma dama bem vestida
Pedro Cem disse por sonho:
Essa é minha conhecida
A outra uma moça pobre
Com fome no chão caída.

Perguntava-lhe o rapaz:
Quem é esta conhecida?
E a marquesa de Evora
E esta que está caída?
Essa? é uma miseravel,
Dessa classe desvalida.

O rapaz puxa outro quadro
Verde cor de esperança,
Onde via-se uma monarca
Suspendendo uma balança
Estava pesando nela
Caridade e esperança.

Mostrou-lhe mais quatro quadros
Que Pedro Cem conheceu,
Tinha a marquesa de Évora
Quando a bolsa à pobre deu
Que estirou a mão dizendo:
Toma este dinheiro que é teu.

No quadro via-se um anjo
Assim nos diz a história,
Com uma flor onde se lia:
Jardim da eterna glória,
Presenteado por Deus,
Esta palma de vitória.

Quem planta flores tem flores
Quem planta espinho tem espinho
Deus mostra ao espírito fraco
O que nega ao mesquinho,
A virtude é um negócio
A boa ação um pergaminho.

Depois que ele acordou
Triste impressionado,
Interrogava a si próprio
Por que sou tão desgraçado?
Achou na cama a mochila,
Com que tinha sonhado.

Será esta a tal mochila
Que o fantasma me mostrou;
E esta que o homem em sonho
Em desespero exclamou:
Na noite em que a cruel sina,
Por sonho me visitou.

De tudo restava apenas
A casa de moradia,
Essa mesmo embargaram
Antes de findar-se o dia
Então disse Pedro Cem,
Cumpriu-se a profecia.

Lançando a mão na mochila
Saiu no mundo a vagar
Implorando a caridade
Sem alguém nada lhe dar,
Por umas cinco ou seis vezes
Tentou se suicidar.

Ele dizia nas portas:
Uma esmola a Pedro Cem,
Que já foi capitalista
Ontem teve, hoje não tem
Á quem já neguei esmola
Hoje a mim nega também.

Foi ele cair com fome
Em casa daquela moça,
Quando foi à porta dela
Com fome, frio e sem força,
Que ele não quis olhá-la
A marquesa deu-lhe a bolsa.

A criada o viu cair
Exclamou: minha senhora!
Ande ver um miserável
Que caiu de fome agora,
Onde? perguntou a moça
Ama disse: ali fora.

A moça disse à criada:
Que trouxesse leite e pão
Aproximando-se dele
Disse: o que tens meu irmão
Bateste em todas as portas
Não encontraste cristão.

Senhora se vós soubésseis
Quem é esse desgraçado,
Não abrirás a porta
Nem me davas esse bocado.
Respondeu ela: conheço,
Mas eu esqueço o passado.

Me recordo que a marquesa
Fez minha felicidade,
Viu-me caída com fome
Teve de mim piedade,
Deu-me com que comprar pão
E esta propriedade.

Pedro Cem se levantou
Disse obrigado e saiu,
Andando duzentos passos
Tombou por terra, caiu
E umas frases tocantes,
Em alta voz proferiu:

“Vai unir-se à terra fria
O que não soube viver
Soube ganhar a fortuna
Mas não soube perder
Se tenho estudado a vida
Tinha aprendido a morrer.

Foi como a corrente d’água
Que pela serra desceu,
Chegou o verão e secou
Ela desapareceu,
Ficando só os escombros
Por onde a água correu.

Eu tive tanta fortuna
Não socorria a ninguém,
A todos que me pediram
Eu nunca dei vintém,
Hoje preciso pedir,
Não há quem me dê também.

Não desespero, pois sei
Que grandes rimas hoje expio,
Nasci em berços dourados
Dormi em colchão macio
Hoje morro como os brutos
Neste chão sujo e frio.

Foram as últimas palavras
Que ele ali pronunciou,
Margarida aquela moça,
Que a marquesa embrulhou
Botou-lhe a vela na mão
Ele ali mesmo expirou.

A justiça examinando
Os bolsos de Pedro Cem,
Encontrou uma mochila
E dentro dela um vintém
E um letreiro que dizia:
Ontem teve e hoje não tem

Peleja de Riachão com o Diabo

Autor: Leandro Gomes de Barros

Riachão estava cantando
Na cidade de Açu,
Quando apareceu um negro
Da espécie de urubu,
Tinha a camisa de sola
E as calças de couro cru.

Beiços grossos e virados
Como a sola de um chinelo
Um olho muito encarnado
O outro muito amarelo,
Este chamou Riachão
Para cantar um martelo.

Riachão disse: eu não canto
Com negro desconhecido,
Porque pode ser escravo,
E anda por aqui fugido
Isso é dar cauda a nambu
E entrada a negro enxerido.

Negro – Eu sou livre como o vento
A minha linhagem é nobre,
Eu sou um dos mais ilustres
Que o sol deste mundo cobre
Nasci dentro da grandeza
Não saí de raça pobre.

Riachão – Você nega porque quer
Está conhecido demais,
Você anda aqui fugido
Me diga que tempo faz
Se você não foi cativo,
Obras desmentem sinais.

N – Seja livre ou seja escravo
Eu quero é cantar martelo,
Afine a sua viola
Vamos bater-se em duelo
Só com a minha presença
O senhor está amarelo.

R – Vejo um vulto tão pequeno
Que nem o posso enxergar,
Julgo que nem é preciso
Minha viola afinar
Pela ramagem da árvore
Vê-se o fruto que ela dá.

N – Riachão isto são frases
De homem muito atrasado,
Porque são vistos fenômenos
Que na terra têm se dado
Uma cobra tão pequena
Mata um boi agigantado.

R – M eu riacho pela seca
Dá cheias descomunais
Na correnteza das águas
Descem grandes animais
Jibóias, surucujubas,
E monstruosos “Jaguais”

N – O Jaguar rende-me culto
A serpente aos meus pés morre
No que chegar minha ira
Só um poder o socorre
Eu digo ao rio, pare aí!
A água pára e não corre…

R – Você não é Josué
Que mandou o sol parar
E esse parou três dias
Para a guerra se acabar
Nem Moisés que com a vara
Fez o mar também secar.

N – Faço tudo que eu quiser
Minha força não tem limite
Os feitos por mim obrados
Não vejo homem que imite
Eu determino uma coisa
Não há força que a evite!

R – Salomão também fazia
O que queria fazer
Por meio de mágica ou química
Quis segunda vez nascer
Mas em vez do nascimento
Conseguiu ele morrer.

N – Salomão facilitou
Confiado na ciência
Encaminhou tudo bem
Mas faltou-lhe a paciência
Se não fosse aquele erro
Tinha tido outra existência.

R – Eu necessito saber
onde é seu natural
Porque não sei se o senhor
Tem nascimento legal
De qual nação é que vem
Se procede bem ou mal.

N – Você vem interrogar-me
Eu lhe interrogo também,
Diga para onde vai
E de qual parte é que vem
Se é solteiro, ou casado
Diga que profissão tem?

R Não tenho superior
Sou filho da liberdade
E não conto a minha vida
Pois não há necessidade
Porque não sou foragido
Nem você é autoridade!

N – É preciso advertir-lhe,
Fazer-,lhe observação
M e trate com muito jeito,
Cante com mais atenção!
Veja que não se descuide
E passe o pé pela mão!

R – Eu, para cantar repente,
Já estou muito habilitado:
Conheço algumas matérias,
Sou um pouco adiantado
Tive estudo quatro anos,
Me considero letrado!

N – Sou professor de matérias
Que sábio não as conhece;
A lei que dito no mundo,
O próprio rei obedece
Meus feitos são conhecidos,
A fama se estende e cresce.

R – Você diz que tem ciência,
Dê-m e um a explicação:
Se a Terra faz movimento
De quem é a rotação?
Porque é que em 12 horas
Há um a transformação?

N – Não é o Sol quem se move,
Este é fixo em seu lugar,
A Terra está sobre os eixos,
Os eixos a fazem rodar,
Que, por essa rotação
Faz a luz do Sol faltar.

R – Descreva o grande mistério
Que entre nós a Terra tem:
De que é formada a chuva?
Em que estado ela vem?
Se é criada aqui perto
Ou noutro lugar além?

N – A água em estado líquido
Por meio de abaixamento
Que há na temperatura,
E pelo resfriamento
Essa água é condensada,
Ajudada pelo vento.

A corrente atmosférica
De um a montanha elevada,
Que ajuda a temperatura,
Forma nuvem condensada.
Do vento movendo as nuvens
É disso a chuva formada,

Que essa chuva, depois
Que toda a Terra ensopar,
Por meio da evaporação
Torna ao espaço voltar,
Reproduzindo, o processo
Que acabei de lhe tratar.

R – O senhor conhece bem
Este país brasileiro?
Ora, respondeu o Negro:
N – Eu conheço o estrangeiro
Desde o córrego mais pequeno
Até o maior ribeiro!

Por exemplo, o Amazonas,
Que extrema com o Pará;
O Pará com o Maranhão,
Piauí com o Ceará,
E assim todos os outros
Se alguém duvida, vá lá!

E se qualquer um daqui;
Pretendendo viajar
Até o Rio de Janeiro
E não querendo ir por mar,
Eu lhe ensino o caminho
Ele vai sem se vexar.

R – Como faz essa viagem?
Onde se encontra o caminho?
Lugar de uma só morada,
Sem haver mais um vizinho
Tanto que, em muitos lugares
Não anda um homem sozinho!

N – Pode qualquer um sair
Do Açu ao Mossoró;
Querendo pode passar
Na cidade Caicó,
Subir pela margem esquerda
Do rio de Seridó

Riachão disse consigo:
– Esse negro é um danado!
Esse saiu do Inferno,
Pelo Demônio mandado,
E para enganar-me veio
Em um negro transformado!

Disse o negro: – Meu amigo,
não queira desconfiar,
Garanto que o senhor
Não ouviu bem eu cantar,
Na altura que eu canto
outro não pode chegar!

R – Vá na altura em quer for!
Riachão lhe respondeu.
Remexa todos os livros
Que o senhor aprendeu
Eu não conheço esse ente
Que cante m ais do que eu!

N – Você ficará sabendo
O peso de um cantador
Quando me ver outra vez
Me trate de professor,
Render-me-á obediência,
Conhecerá meu valor!

R – O senhor diga o seu nome,
Eu quero lhe conhecer,
Pois só assim posso dar-lhe
O valor que merecer,
Em tudo que você diz
A inda não posso crer.

N – Você, sabendo quem sou
Talvez que fique assombrado,
Superior a você
Comigo tem se espantado
Os grandes da sua Terra
Eu tenho subjugado!

R – Eu canto há dezoito anos,
Há vinte toco viola,
Sempre encontro cantador
Que só tem fama e parola
Quando canta meio dia,
Cai nos meus pés, no chão rola.

N – Eu já canto há muitos anos,
Não vou em toda função,
Arranco pontas de touro,
Quebro o furor do leão,
Nunca achei esse duro
Que para mim tenha ação.

R – Garanto que de hoje em diante,
O senhor tem que encontrar
A força superior
Que o obrigue a se calar,
Porque eu boto o cerco,
Quem vai não pode voltar!

N – Manoel, tu és criança,
Só tens mesmo é pabulagem!
Vejo que falar é fôlego,
Porém obrar é coragem
Juro que’ de agora em diante
Não contarás mais vantagem!

R – Meu pai chamava-se Antônio,
Seu apelido era Rio;
De uma enxurrada que dava
Cobria todo o baixio
Secava em tempo de inverno
Enchia em tempo de estio.

N – Conheci muito seu pai,
Que vivia de pescar,
Sua mãe era tão pobre,
Que vivia de um tear
Seu padrinho tomou você
E levou-o para criar.

R – Onde mora o senhor,
Que meu avô conheceu?
Que eu nem me lembro mais
Do tempo que ele morreu
E você está parecendo
Muito mais moço que eu!

N – Eu sei do dia e da hora
Que nasceu seu bisavô,
Chamava-se Ana Mendes
A parteira que o pegou
E conheci muito o frade
E o vi quando o batizou.

R – Bote sua maca abaixo
Conte essa história direito,
Da forma que você conta
Eu não fico satisfeito
Como ver-se um objeto
Antes daquilo ser feito?

N – Seu bisavô se chamava
Apolinário Cancão
Era filho de um ferreiro
Que o chamavam Gavião
Sua bisavó Lourença
Filha de Amaro Assunção.

R – Mas que idade tem você,
Que me faz admirar?
Conheceu meu bisavô
Eu não posso acreditar,
Assim destas condições
Faz até desconfiar.

N – Seu bisavô e o avô
Foram por mim conhecidos,
Seu pai, sua mãe, você
Antes de serem nascidos
Já estavam em minha nota
Para serem protegidos.

R – Que proteção tem você
Para proteger alguém?
Sua pessoa e os trajes
Mostram o que você tem
A sua cor e aspecto
Esclarecem muito bem.

N – Eu protejo você tanto,
Que o defendi de morrer
Você se lembra da onça
que um a vez quis lhe comer
Que apareceu um cachorro
E fez a onça correr?

R – Me lembro perfeitamente
Quando a onça m e emboscou
Já ia marcando o salto
Quando um cachorro chegou
A onça correu com medo,
Eu não sei quem me salvou…

N – Pois foi este seu criado
Que viu a onça emboscá-lo
Eu chamei por meu cachorro
Para da onça livrá-lo
Se lembra quando você
Ouviu o canto dum galo?

R – Eu me lembro disso tudo
Porque assim foi passado;
Mas que idade tinha eu
Quando esse caso foi dado?
Eu era tão pequenino
Que m eu pai teve cuidado.

N – Você tinha nove anos
Foi caçar um novilhote
Se entreteu com umas flores
Que tinha lá no serrote
A onça foi esperá-lo
Para sangrá-lo no bote.

Riachão disse consigo:
– De onde veio esse ente,
Que de toda minha vida
Conhece perfeitamente?
Este, será que é o Diabo
Que está figurado em gente?

N – O senhor pergunta assim
De que parte venho eu…
Eu venho de onde não vai
Pensamento como o seu
E saí do ideal
Primeiro que apareceu!

R – Agora acabei de crer
Que tu és o inimigo!
Te transformaste em homem,
Para vir cantar comigo,
Mas eu acredito em Deus
Não posso correr perigo!

N – Ainda não, lhe ameacei,
Nem pretendo ameaçá-lo!
Estou pronto a defendê-lo,
Se alguém quiser atacá-lo
Em minha humilde pessoa,
Tem um pequeno vassalo!

R – Não quero saber de ti,
Porque tu és traidor:
Desobedeceste a Deus,
Sendo Ele o Criador!
Fizeste traição a Ele
Quanto mais a um pecador…

N – Riachão, amas a Deus
Sendo mal recompensado!
Deus fez de Paulo um Monarca
De Pedro um simples soldado
Fez um com tanta saúde,
Outro cego e aleijado!

R – Se Deus fez de Paulo um rei,
Porque Paulo merecia
Se fez de Pedro um soldado,
Era o que a Pedro cabia:
Se não fosse necessário,
O grande Deus não fazia!

N – O teu vizinho e parente
Enricou sem trabalhar;
Teu pai trabalhava tanto
E nunca pode enricar
Não se deitava uma noite
Que deixasse de rezar!

R – M eu pai morreu na pobreza,
Foi fiel ao seu Senhor!
Executou toda ordem
Que lhe deu o Criador
E foi um a das ovelhas
Que deu mais gosto ao pastor!

N – Arre lá! Lhe disse o Negro.
Você é caso sem jeito!
Eu com tanta paciência,
Estou lhe ensinando direito
Você vê que está errado,
Faz que não vê o defeito!

R – É muito feliz o homem
Que com tudo se consola!
posso morrer na pobreza,
Me achar pedindo esmola
Deus me dá para passar
Ciência e esta viola!

O negro olhou Riachão
Com os olhos de cão danado,
Riachão gritou: – Jésus,
Homem Deus Sacramentado!
Valha-me a Virgem Maria,
A Mãe do Verbo Encarnado!

o negro, soltando um grito,
Dali desapareceu.
De uma catinga de enxofre
A casa toda se encheu,
Os cães uivaram na rua,
O chão da casa tremeu.

Riachão ficou cismado
Com cantor desconhecido,
Que, quando encontrava um,
Tomava logo sentido
O seu primeiro repente
Era a Deus oferecido.

Essa história que escrevi
Não foi por mim inventada:
Um velho daquela época
Tem ainda decorada.
Minha aqui só são as rimas
Exceto elas, mais nada!

Genti qui vem di Lisbôa

Genti qui vem di Lisbôa (Domínio público)

Genti qui vem di Lisbôa
Genti qui vem lá du má
Laçu di fita’marela
Na ponta da vela, nu meio du má
Ei nóis
Qui viemo d’ôtas terra
D’ôtos má
Temo pórva, chumbu i bala
Nói viemo é guerriá

Camaradinho…

Samba nu má, samba nu má marinhêro
Samba nu má marinhêro, samba nu má istrangêro
Samba nu má, samba nu má marinhêro
Samba nu má marinhêro, vai apanhá istrangêro