Brasileiros Nagôs em Lagos no Século XIX

por Manuela Carneiro da Cunha

publicado originalmente na Revista Cultura, 1966

Há, de Gana até à Nigéria, ao longo da costa ocidental da África, comunidades de africanos que têm do Brasil uma visão nostálgica. Na Festa dos Prazeres, celebrada no ano passado em Lagos, os toldos levavam em letras garrafais: BRAZIL, BRAZIL, BRAZIL! Os brazilian descendants que aí realizavam uma de suas festas tradicionais já foram descritos, celebrados ou estudados — são enfoques diferentes — por diversos autores: Anthony Laotan, Pierre Verger, Antônio Olinto e, mais recentemente, Jerry M. Turner, que se concentrou mais especificamente no Benim (ex-Daomé). No entanto, pouco sabe ainda o público no Brasil desses brasileiros africanos, de sua origem, de sua importância política e econômica na formação dos estados da África Ocidental.

Origem – As guerras travadas peIas cidades-estados iorubas conta os fulanis, que resultaram no esfacelamento do império do Oio, nos alvores do século XIX, acarretaram a vinda para o Brasil, e mais particularmente para a Bahia, de numerosos cativos, a tal ponto que em 1848 o consul francês Castelnau calculava constituírem os nagôs1 9/10 da população escrava da Bahia (f. de Castelnau, 1851, P. 7).

De 1807 a 1835, estouraram na Bahia revoltas de inspiração muçulmana, verdadeiras guerras de religião, lideradas por haussas e nagôs malês, isto é, iorubas muçulmanos. Embora fossem dirigidas tanto contra os senhores de escravos quanto contra os pretos animistas ou cristianizados, embora escravos e emancipados nelas participassem, o Governo brasileiro desconheceu seu aspecto religioso e as interpretou como revoltas de escravos semelhantes às que ocorriam então nas Antilhas, dando origem à República do Haiti2.Em decorrência disto, muitos africanos emancipados, considerados pela polícia envolvidos nos distúrbios, foram expulsos do Brasil, e voltaram para África. Foi esse o início de um movimento de retorno que perdurou até o princípio do século XX, e que atingiu sobretudo a Bahia e Pernambuco. O fluxo de emigrantes avolumou-se depois da abolição da escravatura, quando muitos libertos empreenderam com suas famílias brasileiras a Ionga viagem de volta.

João Angelo Campos, uma das maiores fortunas de Lagos no século passado, e sua família

A origem última desses retornados variava. Nina Rodrigues, pesquisando no início do século, menciona a existência na Bahia de originários das cidades-estados de Oio, llexa, Abeocuta e, em menor númeo, de Queto, Ibadã, Ifé, Ijebo e Lagos (N. Rodrigues, 1976, P. 104). É na realidade improvável que tivessem vindo escravos originários de Lagos, que era apenas um dos principais pontos de embarque. Segundo J. Kopytoff, que entrevistou pessoas idosas de Lagos, estas consideravam-se praticamente a salvo das incursões escravistas (J. Kopytoff, 1965, p. 44). É de se supor que a composição da população Iorubá no Brasil replicasse a de Freetown, em Serra Leoa, onde os navios do esquadrão preventivo britânico desembarcavam os escravos que libertavam. Calcula-se que esses navios interceptassem um de cada quatro navios negreiros. Ora, em 1850, havia em Freetown predominância de egbas (de Abeocuta), de ijexas (de Ilexa) e de Iorubas (de Oio) (Rev. Koelle, 1854, p, 6-6). Seriam, pois principalmente egbas, ijexas e ion bas os nagôs retornados do Brasil para a África.

Esses repatriates, como eram chamados, tinham diante de si essencialmente duas opções: ou voltarem às suas cidades de origem, reatarem seus laços de parentesco e reassumirem o modo de vida tradicional; ou estabelecerem-se nas cidades costeiras, onde, conforme vimos, eram estrangeiros, e lá formarem uma comunidade separada. Vários fatores favoreciam esta última opção e dificultavam a outra. As cídades do interior se afrontaram em guerras intermitentes até os fins do século XIX. Voltar, se se conseguisse, era arriscar-se por exemplo a ser novamente escravizado. Por outro lado, as possibilidades comerciais concentravam-se na costa, ou pelo menos em cidades que tivessem acesso à costa, Abeocuta principalmente. Nessa cidade, houve durante curto tempo uma solução de compromisso, em que se mantinham ao mesmo tempo as identidades de egba e de brasileiro.

Família de brasileiros de Lagos

Mais viável era enfatizar essas duas identidades em Lagos, onde os laços familiares não podiam impor suas exigências. As comunidades de brasileiros egbas e ijexas em Lagos mantiveram, sem se fundirem novamente em suas cidades de origem, relações de comércio e de proteção com Abeocuta e Ilexa. Assim, a importante associação Iketiparapo, de Lagos, composta de retornados do Brasil e de Serra Leoa, forneceu armas à confederação de Ilexa e Equiti, quando estas combatiam Ibadã. Já com Oio, as dificuldades de acesso não permitiam relações seguidas, e, conseqüentemente, não consta que se tenha formado em Lagos nenhum subgrupo de brasileiros de Oio.

Venturas e desventuras comerciais — Os documentos mais antigos sobre a comunidade brasileira de Lagos são, pelo que até hoje se conhece, os da correspondência oficial britânica, que se inicia na década de 1850. Os documentos dos missionários católicos que contêm material bastante detalhado começam apenas no fim da década de 60. Pouco se sabe, portanto, sobre a comunidade antes de 1851. Os “brasileiros começaram por conviver e por ser parcialmente confundidos com os negreiros portugueses e brasileiros, muitos dos quais mulatos, que habitavam essas plagas; por sua vez, enquanto puderam, não desdenharam alguns se lançarem no lucrativo comércio ultramarino de escravos3.

Sobrado do comerciante Américo Rodrígues em Kakawa Street, uma das ruas do bairro brasileiro de Lagos, 1890

Mas os tempos estavam mudando. Ingleses, franceses, hamburgueses e sardos haviam percebido a importância comercial a que Lagos estava destinada, por seu porto relativamente acessível, mas, sobretudo, por sua situação geográfica, na confluência das rotas comerciais do interior. Firmas européias foram se estabelecendo, e seus entrepostos se alinhando ao longo do cais da marina. Essas firmas estavam, sobretudo, empenhadas na compra de azeite-de-dendê, usado na fabricação de velas, sabão e lubrificantes, e, posteriormente, do azeite de caroço de dendê, matéria-prima da margarina.

Para tanto, traziam para Lagos mercadorias manufaturadas, tecidos, tabaco, álcoois de diversos tipos, além de moedas como os cauris e, posteriormente, dinheiro. Essencialmente, o costume era de ceder a intermediários, a crédito, as mercadorias, que estes levavam para interior e trocavam pelo dendê.

Os brasileiros, assim como chamados “saros”, nagôs que haviam voltado de Serra Leoa a partir de 1839, procuraram entrincheirar-se na posição de intermediários, pois as firmas européias não tinham acesso ao interior e necessitavam dos negociantes africanos4. Tradicionalmente, cada cidade-estado servia de intermediária comercial entre suas vizinhas setentrionais e meridionais. Valendo-se de sua dupla identidade, de lagosianos estrangeiros e de originários de cidades do interior, os “brasileiros” e os “saros” tentaram operar um curto-circuito nesse sistema e assegurar suas posições.

Pelo fim do século, após a penetração britânica no interior do país, as firmas européias conseguiram estabelecer-se nas cidades do interior. Pareceria que muitos negociantes, dantes independentes, passaram então a representantes dessas casas comerciais.

Outros “brasileiros” de Lagos tentaram sua sorte no comércio com a Bahia. Lembra Nina Rodrigues (1976, p. 105), no começo deste século, o tempo não tão distante em que navios a vela, três a quatro por ano, traziam “nagôs-negociantes, falando iorubá e inglês, e trazendo noz de cola, cowries (cauris), objetos de culto jeje-iorubá, sabão, pano-da-costa, etc. Veremos mais diante o vulto que assumiu esse comércio transatlântico, que é pouco conhecido. Adiantemos simplesmente que, se pegarmos o período de 1877 a 1886 como exemplo, encontraremos uma média de 13.687 libras anuais correspondendo às exportações de Lagos para o Brasil (na medida em que se pode confiar nas cifras fornecidas pelos Blue Books da colônia).

Fizeram-se, assim, algumas grandes fortunas. Ficaram famosas as de Joaquim Francisco Devodê Branco, a de João Esan da Rocha, a de Walter Paul Siffre. Alguns sobrados luxuosos no estilo baiano testemunharam essa fluência: o de Romão Campos, que deu seu nome ao Campos Square; o de Fernandez, na atual praça Tinubu; a Water House, que deu seu título a romance de Antônio Olinto, e que pertencia a João Esan da Rocha; a de Rodríguez, que comerciava com gêneros brasileiros, e outros tantos.

A primeira igreja Holy Cross de Lagos, construída por Lázaro Borges da Silva e Francisco Nobre

É tradição em Lagos que os primeiros pedreiros, mestres-de-obras e carpinteiros tivessem sido brasileiros. Dos mais famosos entre os mestres-de-obras foram Lázaro Borges da Silva, um ijexa, que voltou da Bahia e que, com Francisco Nobre, edificou a primeira igreja Holy Cross iniciada em 1879, hoje substituída pela atual catedral católica de Lagos. Nessa igreja quiseram os brasileiros sobrepujar tudo o que até então se erigira na colônia; quiseram-na grandiosa. Esculpiu-lhe o altar-mor e a cátedra do bispo Baltasar dos Reis o melhor carpinteiro de suas época (v. A. Laotan, 1961) e que também foi o primeiro comissário de polícia de Lagos. Foram igualmente brasileiros os construtores da mesquita central e da de Shitta Bey; e os sobrados do bairro brasileiro, cujo estilo se espalhou depois em todo o país iorubá, e que foram desde cedo associados a um status elevado, todos foram obras suas. Mas não foram esses os únicos ofícios que os brasileiros introduziram: também os primeiros ourives, os primeiros barbeiros, sapateiros, alfaiates, costureiras teriam sido brasileiros.

Pelo fim do século, embora perdurasse essa tradição de artesãos, duas outras carreiras atraíam os Brazilian descendants: a de clérigo no serviço público5 ou em casas comerciais e a de mestre-escola ou catequista6 nas escolas e missões que os padres da Société des Missions Africaines iam estabelecendo na região. Na lista de jurados para o ano de 1897 (Government Gazette 27. nov. 1896: p. 48 e ss.) figuram dentre 661, uns 100 brasileiros. Destes, 17% são clérigos, mas temos que lhes acrescentar os 26 funcionários do governo (Blue Book, 1897), que aparentemente não podiam ser jurados. Há, no entanto, ainda 24% de comerciantes, 1 barbeiro, 1 fotógrafo, 1 pescador, sendo o restante artesãos, dos quais 21 capinteiros e 10 pedreiros e mestres-de-obras.

Em 1905, já são os clérigos cerca de 23% (mais 43 funcionários do governo), e os comerciantes passam a 19% (Government Gazette, 7 jan. 1905). Lembremos, porém, que muitos cumulavam um ofício artesanal ou comercial com uma função pública.

Enfim, os que podiam mandavam os filhos estudarem em universidades estrangeiras, de onde voltavam médicos, como Moisés da Rocha, ou advogados, como Plácido Assunção, mais tarde Sir Adeyemo Alakija.

Uma burguesia africana – Os brasileiros, juntamente com os “saros” formaram em Lagos a primeira burguesia da atual Nigéria. Os primeiros consideravam-se com orgulho os introdutores dos refinamentos da civilização: vestiam-se à moda ocidental, tinham cavalos de corrida, carruagens luxuosas, organizavam clubes de críquete e promoviam serões musicais e teatrais memoráveis: para citar alguns apenas: em 1882, a Brazilian Dramatic Company dava uma récita para celebrar o aniversário da Rainha Vitória (M. Echeruo, 1962, p. 69); em 1896, a atuação de J. L. Gomes, em Zebedeu Carrancudo, encenado no Lagos Cricket Club, arrancava aplausos (Lagos Standard, 23, set. 1896), e em 1910, a sociedade Flor do Dia dava uma representação em presença do governador, na qual encenou Le Bourgeois Gentilhomme (The Nigerian Times, 20 dez 1910),

Grupo de Costureiras de Abeocuta

Desde a manteiga até ao mingau, ao munguzá, ao feijão de leite, todos os requintes da comida baiana haviam por eles sido introduzidos. Na realidade, olhavam com certo desprezo aos aborígines e com eles mantinham suas distâncias. Pareciam acreditar os retornados (tanto saros quanto brasileiros) nas virtudes e nas vantagens de um estado moderno, construído sob a égide britânica, mas de cujo comando eles seriam os herdeiros naturais (v. Ajayi, 1961). Sob a influência dos missionários, sobretudo anglicanos que compartilhavam de início essa visão e essas esperanças, eles se preparavam para tomar as rédeas desse estado. Os preconceitos racistas que vingaram a partir da década de 1870 surpreenderam-nos e mortificaram-nos. Por reação, esses homens, que eram chamados “brancos” pela população local, passaram a realçar sua negritude. Foi a época dos cismas nas igrejas protestantes, da criação das igrejas nativas; foi a época também da valorização, por essa burguesia tão ocidentalizada, da cultura iorubá; retomaram-se nomes iorubás um tanto atabalhoadamente; criaram-se sociedades de pesquisa das tradições e da história local; a Aurora Relief Society chegou a convidar, em 1900, um grupo de danças folclóricas, isto é, tradicional, para se exibir entre suas valsas e quadrilhas (Lagos Standard, 2 maio 1900).

A penetração militar britânica no interior na última década do século XIX abateu as últimas esperanças de autogoverno. Mas ainda, nem mesmo foram requeridos pelos ingleses os préstimos dos educated de Lagos para a gestão dos territórios subjugados: foram preteridos em favor dos reis e chefes tradicionais das diversas cidades-estados, em um sistema de governo que culminou com a Indirect Rule de Lugard. Frustrados em suas esperanças de serem os construtores de um estado moderno, restava-lhes apenas a magra compensação de sua importância na arena política de Lagos.

Laços com o Brasil — Essa comunidade exclusiva tinha, portanto, por referência o Brasil e a ele constantemente se referia.

Através da língua primeiro: durante uns dez anos, os missionários franceses tiveram de lecionar em português, sob pena que lhes desertassern as escolas, Em 1869, encomendava o Padre Bouche 100 exemplares do “Compendio de Doutrina Christã, para uso daqueles que não souberem”, 5 exemplares do Manual da Missa e da Confissão, além de exemplares de Mappas Geraes e do Fabulista da Mocidade, de Tristão da Cunha (Bouche à Planque, Porto Novo, 25 jan. 1869, Arquivos SMA, entry no. 21,150 rubrics no. 12/60200). A situação só se alterou por volta de 1880, com a consciência de que a língua inglesa seria imprescindível para uma carreira na administração da colônia7, e por pressão direta do governo inglês, que, em 1882, proibiu o ensino em qualquer outra língua que não fosse a inglesa (Chausse à Planque, Lagos, 7 jul. 1882, Arquivos SMA, entry no. 21,940, rubrics no. 12/80200).

A partir daí, a língua portuguesa, outrora língua franca em boa parte da costa ocidental da África, começou sua decadência em Lagos. No entanto, seu uso conservou-se nas famílias até o nosso século, alimentado pelos recém-chegados do Brasil, morrendo por último certos ditados, cantigas, palavrões e expressões brasileiras8.

A religião católica foi outro elo poderoso na manutenção de uma identidade brasileira exclusiva. A importante comunidade muçulmana brasileira parece ter-se fundido mais rapidamente com a população islâmica local, embora, até 1908 pelo menos, se fizessem os muçulmanos brasileiros representar de modo autônomo nas manifestações públicas9.

Os brasileiros de Lagos encontraram no catolicismo urn aglutinador eficiente. Não obstante cultuassem freqüentemente os orixás familiares, consultassem babalaôs e até incorressem em práticas muçulmanas (Bouche à Planque, 26 fev. 1869, Arquivos SMA, entry no. 17,059, rubrics no. 12/80200), eles se tinham e certamente eram fervorosos católicos. O catolicismo estava intimamente associado ao Brasil. Exigiam dos padres franceses que pregassem em português, e acorriam, aos sábados à noitinha, a cantar em português durante mais de uma hora o ofício da Virgem (Deniaud à Planque, 4 maio 1872). Antes da chegada dos missionários, que só se estabeleceram em 1868, reuniam-se em torno do célebre “Padre Antônio”, ex-escravo de certo prior do Carmo da Bahia, que batizava, fazia água benta e presidia aos funerais (Bouche à Planque, Porto Novo, 4 jul. 1866, entry no. 20, 227, rubrics no. 12/80200). Confrarias religiosas estabeleceram-se desde antes da chegada dos missionários: a do Rosárioi10 foi a mais antiga e a mais importante: em 1874 era dissolvida e reconstituída, na tentativa de expurgá-la dos francos-maçons, que, segundo o Padre Cloud, a infestavam (Cloud à Planque, Lagos, 25 ago. 1874, Arquivos SMA, entry no. 17, 161, rubrics no. 12/80200).

Pelo fim do século, as confrarias religiosas se haviam multiplicado, e com elas as sociedades leigas (quase sempre, porém, ligadas ao catolicismo), que funcionavam como sociedades de amparo mútuo e eram encarregadas de promover festas tradicionais brasileiras como a “burrinha”, o “boi” e o famoso “piquenique do Bonfim” (geralmente deturpado para piquenique da Nossa Senhora do Bonfim), que costumava dar-se na propriedade de Walter Paul Siffre, no atual bairro elegantíssimo de Ikoyi (A. Laotan, 1961). Em 1900, havia umas oito sociedades desse tipo, das quais a mais antiga deve ter sido a Aurora Relief Society, fundada nos anos 70 como uma sociedade de dança (Lagos Standard, 2 maio 1900),

O “ser-se brasileiro” ainda era exibido em outros traços. No traje, por exemplo, arvoravam-se distinções: os homens vestiam fraque; as mulheres, roupa baiana ou européia segundo as ocasiões. “Nossos católicos”, escrevia em 1872 o Padre Deniaud, “estão vestidos à éuropéia: as mulheres usam um vestido comprido e uma espécie de turbante”.

Certas comidas consideradas baianas, e que são tidas por africanas no Brasil, eram preparadas para ocasiões festivas: feijão de leite (feijão de coco), na Sexta-Feira Santa. Ainda hoje os brasileiros se orgulham de saber fazer canjica, mingau, tapioca, grude, molho de caranguejo (o pirão do Nordeste), mas acima de tudo a tão apreciada, carne-do-sertão. O coco, difícil de se obter (o coco da Bahia não é encontradiço na Nigéria), era freqüentemente substituído pelo leite da pevide da melancia. Esses pratos típicos dos brasileiros tornaram-se, posteriormente, populares em toda a Lagos.

Comércio com o Brasil — Importava-se o que se podia do Brasil. Fora o fumo de rolo, os charutos, o açúcar mascavo e a caninha, tradicionais desde o tempo em que se usava na compra de escravos e que continuavam sendo a maior parte das exportações brasileiras para Lagos, figuram na lista carne-seca, canoas, material de construção, relógios, louça, perfumes, guarda-chuvas, móveis, chapéus, rapé, revólveres e espingardas, sabão, vinho e até instrumentos musicais! (Blue Books, 1869-89, passim).

Os números oficiais oferecidos pelos Blue Books nem sempre são consistentes, mas podemos usá-los para dar uma idéia do peso que as preferências da comunidade brasileira de Lagos tinha sobre as importações: em 1888, para dar um exemplo, 2.634 libras foram gastas em produtos dessa natureza, enquanto 8.586 libras serviram para importar caninha, fumo de rolo e charutos. Dessas 2.634 libras, 1 .064 pagaram 70 quilogramas de gêneros, isto é, essencialmente, carne-do-sertão.

No sentido inverso, de Lagos para a Bahia, as necessidades culturais dos africanos no Brasil também se faziam sentir. O Brasil não importava as grandes quantidades de azeite-de-dendê e caroços de dendê: para tomarmos como exemplo o mesmo ano de 1888, sobre as 8.237 libras de mercadorias exportadas para o Brasil, apenas 2.600 se referiam a azeite-de-dendê; o resto cobria, como vimos acima, essencialmente artigos religiosos e culturais, sobretudo “panos-da-costa” (3.367 libras), de grande consumo no Brasil11, nozes de cola das duas espécies (1.525 libras), palha-da-costa, sabão preto, cauris, ori, cabaças, contas, etc.

Como importador, o Brasil não podia competir com as grandes nações industriais. Mas durante a segunda metade do século XIX, conseguiu manter-se em terceiro lugar entre os exportadores para Lagos12.

O comércio entre o Brasil e Lagos não desapareceu, portanto, como às vezes se crê, com o fim do tráfico de escravos. Paradoxalmente, foi indiretamente o próprio tráfico que gerou um mercado para produtos dos dois lados do Atlântico.

O fim do século viu seu declínio. Cessou no século XX a volta de africanos e de crioulos a Lagos, cessou também praticamente o comércio. Ficou, porém, na África, uma imagem idílica de uma edênica Bahia, ficou na Bahia o fascínio pelas coisas africanas.

Notas

1 – Nagô é o termo que o grupo étnico fom aplicava aos seus vizinhos e inimigos iorubás: franceses e brasileiros parecem tê-lo adotado; “iorubás”, termo que se aplicava originalmente apenas aos habitantes da cidade de Oio, serve hoje em dia para designar um grupo étnico mais amplo, que se localiza a sudoeste da atual Nigéria e a leste do atual Benim.

2 – Estes dados históricos baseiam-se nos trabalhos de Pierre Verger (1966 e 1968).

3 – Cf., p. ex., Foreign Office 84/920, Campbell to Claredon, 30 jul. 1853, a propósito do brasileiro emancipado Antônio Martins, que comerciava escravos.

4 – V. A. G. Hopkins, 1968.

5 – Os mais bem sucedidos foram, sem dúvida, Pedro Josiah Martins, first-class clerk, colonial secretary, cuja morte foi causa de feriado no Colonial Secretariat e adiamento da reunião do conselho legislativo (Lagos Standard, 13 jun. 1900; v, também o Colonial Office 147/102, 28 jan. 1895, Philips to Meade); Simão Isidro de Sousa, filho do fervoroso católico Isidro Ezequiel de Sousa, e que chegou a ser resident do governo em Ibadã (Deniga, 1921).

6 – Entre os mestres-escola, o mais conhecido foi Laurenço A, Cardoso, que posteriormente se tornou comerciante e leiloeiro, mudando o nome para Alade (Deniga, 1921).

7 – Em 1881, escrevia o Padre Chausse a seu superior: (…) saber inglês está-se tornando cada vez mais capital. Nossos cristãos querem todos ensino em inglês para seus filhos e filhas (…)” (Chausse à Planque, Lagos, 18 jun. 1881, Arquivos SMA, entry no. 21,345, rubrics no. 12/80200).

8 – Porém, há nada menos que seis anos, em 1970, começou a circular em Ibadã um efêmero jornalzinho bimensal que se propounha ensinar português aos membros da comunidade de descendentes de brasileiros e lembrar-lhes os costumes tradicionais. Seu último número, em 1973, levava o apelo seguinte: “Let A Lâmpada Portuguesa, the paper we all love, be saved as Brazilian heritage in Nigeria. Vivam os brasileiros, VIVA! — O Professor“.

A professora leda P. de Castro, do Instituto Afro-Oriental da Bahia, esteve justamente pesquisando o português da comunidade de Lagos.

9 – Por exemplo, a propósito da agitação contra o imposto de águas e esgotos em Lagos (The Nigerian Chronicle, 27 nove 1908).

10 – A confraria do Rosário reunia, em quase todo o Brasil colonial, embora com variações locais, homens de cor, escravos ou alforriados, africanos ou crioulos (A. J. R. Russell-Wood, 1973).

11 – Os “panos-da-costa” são mantas de algodão compostas de longas tiras tecidas em estreitos teares manuais, produzidos em quase todo o interior iorubá, com alguma especialização local. O Cônsul Campbell sugeria em 1857 que a venda da enorme quantidade de panos-da-costa — 50.000 de Lagos e 130.000 de outros portos só nesse ano (Foreign Office, 84/1061, 2.⁠ ⁠fev. 1858) — se devesse não só à sua resistência e durabilidade mas também às reminiscências que evocavam entre os africanos no Brasil (Foreign Office, 84/1031 ).

12 – Se tomarmos, por exemplo, o período de 1877 a 1886, o Brasil vem em terceiro lugar, com uma média de 23.697 libras de exportações para Lagos, anuais, bem atrás da Inglaterra (282.996 libras) e da Alemanha (113.840 libras), mas ultrapassando as cifras francesas (20.256 libras) Book, 1886).

As informações sobre o comércio Bahia-Lagos então sendo revistas atualmente, através de pesquisas que vêm sendo feitas. Além da minha, tenho notícia da da professora Marli Geralda, da UFBa, e da do Dr. Fola Soremekun, da Universidade de Ifé, na Nigéria.

BIBLIOGRAFIA

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Danças e Ritmos Negros no Brasil

publicado originalmente na Revista Cultura, 1976

O coreógrafo Clyde Morgan e o Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federa/ da Bahia encontraram, através de seus estudos, laboratórios, oficinas e trabalhos coletivos uma linguagem corpora/ para colocar em cena mais um mito afro-brasileiro, desenvolvendo a proposta de que o mito, sendo o código das ânsias e obsessões do homem, pode ser transmitido e revitalizado na linguagem teatral da dança contemporânea.

Sendo que as lendas, danças e rituais do orixá Oxosse já existem e têm as suas festas de comemoração, sacerdotes, terreiros e comunidades, Clyde Morgan enfrenta a primeira operação de transmudar e codificar em símbolos teatrais as essências e imagens para entrar numa dimensão mais ampla, compreensível e pessoal para uma sociedade atual. Assumindo a premissa de que todas as comunidades afro-brasileiras têm os seus mitos na tradição oral em Oxosse n’Aruanda, tentam alcançar o mito através da dança e música afro-brasileiras e contemporâneas, numa forma expressiva e dramática. Em Oxosse n’Aruanda se reconhecem as constantes básicas de todos os mitos.

A força de um mito está em sua serenidade, seus renascimentos, suas contradições e transfigurações, Oxosse, Rei do Queto, nasceu homem Odé —, morreu e foi transformado em orixá.

Oxosse n’Aruanda

Qual o obietivo de sua colaboração com os artistas brasileiros?

O objetivo de qualquer trabalho artístico é de incorporar os sentimentos mais profundos inexplicáveis, os mistérios e os sonhos da sociedado e apresentá-los numa forma plástica e objetiva E esta é a finalidade de nossa colaboração, corno fazenn na velha terra, mãe África, para a nossa comunidade – um programa de dança e música a nossa herança e fonte de inspiração.

Suíte Ida de Arnete

O que caracteriza a união de percussionista e dançarino?

É a elaboração sobre certos temas polirritmicos, tradicionais, com os quais criamos e transmitimos um estado de consciência corporal e tonal entre nós, que desenvolve e desdobra um conjunto de modelos rítmicos e tensões visuais. É essencialmente um diálogo que nós estabelecemos, cujo assunto é determinado pelos estímulos percussivos dos músicos e os gestos e motivos de movimento do dançarino.

Qual é a importância do polirritmo na música africana, e como é que você aplica esses polirritmos nos seus trabalhos?

Nossa premissa é a de que certos ritmos provocam uma qualidade específica de movimento e nível de energia, a maior parte dos quais no esquema africano são temas rítmicos autogeradores ou autopropaladores, devido à sua natureza polirrítmica. Em outras palavras, eles atacam o sistema nervoso, criando respostas em diversas áreas. Isso provoca o surgimento, em diversos momentos, da distribuição de padrões rítmicos nas áreas distintas: os pés, a região pélvica e o pescoço, que envolve os Ombros e a cabeça, Os braços e as mãos geralmente acompanham as pernas e os pés, desde que funcionem como contrabalanço e meios decorativos,

Exceto no caso da capoeira, em que os braços, as mãos e os ombros são utilizados como órgãos secundários de suporte.

African Sanctus

E sobre o poder comunicativo de som e movimento?

Ultimamente nossa crença é no poder comunicativo de som e movimento às transformações do corpo humano numa obra de arte, fazendo o corpo uma metáfora de ética e vivacidade. O jogo do polirritmo corpo faz o corpo brilhar com respostas múltiplas aos ritmos múltiplos, tocando as várias partes do corpo como modelos, vestindo desenho sobre ou profundamente dentro da carne todos os elementos rítmicos com potência e rapidez. O corpo, assim, torna-se orquestrado de acordo com a capacidade da percussão de estimular, simultaneamente, essas áreas, que, quando provocadas em movimento, dão surgimento que nós vemos e consideramos autopropaladoras, coordenadas e dinâmicas.

Qual é a finalidade dessa autopropalação?

Nenhuma outra finalidade do que a de satisfazer ou explorar o ambiente criado pela música e força vital do dançarino. Por outro lado, o impulso interior e a coordenação do dançarino também provocam o surgimento da música quando ele orquestra através do seu corpo a expressão dessa força vital.

Encenação da lenda de Oxosse pelo Grupo de Dança Contemporânea da Universidade Federal da Bahia, dirigido por Clyde Morgan.

Como é que você vê o dançarino nas suas coreografias e no seu estilo de dança: como executante teórico ou como artista criativo?

Trabalho desse tipo depende crucialmente das capacidades dos elementos, dançarino e músico, de criar sobre certos temas preestabelecidos, como os lutadores de capoeira e maculelê, que, dentro dum modelo rítmico e dum vocabulário de movimento, têm a liberdade de criar um esquema de seqüências em relação às capacidades técnicas e criativas dos participantes.

Em relação aos estímulos e criatividade (que foi citada), como é que você vê a improvisação dentro de seu estilo de dança?

Nós colocamos muito valor na improvisação como uma invenção técnica, válida na estruturação das coreografias, a magia da apresentação: o dançarino passa duma estrutura para uma não-estrutura mantendo a essência da dança; o espectador fica ciente apenas da sensação de que a dança chegou à vida pela primeira vez e de que ele esteve presente. Desta forma é sempre mantida uma expectativa do que poderá surgir em cada apresentação resultante da criação coletiva do grupo. Concluímos dizendo que a tranqüilidade e a atividade são qualidades convergentes em nosso trabalho; que o dançarino veste os músculos, utilizados como comunicação de força transcendente, e o vigor com que o dançarino veste seu peito e seus braços define seu poder numa incorporação profunda dos valores culturais, instintos e treino, que torna suas frases brilhantes e linhas visuais, sem destruir o ritmo natural.

Dança Guerreira

Oxosse (resumo de lenda) — Uma das lendas acerca de Oxosse conta que ele não nasceu orixá, mas assim foi transformado graças à misericórdia da respeitada divindade Ifá, por quem havia sido antes castigado devido a um gesto de desobediência.

Nesse tempo, Oxosse se chamava Odé e era marido de Oxum, de quem não atendeu aos apelos e saiu para caçar num dia proibido por Ifá. No mato encontrou uma cobra colorida, de nome Oxumaré, que cantava para ele: “Eu não sou bicho de pena para Odé matar”. Odé não atendeu: matou a cobra, cortou-a em pedaços e carregou-a consigo para sua casa, embora o canto da serpente continuasse a atormentar os seus ouvidos.

Em casa, enquanto comia destemidamente o animal, Oxum, sua mulher, fugia. No dia seguinte, quando retornou, encontrou o marido morto e o rastro de uma cobra que voltava para o mato. Desesperada, Oxum clamou pela misericórdia de I fá, que reconsiderou seu gesto fazendo desaparecer o corpo de Odé.

Sete anos mais tarde, ele reaparecia como orixá, passando a chamar-se Oxosse.

Porque Oxalá usa ecodidé

Oxosse n’Aruanda — Roteiro I

1) Prólogo: palco escuro; dança solística; totem do boi iluminado no fundo do palco. Música: flauta e sons da floresta. O dançarino desenvolve com seus gestos uma seqüência que aborda toda a movimentação da peça. Ele conta numa forma abreviada, empregando movimentos que simbolizam pássaros, cobras e feras o mito todo. O arquétipo, ele personifica homem, bicho, floresta, divindade, o passado e o presente.

2) A floresta: o palco iluminado com colunas de luz. Em cada coluna há uma figura dançando “em câmara lenta” encarnações das forças invisíveis da floresta e dos animais. Ambiente: lírico, misterioso — flauta e pássaros.

3) Boi: representado por um dançarino vestido de peles, com capacete de chifre. Figura protetora, solitária, reticente, forte, roceira. Acompanhamento musical: o ajerê de Oxosse.

4) Odé: entrada da figura principal. Guerreiro, caçador valente, dono do mato, ele dança com arco e flecha e às vezes com lança e escudo. Entram os companheiros de Odé, caçadores, e juntos realizam uma dança de guerreiros. Acompanhamento: flauta e percussão.

5) Odé caçando aves: matança de algumas aves numa dança simbolizando a caça — subseqüentemente, uma dança ritualista de celebração realizada pelos caçadores. Saída de cena. O palco escurece.

6) A dança da cobra: executada por urna dançarina personificando Oxumaré1. Os caçadores entram respeitando com distância a divindade Oxumaré. Também esse é o dia sagrado dela. A cobra sai de dentro duma forma plástica e desenvolve uma dança expressiva, hipnótica e sensual. Acompanhamento musical: Ukrínmakrinkín, de Marlos Nobre.

7) Dança de conselho e o aviso de Oxum2 para Odé: a) saída de Odé para caçar no dia proibido; b) encontro no mato com Oxumaré; c) o diálogo dos dois (duo de Odé e Oxumaré). Aviso de Oxumaré: “Eu não sou bicho de pena para Odé matar”

8) Matança de Oxumaré: Odé mata a cobra, corta-a em pedaços e carrega-a consigo para sua casa. O canto da serpente continua a atormentar os seus ouvidos. Odé come a serpente e Oxum foge da casa.

9) Castigo de Ifá3: dança da morte de Odé e a saída de seu ventre da cobra. O regresso de Oxum para casa. A dança do axexê (cerimônia para os mortos). Oxum e a comunidade representada pelas mulheres.

10) Transformação graças à misericórdia da divindade Ifá, por quem havia sido antes castigado devido ao gesto de desobediência. A dança de Ossanhe4, dono das folias, e a transfiguração de Odé.

11) Ressurreição de Odé como orixá, sete anos mais tarde, passando a chamar-se Oxosse5. Dança solística, com flautista como verdadeiro rei das florestas, do mato e do Queto6. Toda a dança mostra a sua posição elevada e transformada através dos gestos mais refinados e alongados. Um com portamento mais divino e menos humano: mudança de ritmos e acentuação; movimentos deslizantes, flutuantes, mais na linguagem contemporânea do que antes, para provocar no espectador o sentido etéreo de levar à transfiguração.

12) Epílogo: “festa no terreiro”: a presença do orixá da casa — Oxosse — dançando e carregando ofá (arco e flecha) nas cores azul claro e verde, chapéu de couro, penas e uma capanga, e a festa geral que celebra a sua manifestação como divindade entre os homens.

NOTAS

1. Oxumaré. É o arco-íris, o orixá dos jejes, a cobra, cujo símbolo é uma serprente de ferro. No sincretismo afro-católico, é S. Bartolomeu. Segundo a lenda, foi o encarregado de transportar água do mar para o palácio de fogo de xangô. Há quem o diga macho e fêmea ao mesmo tempo.

2. Oxum. É a deusa do dengue, da elegância, do fausto, da riqueza, da formosura, do charme — charmosa como ela só. Deusa do rio, Oxum foi a segunda mulher de Xangô, faceira, vaidosa, sabida. Enganou Obá, sua rival no leito do marido, levando-a a cortar a própria orelha. Antes de sei mulher de Xangô, foi de Oxosse.

3. Ifá. Ou Orumilá, é o deus da adivinhação. Suas vestes são brancas e ele usa o opelê (colar) para responder às perguntas no jogo das adivinhas. Leva sempre consigo um saco contendo cocos de dendê.

4. Ossanhe. É o deus das ervas. Comanda as folhas, as medicinais, as litúrgicas — é o mestre do mato. Sem ele nenhuma cerimônia é possível.

5. Oxosse. Rei do Queto, é São Jorge matando o dragão. Deus da caça, das úmidas florestas, com o ofá (arco e flexa), abate os javalis, as feras é o invencível caçador. Rei Oxosse, Senhor do Queto, rodeado de animais, usa capanga e chapéu de couro.

6 Queto. Cidade do Benim (ex-Daomé), de onde veio grande contingente de negros para a Bahia. (Segundo Caribé).

Fotos de Laís Góes, Rivaldo G. Leite, Darlan Rosa e Sílvio Robato

Ninho de cobra

Bote de cobra armadeira
No meio da palha da cana
A dentada perigosa
É bote de caninana

Cascavel faz seu barulho
No meio do bambuzal
Colorida no caminho
Lá se vai cobra coral

Lá vem a surucucu
Rastejando mais adiante
Cuidado, amigo meu
A dentada é fulminante

A jiboia se enrosca
Em volta de sua presa
Apertando num abraço
Contra qual não tem defesa

Muçurana caça de noite
Sem veneno ela extermina
Come cobra peçonhenta
Então cuidado com a menina

Cobra-d’água é ligeira
Pega peixe sem errar
A mordida é certeira
Não deixa um escapar

Entre folhas e gravetos
Cobra-cipó se esconde
Quando solta a bocada
Você não sabe de onde

Falsa-coral engana a todos
Nela ninguém pisa em cima
É a cobra mandingueira
Imitando sua prima

Camaradinha…

Olha a cobra, acauã
Ê, cauã!
Olha a cobra, acauã
Ê cauã!

OS VELHOS CAPOEIRAS ENSINAM PEGANDO NA MÃO


por PEDRO RODOLPHO JUNGERS ABIB

Doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e capoeirista-discípulo do Mestre João Pequeno de Pastinha.

RESUMO: Esse artigo trata de analisar as formas tradicionais de
transmissão dos saberes presentes no âmbito da cultura popular. A partir dessa abordagem, trazemos as experiências educacionais existentes no universo da capoeira angola – uma importante manifestação da cultura afro-brasileira – para uma reflexão sobre o papel dos mestres nesse processo. A memória, a ancestralidade, a ritualidade e a temporalidade são categorias fundamentais para compreendermos as relações de educação presentes nesse universo.

Introdução

É objetivo desse texto analisar os processos educativos não-formais presentes na capoeira angola, no sentido de levantarmos alguns aspectos importantes desses processos. Estamos buscando, assim, inspiração nas formas tradicionais de ensinar-aprender utilizadas nesse universo, sobretudo a partir das influências marcantes da cultura afro-brasileira, que caracterizam decisivamente as manifestações da cultura popular, para refletirmos sobre os modelos de aprendizagem, baseados na transmissão oral da memória coletiva de um grupo social, função exercida pelos mais velhos que são os responsáveis por disponibilizar os saberes e as tradições daquele grupo social aos mais jovens. Através do reconhecimento sobre sua sabedoria e sua função social de guardiões das tradições, a comunidade atribui a eles o título de mestres.

Pretendemos, com isso, contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre as formas de educação presentes no universo da cultura popular, nas quais o mestre exerce papel fundamental, e de como essas experiências baseadas na tradição, na ancestralidade, no ritual, na memória coletiva, na solidariedade e num profundo respeito à sabedoria do mais velho, como principal responsável pela transmissão desses saberes às novas gerações, podem auxiliar num processo de construção de formas alternativas de se pensar a educação, sobretudo aquela voltada às camadas menos favorecidas da nossa sociedade. Estas são, em última instância, elas próprias as responsáveis por essas experiências ricas em conhecimentos e saberes que, normalmente, não são reconhecidos nem valorizados nos processos envolvendo a educação formal no Brasil.

Esse artigo é parte da pesquisa que originou a tese de doutorado em Ciências Sociais Aplicadas à Educação, defendida na Universidade Estadual de Campinas (unicamp), no ano de 2004, e valeu-se, além de pesquisa bibliográfica, também da metodologia da história oral, por meio de depoimentos colhidos junto a alguns dos mais importantes mestres de capoeira angola da Bahia.

Da roda de capoeira ao aprendizado da vida

Então eu ficava só olhando. Aí ele disse assim: “Ô meu filho venha cá! Você quer aprender?” Eu disse: Quero. Ele mandou abaixar. Quando eu abaixei, aí eu vi o pé… Eu pulei. Aí ele disse: “Ô meu filho, a partir de hoje eu vou lhe ensinar!”

Esse depoimento de Washington Bruno da Silva Filho, o Mestre Canjiquinha, retrata a forma como tradicionalmente se ensinava e se aprendia capoeira. O mais velho sempre estimulando, a partir de uma situação real, o interesse do mais novo. O mais velho, nesse caso, era o famoso capoeira conhecido por Aberrê, o primeiro mestre de Canjiquinha. Esse fato se deu em 1935, em Matatu Pequeno, no bairro de Brotas, cidade de São Salvador, no banheiro de Otaviano, onde havia uma quitanda em frente. Ali aconteciam as vadiagens de capoeira (Abreu, 2002).

Assim também foi despertado o interesse do mestre João Pequeno de Pastinha, segundo ele próprio relata em depoimento que nos concedeu, logo quando chegou a Salvador, vindo de Mata de São João, no interior da Bahia, onde já tinha tido algumas experiências com capoeira mas de forma ainda incipiente:

Naquele tempo, não tinha capoeira em espaço… a capoeira era na rua… aí eu não tinha arte, não tinha nada, eu fui trabalhar de servente de pedreiro… lá na rua Carlos Gomes. Eu trabalhava mais um camarada, na masseira, e ele chamava… o camarada chamava Cândido… e ele gostava de tomar umas pingas (risos)… quando o serviço tava lento, ele ia na rua, tomava umas pinga e vinha, batia palma, cantava, sapateava e dava pulo de capoeira… aí numa daquela que ele deu pulo de capoeira… eu entrei pra dar uma cabeçada e recebi uma joelhada por aqui (mostra o queixo). Aí ele me abraçou e disse: “olha, não se incomode não… vou lhe botar numa roda de capoeira (risos)”.

Naquele tempo, a capoeira se aprendia “de oitiva”, ou seja, sem método ou pedagogia. A oitiva constitui-se como um claro exemplo de como se dá a transmissão através da oralidade na capoeira, baseada na
experiência e na observação. A oitiva era um processo diversificado e culturalmente muito rico, segundo Abreu (1999). O processo, na maior parte das vezes, dava-se na própria roda, sem a interrupção do seu curso.

O mestre geralmente pegava nas mãos do aluno para “dar uma volta” com ele, dar os primeiros passos. Diferentemente de hoje em dia, quando é mais freqüente se iniciar o aprendizado através de séries repetitivas de golpes e movimentos. Antigamente o lance inicial poderia surgir de uma situação inesperada, própria do jogo: um balão boca-de-calça, por exemplo. A partir dele se desdobravam outras situações inerentes ao jogo, que o aprendiz vivenciava orientado pelos ‘toques’ e conselhos do mestre. (Abreu, 1999, p. 20)

A roda pode ser considerada, então, conforme Abreu, como um rito de passagem que se incorporava ao processo de aprendizagem, como seu momento mais rico, aberto às influências e inventividades, quando o aluno, através dos toques e dicas do mestre que acompanhava atento o seu desenvolvimento, dos conselhos de outros camaradas da roda ou por si próprio, ia descobrindo as articulações, truques e manhas do jogo. A partir de então, ele começava a moldar o seu jeito de jogar. E começava a aprender algo mais sobre a vida.

Às vezes, esse aprendizado se dava também individualmente, nos quintais e terreiros das casas, onde a proximidade entre o mestre e o aprendiz era um fator essencial. Muitas vezes, como lembra o mestre Moraes – coordenador do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, em Salvador – em seu depoimento, o aprendiz de capoeira era também aprendiz de ofício do seu mestre de capoeira, que podia ser um marceneiro, um sapateiro ou um artesão, profissões comuns entre os mestres de capoeira de antigamente. Moravam no mesmo bairro e tinham, geralmente, a mesma situação econômica, pois eram oriundos da mesma classe social. A convivência entre mestre e aprendiz era então um fator que auxiliava muito o processo de aprendizagem da capoeira.

Essa forma de ensinar e aprender guarda muito daquilo que poderíamos chamar de “pedagogia do africano”, segundo expressão muito utilizada no âmbito da capoeira angola, que até hoje notamos nos mestres mais tradicionais, como João Pequeno, João Grande ou Curió, por exemplo, todos eles herdeiros do legendário mestre Pastinha, a maior referência da capoeira angola da Bahia.

Guardamos vivas, ainda na memória, lembranças das primeiras aulas no Forte Santo Antonio, há cerca de uma década, em que aprendíamos os primeiros movimentos da capoeira angola pelas mãos de João Pequeno. A sensação de acolhimento ao sentirmos o toque das mãos daquele ancião, então beirando os oitenta anos, que, com todo carinho e delicadeza, conduzia nossos movimentos de braços e pernas pelo caminho sinuoso da capoeira angola, era uma sensação que talvez jamais esqueçamos. Nesses dez anos de convivência com a capoeira angola do mestre João Pequeno, em sua academia localizada no Forte Santo Antonio em Salvador, somos nós próprios testemunhas desse processo de aprendizagem em que o mestre, o ancião, é figura principal e digna de respeito e admiração por parte dos aprendizes.

Segundo o mestre Moraes, em seu depoimento, o toque, na “pedagogia do africano”, é fundamental.

“Ele toca o aluno para passar o sentimento… ele não toca unicamente para consertar o movimento… ele passa muito mais a vontade de ver o aluno aprendendo, do que ensinar o movimento correto”.

Essa forma tradicional de ensinar passa pela proximidade que deve existir entre o mestre e o aprendiz. Uma proximidade corporal em que o afeto, a atenção e a disponibilidade do mestre mostram-se integralmente.

O mestre Cobra Mansa, outro estudioso das tradições africanasafirma, em seu depoimento, que o mestre tradicional verbaliza muito menos do que toca o seu aluno, e demonstra com seus próprios movimentos o que ele pretende ensinar. Segundo Cobra Mansa:

O mais importante nessa tradição é o hálito, é o que você tá passando… a sua alma que você tá transmitindo [faz o gesto como se estivesse passando a alma através da boca]. Então você não está transmitindo simplesmente a sua palavra, mas o hálito… a alma… então, quando você recebe aquilovocê tá recebendo uma tradição de muitos e muitos antepassados, porque alguém já me passou isso… agora eu tô passando pra você, você vai internalizar, e depois vai poder passar a mesma coisa para o outro, então é muito mais do que você pegar o livro e ler… tem uma alma ali, tem um gesto, um olhar, tem uma forma (…) tudo isso fica marcado, porque é legal você ler um livro, mas a emoção de alguém estar te contando uma coisa, te passando alguma coisa, tem todo um gesto, um brilho nos olhos, que você sente uma alma sendo passada para você.

Podemos afirmar que é essa a essência da oralidade, como uma forma de transmissão dos saberes e da cultura de um povo. O universo mítico que envolve a capoeira através da ancestralidade possibilita, segundo Luís Vítor Castro Jr. (2003, p. 9)

(…) um caminho de comunicação vibrante que envolve seus personagens num campo fértil de produção de saberes, e que explica os fenômenos existentes. Os saberes revelam uma força de criação e recriação ordinária do passado em constante comunhão com o presente. Através de uma dimensão estética de educação baseada na descoberta, acontece um sistema de comunicação motora, simbólica e oral.

Mestres e poetas: o sentido de se transmitir algo importante

Na cultura popular, em geral, há sempre uma figura fundamental, responsável pelos processos envolvendo a memória coletiva: a figura do mestre. Os mestres exercem um papel central na preservação e transmissão dos saberes que organizam a vida social no âmbito da cultura popular, caracterizando, assim, a oralidade como forma privilegiada dessa transmissão. Recorremos à tradição grega para melhor argumentarmos sobre a função do mestre na cultura popular.

Na tradição grega, buscamos em Platão a idéia de que memória e conhecimento estão intimamente ligados, pois para esse filósofo conhecer é reconhecer, é rememorar. O conhecimento, no entanto, exige a purificação da paciência. Alfredo Bosi (1987) descreve uma passagem de uma alegoria construída por Platão, na qual as lembranças remontam a épocas distantes, a um momento em que a alma pudera contemplar as verdades ideais e eternas:

Os deuses, cruéis em sua sabedoria, exigiam um sacrifício: as almas deveriam esperar um tanto para que esse desejo se interiorizasse e se espiritualizasse dentro delas, pois entre um e outro ocorreria o tempo necessário à memória. A água oferecida pelos deuses era tirada do rio Lethe, rio do esquecimento. Se as almas, arrastadas pela sede do desejo sem freio, bebessem a água do Lethe, sem a pausa do sacrifício, ao invés de aprender, cairiam na letargia, que é um estado de sonolência, de embrutecimento, de inconsciência. Voltariam aos seus instintos brutos e, saciadas e entorpecidas muito rapidamente, seriam incapazes de dar o salto que leva ao conhecimento através da memória. Mas aquelas almas que esperassem e não tragassem sôfregas a água do Lethe alcançariam o não-esquecimento, o des-ocultamento, a a-letheia, a alethéia. Quem sofreia o desejo que, saciado, leva ao entorpecimento, consegue chegar à verdade, que é lembrança pura, memória libertadora. (Bosi, 1987, p. 53)

O poder de presentificação e invocação da musa da memória (Mnemosyne) cabem, segundo Marcel Detienne (1989), à palavra cantada do poeta. Para o grego, a poesia tem o sentido de produção (poiesis): é a ação de trazer à presença algo que se mostrava oculto. A palavra do poeta é assim a palavra que, ao ser pronunciada, desvela aquilo que se mantinha encoberto, oculto (lethé), trazendo à tona a verdade (alethéia)instaurando e mantendo uma compreensão de mundo, em que todo um universo de significados se articula. Por isso, o momento de pronunciamento da palavra mítica se converte num acontecimento mágico-religioso que deve ser presidido por uma divindade. A divindade da memória (Mnemosyne) é que deverá ganhar voz no canto do poeta. O poeta é intermediário, meio por onde se pronunciará – e neste pronunciamento será evocado uma re-memoração conjunta, numa comemoração – o feito dos deuses e dos homens. O canto do poeta deverá rememorar o passado no presente, de modo que o grego possa decidir-se sobre sua ação futura. Memória e poesia se encontram no jogo de criação do mundo.

Jogo do tempo: do que é, do que foi e do que será, que ao se mostrar no canto do poeta, instaura uma época histórica. A figura do poeta exercia na polis a função política de manter viva a memória, de ser o guardião da ancestralidade de um povo – já que a Grécia arcaica se caracterizava por ser uma cultura ágrafa – e de ser aquele que traz a verdade (alethéia), pois era o intermediário entre os homens e os deuses. Ao evocar a figura do poeta, no pensamento grego, estamos aqui buscando traçar um paralelo na cultura popular, trazendo a figura do mestre como uma figura muito importante que exerce a função de ser portador e guardião da memória e da tradição do seu povo, função análoga à exercida pelo poeta na Grécia antiga.

Essa figura é fundamental no seio de uma cultura na qual a transmissão do saber passa pela via da oralidade e, por isso, depende desses guardiões da memória coletiva para que esta seja preservada e oferecida às novas gerações. O mestre é aquele que é reconhecido por sua comunidade, como o detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e heroísmo das gerações passadas, e tem a missão quase religiosa de disponibilizar esse saber àqueles que a ele recorrem. O mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de seu povo e assume, por essa razão, a função do poeta queatravés do seu canto, é capaz de restituir esse passado como força instauradora, que irrompe para dignificar o presente e conduzir a ação construtiva do futuro.

Poetas e mestres, mestres e poetas, capazes de desvendar, rememorar, anunciar, revestidos pela dignidade daqueles que conhecem e dão a conhecer. Ou, nas palavras de Michel Foucault (1995, p. 64)(…) o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersadas. Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas.

Para Raul Iturra (1990), o saber oral, ao ficar consignado a gestospalavras e interpretação de instrumentos e natureza, é um saber não só personalizado, como emotivo: a autoridade da palavra provém do convencimento de quem faz. Sabe, porque consegue fazer. O mestre dispõe dessa autoridade perante sua comunidade porque, antes de qualquer coisa, sabe fazer.

O mestre tem profunda ligação com a própria palavra tradição que vem do latim: traditio. O verbo é tradere e significa precipuamente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou de passar de uma geração a outra geração. O verbo tradere tem relação também com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, através da tradiçãoalgo é dito e o dito é entregue de geração a geração. A tradição, para Nietzsche (1983), é a afirmação de que a lei tem vigência desde tempos imemoriais, e pô-la em dúvida constitui impiedade contra os antepassados. O mestre é aquele que permite que os saberes transmitidos pelos antepassados vivam e sejam dignificados na memória coletiva.

A capoeira angola nos traz exemplos belíssimos de como os saberes são transmitidos pacientemente pelo mestre, a exemplo do mestre João Pequeno de Pastinha, que na sua forma de ensinar revela um profundo sentimento de amor para com seus alunos – ou discípulos –, traduzido pelo respeito ao “tempo de aprender” de cada um, pela forma como toca corporalmente seus alunos para ensinar os movimentos, herança de uma pedagogia africana, baseada na proximidade entre o mestre e o aprendiz, onde até o hálito de quem ensina deve ser transmitido para aquele que aprendecomo um meio por onde a tradição é repassada.

As músicas e ladainhas presentes no universo da capoeira são também elementos importantíssimos no processo de transmissão dos saberes, pois é através delas que se cultuam os antepassados, seus feitos heróicos, seus exemplos de conduta, fatos históricos e lugares importantes para o imaginário dos capoeiras, o passado de dor e sofrimento dos tempos da escravidão, as estratégias e astúcias presentes nesse universo, assim como também as mensagens.

O mestre de capoeira é também o mestre de muitas das manifestações de nossa cultura popular, também é aquele que sabe ocultar determinados conhecimentos considerados “essenciais” dentro da tradição por ele representada. São saberes ou conhecimentos que não podem ser disponibilizados a qualquer pessoa ou em qualquer momento, mas necessitam, para serem transmitidos, de uma certa preparação por parte da pessoa interessada, que inclui muitas vezes uma “iniciação” que faz parte da ritualidade característica daquele grupo.

“O mestre reserva segredos, mais (sic) não nega explicação”, diz mestre Pastinha em seus manuscritos, conforme Ângelo Decânio (1996).

Conhecido no meio da capoeira como “pulo do gato”, esse conhecimento só é disponibilizado àqueles que demonstram amadurecimento e compromisso suficientes para poderem utilizá-lo em benefício da própria preservação da tradição. Essas estratégias são importantes no sentido de manter certa coesão em torno desses saberes e tradições, fundamentais em relação ao sentimento de pertencimento identitário e de transmissão da memória coletiva do grupo, que se constitui a partir dessas práticas.

Pastinha utilizava freqüentemente em seus escritos o termo “mestrar”, referindo-se ao ato de ensinar e transmitir os conhecimentos referentes à tradição da capoeira angola. Tradicionalmente, como diz Muniz Sodré (2002), o mestre não ensinava o seu discípulo, pelo menos no sentido que a pedagogia ocidental nos habituou a entender o verbo ensinar. Ou seja, o mestre não verbalizava, nem conceituava o seu conhecimento para transmiti-lo metodicamente ao aluno. “Ele criava as condições de aprendizagem formando a roda de capoeira e assistindo a ela. Era um processo sem qualquer intelectualização, como no zen, em que se buscava um reflexo corporal comandado não pelo cérebro, mas por alguma coisa resultante da sua integração com o corpo” (Sodré, 2002, p. 38).

Mestre Pastinha dizia, aos 92 anos de idade, pouco antes de morrer: “eu ainda tô aprendendo capoeira…”. Essa paciência em deixar o tempo agir como escultor das qualidades de um bom capoeira ainda pode ser encontrada em alguns poucos grupos de capoeira angola, diferentemente da maioria dos grupos de capoeira regional, onde, em boa parte a própria função de mestre tem se banalizado, pois é cada vez mais freqüente encontrarmos jovens capoeiras, na faixa de seus vinte ou trinta anos, se auto-intitulando mestres, com pouca experiência de vida e de capoeira, sem a mínima noção do que essa titulação – o “ser mestre” – significa.

Isso se dá em função de interesses em relação ao mercado consumidor de cultura que cresce a cada dia, no qual se inclui a capoeira e no qual o título de mestre é uma garantia de obtenção de espaços nesse concorrido “shopping cultural da modernidade”. A capoeira angola também não está livre dessa influência, porém nota-se certa preocupação, talvez um pouco maior do que na capoeira regional, com esse tempo de chegar a ser mestre, embora já tenhamos muitos exemplos também no universo da capoeira angola que contradizem essa nossa análise.

Diz uma cantiga de capoeira que “só o tempo te faz mestre, não o diploma que comprou”, e isso implica que o mestre de capoeira seja alguém que possua, além da capacidade e habilidade na prática do jogo muita experiência de vida. O reconhecimento como mestre (tanto na capoeira, quanto na cultura popular em geral) se dá então naturalmente por parte da comunidade da qual ele faz parte, por entender que foram preenchidos os atributos exigidos para tal função. O título de mestre só tem legitimidade quando atribuído pelo grupo social ao qual representa que, em última instância, é quem delega autoridade às suas lideranças.

O soba na cultura bantu, segundo Antonio Miguel André (2003) é a denominação da função exercida pelo velho, aquele que detém a memória e o conhecimento sobre os costumes, a língua e a história de sua comunidade, exercendo a liderança desse grupo social e decidindo sobre questões referentes à justiça entre seus pares. Ele só se reveste desse poder e dessa autoridade justamente por ser velho e, portanto, ter adquirido a experiência necessária para exercer tal função. A função de mestre na capoeira angola deve, ou deveria ser pautada por esses mesmos princípios, já que ser mestre resulta do aprendizado, experiência e observação de toda uma vida.

Assim, o mestre, na cultura popular em geral, adquire esse reconhecimento por ter se notabilizado perante sua comunidade, em razão de sua capacidade de ser um elo transmissor dos saberes de seus antepassados. Esse processo, na cultura bantu, reveste-se de importância capital, pois essa cultura põe em estreita relação os antepassados e seus descendentes, convencidos estes de que não continuariam a existir no presente e não poderiam perpetuar sua linhagem sem a proteção dos antepassados. Devem, pois, segundo Kagame (1975), voltar-se para seus antepassados para se certificarem da intervenção tutelar que esperam deles, mas isso não significa de modo algum que eles não se orientam para os tempos que virão, pois o fim último do homem, em seu sistema filosófico, é a perpetuação da linhagem. Eles se voltam, pois, para o passado, a fim de garantirem seu futuro individual e o futuro de sua descendência.

O culto aos antepassados que se manifesta na capoeira angola, influência direta da concepção bantu de tempo – que não é linear, mas sim circular –, nota-se com muita ênfase através dos cantos e ladainhas em que os ancestrais da capoeira são sempre lembrados e mesmo através da forma como esses antepassados são reverenciados, seja nos discursos dos mestres e alunos, seja na presença de fotografias, imagens e pinturas desses antepassados presentes de forma solene nas paredes dos locais onde acontecem as aulas e rodas de capoeira angola; seja ainda na forma pela qual a maioria dos angoleiros faz questão de se referir à sua “linhagem” – a árvore genealógica da capoeira –, como prova de pertencimento à tradição herdada de determinado mestre considerado importante nesse universo.

A capoeira angola, ao buscar constantemente os vínculos com essa ancestralidade africana, e também com a ancestralidade que tem como referência os tempos de escravidão no Brasil e, posteriormente, os tempos remotos da capoeira de rua, das desordens e vadiagens, procura estabelecer o elo entre o seu passado ancestral, o seu presente constituído e o seu futuro enquanto possibilidade concreta de afirmação social, cultural e política. Manifesta-se, assim, principalmente a partir do ritual da roda, a noção de circularidade do tempo na capoeira angola, e os processos de aprendizagem presentes em seu universo acabam por serem também, em certa medida, influenciados por essa concepção de tempo.

Considerações finais

Buscamos, neste texto, uma aproximação com as formas tradicionais de transmissão dos saberes pertinentes a grupos sociais geralmente excluídos, considerados atrasados e rudimentares, assim como é vista a maior parte das manifestações tradicionais populares por certos setores da intelectualidade acadêmica. Nossa percepção é outra. Pela beleza em que se constroem as relações de pertencimento, o sentido de identidade, o respeito pela tradição e pelos antepassados, e pela simplicidade e alegria com que se celebra a vida, entendemos que a cultura popular nos tem muito a ensinar.

O campo das ciências sociais muito tem discutido atualmente sobre a necessidade de se validar os saberes oriundos da tradição popular, da experiência e do cotidiano. Os saberes, qualquer que seja sua origem – popular ou acadêmico-científica –, devem ser valorizados sem hierarquizações preconceitos ou discriminações. É preciso uma racionalidade mais ampliada, que possibilite validar esses saberes que, segundo Boaventura Souza Santos (2002), foram “produzidos para não existirem, violentados e ocultados por uma racionalidade estreita, perversa, e profundamente preconceituosa”.

Nesse sentido, entendemos ser fundamental o debate acerca da memória, da ancestralidade, da oralidade e da ritualidade, sobretudo quando se trata de grupos sociais que lutam para preservar sua cultura e suas tradições, e do papel que exercem os processos educacionais nesses contextos, onde as formas de transmissão dos saberes podem nos permitir uma profunda reflexão sobre as possibilidades de pensar novos caminhos para a educação formal em nosso país.

O século XXI aponta para avanços importantes no sentido de aceitação de diferenças, de luta contra o preconceito e a discriminação, do direito à igualdade de oportunidades e de políticas públicas de inclusão social. O campo da educação formal, principalmente, precisa refletir de forma profunda sobre suas práticas, no sentido de poder acolher as ricas experiências educacionais provenientes da cultura popular, representadas pelas formas tradicionais de transmissão dos saberes de uma comunidade. Nesse sentido, a capoeira e os mestres têm muito a ensinar.

Recebido em setembro de 2005 e aprovado em março de 2006.

Referências bibliográficas

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A IMPORTÂNCIA DO TRANSE CAPOEIRANO NO JOGO DE CAPOEIRA DA BAHIA

por A. A. Decanio Filho

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Há muitos anos, cerca de 40, venho comparando o comportamento dos capoeiristas durante o jogo de capoeira da Bahia e suas atividades habituais.

O convívio com os praticantes das artes marciais orientais, do espiritismo, do candomblé; o estudo do hipnotismo, do ioga, da parapsicologia, da fisiopatologia do sono, dos estados modificados de consciência e a prática da meditação nos permitiram analisar o comportamento e o potencial do ser humano em diversas estágios de consciência.

Os registros históricos, científicos e religiosos de condições de bilocação, teletransporte, telecinesia, materializações e desmaterializações, bem como os estudos de física subatômica, nos vem atraindo a atenção para o efeito dos sons e dos ritmos sonoros sobre os níveis e estados de consciência, bem como a correspondência entre os mesmos e as manifestações motora e comportamentais daqueles sob a sua influência.

É notória a influência da música sobre o estado de humor das pessoas, basta lembrar a tristeza do toque de silêncio, a ternura da Ave-Maria, a agitação do Olodum e dos trios elétricos, os movimentos suaves do balé no “Lago do Cisne”.

É evidente que os movimentos induzido pelo “reagge” são diferentes daqueles do samba, da valsa, do cancã ou do foxblue.

Sem falar da marcha forçada sob o rufar dos tambores; da tranqüilidade do silêncio; da irritação pelos ruídos; do pânico ao bramir dos elefantes, do rugir do tigre, do estrondo das trovoadas; da sensação de bem estar e conforto trazida pelo ruflar da brisa suave na folhas…

A cultura africana encontramos o uso de música, ritmo e cânticos como gerenciadores, coordenadores, estimuladores de atividades comunitárias como pesca, caça, plantio, etc.

O candomblé oferece-nos uma variedade de toques de atabaques, com diversos ritmos e andamentos, capazes de desencadearem manifestações motoras padronizadas sob categorias de orixás.

É conveniente estudar as associações de toques, ritmos e andamentos com os padrões de comportamentos dos orixás e personalidades dos “filhos de santo” para melhor entendermos a influência dos toques, ritmos e andamentos nos desenvolvimento do jogo de capoeira, consoante a variedade de temperamentos e personalidades dos capoeiristas.

O exame das fotografias de Pierre Fatumbi Verger, de cenas de candomblé colhidas na África, documenta a identidade daqueles movimentos durante o transe dos orixás, que manifestam a atividade gerada pelos toques e ritmos musicais do candomblé e destes da capoeira.

É conveniente lembrar a associação dos estados de humor com as expressões faciais e posturas do corpo para compreendermos melhor as repercussões das modificações de estado de consciência e as manifestações motoras conseqüentes.

Todos reconhecemos os ombros caídos do desânimo, o olhar de tristeza, a vivacidade dos movimentos de alegria, a expressão corporal do animal prestes a atacar, etc.

Quantos outros quadros poderíamos citar? 2 Portanto, se a música pode alterar o estado de ânimo e as suas manifestações motoras estáticas e dinâmicas, forçosamente teremos que concluir que o andamento, ritmo, palmas e cantos também modificam o comportamento dos capoeiristas durante o jogo.

INFLUÊNCIA DO ARQUÉTIPO COMPORTAMENTAL

Ante um mesmo toque, ritmo e andamento, os diversos arquétipos manifestam sua identidade de modo particular, especifico para cada entidade comportamental (com nuanças especiais, intrínsecas a cada ser e cada momento histórico) de modo que o comportamento é praticamente imprevisível a cada instante, porém com um fluxo natural, espontâneo, ingênito, inato… instintivo como dizia Bimba.

Assim é o próprio Bimba conhecia o fato e afirmava “é o jeitcho dêle”, permitindo que cada um jogasse capoeira com suas características pessoais.

Fato muito notório em certos capoeiristas de movimentos muito lentos, porém dotados de grande mobilidade articular e elasticidade, como Prof.

Hélio Ramos, “Cascavel,” Eziquiel “Jiquié”, “Caveirinha”, entre tantos.

Assim é que “Atenilo” (jocosamente conhecido como “Relâmpago”) um dos mais antigos dos alunos do Mestre, jamais modificou seu estilo tardo, lerdo, ingênuo, de praticar a capoeira.

Entretanto, ainda hoje não consigo reconhecer ou identificar os vários arquétipos de capoeiristas, mas posso perceber de modo vago, as semelhanças que se repetem independentemente de mestres, momento histórico e localização geográfica.

Assim é que venho detectando similitude do que chamamos de “jogo” (estilo pessoal, jeito particular de jogar) em alunos de diferentes mestres e em regiões diferentes, i.e., encontrando “jogos” parecidos com alguns dos companheiros de meus tempos antigos em locais diversos, como em Natal/RN, Goiânia/GO, etc.

Fato mais surpreendente foi ver, recentemente, na Academia de Mestre João Pequeno de Pastinha, aparecer um rapaz, cujo nome e mestre não consegui identificar, cerca de 17 anos, negro, alto, longilíneo; pescoço fino, elástico e forte; com um jogo incrivelmente semelhante ao do meu Mestre (Bimba), a ponto de me sugerir a sua reincarnação.

TOQUES PACÍFICOS E TOQUES DE GUERRA

Os vários toques, ritmos, andamentos e cânticos de candomblé associam-se a modificações de estados de consciência (transe de orixás) específicos de cada arquétipo.

Sendo o estado de transe provocado pela adequação, sinergia, sintonia, harmonia, da música com o arquétipo (sensibilidade do ente sob seu campo energético ou vibratório).

Assim é que uma pessoa, sujeita aos diversos tipos de vibrações orfeônicas em campo sonoro desta natureza, poderá permanecer indiferente a vários padrões orfeônicos ou exteriorizar sua sensibilidade por manifestações motoras ou psicológicas em algum momento ou padrão, com o qual seu arquétipo se harmonize.

Consoante o tipo sonoro, pacífico, belicoso, calmo, agitado, lento, vivo, moderado, rápido, a entidade em sinergia manifestará sua sintonia por movimentos calmos, majestosos, vivos, violentos, guerreiros, etc.

Dentre os toques calmos destaca-se o ijexá, pela paz, alegria, felicidade e requebro a que se associa, razão pela qual permite os movimentos do samba de roda, do afoxé, batuque e capoeira.

A importância atribuída pelo nosso Mestre ao toque era tal que o compelia a usar apenas a musica do berimbau (tocado pelo próprio), sem pandeiro, para que os 3 aprendizes fixassem o ritmo-melodia em toda sua plenitude.

A exclusão de todo e qualquer outro instrumento que não berimbau e pandeiro da orquestra também decorria desta premissa.

Freqüentemente, quando os alunos jogavam com muito açodamento e velocidade durante um toque de “banguela” o Mestre resmungava: “Tô disperdiçandu minha banguela! “Só merecem mesmu a cavalaria!” E… “virava” para o toque mais duro e bruto da “regional”… impiedosamente mais adequado para os embrutecidos… insensíveis e afobados.

O CAMPO ENERGÉTICO DA ORQUESTRA, CANTO, PALMAS E JOGO

O capoeirista, como todos os demais participantes duma roda de capoeira, está encerrado num campo energético, com o qual interage e portanto sujeito a todos os seus fatores em atividade Reflete, portanto, não só seu estado pessoal, porém aquele do complexo energético da roda, sofrendo a influência de todo o conjunto.

Toda a excitação ambiental envolve os jogadores e transtorna a condução do espetáculo, o qual poderá evoluir para um circo romano em toda sua barbárie.

Razão pela qual, a assistência do jogo da capoeira, antigamente, nas festas de largo, assistia silenciosa e respeitadora, como numa cerimonia religiosa, o desenrolar do jogo de capoeira, procurando guardar os detalhes de cada um dos lances à procura da descoberta do mais habilidoso, elegante, malicioso, inteligente, destro dentre os participantes.

O silêncio e a paz ambiental propiciam a melhor percepção da mensagem orfeônica, o desenvolvimento do transe capoeirano e portanto, o desenrolar do jogo.

As palmas, introduzidas pelo Mestre Bimba para enfatizar a participação da assistência e esquentar o ritmo, alcançam atualmente intensidade tal, que não mais permitem ouvir o toque do berimbau e muitas vezes, sequer os cânticos, desnaturando a capoeira no seu ponto mais nobre, a musicalidade, fonte do transe, ponto capital do jogo.

O atabaque, formalmente condenado pelo Mestre Bimba, durante todo o tempo em que acompanhei a sua rota, foi introduzido pelo Mestre Pastinha e ulteriormente usado pelos grupos folclóricos, a partir de Camisa Roxa, Acordeom, Itapoan, etc. para enfatizar a “africanidade” original.

Tocado por quem de direito, suave e discretamente, como pelas orquestras de Mestre Pastinha e seus descendentes; conhecedores dos arcanos, fundamentos, segredos musicais africanos, marca o andamento e acompanha o toque do berimbau, instrumento-rei da capoeira, ao qual deve acompanhar e jamais suplantar, obscurecer.

Em mão desabilitadas, como ocorre na rodas da chamada regional atual, torna-se arauto de ritmo guerreiro e acarretam um transe violento, que vem matando, ferindo, lesando impiedosamente os seus praticantes, desde que provoca um transe agressivo, belicosos, guerreiro, desenfreado e deve portanto ser proscrito em nome da legitimidade da capoeira e da segurança dos seus praticantes.

O agogô e o gã, são excelentes marcadores de compasso, indispensáveis nas orquestras de candomblé, embora não aceitos pelo Bimba, talvez por terem sido 4 introduzidos por Pastinha, enriquecem as charangas dos seguidores do estilo de Mestre Pastinha e ajudam (e muito!) a manter a constância do andamento do toque.

O reco-reco, também introduzido pelo Mestre Pastinha, nos parece inócuo, sem maior expressão musical, dispensável, salvo para manter a tradição do estilo.

A viola, hoje em desuso, de ausência lamentada pelo Mestre Pastinha em seus manuscritos, também encontrada no samba de roda, nos indica a origem comum da capoeira e do samba, como indicamos em nossos escritos sobre a família musical áfrico-brasileira.

Opandeiro, com redução dos guizos com recomendado pelo Mestre Bimba, marca o compasso e mantém a constância do andamento quando em mãos habilitadas.

É comum no entanto que os mais afoitos (ou despreparados?) acelerem o ritmo ou se afastem do toque do berimbau, desde que não havendo treinamento adequado (ensaio) como fazem os descendentes de Mestre Pastinha ou responsável pela direção da orquestra ou charanga (fiscal no dizer de Mestre Pastinha) é comum alguém se apropriar indevidamente do manuseio deste instrumento.

Mestre Bimba dizia que “O pandeiro é o atabaque do capoeirista”.

Oberimbau é o instrumento-rei da capoeira, vez que somente o seu aparecimento na rodas de capoeira (antigamente citadas apenas como ” capoeira” pelo próprio Mestre Pastinha, algumas vezes referidas como “capoeira de Fulano de Tal”) é que marca o surgimento da capoeira como a reconhecemos atualmente, a capoeira da Bahia, seja o estilo “angola” seja o “regional”.

Torna-se portanto, indispensável ao bom desenvolvimento do jogo que seu toque predomine no ambiente, mantendo a uniformidade do ritmo e o entrosamento entre os parceiros duma “volta” ou “jogo”, sem o qual fatalmente existirão os desencontros e a violência.

TEXTOS CORRELATOS ESTADO DE CONSCIÊNCIA MODIFICADO (TRANSE CAPOEIRANO)

Sob a influência do campo energético desenvolvido pelo ritmo-melodia ijexá e pelo ritual da capoeira, o seu praticante alcança um estado modificado de consciência em que o SER se comporta como parte integrante do conjunto harmonioso em se encontra inserido naquele momento.

O capoeirista deixando de perceber a si mesmo como individualidade consciente, fusionando-se ao ambiente em que se desenvolve o jogo de capoeira.

Passando a agir como parte integrante do quadro ambiental em desenvolvimento.

Procedendo como se conhecesse ou apercebesse simultaneamente passado, presente e futuro (tudo que ocorreu, ocorre e ocorrerá a seguir) e se ajustando natural, insensível e instantaneamente ao processo atual.

BERIMBAU – A LIGAÇÃO ENTRE O MANIFESTO E O INVISÍVEL

O capoeirista para jogar capoeira não precisa de conhecer a história e a técnica da capoeira, por que o ritmo/melodia põe o ouvinte diretamente em sintonia com a “capoeira” abstrata, que abrange a fonte etérea dos movimentos, os paradigmas de jogos, os arquétipos de capoeiristas e talvez com a própria “tradição”.

Por este motivo, 5 poderemos aprender por ver, ouvir e dançar… como “Totônio de Maré” o fez no cais do porto de Salvador/BA.

“Itapoan” perguntou a “Maré” como aprendera capoeira e este respondeu: “Vendo os outros jogarem. Gostei, entrei na roda e joguei!” Conforme assisti em gravação VHS do acervo do Mestre Itapoan, em casa do mesmo.

E “Vovô Capoeira” fez o mesmo, aos 84 anos de idade, na roda de Mestre Canelão em Natal/RN.

Assim é que, aos poucos a conjugação da música com os movimentos relaxados vai orientando o capoeirista no caminho do transe que o conduzirá diretamente à fonte da capoeira, na face invisível da realidade, que não depende dos sentidos corpóreos.

COMPORTAMENTO HUMANO, VIBRAÇÃO SONORA E RITMO.

Em Ioga percebemos a importância dos mantras… os gregos antigos atribuíram ao Logos o poder de organizar o Caos… no Gênesis aprendemos a força do Verbo capaz de criar o Universo e a Vida… na África Antiga não foi diferente! Os africanos ao divinizarem os seus ancestrais e cultua-los com ritmos e toques diferentes vinculados ou representativos de seus comportamentos, descobriram categorias fundamentais subjacentes ao nível de consciência, independentes de culturas e religiões, os arquétipos humanos, que denominaram de orixás.

O “SER” exposto às vibrações sonoras ritmadas oriundas dos atabaques entra em harmonia com as mesmas e passa a manifestar em movimentos rituais a sua consonância.

Tudo se passa como se o conteúdo musical dos toques de candomblé fosse aprofundando o nível vibracional do sistema nervoso central, especialmente do cérebro (tido como sede da consciência) e alcançando os níveis correspondentes ao arquétipo individual.

Chegando a toldar a consciência e levando a um estado transicional em que o “SER” passa a manifestar, em movimentos rituais involuntários, atributos do arquétipo, através circuitos de reverberação medulo-espinhais como que gravados geneticamente na estrutura do seu sistema nervoso central.

Não é indispensável o conhecimento da doutrina e ritual do candomblé, bem como de componente genético africano para a sintonia com o ritmo do orixá correspondente, vez que já assistimos à chamada “incorporação” de entidades africanas em europeus em primeiro contacto com “exibição” de música de candomblé, portanto, fora do contexto religioso.

Durante o tempo em que funcionei como “apresentador” do “show folclórico” de Mestre Bimba observei que alguns assistentes entravam em consonância ou harmonia com um determinado toque, não se deixando influenciar por outros, o que atribuí à correspondência orgânica ao arquétipo daquela pessoa, ao modo de categoria de comportamento em nível subconsciente.

Na capoeira, o ritmo ijexá, especialmente tocado pelo berimbau, conduz o ser humano a um nível vibratório, dos sistemas neuro-endócrino e motor, capaz de manifestar, de modo espontâneo e natural, padrões de comportamento representativos da personalidade de cada Ser em toda sua plenitude neuro-psico-cultural, integrando componentes genéticos, anatômicos, fisiológicos, culturais e experiências vivenciadas anteriormente, quiçá inclusive no momento.

Todos os capoeiristas conhecem o transe capoeirano, embora nem todos disto se apercebam, um estado de extrema euforia, e de integração ou acoplamento a outra ou outras personalidades participantes do mesmo evento, conduzindo a execução de atos acima da capacidade considerada como “normal”.

Trata-se dum estado transitório, em que não há perda total de consciência, porém existe uma liberação de movimentos reflexos, exaltação do potencial e ampliação do campo de influência vital de cada “SER”.

É interessante registrar que em outros membros da “família cultural da capoeira” (samba de roda, maculelê, afoxé, frevo, entre outros) encontramos estados transicionais assemelhados, em que os personagens ultrapassam suas limitações “normais”.

De outro modo não assistiríamos a idosos desfilando em “escola de samba” ou saracoteando em frevo…

Assim cada capoeirista desenvolve um estilo pessoal, representativo do seu “EU”, manifestado de maneira imprevisível a cada jogo e a cada instante de cada jogo.

Consoante o arquétipo de cada praticante ou mestre, o momento histórico vivenciado, o contexto em que está se desenvolvendo, a capoeira pode assumir aspectos multifários, lúdicos, coreográficos, esportivos, competitivos, belicosos, educativos, corretivos, terapêuticos, etc.

Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, cada tocador de berimbau manifesta a sua personalidade na afinação do instrumento, ritmo, andamento musical, impostação vocal e conteúdo do cântico.

Razões semelhantes criam a identidade de cada roda, a multiplicidade de estilos e impõe a alegria e a liberdade de criação como fundamentos da capoeira.

Por ser a própria Liberdade e a Felicidade de cada “SER” a capoeira não cabe, não pode ser enclausurada, em regulamentos e conceitos estanques, nem prisioneira de interesses mesquinhos, comerciais ou de outra natureza.

A capoeira oferece um gama infinito de representações motoras , comportamentais e musicais; de aplicações terapêuticas, pedagógicas, marciais e esportivas; além do aperfeiçoamento físico, mental e comportamental de cada praticante.

Cada um de nós cria uma capoeira pessoal, transitória e mutável, evolutiva, processual, como todos os valores humanos e poderá ser imitada, jamais reproduzida em clones, como produto industrial de fôrma, idêntico em todos detalhes.

É interessante o estudo do simbolismo dos constituintes da personalidade humana na arte iorubana que indica no mínimo a noção de níveis de consciência, pois entre os povos iorubanos a consciência (personalidade exterior) é representada pela coroa (ile ori), enquanto a personalidade íntima (ori inu) correspondente ao (subconsciente+inconsciente) é simbolizado pelo ibori, uma pequena saliência no ponto mais alto da coroa.

Angelo A. Decanio Filho – Falando em capoeira, Coleção S. Salomão, CEPAC, Salvador/BA, pg: 51

Noite alta, madrugada

Noite alta, madrugada
Quando vai amanhecer
Capoeira se prepara
Pois tem muito o que fazer
Bater cabeça no tronco
Pede licença a Oxóssi
Mantem o pensamento forte
Pra na mata poder entrar
Ele vai apanhar biriba
Pra fazer seu berimbau
Ele vai apanhar biriba
Pra fazer seu berimbau
Ele vai apanhar biriba
Pra fazer seu berimbau

(autor desconhecido)


De angola

Na pancada do pandeiro
Na virada da viola
No raspar do reco-reco
Tem balanço de angola
As cantigas vão saindo
A língua nunca se enrola
Vai mansinho ou vai ligeiro
É acalanto de angola
O corpo segue mexendo
Parece feito de mola
Faz o que não imagina
É lambuzo de angola
Mas não se engane caranguejo
Cuidado siri-patola
Camarão bobo a onda leva
Na tarrafa de angola
Tem que ter discernimento
Precisa miolo na cachola
Ou escorrega no dendê
E na rasteira de angola
Enfrentando onda forte
Ou enfrentando marola
Pequeno derruba grande
Na mandinga de angola

“Raça branca”: uma invenção do século XVII

Transcrição:

Quando olhamos em volta e vemos hoje em nossa política um homem branco rico contando a pessoas brancas da classe trabalhadora que seu problema são as pessoas pretas e marrons, precisamos compreender o pedigree histórico de que isso é simbólico de todo a história da política racial e de classe na América.

A história dos brancos ricos dizendo à classe trabalhadora branca pobre que seu problema são os negros e pardos começou nos anos 1600. Até cerca de 1670 não havia tal coisa como “raça branca”, pelo menos não reconhecida como tal e chamada como tal.

Não é o que pessoas de ascendência européia não existissem. Quando eles estavam na Europa eles eram ingleses, eles eram irlandeses, eles eram escoceses. Fossem o que fossem eles não eram “brancos”. Só nas colônias nos tornamos “brancos” e por uma razão muito específica: porque naqueles primeiros anos do período colonial onde você tinha servos brancos contratados um nível acima dos escravizados e você tinha africanos escravizados e seus descendentes.

Nos primeiros anos das colônias essas pessoas frequentemente viam seus interesses como sendo comuns a todos eles, percebiam que eles estavam sendo f*didos pelos mesmos proprietários de terras – as mesmas elite contra as quais eles fermentaram várias rebeliões como a Rebelião de Bacon na Virgínia e outras.

Como resultado, a elite das colônias percebeu que tinha que descobrir uma maneira de trazer as pessoas de ascendência europeia para o seu lado, então criaram essa mentalidade que dizia que “você é agora um membro da raça branca e está no nosso time. Você está vestindo o nosso uniforme, mesmo que seja o último do banco de reserva e não possa nunca entrar no nosso jogo. Então começaram a colocar os agora chamados “brancos” em “patrulhas de escravos” – sem lhes dar qualquer qualquer terra ou qualquer poder real exceto o poder de controlar pessoas de cor.

É por isso que as pessoas de cor dizem, e estão certas nisso, de que o policiamento moderno remonta ao sistema de patrulhas de escravos e temos que ser claros sobre isso porque essa é a história, certo?

A branquitude foi criada para dividir e conquistar, para criar a noção de que mesmo embora você branco possa não ter muito, pelo menos você não é negro, pelo menos não é indígena, pelo menos você não é mexicano, pelo menos você não é chinês trabalhando nas ferrovias para construir a economia transcontinental. Você pode não ter muito, mas pelo menos você tem, como W. E. de Bois disse, o “salário psicológico da branquitude”.

É um truque que foi usado durante a era da Guerra Civil pelo meu povo no sul, gente rica, latifundiários do sul, para convencer brancos pobres que não possuíam nada de que eles tinham que sair e lutar para preservar a propriedade do homem rico – seres humanos.

Fascinante! Por que você faria isso? Por que eu iria lutar pela sua propriedade? Bem, porque você me disse que se eu não fizer isso, esses escravos vão tomar meu emprego. Não, seu idiota! Eles conseguiram o seu emprego! Se você cobra um dólar por dia para trabalhar, e se um dono de escravos pode fazê-los trabalhar de graça, adivinhe quem fica com o emprego? Não é você, com certeza!

Então na verdade o sistema de escravização apostava contra o interesse de classe de brancos da classe trabalhadora, mas eles conseguiram empurrar a idéia. Aconteceu a mesma coisa no movimento sindical branco. Aquelas pessoas não queriam pretos e pardos em seu sindicato porque isso “reduziria o profissionalismo do ofício”.

Não, seu idiota! Isso iria dobrar o tamanho do seu sindicato e depois quando você entrasse em greve os patrões não poderiam substituir o seu traseiro pelo mesmo povo pardo que você não queria ao lado! E o pior é quando você é substituído por eles, você os culpa – e não à elite!

Veja como isso funciona! É um truque que opera há centenas de anos. Está funcionando em algumas pessoas nesse instante, e é nosso trabalho resistir a isso com cada fibra do nosso ser.

Fim de samba

O samba acabou em choro. Depois do agogô deixar de ressoar, do pandeiro ser posto na parede, da viola ser guardada no saco, do couro do atabaque esfriar, vieram lágrimas. O samba acabou em choro, porque de há muito não havia outra forma de acabar. Há os sambas que acabam em gargalhada, nos quais o suor gruda na camisa e dos quais se sai com um sorriso que cabe um terreiro inteiro. Mas há também os que são sincopados demais, sambas de breque que vão brecando pela vida. Acelera, pára, acelera, pára. Um compasso se perde ali, a melodia azeda um tiquinho acolá. As lágrimas vão se formando nas solas dos pés, e à medida que se samba elas vão enchendo as canelas, coxas, cintura. Inundam o coração e finalmente vazam dos olhos. É um fim que se poderia ver de longe, se o sambista estivesse mais atento. E assim, quando o samba acaba, corre a água. O samba acabou em choro, mas foi um samba doce de se sambar. Escorregando e caindo, teve seu molejo. Deixa saudade no coração do sambador – saudade agridoce. Saudade do ponteado que se fez na viola, mas não daquela corda que se quebrou. Saudade daquele repicado que se fez no pandeiro, mas não do dia em que o pandeiro furou na beirada. O samba acabou em choro, e agora há um mar a se escoar por furinhos que mal cabem a corda mi do cavaco. O samba acabou em choro e agora é hora de limpar a mesa, arrumar as cadeiras, juntar os cacos da moringa. Desce o pano.

A estrada sempre segue

A estrada faz-se reta e faz-se curva. Corcoveia para cima, embarriga-se e ameaça jogar o motorista para fora. Vou devagar, vou depressa. Vou chutando pedras pelo caminho, vou correndo, vou deixando nacos de pele no chão quente, vou feliz como pinto no lixo, vou mais triste que cão sem dono. Mas vou, porque estrada é para se ir. A mão é uma só, não há retorno. Mas há desvios, e paradas obrigatórias, e quebra-molas e buracos. Não obstante, vou. Esperando que depois de alguma curva haja o pódio de chegada e o beijo da namorada. Mas ainda que não haja, ainda assim eu vou. Porque a pancada de hoje é a dor de amanhã, o hematoma da semana que vem, a cicatriz do próximo mês, a lembrança do próximo ano, a saudade da próxima década. O jeito é ir, porque não há tempo que volte.