Ouvi falar de Ângelo Augusto Decanio Filho pela primeira vez em 1997, ao assistir o documentário “Pastinha – Uma vida pela capoeira”. Lá estava ele, sentado defronte ao computador e falando sobre como os dois capoeiristas se tornam um durante o jogo – o Transe Capoeirano.
Conheci o trabalho de Ângelo Augusto Decanio Filho no início de 2003, remando na internet atrás de boas fontes de informação sobre capoeira.
Clica daqui, clica dali, e esbarrei com o site “Capoeira da Bahia”. Fiquei ao mesmo tempo exultante e intrigado com a qualidade e a quantidade de material. Como tinha coisa boa de ler, e como diabos uma só pessoa poderia ter feito tudo aquilo ? Seria ele um “polvo humano” com 8 braços para digitar ?
Fui me embrenhando na leitura, e quando dei por mim, a tarde de trabalho já se tinha ido – mais um dia de labuta perdido para a vadiagem da capoeira. Naquela mesma noite, após sair da roda, revi o documentário sobre a vida do Mestre Pastinha – dando atenção especial ao discurso sobre o transe. Quem era aquele senhor, mestre capoeira, médico ?
Outro dia veio e se foi, horas escorridas dentro do “Capoeira da Bahia”. “A herança de Mestre Bimba”. “A herança de Mestre Pastinha”. “O Transe Capoeirano”. “Falando de capoeira”. Naquela mesma semana, enviei um email ao mestre perguntando se precisava de ajuda para organizar volume tão grande de dados. A resposta veio de bate-pronto: “Sim” – e minha vida começou a mudar.
Baixei o conteúdo inteiro do site, e gastei o horário de almoço do mês seguinte organizando e formatando, sugerindo e discutindo com o mestre o layout do site. Passamos a nos falar periodicamente por telefone, e em longas conversas eu aprendi que o trabalho bom é feito para os outros, sem esperar nada em troca. Nas palavras de Decanio, “Não se vê grãos de areia quando o cimento está pronto – faça bem a sua parte e não se preocupe com o reconhecimento”.
Naqueles dias, soube do tempo em que ele lecionara medicina gratuitamente, e senti vergonha por todos os vídeos que eu havia digitalizado e feito questão de por o meu nome. Rodas antigas, nas quais não joguei, não toquei, sequer estive presente – só tive o trabalho de transferir do videocassete para o computador e por na internet para quem quisesse ver. Sobravam boas intenções, mas faltava humildade.
Outra lição veio quando um amigo da Universidade de Indiana enviou para Decanio as gravações históricas de Mestre Bimba, escondidas num acervo americano de música folclórica desde a década de 1940. A iniciativa de difundir o material foi imediata (“que se cobre só a despesa com o envio, porquê quem trabalha de graça é relógio”), primeiramente pelos correios, depois pela própria internet. Nada se guarda, nada se leva.
Encontrei Ângelo Augusto Decanio Filho pessoalmente em novembro de 2003, quando embarquei para Salvador juntamente com minha esposa, para uma temporada de férias. E ali, na Vivenda Yemanjá, Praia de Tubarão, Paripe, vim realmente ver quem é e do que é feito o Mestre Decanio. A casa cheia de história, de conhecimento. A aparelhagem de ginástica nos fundos. O poste de cimento onde o mestre me fez praticar rasteiras, com o auxílio de uma câmara-de-ar. Os patins-de-mão, exercícios para todo o corpo.
E a biblioteca, abarrotada até o teto com livros, fitas de vídeo e discos. Compêndios de medicina. Volumes e mais volumes sobre informática. As obras completas de Pierre Verger, grande amigo do mestre. Literatura, romances, cordéis. Os manuscritos e um quadro do Mestre Pastinha, originais – que ele fez questão de digitalizar e difundir. Obras de Carybé, também grande amigo. LPs de capoeira, candomblé e umbanda. Facas de arremesso da aeronáutica. Ferramentas, equipamento militar. Computador com acesso à internet. Qualquer interessado em capoeira, em cultura afro-brasileira, em conhecimento humano, poderia se perder naquele espaço para sempre – ser tragado pelo montante de informação.
As prosas com o mestre renderam horas. O corpo fechado que escapou de tiros. Os treinos a portas fechadas, armados com cacetes de jenipapo, depois que o Mestre Bimba ia embora. O joelho arrebentado no treino de judô, a recuperação por meio de massagens. Os encontros com o sobrenatural – que para ele, Decanio, não saíam da esfera do natural. Psicomotricidade e erês; sistema nervoso central e eguns; física e metafísica – o mestre falava do mundo sólido e do que não se pode ver de uma maneira que assustava a mim, ignorante das coisas.
Ali, na cozinha de sua casa, a garrafa de Óleo Juventa para manter as juntas lisas; o aluá geladinho; o molho de pimenta para o café da manhã; lembranças do Mestre Waldemar; o caruru e as histórias de Dona Bena, relembrando os tempos do Mestre Bimba.
Nas saídas de Paripe para o Pelourinho, casos e mais casos sobre os pontos por onde passávamos. Alagados, Periperi, Cidade Alta, o centro histórico. “Nesse casarão, Pastinha deu aulas antes dos tempos da CECA”. “Essa igreja, no meu tempo de menino, tinha os entalhes escondidos por camadas de cal e tinta”. “Repare como a cultura branca tentou se afirmar no Terreiro de Jesus, circundando a praça de igrejas”. Aqui onde fica esse prédio, era um casario colonial”. “Aqui Caiçara tomou o quepe de um general gringo que visitava o Brasil”. Decanio tirava a casca do presente, deixando ver um passado vivo e colorido…
Quando dei meus primeiros passos na Cidade Baixa, um pombo me acertou uma bela rajada na testa. “Os pombos daqui reconhecem mineiro de longe”, riu o mestre.
Ainda no Pelourinho, as visitas e o encontro com outros mestres-capoeira. A academia do Mestre Nenel, onde Decanio me apresentou à “mulher-barbada”, receita legada por Bimba. A festa da Zumbimba, onde pude ver o próprio Decanio jogar capoeira com Boinha, cercado pela Turma de Bimba.
Jogo ladino, apertado – que macaco velho não põe a mão em cumbuca. A bela roda na ABCA, ouvindo Pelé da Bomba e seu vozeirão. A boa conversa com Bola Sete, Itapoan e Canelão. A meninada do Projeto Camaradinhas, a alegria de Pangolim. Visitas ao Mestre João Pequeno, as conversas entre Decanio e ele. Vozes mansas falando de casos bravos, sabedoria na simplicidade.
E a Ilha de Maré, onde encontramos Seu Dundunga, nos seus mais de 100 anos – ele é quem salvou Decanio em uma ocasião de naufrágio, tempos atrás. E ele, Dundunga, relatou como o mestre passou desde então a velejar pelas ilhas da baía com seus alunos de medicina. “Médicos da família”, num tempo em que o poder público sequer pensava nisso – atendimento gratuito e personalizado. “Atendíamos durante o dia, fazíamos festa à noite”.
Por todo canto onde andamos em Maré, o povo vinha vê-lo, cumprimentá-lo. “Dessa menina eu fiz o parto” – e a menina tinha seus 40 anos. “Esse menino, consertei-lhe a perna quebrada” – e o menino já era grisalho. Decanio irradiava esperança, encarnava o altruísmo no meio da gente da ilha.
Voltei de Salvador em meados de dezembro, trazendo um pedaço da Bahia no peito. O que Ângelo Augusto Decanio Filho, Mestre Decanio, Deco, me ensinou, ninguém me tira: que a verdadeira recompensa por um trabalho bem feito não pode ser vista, medida, contada. Não pede reconhecimento, fama, glória. Que ninguém muda a cabeça de ninguém voluntariamente – ser o exemplo é o máximo que se pode fazer. Que compartilhar é o caminho para a felicidade do homem – seja conhecimento, amizade, comida. E que a capoeira é um instrumento de inclusão, antes de tudo: abriga pobres e ricos, brancos e pretos, analfabetos e doutores – qualquer um que se entregue ao toque do berimbau.
Menino, quem foi teu mestre ?
Que te deu essa lição ?
A ele devo respeito,
Salve, Mestre Decanio. Parabéns, meu amigo. Axé, meu pai.
Teimosia
Manaus, 09 de fevereiro de 2006