Entrevista realizada por Roberto Freire e publicada na revista Realidade, em 1967.
Dois homens vão lutar. Estão acocorados um diante do outro, presos ao ritmo de uma estranha música. Atrás deles, um velho toca berimbau e puxa o canto que será repetido pelos outros cinco instrumentistas. Todos os seus versos terminam com a palavra camarada. O nome do velho é mestre Pastinha. A luta vai se travar em sua Academia, no bairro do Pelourinho em Salvador, na Bahia. Um dos músicos retira o berimbau das mãos do mestre, que estende os braços à procura das cabeças dos lutadores. Ele diz um último verso: é a senha para o início da luta. Os dois homens vão lutar capoeira, e se benzem quando a mão do mestre deixa suas cabeças. Surgem os primeiros golpes. Só mestre Pastinha não os vê. mas parece pressentir. Ele está quase cego, mas sabe tudo sobre capoeira, que lutou, invencível, até os 78 de idade. A história da sua vida alcança quase toda a história da capoeira no Brasil. Ele a conta assim:
“Compreende melhor quem vê a luta. Ela parece uma dança, mas não é não. Capoeira é luta, e luta violenta. Pode matar, já matou. Bonita! Na beleza está contida sua violência. Os meninos estão só mostrando, os golpes passam raspando ou são contidos antes de atingir o adversário. Mas mesmo assim ela é bonita.
“Tudo o que eu penso de capoeira um dia escrevi naquele quadro que está na porta da Academia. Em cima, só estas três palavras: Angola, capoeira, mãe. E, embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo em ânsia de liberdade; Seu princípio não tem método; Seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.
“Mas tem muita história sobre o começo da capoeira que ninguém sabe se é verdadeira ou não. A do jogo da zebra é uma. Diz que em Angola, há muito tempo, séculos mesmo, fazia-se uma festa todo ano em homenagem às meninas que ficavam moças. Primeiro elas eram operadas pelos sacerdotes, ficando igual, assim, com as mulheres casadas. Depois enquanto o povo cantava, os homens lutavam do jeito que fazem as zebras, dando marradas e coices. Os vencedores t inham como prêmio escolher as moças mais bonitas entre as operadas. Pode não ser verdade, mas os capoeiristas de hoje bem gostariam que fosse, desde que suas vitórias tivessem prêmio igual…
“Bem, mas de uma coisa ninguém duvida: foram os negros trazidos escravos de Angola que ensinaram capoeira para nós. Pode ser até que fosse bem diferente dessa luta que esses dois homens estão mostrando agora. Me contaram que tem muita coisa escrita provando isso. Acredito. Tudo muda. Mas a que a gente chama de capoeira de Angola, a que aprendi, não deixei mudar aqui na Academia. Essa tem pelo menos 78 anos. E vai passar dos 100, porque meus discípulos zelam por mim. Os olhos deles agora são os meus Eles sabem que devem continuar. Sabem que a lula serve para defender o homem.
“Os negros usavam capoeira para defender sua liberdade. Pode ser até que o nome da luta venha justamente disso. Negro fugia era para o mato. Se algum capitão-do-mato o alcançava, se era um a um, numa clareira, numa capoeira – então, ali, o negro era mais livre para se defender.
“E dizem também que esse jeito de lutar de brincadeira como ainda fazemos hoje, era a maneira do escravo se exercitar, disfarçando de bailarino na frente do feitor. Acho que é até verdade, capoeirista é mesmo muito disfarçado, ladino e malicioso. Contra a força, só isso mesmo. Está certo.
“Mas o que serve para defesa serve também para o ataque. A capoeira é tão agressiva quanto perigosa. Quem não sabe lutar é sempre apanhado desprevenido. Malandros e gente infeliz descobriram nesses golpes um jeito de assaltar os outros, vingar-se de inimigos e enfrentar a Polícia. Foi um tempo triste da capoeira. Eu conheci, eu vi. Nas bandas das docas… Luta violenta, ninguém a pode conter.
“Agora que o ritmo está mais apressado, sinto a agilidade desses dois homens e imagino cada um dos seus golpes acertando em cheio o adversário. Imagino raiva, medo, despeito, desespero, empurrando esses pés… Uma vez vi um capoeirista afugentar uma patrulha inteira. Outra coisa: um lugar escuro, uma mulher, chega um cara querendo coisa – homem querendo mulher está sempre desprevenido – então, de repente, ele recebe um golpe, só um e cai ferida desacordado ou morto. Sim senhor, havia capoeirista malandro que se vestia de mulher para roubar os dão- joãos.
“Eu sei que tudo isso é mancha suja na história da capoeira, mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica? E a faca? E os canhões? E as bombas? O que eu gosto de lembrar sempre é que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravidão. Nas músicas, que ficaram até hoje, se percebe isso. Uma é essa que eles estão cantando e que eu vou cantar junto: “E, valha- me Deus, camarada. / E, água de beber, camarada. / E, que vai fazer, camarada./ E, ele é mandingueiro, camarada. / E, ele é cabeceiro, camarada./ E, faca de ponta, camarada. / E, faca de matar, camarada./ E, o galo cantou, camarada./ E, có-có-ró-có, camarada;/ E, a volta do mundo, camarada./ E, é o que o mundo dá, camarada’.
“Entenda quem quiser, está tudo aí nesses versos o que a gente guardou daqueles tempos. Tem brincadeira também; vou fazer uma pra um desses dois lutadores. Minha voz, mesmo baixa e de longe, eles escutam: ‘E, valha-me Deus./ valha-me Nossa Senhora da Vitória./ Vi esse menino agora / lá no reino da glória. / Menino se eu quisesse, / (ah, ah, ah) tinha lhe botado fora’. Pois capoeira é luta, sim mas é folclore e tradição bonita também. E a gente conservou ela pura, todos fazendo escola, criando academias e ganhando o respeito do povo, dos artistas, dos estudiosos e do governo. Digo a gente, lembrando os grandes capoeiristas do passado. Já estão mortos. Cada nome destes é uma história: Bigode de Seda, Américo Ciência, Bugalho, Amorzinho, Zé Bom Pé, Chico Três Pedaços, Tibirici da Folha Grossa, Doze Homens, Inimigo Sem Tripa, Zé do U, Vitorino Braço Torto, Zé do Saco, Bené do Correio, Sete Mortes, Chico Me Dá. Só pelos apelidos dá para saber como eram, como lutavam. E tinha duas mulheres também: Júlia Fogareira e Maria Homem.
“Toda essa gente praticava a pura capoeira de Angola como eu até hoje e esses meninos que estão aí. Tem grandes capoeiristas vivos que mudaram a forma de lutar, mas continuam sendo grandes mestres. Falo do Mestre Bimba que pratica a capoeira regional, e de Carlos Senna que inventou a capoeira estilizada. Agora que não luto mais, confio em dois contra-mestres meus para a a conservação da capoeira de Angola: João Oliveira dos Santos e João Pereira dos Santos – João Grande e João Pequeno. É o que tem de melhor, na Bahia…
“Estes versos eu fiz para homenagear eles: ‘Eu tenho dois meninos / que se chamam João / um é cobra mansa / e o outro é gavião. / Um joga no ar (ah, ah, ah) / e o outro se enrosca pelo chão’.
“Esses dois aprenderam com a Academia mas eu aprendi com a sorte. Quando tinha uns 10 anos – eu era franzininho – um outro menino mais taludo que eu tomou-se meu rivaL Era só eu sair para a rua – ia na venda fazer compra, por exemplo – e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. ‘Vem cá. meu filho’, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. ‘Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia’. Foi isso o que o velho me disse e eu fui. Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo. Ele costumava dizer ‘Não provoque, menino, vai botando devagarzinho ele sabedor do que você sabe’. Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito. O velho africano chamava-se mestre Benedito, era um grande capoeirista e quando me ensinou o jogo tinha mais idade do que eu hoje.
“Aos 12 anos, em 1902, eu fui para a Escola de Aprendiz de Marinheira Lá ensinei capoeira para os colegas. Todos me chama-vam de 110. Saí da Marinha com 20 anos. Vida dura, difícil. Por causa de coisas de gente moça e pobre, tive algumas vezes a polícia em cima de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu lembrava de Mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava capoeira, então queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso, bati alguma vez em polícia desabusado, mas por defesa de minha moral e do meu corpo.
“Naquele tempo, de 1910 a 1920. o jogo era livre Passei a tomar conta de casa de jogo. Para manter a ordem. Mas. mesmo sendo capoeirista, eu não me descuidava de um facãozinho de doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia comigo. Jogador profissional daquele tempo andava sempre armado. Assim, quem estava no meio deles sem arma nenhuma bancava o besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não gosto de contar casos de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava sustento. Além do jogo, trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro, sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista.
“Foi em 1941 que minha vida mudou. Foi na Ladeira da Pedra, fim da Liberdade, no bairro da Gingibirra. Um ex-aluno meu, de nome Aberré, bom capoeirista, já morto, me convidou para apreciar uma roda de capoeira. Na roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era Amorzinho, um guarda civil. No apertar da mão me ofereceu tomar conta de uma Academia. Eu dei uma negativa, mas os mestres todos insistiram. Confirmavam que eu era o melhor para dirigir a Academia e conservar pelo tempo a capoeira de Angola. Fundei então o Centro Esportivo de Capoeira de Angola, em 1941, e registrei a Academia em 1952. Botei carteira para capoeiristas. Meus meninos são diplomados.
“Saem daqui sabendo tudo. Sabendo que a luta é muito maliciosa e cheia de manhas. Que a gente tem que ter calma. Que não é uma luta atacante, ela espera. Capoeirista bom tem obrigação de chorar no pé do seu agressor. Está chorando, mas os olhos e o espírito estão ativos. Capoeirista não gosta de abraço e aperto de mão. Melhor desconfiar sempre das delicadezas. Capoeirista não dobra uma esquina de peito aberto. Tem de somar dois ou três passos à esquerda ou à direita para observar o inimigo. Não entra pela porta de uma casa onde tem corredor escuro. Ou tem com o que alumiar os esconderijos da sombra ou não entra. Se está na rua e vê que está sendo olhado, disfarça, se volta rasteiro e repara de novo no camarada. Bom, se está olhando ainda, é inimigo e o capoeirista se prepara para o que der e vier.
“Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito, mas no deles há toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um.
“Não se pode esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo mestre. Ensina pelo som. Dá vibração e ginga no corpo da gente. O conjunto de percussão e com o berimbau não é arranjo moderno, não, é coisa dos princípios. Bom capoeirista, além de jogar, deve saber tocar berimbau e cantar.
“E jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar no chão com o corpo. Quando eu jogo, até pensam que o velho está bêbado, porque fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no chão, nem vai botar.
“Tenho um lema na vida: gosto de entrar sempre por baixo, para ver como é que saio. Não me casei ainda, já tive muitos filhos mas morreram todos. Tenho agora uma camaradinha que está louca para casar comigo. Dessa, não sei se escapo, não. Mas ainda é muito cedo para decidir. Depois, até agora não arrumei recursos para poder casar. Fome dá margem para muita coisa ruim. Se ao menos eu tivesse uma casa para morar, então eu me casava. Porque casa é o que mais mata o pobre, e mata na cabeça, ela come o pirão que os meninos deviam comer. Por isso não caso e o resto deixo à disposição de Jesus. Não fosse Jesus tava na sarjeta hoje, pedindo esmola.
“E tudo isso no Brasil! Brasil que tem pra dar, vender, jogar fora e negar a seus filhos. Mas fica tudo dependendo dos decretos. Saem os decretos e eles vão caducando, caducando, como caducou o grito da Independência.
“Aprendi só o primeiro livro, mas direito. O resto foi a vida que me ensinou. Ensinou a ver. Tem coisas que a gente vê e que os letrados, os professores, os políticos, não escrevem. Gostaria de ter estudado mais, mas quem não tem pão para levar para casa pode ficar lendo dicionário?
“O homem pode falar duas linguagens, mas uma delas é falsa. Não sou católico nem sou de candomblé. Eu creio em Deus, num só. Respeito gente de religião quando há respeito.
“Já viajei bastante pelo Brasil, já fui até na Africa. Em Angola, não, mas quero ir. Só para comparar a capoeira daqui e a de lá. Na hora de elogiar é Pastinha pra cá e pra lá, mas quando é viagem e apoio do governo para a capoeira de Angola, sou esquecido. É sempre assim: o trabalho é do feio para o bonito comer. Eu estou falando assim porque é modo de pensamento. Não é revolta contra a natureza. A natureza não liga para nada.
“Meu livro sobre capoeira de Angola vou vendendo e vou comendo.
“Quem me ajuda mais é Jorge Amado. Jesus lhe dê força e coragem. É muito mal empregado dizer que eu sou amigo de Jorge Amado. Ele é que é meu amigo. Quem precisa de Jorge Amado sou eu.
“Agora só falta dizer uma coisa bonita. O que vai sair na revista eu vou poder ler porque os meninos da Academia estão juntando dinheiro para pagar a operação dos meus olhos. Eles dizem que precisam do que ainda posso ver. Bonito, não?”