por Manuela Carneiro da Cunha
publicado originalmente na Revista Cultura, 1966
Há, de Gana até à Nigéria, ao longo da costa ocidental da África, comunidades de africanos que têm do Brasil uma visão nostálgica. Na Festa dos Prazeres, celebrada no ano passado em Lagos, os toldos levavam em letras garrafais: BRAZIL, BRAZIL, BRAZIL! Os brazilian descendants que aí realizavam uma de suas festas tradicionais já foram descritos, celebrados ou estudados — são enfoques diferentes — por diversos autores: Anthony Laotan, Pierre Verger, Antônio Olinto e, mais recentemente, Jerry M. Turner, que se concentrou mais especificamente no Benim (ex-Daomé). No entanto, pouco sabe ainda o público no Brasil desses brasileiros africanos, de sua origem, de sua importância política e econômica na formação dos estados da África Ocidental.
Origem – As guerras travadas peIas cidades-estados iorubas conta os fulanis, que resultaram no esfacelamento do império do Oio, nos alvores do século XIX, acarretaram a vinda para o Brasil, e mais particularmente para a Bahia, de numerosos cativos, a tal ponto que em 1848 o consul francês Castelnau calculava constituírem os nagôs1 9/10 da população escrava da Bahia (f. de Castelnau, 1851, P. 7).
De 1807 a 1835, estouraram na Bahia revoltas de inspiração muçulmana, verdadeiras guerras de religião, lideradas por haussas e nagôs malês, isto é, iorubas muçulmanos. Embora fossem dirigidas tanto contra os senhores de escravos quanto contra os pretos animistas ou cristianizados, embora escravos e emancipados nelas participassem, o Governo brasileiro desconheceu seu aspecto religioso e as interpretou como revoltas de escravos semelhantes às que ocorriam então nas Antilhas, dando origem à República do Haiti2.Em decorrência disto, muitos africanos emancipados, considerados pela polícia envolvidos nos distúrbios, foram expulsos do Brasil, e voltaram para África. Foi esse o início de um movimento de retorno que perdurou até o princípio do século XX, e que atingiu sobretudo a Bahia e Pernambuco. O fluxo de emigrantes avolumou-se depois da abolição da escravatura, quando muitos libertos empreenderam com suas famílias brasileiras a Ionga viagem de volta.
João Angelo Campos, uma das maiores fortunas de Lagos no século passado, e sua família
A origem última desses retornados variava. Nina Rodrigues, pesquisando no início do século, menciona a existência na Bahia de originários das cidades-estados de Oio, llexa, Abeocuta e, em menor númeo, de Queto, Ibadã, Ifé, Ijebo e Lagos (N. Rodrigues, 1976, P. 104). É na realidade improvável que tivessem vindo escravos originários de Lagos, que era apenas um dos principais pontos de embarque. Segundo J. Kopytoff, que entrevistou pessoas idosas de Lagos, estas consideravam-se praticamente a salvo das incursões escravistas (J. Kopytoff, 1965, p. 44). É de se supor que a composição da população Iorubá no Brasil replicasse a de Freetown, em Serra Leoa, onde os navios do esquadrão preventivo britânico desembarcavam os escravos que libertavam. Calcula-se que esses navios interceptassem um de cada quatro navios negreiros. Ora, em 1850, havia em Freetown predominância de egbas (de Abeocuta), de ijexas (de Ilexa) e de Iorubas (de Oio) (Rev. Koelle, 1854, p, 6-6). Seriam, pois principalmente egbas, ijexas e ion bas os nagôs retornados do Brasil para a África.
Esses repatriates, como eram chamados, tinham diante de si essencialmente duas opções: ou voltarem às suas cidades de origem, reatarem seus laços de parentesco e reassumirem o modo de vida tradicional; ou estabelecerem-se nas cidades costeiras, onde, conforme vimos, eram estrangeiros, e lá formarem uma comunidade separada. Vários fatores favoreciam esta última opção e dificultavam a outra. As cídades do interior se afrontaram em guerras intermitentes até os fins do século XIX. Voltar, se se conseguisse, era arriscar-se por exemplo a ser novamente escravizado. Por outro lado, as possibilidades comerciais concentravam-se na costa, ou pelo menos em cidades que tivessem acesso à costa, Abeocuta principalmente. Nessa cidade, houve durante curto tempo uma solução de compromisso, em que se mantinham ao mesmo tempo as identidades de egba e de brasileiro.
Família de brasileiros de Lagos
Mais viável era enfatizar essas duas identidades em Lagos, onde os laços familiares não podiam impor suas exigências. As comunidades de brasileiros egbas e ijexas em Lagos mantiveram, sem se fundirem novamente em suas cidades de origem, relações de comércio e de proteção com Abeocuta e Ilexa. Assim, a importante associação Iketiparapo, de Lagos, composta de retornados do Brasil e de Serra Leoa, forneceu armas à confederação de Ilexa e Equiti, quando estas combatiam Ibadã. Já com Oio, as dificuldades de acesso não permitiam relações seguidas, e, conseqüentemente, não consta que se tenha formado em Lagos nenhum subgrupo de brasileiros de Oio.
Venturas e desventuras comerciais — Os documentos mais antigos sobre a comunidade brasileira de Lagos são, pelo que até hoje se conhece, os da correspondência oficial britânica, que se inicia na década de 1850. Os documentos dos missionários católicos que contêm material bastante detalhado começam apenas no fim da década de 60. Pouco se sabe, portanto, sobre a comunidade antes de 1851. Os “brasileiros começaram por conviver e por ser parcialmente confundidos com os negreiros portugueses e brasileiros, muitos dos quais mulatos, que habitavam essas plagas; por sua vez, enquanto puderam, não desdenharam alguns se lançarem no lucrativo comércio ultramarino de escravos3.
Sobrado do comerciante Américo Rodrígues em Kakawa Street, uma das ruas do bairro brasileiro de Lagos, 1890
Mas os tempos estavam mudando. Ingleses, franceses, hamburgueses e sardos haviam percebido a importância comercial a que Lagos estava destinada, por seu porto relativamente acessível, mas, sobretudo, por sua situação geográfica, na confluência das rotas comerciais do interior. Firmas européias foram se estabelecendo, e seus entrepostos se alinhando ao longo do cais da marina. Essas firmas estavam, sobretudo, empenhadas na compra de azeite-de-dendê, usado na fabricação de velas, sabão e lubrificantes, e, posteriormente, do azeite de caroço de dendê, matéria-prima da margarina.
Para tanto, traziam para Lagos mercadorias manufaturadas, tecidos, tabaco, álcoois de diversos tipos, além de moedas como os cauris e, posteriormente, dinheiro. Essencialmente, o costume era de ceder a intermediários, a crédito, as mercadorias, que estes levavam para interior e trocavam pelo dendê.
Os brasileiros, assim como chamados “saros”, nagôs que haviam voltado de Serra Leoa a partir de 1839, procuraram entrincheirar-se na posição de intermediários, pois as firmas européias não tinham acesso ao interior e necessitavam dos negociantes africanos4. Tradicionalmente, cada cidade-estado servia de intermediária comercial entre suas vizinhas setentrionais e meridionais. Valendo-se de sua dupla identidade, de lagosianos estrangeiros e de originários de cidades do interior, os “brasileiros” e os “saros” tentaram operar um curto-circuito nesse sistema e assegurar suas posições.
Pelo fim do século, após a penetração britânica no interior do país, as firmas européias conseguiram estabelecer-se nas cidades do interior. Pareceria que muitos negociantes, dantes independentes, passaram então a representantes dessas casas comerciais.
Outros “brasileiros” de Lagos tentaram sua sorte no comércio com a Bahia. Lembra Nina Rodrigues (1976, p. 105), no começo deste século, o tempo não tão distante em que navios a vela, três a quatro por ano, traziam “nagôs-negociantes, falando iorubá e inglês, e trazendo noz de cola, cowries (cauris), objetos de culto jeje-iorubá, sabão, pano-da-costa, etc. Veremos mais diante o vulto que assumiu esse comércio transatlântico, que é pouco conhecido. Adiantemos simplesmente que, se pegarmos o período de 1877 a 1886 como exemplo, encontraremos uma média de 13.687 libras anuais correspondendo às exportações de Lagos para o Brasil (na medida em que se pode confiar nas cifras fornecidas pelos Blue Books da colônia).
Fizeram-se, assim, algumas grandes fortunas. Ficaram famosas as de Joaquim Francisco Devodê Branco, a de João Esan da Rocha, a de Walter Paul Siffre. Alguns sobrados luxuosos no estilo baiano testemunharam essa fluência: o de Romão Campos, que deu seu nome ao Campos Square; o de Fernandez, na atual praça Tinubu; a Water House, que deu seu título a romance de Antônio Olinto, e que pertencia a João Esan da Rocha; a de Rodríguez, que comerciava com gêneros brasileiros, e outros tantos.
A primeira igreja Holy Cross de Lagos, construída por Lázaro Borges da Silva e Francisco Nobre
É tradição em Lagos que os primeiros pedreiros, mestres-de-obras e carpinteiros tivessem sido brasileiros. Dos mais famosos entre os mestres-de-obras foram Lázaro Borges da Silva, um ijexa, que voltou da Bahia e que, com Francisco Nobre, edificou a primeira igreja Holy Cross iniciada em 1879, hoje substituída pela atual catedral católica de Lagos. Nessa igreja quiseram os brasileiros sobrepujar tudo o que até então se erigira na colônia; quiseram-na grandiosa. Esculpiu-lhe o altar-mor e a cátedra do bispo Baltasar dos Reis o melhor carpinteiro de suas época (v. A. Laotan, 1961) e que também foi o primeiro comissário de polícia de Lagos. Foram igualmente brasileiros os construtores da mesquita central e da de Shitta Bey; e os sobrados do bairro brasileiro, cujo estilo se espalhou depois em todo o país iorubá, e que foram desde cedo associados a um status elevado, todos foram obras suas. Mas não foram esses os únicos ofícios que os brasileiros introduziram: também os primeiros ourives, os primeiros barbeiros, sapateiros, alfaiates, costureiras teriam sido brasileiros.
Pelo fim do século, embora perdurasse essa tradição de artesãos, duas outras carreiras atraíam os Brazilian descendants: a de clérigo no serviço público5 ou em casas comerciais e a de mestre-escola ou catequista6 nas escolas e missões que os padres da Société des Missions Africaines iam estabelecendo na região. Na lista de jurados para o ano de 1897 (Government Gazette 27. nov. 1896: p. 48 e ss.) figuram dentre 661, uns 100 brasileiros. Destes, 17% são clérigos, mas temos que lhes acrescentar os 26 funcionários do governo (Blue Book, 1897), que aparentemente não podiam ser jurados. Há, no entanto, ainda 24% de comerciantes, 1 barbeiro, 1 fotógrafo, 1 pescador, sendo o restante artesãos, dos quais 21 capinteiros e 10 pedreiros e mestres-de-obras.
Em 1905, já são os clérigos cerca de 23% (mais 43 funcionários do governo), e os comerciantes passam a 19% (Government Gazette, 7 jan. 1905). Lembremos, porém, que muitos cumulavam um ofício artesanal ou comercial com uma função pública.
Enfim, os que podiam mandavam os filhos estudarem em universidades estrangeiras, de onde voltavam médicos, como Moisés da Rocha, ou advogados, como Plácido Assunção, mais tarde Sir Adeyemo Alakija.
Uma burguesia africana – Os brasileiros, juntamente com os “saros” formaram em Lagos a primeira burguesia da atual Nigéria. Os primeiros consideravam-se com orgulho os introdutores dos refinamentos da civilização: vestiam-se à moda ocidental, tinham cavalos de corrida, carruagens luxuosas, organizavam clubes de críquete e promoviam serões musicais e teatrais memoráveis: para citar alguns apenas: em 1882, a Brazilian Dramatic Company dava uma récita para celebrar o aniversário da Rainha Vitória (M. Echeruo, 1962, p. 69); em 1896, a atuação de J. L. Gomes, em Zebedeu Carrancudo, encenado no Lagos Cricket Club, arrancava aplausos (Lagos Standard, 23, set. 1896), e em 1910, a sociedade Flor do Dia dava uma representação em presença do governador, na qual encenou Le Bourgeois Gentilhomme (The Nigerian Times, 20 dez 1910),
Grupo de Costureiras de Abeocuta
Desde a manteiga até ao mingau, ao munguzá, ao feijão de leite, todos os requintes da comida baiana haviam por eles sido introduzidos. Na realidade, olhavam com certo desprezo aos aborígines e com eles mantinham suas distâncias. Pareciam acreditar os retornados (tanto saros quanto brasileiros) nas virtudes e nas vantagens de um estado moderno, construído sob a égide britânica, mas de cujo comando eles seriam os herdeiros naturais (v. Ajayi, 1961). Sob a influência dos missionários, sobretudo anglicanos que compartilhavam de início essa visão e essas esperanças, eles se preparavam para tomar as rédeas desse estado. Os preconceitos racistas que vingaram a partir da década de 1870 surpreenderam-nos e mortificaram-nos. Por reação, esses homens, que eram chamados “brancos” pela população local, passaram a realçar sua negritude. Foi a época dos cismas nas igrejas protestantes, da criação das igrejas nativas; foi a época também da valorização, por essa burguesia tão ocidentalizada, da cultura iorubá; retomaram-se nomes iorubás um tanto atabalhoadamente; criaram-se sociedades de pesquisa das tradições e da história local; a Aurora Relief Society chegou a convidar, em 1900, um grupo de danças folclóricas, isto é, tradicional, para se exibir entre suas valsas e quadrilhas (Lagos Standard, 2 maio 1900).
A penetração militar britânica no interior na última década do século XIX abateu as últimas esperanças de autogoverno. Mas ainda, nem mesmo foram requeridos pelos ingleses os préstimos dos educated de Lagos para a gestão dos territórios subjugados: foram preteridos em favor dos reis e chefes tradicionais das diversas cidades-estados, em um sistema de governo que culminou com a Indirect Rule de Lugard. Frustrados em suas esperanças de serem os construtores de um estado moderno, restava-lhes apenas a magra compensação de sua importância na arena política de Lagos.
Laços com o Brasil — Essa comunidade exclusiva tinha, portanto, por referência o Brasil e a ele constantemente se referia.
Através da língua primeiro: durante uns dez anos, os missionários franceses tiveram de lecionar em português, sob pena que lhes desertassern as escolas, Em 1869, encomendava o Padre Bouche 100 exemplares do “Compendio de Doutrina Christã, para uso daqueles que não souberem”, 5 exemplares do Manual da Missa e da Confissão, além de exemplares de Mappas Geraes e do Fabulista da Mocidade, de Tristão da Cunha (Bouche à Planque, Porto Novo, 25 jan. 1869, Arquivos SMA, entry no. 21,150 rubrics no. 12/60200). A situação só se alterou por volta de 1880, com a consciência de que a língua inglesa seria imprescindível para uma carreira na administração da colônia7, e por pressão direta do governo inglês, que, em 1882, proibiu o ensino em qualquer outra língua que não fosse a inglesa (Chausse à Planque, Lagos, 7 jul. 1882, Arquivos SMA, entry no. 21,940, rubrics no. 12/80200).
A partir daí, a língua portuguesa, outrora língua franca em boa parte da costa ocidental da África, começou sua decadência em Lagos. No entanto, seu uso conservou-se nas famílias até o nosso século, alimentado pelos recém-chegados do Brasil, morrendo por último certos ditados, cantigas, palavrões e expressões brasileiras8.
A religião católica foi outro elo poderoso na manutenção de uma identidade brasileira exclusiva. A importante comunidade muçulmana brasileira parece ter-se fundido mais rapidamente com a população islâmica local, embora, até 1908 pelo menos, se fizessem os muçulmanos brasileiros representar de modo autônomo nas manifestações públicas9.
Os brasileiros de Lagos encontraram no catolicismo urn aglutinador eficiente. Não obstante cultuassem freqüentemente os orixás familiares, consultassem babalaôs e até incorressem em práticas muçulmanas (Bouche à Planque, 26 fev. 1869, Arquivos SMA, entry no. 17,059, rubrics no. 12/80200), eles se tinham e certamente eram fervorosos católicos. O catolicismo estava intimamente associado ao Brasil. Exigiam dos padres franceses que pregassem em português, e acorriam, aos sábados à noitinha, a cantar em português durante mais de uma hora o ofício da Virgem (Deniaud à Planque, 4 maio 1872). Antes da chegada dos missionários, que só se estabeleceram em 1868, reuniam-se em torno do célebre “Padre Antônio”, ex-escravo de certo prior do Carmo da Bahia, que batizava, fazia água benta e presidia aos funerais (Bouche à Planque, Porto Novo, 4 jul. 1866, entry no. 20, 227, rubrics no. 12/80200). Confrarias religiosas estabeleceram-se desde antes da chegada dos missionários: a do Rosárioi10 foi a mais antiga e a mais importante: em 1874 era dissolvida e reconstituída, na tentativa de expurgá-la dos francos-maçons, que, segundo o Padre Cloud, a infestavam (Cloud à Planque, Lagos, 25 ago. 1874, Arquivos SMA, entry no. 17, 161, rubrics no. 12/80200).
Pelo fim do século, as confrarias religiosas se haviam multiplicado, e com elas as sociedades leigas (quase sempre, porém, ligadas ao catolicismo), que funcionavam como sociedades de amparo mútuo e eram encarregadas de promover festas tradicionais brasileiras como a “burrinha”, o “boi” e o famoso “piquenique do Bonfim” (geralmente deturpado para piquenique da Nossa Senhora do Bonfim), que costumava dar-se na propriedade de Walter Paul Siffre, no atual bairro elegantíssimo de Ikoyi (A. Laotan, 1961). Em 1900, havia umas oito sociedades desse tipo, das quais a mais antiga deve ter sido a Aurora Relief Society, fundada nos anos 70 como uma sociedade de dança (Lagos Standard, 2 maio 1900),
O “ser-se brasileiro” ainda era exibido em outros traços. No traje, por exemplo, arvoravam-se distinções: os homens vestiam fraque; as mulheres, roupa baiana ou européia segundo as ocasiões. “Nossos católicos”, escrevia em 1872 o Padre Deniaud, “estão vestidos à éuropéia: as mulheres usam um vestido comprido e uma espécie de turbante”.
Certas comidas consideradas baianas, e que são tidas por africanas no Brasil, eram preparadas para ocasiões festivas: feijão de leite (feijão de coco), na Sexta-Feira Santa. Ainda hoje os brasileiros se orgulham de saber fazer canjica, mingau, tapioca, grude, molho de caranguejo (o pirão do Nordeste), mas acima de tudo a tão apreciada, carne-do-sertão. O coco, difícil de se obter (o coco da Bahia não é encontradiço na Nigéria), era freqüentemente substituído pelo leite da pevide da melancia. Esses pratos típicos dos brasileiros tornaram-se, posteriormente, populares em toda a Lagos.
Comércio com o Brasil — Importava-se o que se podia do Brasil. Fora o fumo de rolo, os charutos, o açúcar mascavo e a caninha, tradicionais desde o tempo em que se usava na compra de escravos e que continuavam sendo a maior parte das exportações brasileiras para Lagos, figuram na lista carne-seca, canoas, material de construção, relógios, louça, perfumes, guarda-chuvas, móveis, chapéus, rapé, revólveres e espingardas, sabão, vinho e até instrumentos musicais! (Blue Books, 1869-89, passim).
Os números oficiais oferecidos pelos Blue Books nem sempre são consistentes, mas podemos usá-los para dar uma idéia do peso que as preferências da comunidade brasileira de Lagos tinha sobre as importações: em 1888, para dar um exemplo, 2.634 libras foram gastas em produtos dessa natureza, enquanto 8.586 libras serviram para importar caninha, fumo de rolo e charutos. Dessas 2.634 libras, 1 .064 pagaram 70 quilogramas de gêneros, isto é, essencialmente, carne-do-sertão.
No sentido inverso, de Lagos para a Bahia, as necessidades culturais dos africanos no Brasil também se faziam sentir. O Brasil não importava as grandes quantidades de azeite-de-dendê e caroços de dendê: para tomarmos como exemplo o mesmo ano de 1888, sobre as 8.237 libras de mercadorias exportadas para o Brasil, apenas 2.600 se referiam a azeite-de-dendê; o resto cobria, como vimos acima, essencialmente artigos religiosos e culturais, sobretudo “panos-da-costa” (3.367 libras), de grande consumo no Brasil11, nozes de cola das duas espécies (1.525 libras), palha-da-costa, sabão preto, cauris, ori, cabaças, contas, etc.
Como importador, o Brasil não podia competir com as grandes nações industriais. Mas durante a segunda metade do século XIX, conseguiu manter-se em terceiro lugar entre os exportadores para Lagos12.
O comércio entre o Brasil e Lagos não desapareceu, portanto, como às vezes se crê, com o fim do tráfico de escravos. Paradoxalmente, foi indiretamente o próprio tráfico que gerou um mercado para produtos dos dois lados do Atlântico.
O fim do século viu seu declínio. Cessou no século XX a volta de africanos e de crioulos a Lagos, cessou também praticamente o comércio. Ficou, porém, na África, uma imagem idílica de uma edênica Bahia, ficou na Bahia o fascínio pelas coisas africanas.
Notas
1 – Nagô é o termo que o grupo étnico fom aplicava aos seus vizinhos e inimigos iorubás: franceses e brasileiros parecem tê-lo adotado; “iorubás”, termo que se aplicava originalmente apenas aos habitantes da cidade de Oio, serve hoje em dia para designar um grupo étnico mais amplo, que se localiza a sudoeste da atual Nigéria e a leste do atual Benim.
2 – Estes dados históricos baseiam-se nos trabalhos de Pierre Verger (1966 e 1968).
3 – Cf., p. ex., Foreign Office 84/920, Campbell to Claredon, 30 jul. 1853, a propósito do brasileiro emancipado Antônio Martins, que comerciava escravos.
4 – V. A. G. Hopkins, 1968.
5 – Os mais bem sucedidos foram, sem dúvida, Pedro Josiah Martins, first-class clerk, colonial secretary, cuja morte foi causa de feriado no Colonial Secretariat e adiamento da reunião do conselho legislativo (Lagos Standard, 13 jun. 1900; v, também o Colonial Office 147/102, 28 jan. 1895, Philips to Meade); Simão Isidro de Sousa, filho do fervoroso católico Isidro Ezequiel de Sousa, e que chegou a ser resident do governo em Ibadã (Deniga, 1921).
6 – Entre os mestres-escola, o mais conhecido foi Laurenço A, Cardoso, que posteriormente se tornou comerciante e leiloeiro, mudando o nome para Alade (Deniga, 1921).
7 – Em 1881, escrevia o Padre Chausse a seu superior: (…) saber inglês está-se tornando cada vez mais capital. Nossos cristãos querem todos ensino em inglês para seus filhos e filhas (…)” (Chausse à Planque, Lagos, 18 jun. 1881, Arquivos SMA, entry no. 21,345, rubrics no. 12/80200).
8 – Porém, há nada menos que seis anos, em 1970, começou a circular em Ibadã um efêmero jornalzinho bimensal que se propounha ensinar português aos membros da comunidade de descendentes de brasileiros e lembrar-lhes os costumes tradicionais. Seu último número, em 1973, levava o apelo seguinte: “Let A Lâmpada Portuguesa, the paper we all love, be saved as Brazilian heritage in Nigeria. Vivam os brasileiros, VIVA! — O Professor“.
A professora leda P. de Castro, do Instituto Afro-Oriental da Bahia, esteve justamente pesquisando o português da comunidade de Lagos.
9 – Por exemplo, a propósito da agitação contra o imposto de águas e esgotos em Lagos (The Nigerian Chronicle, 27 nove 1908).
10 – A confraria do Rosário reunia, em quase todo o Brasil colonial, embora com variações locais, homens de cor, escravos ou alforriados, africanos ou crioulos (A. J. R. Russell-Wood, 1973).
11 – Os “panos-da-costa” são mantas de algodão compostas de longas tiras tecidas em estreitos teares manuais, produzidos em quase todo o interior iorubá, com alguma especialização local. O Cônsul Campbell sugeria em 1857 que a venda da enorme quantidade de panos-da-costa — 50.000 de Lagos e 130.000 de outros portos só nesse ano (Foreign Office, 84/1061, 2. fev. 1858) — se devesse não só à sua resistência e durabilidade mas também às reminiscências que evocavam entre os africanos no Brasil (Foreign Office, 84/1031 ).
12 – Se tomarmos, por exemplo, o período de 1877 a 1886, o Brasil vem em terceiro lugar, com uma média de 23.697 libras de exportações para Lagos, anuais, bem atrás da Inglaterra (282.996 libras) e da Alemanha (113.840 libras), mas ultrapassando as cifras francesas (20.256 libras) Book, 1886).
As informações sobre o comércio Bahia-Lagos então sendo revistas atualmente, através de pesquisas que vêm sendo feitas. Além da minha, tenho notícia da da professora Marli Geralda, da UFBa, e da do Dr. Fola Soremekun, da Universidade de Ifé, na Nigéria.
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