O depoimento do Mestre Caiçara foi tomado pelo Mestre Matiole, durante o Encontro Nacional de Capoeira de Ouro Preto, promovido em 1987 pelo Mestre Macaco e o Grupo Ginga (de Belo Horizonte).
O símbolo [???] indica um trecho do áudio que não consegui transcrever. Entendimentos e sugestões são bem-vindos.
Mestre Matiole: O senhor tem assim… A gente vê falar assim, né… O Mestre Bimba morreu na miséria. Mestre Pastinha…
Mestre Caiçara: Mas o Bimba morreu na miséria sabe por causa de que ? Do complexo dele. Ele dizia que não ensinava para filho de operário. Só ensinava para filho de bacana.
MM: O senhor tem alguma mágoa contra a capoeira, alguma coisa, ou não ? O senhor tem alguma mágoa da capoeira ?
MC: Não ! Eu adoro a capoeira. Eu sou livre, eu sou livre. Eu sou pai, eu sou mãe, eu sou filho, eu sou adepto da capoeira. Eu sou boxeador. Eu sou lutador de livre. Eu sou lutador de romana, que só ganha quando coloca isso no chão… Mas sou… Adoro é a capoeira. Até hoje, com 64 anos, ainda vadeio e eles não me ganham. E quando eles querem me cansar, eu ganho na experiência. Que roupa de homem não dá em menino. XXX. Hahahaha.
MM: É bonito…
MC: É… [???] Hahahaha. Ali, só fica copiando [???]
MM: É médico, é médico…
MC: Eu sei… Mas não tá certo. Tá certo que ele tá sabendo dizer a palavra…
MM: É colega nosso lá da Ginga…
MC: É ?
MM: Aluno de Macaco…
MC: Tá certo [???] Ele vai botar tudo aquilo, e quando chegar mais depois um para querer [???] ele, ele diz “não, olha aqui ó”. Para mim é um prazer, ou você, que eu vou fazer, você vai fazer uma fotografia, uma entrevista, eu exigir dinheiro ? Não… Dinheiro não vale nada ! O que vale no mundo é Deus, saúde e amigos. Com esse daí, com essa dali, o meu nome cresce e eu vou ganhar até o dobro. Talvez o que eu ganhar [???] de sua mão. Não acha não ?
MM: Acho.
MC: E é plantando que a gente colhe.
MM: Eu tô vendo que o senhor tem uma adoração muito grande por criança.
MC: Tenho.
MM: Quantos filhos o senhor tem ?
MC: Trinta.
MM: Trinta filhos ? Com a mesma mulher ?
MC: Não. Quem come num prato só é tuberculoso.
MM: Hahahaha.
MC: Hahahaha. A minha menor tem 2 anos.
MM: 2 anos ?
MC: É.
MM: O senhor adora criança, né ?
MC: Sou louco com criança. É a única festa que dou em minha casa, todo ano. No mês de outubro, é o caruru dos meninos. 6000 quiabos. É o caruru dos meninos, no dia 25 de outubro. Eu sou louco por eles, ave Maria. Sou louco. Quer brigar comigo ? Maltrate uma criança [???] de mim. Eu tava no restaurante comendo, chegou uns meninos. [???]. Chegou tudo assim na janela, e ficou conversando comigo. Eu disse “Já comeu ?”. Eles disse “Não”. “Olha aqui !” E eles vieram me ver aqui. Sabe disso ? Eu adoro, deixe o mundo quieto. Como Deus fez. Sabe disso ? Se eu venho na cidade, você fica assim, estarrecido comigo. Vê aquela malandragem, aquela garotada, me arrodeia, dizendo “Pai véio, pai véio, pai véio, Caiçara”. Os que não me conhecem, falam assim para o outro: “Papai, foi o meu mestre, mestre Caiçara”. [???]. Com um pouco, na hora de sair, faz: “Oh, Mestre, depois eu vou lá. Aquilo que o senhor me ensinou…” XXX. Parece um adulto. [???]
MM: Mestre, outra coisa… A respeito de racismo, por exemplo. Que a gente vê muito o pessoal falando “ah, o branco tomou a capoeira do negro, tomou o samba”. O que o senhor me fala sobre racismo ?
MC: O Brasil não tem branco, e não tem negro. Tem [???], veja compreensão e desenvolvimento. Eu não me importo de ser motorista. Dirijo um carro somente de uma espécie. O senhor já é motorista, já dirige carro de quatro, cinco espécies. Não é minha culpa. É a inteligência do senhor. É o prazer que Deus lhe deu. É a compreensão, é o esforço do próprio sujeito. Você dirige um, eu trago o meu. Eu não preciso seguir. Eu, não… Não tem nada de… No Brasil, não tem preto. No Brasil, não tem branco. Nós tudo somos caboclo. Somos índio. Nós somos é de índio e caboclo. Africano… Lugar de preto é na África. Hahahaha. Lugar de branco é na Alemanha. Lá que tem branco. [???]. É brasileiro, é autêntico ! É poderoso. Então… Eu não tenho dúvidas.