Extraído/adaptado de um texto de Nestor Capoeira, publicado na Revista da Capoeira #03
Quando Alexandre Mello Moraes Filho, escritor que viveu há mais de cem anos no Rio de Janeiro, e que conheceu pessoalmente o terribilíssimo Manduca da Praia, publicou seu livro (Festas e Tradições Populares do Brasil (Rio: F. Briguiet e Cia, 1946)), eis o que ele contou:
Por volta de 1850, Manduca “iniciou sua carreira de rapaz destemido e valentão, agredindo touros bravos sobre os quais saltava, livrando-se”. Dotado de uma enorme força física e “destro como uma sombra”, Manduca cursou a escola de horário integral da malandragem e da valentia pelas ruas do Rio, na época de perigosos capoeiras como Mamede, Aleixo Açogueiro, Pedro Cobra, Bem-Te-Vi e Quebra Coco.
Desde cedo destacou-se no uso da navalha e do punhal; no manejo do Petrópolis – um comprido porrete de madeira de lei, companheiro inseparável dos valentões da época – na malícia da banda e da rasteira; e com o soco e a cabeçada e o rabo-de-arraia tinha uma intimidade a toda prova.
Manduca não era um “filósofo da capoeira” como, João Pequeno e João Grande; nem tampouco um representante do espírito da “malandragem alto astral” como Leopoldina. No entanto, tinha algo que o destacava e diferenciava de seus contemporâneos – facínoras, valentes e rufiões – fazendo que se tornasse uma lenda viva, e mais tarde um mito cantado e celebrado até os dias de hoje: uma inteligência fria, calculista e implacável; uma sede de poder, de status e de dinheiro, tudo isto aliado a uma visão de comerciante e de homem de negócios.
A capoeira do Rio, por volta de 1850, era muito diferente da que conhecemos hoje. A capoeira era perseguida pela polícia. Não havia academias. O jogo era quase que uma briga-de-rua, sem berimbau e sem floreio. Era a época em que as maltas de capoeiras, como a dos Gaiamus ou a dos Nagoas, aterrorizavam a população carioca.
Semelhante as gangues de nossos dias, as maltas daquela época dividiam a geografia da cidade em fatias e cada uma reinava absoluta na sua área. Manduca, no entanto, “não recebia influencias da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco”. Era capanga e guarda-costas de ilustres políticos.
“Nas eleições (do bairro) de São José, dava as cartas, pintava o diabo com as cédulas. Nos esfaqueamentos e nos sarrilhos próprios do momento, ninguém lhe disputava a competência”.
O Manduca “respondeu a 27 processos por ferimentos leves e graves, saindo absolvidos de todos eles pela sua influencia pessoal e de seus amigos”.
Manduca ficou mais célebre ainda com a chegada no Rio, do “deputado português Santana, que gostava de brigas, que não recuava diante de que quer que fosse, e que tendo notícia do Manduca, procurou-o. Encontrando-se os dois, houve desafio, acontecendo àquele (ao Santana) saltar nos ares ao primeiro camelo do nosso capoeirista, depois do que beberam champagne ambos, e continuaram amigos”.
Mas nem só de valentia e champagne; de mumunhas com políticos; de esfaqueamentos na época da das eleições vivia nosso personagem. Manduca, como dissemos, além da inteligência de predador tinha também o senso dos negócios. Valendo-se de seu prestígio e de seus conhecimentos nas altas esferas do poder, “montou uma banca de venda de peixe na praça do Mercado, era liso em seus negócios, ganhava bastante e tratava-se com regalo”.
Quando Mello Morais – o escritor – conheceu-o, há mais de cem anos, o Manduca já era um homem maduro. “Alto e reforçado, usava uma barba crescido em ponta, grisalha e cor de cobre…nunca dispensava o casaco grosso e comprido, e a grande corrente de ouro de que pendia o relógio…de olhos injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura tinha alguma coisa que infundia temor e confiança”.
O Manduca fez fama e dinheiro. Foi famoso, temido e respeitado. Foi feliz? Talvez só Besouro e Nascimento Grande ou o próprio Manduca pudesse responder a esta pergunta.
No meu Rio de Janeiro, se a memória não falha….