Mestre Sena
Publicado originalmente no jornal APM, em outubro de 1984
P: Como é que nasceu esta sua paixão pela Capoeira?
R: A minha paixão pela Capoeira foi à primeira vista, quando em 1949. com apenas dezessete anos de idade, fui levado pelo grande capoeirista Adib Andraus a presenciar uma demonstração do Mestríssimo Mestre Bimba, na Sociedade Israelita, no Desterro.
P: O fato de seu filho ter implantado uma Escola de Capoeira na Argentina significa que a sua família acompanha o seu devotado trabalho à causa da Capoeira?
R: Que a nossa família acompanha a capoeira, não há dúvida, em razão de que eu, diuturamente, há três décadas, me ocupo quase que exclusivamente da Capoeira, para que ela exista em estado significante. Mas o fato de o meu filho Yoji ter instalado uma escola na Argentina não contou com o nosso beneplácito em razão de o mesmo não ter seguido convictamente o nosso trabalho quando entre nós morava. A iniciativa dele, guardando as devidas proporções, foi mais ou menos parecida com a de todos aqueles que vêm ensinando a nossa Arte Marcial fora do Brasil, por razões de sobrevivência.
P: Há muita gente se intitulando “Mestre de Capoeira” por aí. Inclusive, em Rio, São Paulo, Brasília e até nos Estados Unidos há aqueles que se propalam “mestres”, embora realizem um trabalho passível de questionamentos, até mesmo um desserviço à Capoeira. Como você se sente, com o título de “Mestre” que ostenta?
R: Em primeiro lugar, queremos declarar que a palavra “mestre”, na área da Capoeira, perdeu o seu verdadeiro significado. Eram considerados “Mestres”, nas rodas empíricas de Capoeira, aqueles que assim eram aclamados por decisão do meio onde militavam. E essa aclamação vinha geralmente da postura Moral e Brava que os mesmos assumiam e demonstravam perante os demais. O exemplo maior desta postura foi Manuel dos Reis Machado, o Bimba.
Hoje qualquer tocador de berimbau ou pseudo-instrutor, sem tradição na roda, e sem nenhuma contribuição ao equilíbrio ou progresso da Capoeira, se intitula “Mestre”. Destacam-se no cenário do Brasil, e na Bahia, aqueles que preservam a Arte Marcial Brasileira, enriquecendo-a com uma mentalização cívica e filosófica genuína.
Não podemos deixar de citar os Mestres Canjiquinha, Gato, Caiçara, ]oão Pequeno, Bigodinho, João Grande, Atenilo, Clarindo e o Grande Mestre Waldemar da Liberdade, que criou uma real orquestra de berimbau. Fora desses mestres, há muitos impostores, que se servem da Capoeira, ao invés de servi-la. A quem interessar possa, para evitar o desgaste e a apropriação indébita do título de “Mestre”, fizemos editar um manual no ano de 1980 no qual sugerimos um conjunto de parâmetros que, mediante um balizamento pré-estabelecido, possibilite aos que o mereçam, o honroso dignificante título.
P: Que papel desempenhou Mestre Bimba em sua vida?
R: O Mestríssimo Mestre Bimba desempenhou um grande papel na formação de minha personalidade, principalmente pelos ensinamentos que adquiri com o mestre na aplicação da Capoeira como filosofia de vida. Infelizmente, até hoje, Mestre Bimba só foi analisado sob o aspecto belicoso que foi, sem dúvida, uma parte primorosa de sua vida capoeirístíca. É necessário, contudo, que se faça uma ligação maior entre Mestre Bimba e a Capoeira como um todo, pelo muito que se enriqueceram mutuamente e ofereceram ou vêm oferecendo à cultura popular. E esta é uma dívida que cabe a nós resgatar.
P: Nota-se que você é muito mais Mestre Bimba que Mestre Pastinha. Inclusive acha você que mestre Pastinha foi usado por determinados intelectuais baianos de renome. Como situar na história da capoeira baiana essas duas figuras de proa?
R: Mestre Bimba é para a capoeira o que foi Pelé para o futebol, Jesse Owens para o atletismo, Cassius Clay para o boxe. Todos eles se negaram a fazer concessões que descaracterizassem os seus ofícios, embora fossem profundos estilistas e inovadores. Mestre Bimba foi um revolucionário da capoeira, que pode ser considerada como tendo vivido três momentos históricos fundamentais: o da Escravatura, o da República e o de Mestre Bimba. Pode-se comparar afigura de Mestre Bimba à altivez do João Cândido, ao denodo de Martin Luther King, à persistência de Gandhi, à renúncia e idealismo de Rondon. Dois fatos confirmam esta personalidade extraordinária do Mestre Bimba; o primeiro fato foi a negativa dada ao convite feito para que integrasse a Guarda Pessoal do Presidente Vargas, quando a isto o convidaram em pleno Palácio da Aclamação. Ao invés de buscar a glória, preferiu a sua independência, altivez, de que tanto se orgulhava. O segundo foi a sua ida-protesto para Goiânia, recusando-se a regressar à Bahia mesmo estando à beira da indigência. Mestre Bimba não se acomodou, foi um Martinho Lutero da Capoeira. Já o Mestre Pastinha praticou uma Capoeira de alta qualidade técnica, até a idade provecta, mas foi um conservador astuto, e que agradava àqueles que tencionavam folclorizar a Capoeira. A estes Mestre Bimba não deu vez, com receio, inclusive, de ser manipulado.
P: Afinal, por que os dois nomes de “Capoeira Regional” e “Capoeira de Angola”? Tratam-se da mesma capoeira, ou há diferenças básicas?
R: Embora até mesmo muitos envolvidos com a Capoeira não o saibam, o nome de Capoeira Regional nasceu antes do nome “Capoeira de Angola”. O nome Regional foi dado por Mestre Bimba que, no seu raciocínio, entendeu que, tendo ele dado uma dinâmica nova, como a criação de um método de ensino, a formatura de alunos, o uso de um traje para eventos comemorativos, a criação de novos movimentos, tirando a Capoeira das ruas e das esquinas para as salas, deveria caracterizar o seu trabalho como “Capoeira Regional Baiana”. Já o Mestre Pastinha, contrapondo-se a Mestre Bimba na adjetivação, batizou a Capoeira com o nome de “Capoeira de Angola”. E aí foi que muita gente se enganou, pensando que em Angola existe Capoeira. O que não é verdade.
P: Vamos então esclarecer esta dúvida. Há muito professor ensinando por aí que a Capoeira nasceu na Africa. E há autores famosos que espalham esta versão. Afinal, a Capoeira é originária da Africa ou da Bahia?
R: Muitos se equivocam ao dar à Capoeira, como terra de origem, a África. O certo é dizermos que a Capoeira foi criada por africanos mas já em solo brasileiro, no período colonial. Tudo criado em termos de defesa pessoal, já que sofriam variadas perseguições. Sem dúvida que os escravos trouxeram de sua terra um sistema de movimentação corpórea – batuque – que ofereceria as bases de adestramento e possibilidades físicas. A partir desse dado cultural, aperfeiçoado na imitação dos animais encontrados em nossas matas (macaco, onça. raposa e aranha), e aguçado pelo instinto de defesa, sobrevivência e resistência ante as capturas, o negro fez brotar a Capoeira.
P: Nota-se a ascensão de artes marciais alienígenas como judô, karatê e outras, em detrimento da Capoeira, um esporte e luta genuinamente baiano e brasileiro. Qual a sua posição diante deste fato?
R: Não se trata de ascensão das Artes Marciais alienígenas. O que ocorre é uma submissão de nossa parte à qualidade que acompanha esses esportes, diante de nossos filhos, em termos de apresentação, de infra-estrutura. Elas já vem organizadas em todos os sentidos, enquanto a nossa Capoeira não se agiganta. Há muitos achando que se já existem métodos de defesa pessoal (mesmo não nos favorecendo plenamente, por atender a um homem de outra cultura) devemos alienar-nos e a ela nos adaptarmos. A nossa humilde posição é a que venho assumindo há três décadas em todo o Brasil, lutando para apresentar a nossa Capoeira metodizada, ordenada, treinada espartanamente, como acontece com as Artes Marciais alienígenas. Em um confronto com essas Artes a Capoeira se revela, em termos de Defesa Física, profundamente rica, com recursos inigualáveis.
P: Já que estamos tratando desse assunto, qual a diferença básica entre a Capoeira t as artes marciais mais difundidas no Brasil?
R: Filosoficamente, na sua ação física, a Capoeira coincide com o Judô, pois ambos têm como fator básico de uso, ação e sustentação, o deslocamento do centro de gravidade do elemento humano. No aspecto de aplicaçâo o Judô leva vantagem pois a ação de desequilíbrio deste é realizada através do sistema de alavanca. Os capoeiristas devem, por sua vez, recorrer à inteligência, pois em nossa ação desequilibrante falta um ponto de apoio. E se tenta o desequilíbrio por meio do gingado e da manha, para em frações de segundo aplicar-se o golpe decisivo. Os judokas trazem como frase símbolo “ceder para poder vencer”, enquanto os capoeirístas aceitam como máxima “recuar para poder derrotar”. O Karatê tem em comum com a Capoeira o deslocamento corpóreo, máxime se o karateka é baiano ou carioca. Mas enquanto a Capoeira e o Judô são artes de derrubar, o Karatê é a arte de quebrar. Enquanto, tal qual o taikendô, de origem coreana, a Capoeira atua em círculo, o karatê ataca e defende em linha. Mas o taikendô é também uma arte de quebrar, diferençando-se da Capoeira e do Judô.
P: A multiplicação de escolas de Capoeira não só na Bahia como em outros estados (São Paulo, Rio, Goiás), e até mesmo nos Estados Unidos, não o deixa satisfeito?
R: Isto só nos deixa tristes, pois essas escolas estão proliferando sem compromissos maiores com a verdadeira Capoeira. Cada professor levanta uma bandeira pessoal na forma de praticar e interpretar a Capoeira. Quase todos eles fazem concessões que prejudicam a imagem da Capoeira como força representativa da cultura e história brasileira. Anticivicamente a maioria desses professores reduz a Capoeira, mercantilizantemente, ao nível de folclore. E com o transplante da Capoeira para os “mui amigos” norte-americanos, estamos na iminência de a Capoeira vir a perder a sua nacionalidade. Pois caso a Capoeira agrade, como dizem que está agradando por lá, logo aparecerão grandes empresas ou fundações que se encarregarão de formalizar a Capoeira, sem considerações maiores com o seu dinâmico e criativo processo histórico-cultural. A título de exemplo, vejamos o que eles conseguiram fazer com o futebol, de repente o Cosmos estava cobrando uma fortuna para jogar no país tricampeão do mundo…
P: O que você acha do ensino da Capoeira, atualmente, no Brasil? Uma revista de grande circulação nacional mostrou professores de capoeira vestidos com roupas balofas e coloridas, como se estivéssemos no Caribe. Nota-se uma grande desinformação da genuína Capoeira em fotos de golpes inexistentes e na emissão de conceitos errôneos a respeito da Capoeira. Isto não preocupa o Mestre Sena?
R: A nossa grande luta, sem fronteiras, é justamente no sentido de tentar evitar a agressão cultural que a Capoeira vem sofrendo. Quanto à revista a que você se refere (inclusive um semanário de grande circulação nacional), endereçamos à mesma uma correspondência protestando contra o absurdo apresentado. Como discípulo do Mestríssimo Mestre Bimba, aprendi a não fazer concessão alguma em prejuízo da Capoeira. E é ridículo o uso de uma outra roupa, hoje, na Capoeira, que não o Abadá. No entanto, as roupas balofas, as camisas de meia e os Jeans têm sido usados largamente por muitos que se dizem corifeus da Capoeira.
P: Como explicar a prevalência do Sudeste brasileiro no que toca à Capoeira? Rio e São Paulo continuam dando as cartas até mesmo em termos de um assunto que eles assimilaram às vezes de forma grotesca e acomodatícia?
R: É isto aí. Assimilaram a Capoeira e usam-na de forma grotesca, acomodatícia e de forma desonesta, tanto histórica como culturalmente. E tomam parte nesse processo Federações e Confederações que através de pelegos esportivos, sem qualquer interesse pelo bem pátrio, por vaidade e mercantilização, terminam por usar a Capoeira de forma espúria.
P: Qual o seu papel na oficialização da Capoeira corno esporte pela Confederação Nacional de Desportos (cnd)?
R: De tanto insistirmos, através dos mais diversos expedientes, junto a diversos segmentos do governo, vimos os nossos esforços coroados de êxito: através do mEc, o cnd resolveu considerar a realidade da capoeira, sancionando-a como esporte. Mas como não poderia deixar de ocorrer, aconteceu a infelicidade de o seu processo ser endereçado à Federação Baiana de Pugilismo, à qual a Capoeira foi agregada. E aí faltou competência para a interpretação devida do parecer do relator, o general Jair Jordão Ramos. Parecer este formulado em 1973. O parecer frisava a necessidade de se constituir um grupo de trabalho que viesse dar a forma e o conteúdo ao novo e oficializado esporte. E por isso até hoje a Federação Baiana de Pugilismo se põe a promover competições oficiais com regulamentos de Escolas de Samba, Maracatu e Bumba-Meu-Boi.
P: Como está o Senavox e quais os seus plano para que as suas idéias consigam ser melhor escutadas em defesa da capoeira?
R: O Senavox, instituição por nós fundada em 25 de outubro de 1955, tem como finalidade precípua e exclusiva a defesa da Capoeira como esporte-luta do povo brasileiro. Uma idéia nossa já foi escutada, a sua oficialização teórica como esporre, em parecer do ministro Jair Jordão Ramos. Editamos também um anteprojeto normativo, que enviamos a várias entidades esportivas, culturais e sociais na esperança de que possa, o mais breve possível, ser discutido.
Este ano ainda, ou no início do próximo, esperamos poder editar dois trabalhos com os quais queremos esclarecer à opinião pública e alertar às autoridades de que a Capoeira encerra em si uma profunda relevância quanto à sua prática e desenvolvimento, um aliado inestimável no amálgama das características de um povo culturalmente rico, inteligente, criativo, forte e destemido. Os nomes desses trabalhos são “Achismo” e “Defesa”. O primeiro explica a posição ambígua em que se colocam os militantes de nossa Arte Marcial perante a verdade. O segundo é uma série de protestos e esclarecimentos endereçados especialmente a órgãos de comunicação do sudeste, pelo (ato de virem colocando erroneamente a Capoeira perante os olhares ávidos de nossos jovens, o que é um desperdício cívico Temos também prontos mais 11 trabalhos, dos quais dois são técnicos, e que esperamos editar em dezembro do próximo ano, ao completarmos 30 anos fechados de uma guerra que não é só minha mas de todo brasileiro que teima em não fazer concessões no que se refere à sua realidade cultural.
P: Não acha você que a criação dessas entidades que visam preservar a Capoeira como elemento forte na cultura nacional é uma utopia? Poderão dar frutos sem uma mudança radical na política do esporte baiano e até nacional?
R: A única entidade que conhecemos com essa finalidade chama-se Centro de Pesquisa, Estudos e Instrução da Capoeira Senavox. E não a consideramos uma utopia. Além de confiarmos em uma mudança na política esportiva brasileira, confiamos que o nosso trabalho de semeadura produzirá os frutos esperados. Além do mais é minha filosofia de vida lutar com unhas e dentes por aquilo que considero justo e verdadeiro.
P: Quais os seus trunfos para que a sua voz se torne mais audível?
R: A transformação dos nossos trabalhos em livros e a sua viabilidade em os editarmos para que sirvam de subsídios aos órgãos de governo, principalmente nos setores de Educação e Cultura, é uma nossa meta. Continuaremos lutando para que a Capoeira seja adotada como nossa representante cultural, da mesma forma que as Artes Marciais do Oriente representam os seus países de origem.