Depoimento do Mestre Caiçara – Parte 3 de 6

O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).

O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.

Mestre Matiole: O senhor viveu em Salvador, na capital, assim a vida inteira ?
Mestre Caiçara: Não, eu viajei muito… Eu tive [???] Pernambuco.
MM: Mas, sempre capital ?
MC: Hein ?
MM: Sempre capital ?
MC: Capital. E numa cidade do interior de Pernambuco, chamada Goiana. A terra do gaiamun. Sou registrado na capital, na Federação de Cultos Afro-Brasileiros. Eu falo ketu, jêje, congo, caboclo, [???], umbanda e quimbanda do [???], da cabeça aos pés. Eu lhe xingo, e lhe trato bem. Lhe xingo do [???], trato dentro do [???], do [???].
MM: … a sombra. Fica do lado de cá, por causa da luz… E se o senhor ficar feio naquele quadro ali, mestre ? Se o senhor ficar feio naquele quadro ali, como é que vai ficar ?
MC: Feio ? Não sou feio, sou bonito !
MM: Mas e se ele botar o senhor…
MC: Mas eu sou bonito, de nascença ! Mamãe dizia: “Vizinha, vizinha, olha como o meu filho é lindo !” Qual a mãe que acha seu filho feio ? Hahahaha.
MM: É isso, mestre…
MC: Eu sou bonito ! Eu sou distraído… Quando [???] universidade, principalmente as crianças. Mas eu [???] de qualquer juventude. Eu olho o carinho, a paz que seja [???]. Agora, eu quero que você seja aquilo que você é. Não seja falsidade. Seja realista, não seja falsista comigo. Já dizia [???]: “Não me importa eu seja mais alto que esse prédio”. Não. Me diga… Sabe que vai morrer agora, mas diga. Olha como eu sou todo baleado…
MM: Isso é bala, mestre ?
MC: Olha aí… Olha aqui, bala.
MM: Ih… O que é isso ?
MC: [???] de facão, [???] de facão. Ó os cacete. Ó os cacete. Tem mais na perna. Olha. Faca. [???]. Minhas brigas, sabe por que ?
MM: Isso que eu queria saber…
MC: Porque, eu encontrava o senhor ali, não lhe conheço. Mas tem dois, três lhe agredindo, eu ia lá. Não quero saber quem o senhor é. Sabia que aquilo era covardia, dois ou três lhe agredindo. Quando eu compreendia que o senhor não [???] que ele, compreendia que o senhor era… Na verdade o senhor era, até era superior a mim, sabia mais brigar de que eu. Mas eu não acreditava, não queria saber, queria lhe defender. Aí aqueles que tava, três ou dois, achava que eu tava no fígado, achava que era mais homem que eu, e aí o pau quebrava. Se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come. Eu quero ver eu deitando no bicho. Hahahaha. Pois é. E há muito tempo você vê que um galo de briga, faz que vai, faz, quando você corre… Hahahaha. E outros ficam dentro de casa… Hahaha… [???]. O médico botou uma ponte, o cabra disse “sangre aqui”.
MM: O sangue ?
MC: É, eu tenho sangue de [???], que de vez em quando eu mando uma enfermeira meter a seringa de 40. E tirar duas seringa. Cheia. Chega no sanitário, tsss. Meu sangue é muito quente, caiu aí, talha. Não sei o que é exame de fezes, de urina, de cabeça, [???]. Bebo, só bebo uísque puro. Quer ver minha comida, oito e meia da manhã ? É a feijoada. [???]. O grande é um abacaxi. Um caneco deste tamanho de limonada. Um prato assim de salada de tomate. Um prato de feijão. Mocotó [???]. Hahahaha.
MM: Saúde, né mestre ?
MC: É ! Deus me deu um tesouro: foi a saúde. É a melhor coisa que tem. Três coisas no mundo: Deus, saúde e amigos. É a melhor coisa do mundo. Eu espero o senhor um dia, na Bahia, para a gente…
MM: Vou sim…
MC: É, você diz assim: “Vou na casa do véio, vou tomar uma [???] com o véio”. A rapaziada hoje em dia tá acabada. Cheia de tosse, muita tosse, não pode ter essa… O senhor que é médico… Olha aí, ó.
MM: Não tem trem melhor…
MC: Nada, mas eu também [???] não… Ele trabalha, disse “trinta e três”. Eu não digo, eu digo “mil e três”. Hahaha.
MM: Isso, mestre.
MC: É ?
MM: Graças a Deus.
MC: Graças a Deus, é. O meu remédio, de vez em quando, o senhor que é médico, tem que tomar. Para a sua saúde.
MM: Qual é o remédio ?
MC: De vez em quando, sumo de mastruz com leite, de manhã cedo.
MM: Sumo de ?
MC: Do mastruz. Conhece mastruz não ?
MM: Não… O que é mastruz, mestre ?
MC: É um mato. Ele serve para… Conhece ? Aquilo é bom até para verme. O que estiver dentro, sai. [???].
MM: Sumo de mastruz com leite…
MC: Com leite ! Não todo dia, porque é muito forte. Até verme que você tiver, por mais perigosa que seja, você bota ela prá fora. E dá uma fome…

Padi anda di batina

Padi anda di batina (Conforme visto em “O auto da compadecida” 🙂

Padi anda di batina
Mai num pense qu’é muié
A vaca mansa dá leite
A braba dá si quisé
Já fui barco, fui navi
Hoje eu sô iscalé
Já fui mininu, sô home
Nunca hei de sê muié

Camaradinho…

Pisa nu chão, pisa manêro
Num pode cum furmiga, num assanha furmiguêro
Pisa nu chão, pisa manêro
Num pode cum mandinga, num assanha mandinguêro

Macaco Beleza

Extraído/adaptado de um texto de Augusto Mário Ferreira Jornalista/escritor, formado em capoeira pelo Mestre Bimba em 1956

Baseada em pesquisa histórica do advogado baiano Gabino Kruschewsky (“A Tarde”, 27/6/76, p. 6.), arquivada
na hemeroteca sobre capoeira do advogado/tenente, Esdras Magalhães dos Santos (Mestre Damião)

Quando desceu o portal de honra do navio da Marinha, o Conde D’Eu, em traje de gala, avistou uma Salvador engalanada para recebê-lo com honras de estilo. Já no tapete vermelho sobre o piso esburacado do cais do porto, recebeu as boas vindas do conselheiro Almeida Couto, presidente da província da Bahia, e as saudações da aristocracia local e também de membros da Guarda Nacional.

Marido da Princesa Isabel, herdeira do trono, o conde de origem francesa e naturalizado brasileiro, visitava a Bahia como representante do Imperador Dom Pedro II, que se reteve no Rio administrando as arruaças diárias contra a monarquia, insufladas pelos simpatizantes do pretendido regime republicano.

Conde D’Eu cumpria uma espécie de missão diplomática de apaziguamento dos ânimos políticos, alvoroçados pelo manifesto antimonarquista da Convenção de Itú, de 18 de abril de 1873. Ainda ressabiado de suas recentes aparições públicas, ele temia a repetição em Salvador dos apupos que os membros da Corte, inclusive ele, receberam durante um cortejo de carruagens, liderado pelo próprio Imperador quando este deixara a residência imperial da Quinta de Boa Vista para circular pelas ruas do Rio, numa daquelas tardes tumultuadas de 1883.

Nem o conde, nem ninguém sabia que, no mesmo instante de seu desembarque, no mesmo instante de seu desembarque, estudantes anti-monarquistas da Faculdade de Medicina da Bahia, preparavam-lhe uma manifestação hostil, com vaias, ovos e tomates podres, na Ladeira do Pelourinho, por onde deveria passar daí a pouco, e depois do acesso à Cidade Alta pela subida do Taboão.

Ignorava também que numa das vielas estreitas do Maciel de Cima, proximidades da mesma faculdade de Medicina, o arruaceiro debochado Manoel Benicio dos Passos, por conta de suas simpatias monárquicas, mobilizava um grupo de capoeiristas de primeira linha para empastelar a manifestação estudantil com porretes de peroba e golpes de capoeira. Mulato sarará de cabelo crespo, atlético e corajoso, curtido de muitas cadeias por arruaças, Manoel Benício recebeu o apelido de “Macaco Beleza”, pela extrema feiúra de sua cara e pela agilidade de macaco com que jogava.

Não deu outra: quando os estudantes interceptaram o cortejo do conde no sopé da Ladeira do Pelourinho e começaram a vaiar e a atirar ovos e tomates, a turma de Macaco Beleza caiu de pau (de peroba) em cima da estudantada. Em instantes dissolveu a manifestação, deixando muitos feridos pelas porretadas e pelos golpes de capoeira. Vitorioso, subiu num caixote e mandou ver um discurso inflamado em defesa da monarquia.

– Quero esse popular na recepção desta noite, no Palácio como meu convidado de honra – ordenou o conde D`Eu ao seu anfitrião, o conselheiro Almeida Couto. O Conselheiro tentou dissuadir o conde, informando tratar-se de um arruaceiro de péssimos antecedentes, um capoeirista (sinônimo de marginal na época), cuja presença na recepção poderia constranger os demais convidados. O conde contudo foi enfático:

– O Baile é meu e o convidado é meu.

Pouco tempo depois, já dois emissários do presidente da Província formalizavam o convite ao Macaco Beleza e negociavam com ele as condições estebelecidas pelo conselheiro Almeida Couto que começavam com uma advertência e uma ameaça:

– Fica proibido de fazer besteiras. Se fizer, vai mofar na cadeia, depois que o conde for embora.

Nem a advertência, nem a ameaça o preocupavam. Tinha outras preocupações:

– Só vou lá se o conselheiro pagar uma roupa nova pra mim – sentenciou o capoeirista, que jamais primara pela elegância. Irritado pela petulância do capoeirista, que ele detestava e a quem mandara prender várias vezes, e sobretudo pelo incômodo convite do conde, o conselheiro Almeida Couto obrigou a alfaiataria do Palácio a costurar em poucas horas uma roupa de gala para o Macaco Beleza, que enfatiotado e exalando perfume barato de prostituta, foi o primeiro a chegar ao palácio.

Depois de receber as honras da banda de música, ele esperou, como faziam os nobres, o anúncio de sua presença, feito pelo mestre de cerimônias para só então, com seu passo de malandro, atravessar o salão luminoso e enfeitado:

– Sua Excelência, o nobre senhor Manoel Benício dos Passos, convidado de honra em nome de sua Alteza Imperial. O anúncio supreendeu a oficialidade do Corpo a Guarda presente e revirou o estômago do Conselheiro Almeida Couto, que, por precaução isolou Macaco Beleza bem no fundo do salão. Após a chegada de todos os convidados, o conde D’Eu, com a imponência dos seus quarenta e dois anos, apareceu na mesma porta por onde entrara Macaco Beleza e esperou a vez do seu anúncio:

– Sua Alteza, representante do Imperador D. Pedro II, comandante em chefe das forças navais e terrestres, vitoriosas na guerra contra o Paraguai, Luís Felipe Maria Fernando Gastão D’Orleans, o conde D’Eu!

Macaco Beleza nem esperou o fim dos aplausos. Sob o olhar irado do Presidente da Provínica, atravessou o centro vazio do salão e, quebrando o protocolo, supreendeu o conde com um abraço vigoroso, desvencilhou-se e se apresentou ao conde, declamando em tom solene uma trova que demorara para decorar:

“Manoel Benício Passos,
vulgo Macaco Beleza.
Escravo da Monarquia
e servo de Vossa Alteza”

O Presidente da Província aproximou-se e tentou consertar o vexame e o conde, risonho e descontraído, mostrou-se encantado com a trova simplória e com a confessa fidelidade daquele homem do povo. Desconcertado o conselheiro Almeida Couto cochichou uma repreensão qualquer no ouvido do Macaco Beleza. O cochicho ninguém ouviu, mas a gargalhada geral ecoou pelo salão quando todos ouviram em voz alta a resposta galhofeira:

– Qual é “seu” conselheiro! Esta me estranhando? Pensou que eu ia fazer besteira? Pois não sabe que sou baiano, nascido na Bahia, e que baiano burro nasce morto!

A risada dos convidados e do conde consagrou a frase conhecida e repetida no país inteiro, mesmo passados estes cento e tantos anos, desde o ocorrido.

Manduca da Praia

Extraído/adaptado de um texto de Nestor Capoeira, publicado na Revista da Capoeira #03

Quando Alexandre Mello Moraes Filho, escritor que viveu há mais de cem anos no Rio de Janeiro, e que conheceu pessoalmente o terribilíssimo Manduca da Praia, publicou seu livro (Festas e Tradições Populares do Brasil (Rio: F. Briguiet e Cia, 1946)), eis o que ele contou:

Por volta de 1850, Manduca “iniciou sua carreira de rapaz destemido e valentão, agredindo touros bravos sobre os quais saltava, livrando-se”. Dotado de uma enorme força física e “destro como uma sombra”, Manduca cursou a escola de horário integral da malandragem e da valentia pelas ruas do Rio, na época de perigosos capoeiras como Mamede, Aleixo Açogueiro, Pedro Cobra, Bem-Te-Vi e Quebra Coco.

Desde cedo destacou-se no uso da navalha e do punhal; no manejo do Petrópolis – um comprido porrete de madeira de lei, companheiro inseparável dos valentões da época – na malícia da banda e da rasteira; e com o soco e a cabeçada e o rabo-de-arraia tinha uma intimidade a toda prova.

Manduca não era um “filósofo da capoeira” como, João Pequeno e João Grande; nem tampouco um representante do espírito da “malandragem alto astral” como Leopoldina. No entanto, tinha algo que o destacava e diferenciava de seus contemporâneos – facínoras, valentes e rufiões – fazendo que se tornasse uma lenda viva, e mais tarde um mito cantado e celebrado até os dias de hoje: uma inteligência fria, calculista e implacável; uma sede de poder, de status e de dinheiro, tudo isto aliado a uma visão de comerciante e de homem de negócios.

A capoeira do Rio, por volta de 1850, era muito diferente da que conhecemos hoje. A capoeira era perseguida pela polícia. Não havia academias. O jogo era quase que uma briga-de-rua, sem berimbau e sem floreio. Era a época em que as maltas de capoeiras, como a dos Gaiamus ou a dos Nagoas, aterrorizavam a população carioca.

Semelhante as gangues de nossos dias, as maltas daquela época dividiam a geografia da cidade em fatias e cada uma reinava absoluta na sua área. Manduca, no entanto, “não recebia influencias da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco”. Era capanga e guarda-costas de ilustres políticos.

“Nas eleições (do bairro) de São José, dava as cartas, pintava o diabo com as cédulas. Nos esfaqueamentos e nos sarrilhos próprios do momento, ninguém lhe disputava a competência”.

O Manduca “respondeu a 27 processos por ferimentos leves e graves, saindo absolvidos de todos eles pela sua influencia pessoal e de seus amigos”.

Manduca ficou mais célebre ainda com a chegada no Rio, do “deputado português Santana, que gostava de brigas, que não recuava diante de que quer que fosse, e que tendo notícia do Manduca, procurou-o. Encontrando-se os dois, houve desafio, acontecendo àquele (ao Santana) saltar nos ares ao primeiro camelo do nosso capoeirista, depois do que beberam champagne ambos, e continuaram amigos”.

Mas nem só de valentia e champagne; de mumunhas com políticos; de esfaqueamentos na época da das eleições vivia nosso personagem. Manduca, como dissemos, além da inteligência de predador tinha também o senso dos negócios. Valendo-se de seu prestígio e de seus conhecimentos nas altas esferas do poder, “montou uma banca de venda de peixe na praça do Mercado, era liso em seus negócios, ganhava bastante e tratava-se com regalo”.

Quando Mello Morais – o escritor – conheceu-o, há mais de cem anos, o Manduca já era um homem maduro. “Alto e reforçado, usava uma barba crescido em ponta, grisalha e cor de cobre…nunca dispensava o casaco grosso e comprido, e a grande corrente de ouro de que pendia o relógio…de olhos injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura tinha alguma coisa que infundia temor e confiança”.

O Manduca fez fama e dinheiro. Foi famoso, temido e respeitado. Foi feliz? Talvez só Besouro e Nascimento Grande ou o próprio Manduca pudesse responder a esta pergunta.

No meu Rio de Janeiro, se a memória não falha….